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A aplicação do Código Comercial brasileiro entre 1850 e 1860: análise das evidências de um caso de falência culposa1 1 Pesquisa financiada pela Fundação Carlos Chargas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), Bolsa de Pós-Dotorado Sênior, março 2013-fevereiro 2014 (processo nº E-26/100.046/2013). O projeto foi conduzido no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro.

La aplicación del Código Comercial Brasileño entre los años del 1850 y 1860: un análisis de las evidencias de un caso de quiebra culposa

L’application du Code de commerce brésilien entre 1850 et 1860: analyse de quelques évidences basées sur un cas de défaillance coupable

Resumo:

O artigo oferece, com base no exemplo de um caso de falência (1853-1860) de um comerciante de Porto Alegre, Francisco Ferreira de Almeida, uma análise da aplicação do Código Comercial brasileiro na primeira década de sua introdução. O objetivo é indicar a variedade de possibilidades que tinham à sua disposição os atores jurídicos no curso do processo e as restrições criadas sobre estes pelo procedimento judicial. A partir do caso de Ferreira de Almeida, chegamos à conclusão de que o sistema jurídico dos anos 1850-1860 foi caracterizado por uma grande complexidade de tribunais, que trabalhavam às vezes em paralelo e interagiam ou se comunicavam de uma maneira indireta. O próprio procedimento do Tribunal da Relação foi intensamente condicionado pelos atores locais e pelas ações na fase inicial do processo de falência (conciliação e arbitragem). Resulta, também, que os papéis públicos e privados dos atores envolvidos no processo judicial mesclaram-se e influíram no processo que ainda continha elementos da legislação filipina. Em consequência, para entender o que foi a cultura jurídica do Império ou como funcionaram os tribunais, faz-se necessário estudar as instituições judiciais a partir das práticas administrativas e comunicativas dos atores sociais que as compõem.

Palavras-chave:
Código Comercial; aplicação; cultura jurídica.

Resumen:

El artículo ofrece, con base en un ejemplo de caso de quiebra (1853-1860) de un comerciante de Porto Alegre, Brasil, llamado Francisco Ferreira de Almeida, un análisis de la aplicación del Código Comercial brasileño en la primera década de su introducción. El objetivo es indicar las varias posibilidades que los atores jurídicos tenían con ellos en el curso del proceso y las restricciones creadas a ellos por el proceso judicial. A partir del caso de Ferreira de Almeida, se llegó a la conclusión que el sistema jurídico de los años 1850-1860 fue caracterizado por una grande complejidad de tribunales, los cuales trabajaban a veces en paralelo e interaccionaban o se comunicaban indirectamente. El propio proceso del Tribunal del Relacionamiento fue intensamente condicionado por actores locales y por acciones en la fase inicial del proceso de quiebra (conciliación y arbitraje). El resultado es también que los papeles públicos y particulares de los actores envueltos en el proceso judicial se misturaron e influyeron en el proceso que aun tenia elementos de la legislación filipina. Consecuentemente, para comprehender lo que fue la cultura jurídica del Imperio o como los tribunales trabajaban, es necesario estudiar las instituciones judiciales desde las prácticas administrativas y comunicativas de los actores sociales que las componen.

Palabras clave:
Código Comercial; aplicación; cultura jurídica.

Résumé:

Cet article propose une analyse de l’application du Code de Commerce brésilien dans la première décennie de son introduction en se basant sur l’exemple de la faillite (1853-1860) d’un marchand de Porto Alegre, Francisco Ferreira de Almeida. Le but est de montrer la variété des possibilités dont disposaient les acteurs juridiques au cours du procès juridique et les restrictions qui leur étaient imposées par la procédure judiciaire. A partir du cas de Ferreira de Almeida, nous constatons que le système juridique des années 1850-1860 était caractérisé par une grande complexité, les tribunaux travaillant parfois parallèlement les uns aux autres et interagissant ou communicant d’une manière indirecte entre eux. Même la procédure de la Cour d’Appel (Tribunal da Relação) était fortement influencée par les acteurs locaux et les actions prises dans la phase initiale de la procédure de faillite (de conciliation et d’arbitrage). Il résulte aussi de notre analyse que les rôles publics et privés des acteurs impliqués dans le processus judiciaire se confondaient et influençaient la procédure, qui contenait encore des éléments de la législation datant de l’époque de Philippe II. Par conséquent, afin de comprendre quelle était la culture juridique de l’Empire ou comment les tribunaux fonctionnaient-ils à cette époque-là, il faut étudier les institutions judiciaires à partir des pratiques administratives et de communication des acteurs sociaux qui les composent.

Mots-clés:
Code de Commerce; application; culture juridique.

Abstract:

This article offers, based on the example of a bankruptcy case (1853-1860) of a tradesman in Porto Alegre, Francisco Ferreira de Almeida, an analysis of the Brazilian Commercial Code’s application in the first decade of its introduction. The purpose of this analysis is to indicate the variety of possibilities that legal agents had at their disposal in the judicial process and the restrictions created on these by legal proceedings. From the case of Ferreira de Almeida, we conclude that the legal system in the years 1850-1860 was characterized by a great complexity of courts, working sometimes in parallel and interacting or communicating in an indirect way. Even the procedure of the Court of Appeal (Tribunal da Relação) was heavily conditioned by local agents and by the actions taken early in the bankruptcy proceedings (conciliation and arbitration). Also, the public and private roles of the agents involved in the judicial process blended up and influenced the process, which still contained elements of the Philippine Ordinances. Consequently, to understand what the legal culture of the Empire was or how courts worked, it is necessary to study the judicial institutions from the point of view of the administrative and communicative practices of the social agents that composed them.

Keywords:
Commercial Code; application; legal culture.

Nos últimos anos, as leis comerciais e as práticas judiciais, envolvendo a atividade comercial, têm recebido uma atenção cada vez maior, não apenas daqueles que trabalham no campo da história jurídica clássica, mas também de economistas que discutem a importância das instituições no âmbito da Nova Economia Institucional. Assim, vários estudos têm enfatizado o tema dos tribunais comerciais e as estratégias dos comerciantes diante deles.2 2 Cf. Lisa Bernstein, “Merchant Law in a merchant court: rethinking the code’s search for immanent business norms”, University of Pennsylvania Law Review, vol. 144, n. 5, 1996, p. 1796-1802; Paul R. Milgrom; Douglass C. North; Barry Weingast, “The role of institutions in the revival of the trade: the Law Merchant, private judges, and the Champagne Fairs”, Economics and Politics, vol. 2, n. 1, 1990, p. 1-23. Sobre a Nova Economia Institucional aplicada ao estudo do comércio medieval, ver os trabalhos de Avner Greif, sobretudo, Institutions and the path to the modern Economy: lessons from medieval trade, New York, Cambridge University Press, 2006. Entretanto, tendo em vista a especialização dos historiadores, esses trabalhos tendem a ser jurídicos e administrativos ou econômicos e sociais. Por um lado, essas análises giram em torno do contexto jurídico e das funções administrativas e políticas dos tribunais, com foco nas estruturas, e não nos atores. Por outro lado, há estudos sobre os comerciantes com base em documentos legais, e o foco aqui é o uso que eles fazem das organizações jurídicas. Muitos desses trabalhos centralizam suas análises nos atores individuais ou em suas redes, em detrimento do quadro organizacional. São raros aqueles que tentam combinar a perspectiva organizacional com aquela centrada no ator e analisar as organizações jurídicas por meio das práticas jurídicas associadas a atividades comerciais.3 3 Simona Cerutti, Giustizia sommaria: pratiche e ideali di giustizia in una società di Ancien Régime (Torino, XVIII secolo), Turim, Feltrinelli, 2003; Amalia D. Kessler, A revolution in commerce. The Parisian merchant court and the rise of commercial society in eighteenth-century France, New Haven; London, Yale University Press, 2007.

Na História do Direito, as leis comerciais e as práticas jurídicas constituem um campo clássico de pesquisa. Nesse contexto, historiadores do Direito abordam questões de codificação e unificação das leis comerciais, tanto quanto a transferência de modelos jurídicos.4 4 Mary Elizabeth Basile et al. (orgs.), Lex mercatoria and legal pluralism: a late thirteenth-century treatise and its afterlife, Cambridge, Ames Foundation, 1998; Albrecht Cordes, “À la recherche d’une lex mercatoria au Moyen Âge”, In: Pierre Monnet; Otto G. Oexle (orgs.), Stadt und Recht im Mittelalter, Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 2003, p. 117-132; Emily Kadens, “Order within law, variety within custom: the character of the medieval Merchant Law”, Chicago Journal of International Law, vol. 5, n. 1, 2004, p. 39-65; Carlos Petit, Compañías mercantiles en Bilbao: 1737-1829, Sevilla, Servicio de Publicaciones de la Universidad de Sevilla, 1979; Vito Piergiovanni (org.), From lex mercatoria to Commercial Law, Berlin, Duncker & Humblot, 2005; Leon E. Trakman, The Law Merchant: the evolution of Commercial Law, Littletown, Fred B. Rothman, 1983. Mais recentemente, Amalia D. Kessler demonstrou, em seu estudo sobre o tribunal comercial de Paris do século XVIII, o quanto os valores morais e a arbitragem exerciam um papel central nas decisões daquele tribunal.5 5 Amalia D. Kessler, op cit. De forma geral, os estudos da História do Direito mais recentes representam uma nova maneira de estudar os tribunais comerciais - não como uma organização separada, mas como um ator que faz parte de uma pluralidade de jurisdições. Além do mais, eles sublinham a importância da lei consuetudinária; veja, por exemplo, Ezequiel Abásolo, “El código de comercio español de 1829 en los debates y las prácticas jurídicas del extremo sur de América”, Anuario de Historia del Derecho Español, vol. 78-79, 2009, p. 447-460; Dave de Ruysscher, Naer het Romeinsch recht alsmede den stiel mercantiel. Handel en recht in de Antwerpse rechtbank (16de-17de eeuw), Kortrijk, UGA, 2009; Carlos Petit, “Mercatvra y Ivs mercatuvrum. Materiales para una antropologia del comerciante premoderno”, In: ______. (org.), Del ius mercatorium al derecho mercantile. III Seminario de Historia del Derecho Privado, Sitges, 28-30 de mayo de 1992, Madrid, Marcial Pons, 1997, p. 15-70; Idem, “Del Vsvs Mercatorvm al uso de comercio. Notas y textos sobre la costumbre mercantil”, Revista da Faculdade de Direito - UFPR, vol. 48, 2008, p. 7-38.

Pesquisadores da História Social e Econômica, por sua vez, examinaram registros de tribunais comerciais como um meio de estudar diferentes elites e redes comerciais.6 6 Por exemplo, sobre o mundo hispânico, Antonio-Miguel Bernal, La financiación de la Carrera de Indias: 1492-1824 Dinero y crédito en el comercio colonial español con América, Sevilla, Fundación Cajasol, 1992; Huguette Chaunu; Pierre Chaunu, Séville et l’Atlantique (1504-1650), Paris, Armand Colin, 1955-1960, 9v; Manuel Basas Fernández, El consulado de Burgos en el siglo XVI, Madrid, CSIC, 1963; Lutgardo Garcia Fuentes, El comercio español con América, Sevilla, CSIC, 1980; Bernd Hausberger; Antonio Ibarra (orgs.), Comercio y poder en América colonial: los consulados de comerciantes, siglos XVII-XIX, Frankfurt am Main, Vervuert; México, Iberoamericana, 2003; Teófilo Guiard y Larrauri, Historia del consulado y casa de contratación de Bilbao y del comercio de la villa, Bilbao, José de Astuy, 1972, 3v; Ana Crespo Solana, La casa de contratación y la intendencia general de la Marina en Cádiz (1717-1730), Cádiz, Servicio de Publicaciones de la Universidad de Cádiz, 1996; Enriqueta Vila Vilar; Allan J. Kuethe (orgs.), Relaciones de poder y comercio colonial: nuevas perspectivas, Sevilla, Escuela de Estudios Hispano-Americanos, 1999. Entretanto, certas pesquisas aventuraram-se na história jurídica e cultural desses tribunais. É o caso da investigação de Simona Cerutti. Após perquirir sobre os comerciantes estrangeiros, ela passou a questionar a importância dos procedimentos judiciais no século XVIII, na cidade de Turim.7 7 Simona Cerutti, Giustizia sommaria: pratiche e ideali di giustizia in una società di Ancien Régime (Torino, XVIII secolo), Turim, Feltrinelli, 2003. Cerutti analisa inúmeros litígios comerciais, em que atuaram diversos tribunais da cidade (entre eles, o tribunal comercial) e observa como estes, por sua vez, respondiam a essas demandas judiciais.8 8 Ibidem, p. 12. Em uma tentativa similar de combinar história social e jurídica, Guillaume Calafat vem estudando litígios marítimos e comerciais no Mediterrâneo. Em sua tese de doutorado, pesquisou o Governatore e o Auditore de Livorno, o Consoli do Mar del Mare de Pisa e a Ruota Civile de Florença. Seu objetivo foi analisar a complexidade das noções jurídicas no Mediterrâneo, além de investigar a cultura jurídica dos comerciantes e marinheiros durante os séculos XVII e XVIII. Cf. Guillaume Calafat, Une mer jalousie. Juridictions maritimes, ports francs et regulation du commerce en Méditerranée (1590-1740), Tese de doutorado, Université Paris 1 Pantheon-Sorbonne ; Università degli Studi di Pisa, 2013; Idem, “L’institution de la coexistence. Les communautés et leurs droits à Livourne (1570-1630)”, In: David do Paço; Mathilde Monge; Laurent Tatarenko (orgs.), Des religions dans la ville Ressorts et stratégies de coexistence dans l’Europe des XVIe-XVIIIe siècles, Rennes, Presses Universitaires de Rennes, 2010, p. 83-102. Sua análise lança luzes sobre as interações entre diferentes instâncias judiciais e atores individuais, como um processo que leva à contínua redefinição e reclassificação dos casos e de seus protagonistas, por meio dos procedimentos judiciais.

Apesar de haver um grande número de estudos sobre leis comerciais e práticas judiciais envolvendo a atividade comercial, tanto os historiadores como os historiadores do Direito têm se interessado pouco pelo procedimento como elemento do processo jurídico.9 9 Simona Cerutti, op cit 2003, p. 12, defende a ideia de que o procedimento era o elemento central do processo judicial na Idade Moderna. O objetivo da Justiça não era criar uma igualdade diante da lei, nem chegar a um julgamento imparcial, mas, ao contrário, criar um consenso entre as partes. Mais recentemente, o historiador alemão André Krischer se referiu diretamente à teoria de Luhmann. Cf André Krischer, “Das Verfahren als Rollenspiel? Englische Hochverratsprozesse im 17. und 18. Jahrhundert”, In: Barbara Stollberg-Rilinger; André Krischer (orgs.), Herstellung und Darstellung von Entscheidungen, Verfahren, Verwalten und Verhandeln in der Vormoderne, Berlin, Ducker & Humblot, 2010, p. 211-251; Idem, “Sociological and cultural approaches to pre-modern decision-making”, In: Marie-Joséphine Werlings; Fabian Schulz (orgs.), Débats antiques, Paris, De Boccard, 2011, p. 129-140. Isso surpreende, particularmente no caso da História Social, porque a Sociologia - e a Sociologia Jurídica - apresenta importantes estudos no assunto.10 10 Bruno Latour, La fabrique du droit Une ethnologie du Conseil d’État, Paris, La Découverte, 2002; Niklas Luhmann, Legitimation durch Verfahren, 3. ed., Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1983 {1969}; Dominique Schnapper, Une sociologue au Conseil constitutionnel, Paris, Gallimard, 2010. Pela crítica recente de Latour e Schnapper, ver Liora Israël, “Conseils de sociologues. Bruno Latour et Dominique Schnapper face au droit”, Genèses, vol. 87, n. 2, 2012, p. 136-152. Para Niklas Luhmann e Bruno Latour, é o procedimento que modula a questão do processo judicial, enquadrando os participantes em um sistema comum de comunicação e permitindo, assim, a redução de complexidade.11 11 Niklas Luhmann, Legitimation durch Verfahren, 3. ed., Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1983 {1969}, p. 44-46; Bruno Latour, La fabrique du droit Une ethnologie du Conseil d’État, Paris, La Découverte, 2002, p. 83-118 (em particular, o capítulo 2 - “Savoir faire mûrir un dossier”). Entretanto, observa-se que os autores não entram em acordo sobre a definição e significação do Direito. Para Latour, o Direito é onipresente e dissociável da sociedade, enquanto que, para Luhmann, é um sistema parcial da função na sociedade. Desse modo, Luhmann caracteriza o processo judicial moderno como um sistema social que ganha legitimidade por meio da “autonomia relativa” do sistema jurídico.12 12 Niklas Luhmann, op cit, p. 69-74. Essa autonomia é gerada pela comunicação simbólica, pela separação entre os papéis públicos e privados dos atores envolvidos no processo judicial e pelo resultado “aberto” ou incerto do processo judicial que possibilita o envolvimento comunicativo das partes no processo. Esse tipo de profissionalização e isolamento do processo judicial do contexto social seria característico para a sociedade contemporânea. Nesse sentido, um estudo recente de Reuben Zahler mostra como os tribunais de justiça na Venezuela conseguiram, poucos anos depois da independência (1821), separar o processo judicial das relações sociais, ultrapassando, assim, a confusão - típica da Idade Moderna13 13 Estudos recentes defendem que os tribunais da Idade Moderna não eram autônomos, especialmente por causa da falta de distinção entre os papéis público e privado dos atores. Havia uma constante demanda de que os procedimentos legitimassem e mantivessem a ordem social e política em vigor. A legitimidade era criada através de um processo de aprendizagem, que envolvia os atores jurídicos e o público mais amplo. André Krischer, “Das Problem des Entscheidens in systematischer und historischer Perspektive”, In: Barbara Stollberg-Rilinger; André Krischer (orgs.), Herstellung und Darstellung von Entscheidungen Verfahren, Verwalten und Verhandeln in der Vormoderne, Berlin, Ducker & Humblot, 2010, p. 56. - existente entre os papéis públicos e privados das pessoas.14 14 Ruben Zahler, Ambitious rebels: remaking honor, law, and liberalism in Venezuela, 1780-1850, Tucson, University of Arizona Press, 2013. Observa-se, contudo, que Zahler não trata somente dos processos judiciais econômicos, mas da Justiça em geral. Entretanto, em relação à introdução do Código do Comércio espanhol de 1829 nos cinco estados federados da Argentina, Ezequiel Abásolo constatou que os operadores do Direito integraram as disposições do Código em um sistema de pensamento jurídico, que ainda mantinha muitas características da cultura jurídica de ius commune.15 15 Ezequiel Abásolo, “El código de comercio español de 1829 en los debates y las prácticas jurídicas del extremo sur de América”, Anuario de Historia del Derecho Español, vol. 78-79, 2009, p. 447-460. No que se refere ao Brasil, a nossa pesquisa dos casos de falência, por volta do ano de 1850, mostra claramente que os tribunais brasileiros de meados do século XIX não podem ser considerados formadores de um sistema parcial autônomo ou autopoiético da função na sociedade, de acordo com Luhmann.16 16 Cf. Hugh Baxter, “Niklas Luhmanns’s theory of autopoietic legal systems”, Annual Review of Law and Social Science, vol. 9, 2013, p. 167-184. Assim, o campo jurídico continuava a ser fortemente influenciado pelos acontecimentos no campo social, econômico e político. Como então caracterizar a práxis forense dos tribunais envolvidos em julgamentos de casos de falência

O objetivo do artigo é estudar a hierarquia entre os tribunais e o procedimento no momento da introdução do Código do Comércio brasileiro em 1850. Pretendemos, pelo exemplo de um caso de falência (1853-1860) de um comerciante de Porto Alegre, Francisco Ferreira de Almeida, refletir sobre a diferença entre a norma e a aplicação da lei. Esse caminho já se justifica pelo fato de que, até hoje, existem, no Brasil, poucos estudos históricos sobre a prática judicial dos tribunais.17 17 Uma exceção é o estudo de Keila Grinberg, Liberata - a lei da ambiguidade: as ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX, 2. ed., Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1994. José Reinaldo de Lima Lopes (org.), O Supremo Tribunal de Justiça do Império: 1828-1889, São Paulo, Saraiva, 2010, fala também das decisões do Tribunal, mas não trata do processo do julgamento. Quanto ao livro de Edson Alvisi Neves, Magistrados e negociantes na Corte do Império do Brasil: o Tribunal do Comércio, Rio de Janeiro, Jurídica; FAPERJ, 2008, o autor não tematiza a prática judicial, mas enfatiza a organização jurídica e administrativa do tribunal. O mesmo ocorre com os estudos de Arno Wehling; Maria José Wehling, Direito e justiça no Brasil Colonial: o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro (1751-1808), Rio de Janeiro, Renovar, 2004; Stuart B. Schwarz, Sovereignty and society in Colonial Brazil: the High Court of Bahia and its judges, 1699-1751, Berkeley, University of California Press, 1973; Walter de Mattos Lopes, A Real Junta do Commercio, Agricultura, Fabricas e Navegação deste Estado do Brazil e seus Domínios Ultramarinos: um Tribunal de Antigo Regime na Corte de Dom João (1808-1821), Dissertação de mestrado, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009. Disponível em: <http://www.historia.uff.br/stricto/td/1339.pdf>. Acesso em: 10 de fevereiro de 2014; Paulo Paranhos, A Casa da Suplicação do Brasil A Modernidade na Justiça Brasileira, Rio de Janeiro, Erregê, 1993. Não pretendemos estabelecer uma visão geral da aplicação do Código do Comércio nessa época, mas indicar a variedade de possibilidades que tinham à sua disposição os atores jurídicos no curso do processo judicial e as restrições criadas sobre os atores pelo procedimento. Entretanto, esse tipo de micro-história permite uma reflexão mais ampla sobre a necessidade de estudar História do Direito não só a partir das leis e fundações ideológicas, mas a partir de processos de comunicação e práticas sociais.

Os tribunais brasileiros de meados do século XIX não podem ser considerados formadores de um sistema parcial autônomo ou autopoiético da função na sociedade

Iniciaremos com uma descrição cronológica do caso de falência de Francisco Ferreira de Almeida seguida de uma breve descrição das disposições do Código Comercial ligadas aos casos de falência. A partir dessas informações preliminares, vamos analisar a aplicação da legislação nos processos de comunicação nos tribunais e entre os tribunais. Também serão analisados os discursos fora do âmbito do Judiciário, veiculados nos jornais, seguidos da questão do papel das redes sociais e da autonomia dos tribunais. Concluímos com algumas reflexões gerais sobre o estudo da cultura jurídica18 18 Definimos cultura jurídica de uma maneira ampla como “a fábrica de valores e posições que regula a ação jurídica”. Nota-se que essa definição inclui todo e qualquer ator jurídico, dentro e fora dos tribunais. e o funcionamento dos tribunais suscitados pelo estudo do caso de falência de Francisco Ferreira de Almeida.

Os processos ligados à falência de Francisco Ferreira de Almeida

Entre 1853 e 1855, foram publicados nos jornais porto alegrenses Correio do Sul, O Mercantil e Rio Grandense19 19 O jornal Rio Grandense foi explicitamente criado em 1845 para servir aos interesses dos comerciantes. Cláudia Simone de Freitas Munhoz, A Associação Comercial do Rio Grande de 1844 a 1852: interesses e atuação representativa do setor mercantil, Dissertação de mestrado, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2003, p. 118. vários artigos relativos ao caso de falência que, à primeira vista, parece banal. Entretanto, o caso do comerciante não matriculado20 20 A obtenção da matrícula na Junta do Comércio do Rio de Janeiro foi obrigatória a partir de 1809 pelos negociantes de grosso trato. Francisco Ferreira de Almeida21 21 Francisco Ferreira de Almeida foi comerciante pecuarista e agrícola (notadamente animais, couros, charque e feijão), mas também comercializou têxteis, utensílios de cozinha, ferragem e livros. Ele tinha quota-parte em um navio (“Patacho Lívia”) e era proprietário de algumas casas e terras em Porto Alegre. Arquivo Nacional (AN), Relação do Rio de Janeiro, “José Francisco de Azevedo Quintão e Francisco Lopes da Costa Moreira, agravantes/Francisco Ferreira de Almeida, agravado, 1854”, n. 2.408, cx. 1.605, fl. 652v; 659v-670v. permite uma investigação em profundidade da prática judicial, visto que ele foi tratado e julgado por vários tribunais em Porto Alegre e no Rio de Janeiro ao longo da década de 1850.22 22 Decreto nº 737, de 25 novembro de 1850, Art. 16: “Na arrecadação, administração e distribuicão dos bens dos negociantes que não forem matriculados, nos casos de fallencia, se guardará no Juizo Commercial quanto se acha determinado pelo Código para as quebras dos commerciantes, na parte que fôr applicavel (art. 909 Código).” Lei nº 556, de 25 de junho de 1850, Art. 909: “Todavia na arrecadação, administração e distribuição dos bens dos negociantes que não forem matriculados, nos casos de fallencia, se guardará no Juizo ordinario quanto se acha determinado pelo presente Código para as quebras dos commerciantes matriculados, na parte que for applicavel.” Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/decreto/Historicos/DIM/DIM737.htm>. Acesso em: 10 de fevereiro de 2014. O processo foi iniciado com uma tentativa de conciliação.23 23 Edson Alvisi Neves, Magistrados e negociantes na Corte do Império do Brasil: o Tribunal do Comércio, Rio de Janeiro, Jurídica; FAPERJ, 2008, p. 235, afirma que a conciliação só foi autorizada pelos comerciantes matriculados - uma situação, segundo ele, “confirmada pelo Aviso de 8 de julho de 1851”. Ora, o caso de Ferreira de Almeida mostra que o aviso não foi observado ou demorou a ser aplicado em Porto Alegre. Segundo Eugene Ridings, Business interest groups in nineteenth-century Brazil, Cambridge, Cambridge University Press, 1994, p. 295: “Despite the law, the benefits of the Commercial Code apparently were increasingly given to nonregistered businessmen as well, for the requirement was more and more ignored”. Nessa fase, as partes tentaram chegar a um acordo em um procedimento oral perante o juiz de paz do primeiro distrito de Porto Alegre.24 24 Decreto nº 737, de 25 novembro de 1850, Art. 24: “Póde intentar-se a conciliação perante qualquer Juiz de Paz, onde o réo fôr encontrado, ainda que não seja a freguenzia do seu domicilio”. Como isso não aconteceu, o caso foi tratado depois, desde março de 1853, como um caso de arbitragem voluntário junto ao “juízo arbitral da Câmara Municipal de Porto Alegre”.25 25 Na forma do Art. 411 § 1 do Regulamento nº 737, de 25 de novembro de 1850, o qual refere que o juízo arbitral “{é} voluntario, quando é instituido por compromisso das partes”. Os juízes de arbitragem foram escolhidos pelas partes litigantes e eram comerciantes, tratando-se, assim, de um julgamento por pares.26 26 Edson Alvisi Neves, op cit, p. 164-165. Eles examinaram os livros do negócio de Ferreira de Almeida e colheram testemunhos. No meio do processo de arbitragem, Francisco Ferreira de Almeida foi preso, suspeito de introduzir moeda falsa em circulação. O processo demorou e, finalmente, o “juízo arbitral”, não podendo estabelecer um balanço dos negócios do réu em tempo previsto pelo Regulamento 737, encerrou o processo em 5 de junho 1854, sem pronunciar sentença alguma, deixando às partes a possibilidade de recorrer ao “juízo de direito do cível do comercio”.27 27 A decisão foi publicada pelo ex-sócio e adversário de Ferreira de Almeida, Francisco Antônio Borges, no jornal Correio do Sul, de 02 de julho de 1854, p. 4, e acha-se junto aos documentos do AN, op cit, fl. 932: “Não tendo sido possível aos árbitros proferirem sentença definitiva n’estes autos, dentro do prazo, em que as partes combinarão, porque devendo-se com atenção e cuidado, que e matéria exigia, examinar as contas, imensos documentos, e as alegações que constão dos autos {...}, e ao juiz arbitral, não é permitido segundo o código do comercio e seu respectivo regulamento, ir além do mesmo prazo, sem ficar invalidada toda e qualquer decisão, que definitivamente proferisse sobre as questões, que lhe forão submetidas, os árbitros entregão os presentes autos sem sentença alguma, pelos motivos acima expedidos, devendo o escrivão intimar este despacho ás partes, para seu conhecimento, e poderem requerer o seu direito no juízo, e pelos meios que foram competentes. Porto Alegre 5 de junho de 1854. - José Domingos dos Santos, Joaquim Lopes de Barros, João Correia de Oliveira, Joaquim José de Oliveira Castro, José Antônio Coelho Junior, Antônio José Pedroso”. Iniciou-se, assim, uma série de processos conduzidos em diversos tribunais cíveis e criminais de primeira e segunda instância. Além disso, os processos judiciais foram acompanhados por uma campanha da imprensa iniciada pelos participantes, inclusive o “juiz arbitral”, que visava descreditar o partido adversário.

Como o “juízo arbitral” não proferiu qualquer sentença, vários comerciantes recorreram junto ao “juízo de direito do cível do comercio” de Porto Alegre,28 28 Decreto nº 737, de 25 novembro de 1850, Art. 6: “As attribuições conferidas pelo Código aos Juizes de Direito do Commercio e o conhecimento das causas commerciaes em primeira instancia, competem aos Juizes Municipaes, ou do Civel, onde os houver”. requerendo a falência de Ferreira de Almeida. A falência foi aberta com a sentença do “juiz municipal e do comercio” em 21 de setembro de 1854.29 29 AN, Relação do Rio de Janeiro, “Sentença do juiz do comercio José Pereira da Costa Motta, de 21 de setembro 1854”, n. 2.408, cx. 1.605, fl. 535v-536r. Todavia, os embargos de Ferreira de Almeida foram recebidos e julgados providos, declarando o juiz a abertura da falência sem efeito. Em consequência, seus bens lhe foram devolvidos em dezembro 1854. Alguns de seus credores recorreram ao Tribunal da Relação do Distrito (segunda instância),30 30 O Tribunal da Relação competente pelo Rio Grande do Sul foi o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro, conhecido também como Tribunal da Relação da Corte. O Tribunal da Relação do Rio Grande do Sul e Santa Catarina somente foi criado em 1873, com sede a Porto Alegre. que decidiu em “acordão”, em 16 de fevereiro de 1855, que subsistia a abertura de falência e determinou, assim, uma nova arrecadação dos bens de Ferreira de Almeida.31 31 AN, Juízo Especial do Comercio da 1ª Vara, “Decisão do juiz municipal, substituto do comercio de Porto Alegre, José de Araújo Brusque, de 7 de Abril 1859”, n. 6.868, cx. 361, fl. 1358v. Retornando o processo à primeira instância, Ferreira de Almeida foi declarado em “falência qualificada casual”. Entretanto, o “promotor público da 2ª vara criminal” recorreu da decisão, e o Tribunal da Relação do Distrito, em segunda instância, julgou, em 20 de março 1857, que Ferreira de Almeida havia incorrido em “falência culposa” e, por isso, deveria ser condenado à prisão.32 32 Decreto nº 707, de 09 de outubro de 1850, Art. 18: “No crime de banca-rota, ou quebra com culpa e quebra fraudulenta, formarão a culpa até ao primeiro de Janeiro de mil oitocentos cincoenta e hum os Juizes Municipaes. D’esta data em diante será a mesma attribuição exercida pelos referidos Juizes tão somente nas Provincias onde não houver Tribunal do Commercio, ou Relação”; Art. 19: “Formada a culpa pelos ditos Juizes, se proseguirá no processo pela fórma estabelecida nos Artigos antecedentes. Quando porêm tiverem procedido a formação da culpa os Tribunaes do Commercio, ou Relações, remettido o traslado do processo, na conformidade do Artigo oitocentos e vinte do Código do Commercio, o Juiz de Direito, procederá a julgamento pela fórma estabelecida a respeito dos crimes de que trata este Regulamento”; Art. 20: “Não haverá recurso do despacho de pronuncia ou não pronuncia, quando for proferido pelos Tribunaes de Commercio ou Relações”. O falido, contudo, apresentou um projeto de concordata junto ao juiz de paz. Assim, em reuniões dos credores, a partir de maio 1857, foi formulada uma concordata,33 33 Prevista pelo Regulamento nº 738, de 25 de novembro de 1850, Art. 132. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/decreto/Historicos/DIM/DIM738.htm>. Acesso em: 10 de fevereiro de 2014. que consistiu em uma concessão de um prazo sem redução dos débitos, e Ferreira de Almeida foi absolvido da falência. Ora, nem todos credores assinaram o documento, que, em 1º de setembro 1857, foi homologado pelo “juiz municipal suplente e substituto de comercio” de Porto Alegre.34 34 AN, Juízo Especial do Comercio da 1ª Vara, “Homologação da concordata pelo juiz municipal suplente, e substituto do comercio, Luiz Alfonso de Azambuja, 1 de setembro 1857”, n. 6.868, cx. 361, fl. 1224r-v. Alguns de seus credores recorreram à mesma instância e outro “juiz municipal e substituto de comercio”, em 7 de abril de 1859, considerou inválida a concordata e reconheceu válidas as reivindicações de vários desses credores, que não teriam sido considerados legítimos pela comissão que examinou os livros de Ferreira de Almeida pela concordata em 1857.35 35 AN, Juízo Especial do Comercio da 1ª Vara, “Decisão do juiz municipal, substituto do comercio de Porto Alegre, José de Araújo Brusque, de 7 de Abril 1859”, n. 6.868, cx. 361, fl. 1358r-v. Ferreira de Almeida apelou contra a decisão no Tribunal do Comércio do Distrito, mas o “Juízo Especial do Comércio da 1a Vara do Rio de Janeiro” confirmou, em 16 de junho 1860, a invalidade da concordata, estimando que não podia ter sido homologada, tendo em vista a disposição do art. 848 do Código do Comércio36 36 Lei nº 556, de 25 de junho de 1850, Art. 848 : “{…} Não póde dar-se concordata no caso em que o fallido for julgado com culpa ou fraudulento, e quando anteriormente tenha sido concedida, será revogada.” Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1824-1899/lei-556-25-junho-1850-501245-publicacaooriginal-1-pl.html>. Acesso em: 10 de fevereiro de 2014. e porque Ferreira de Almeida já havia sido julgado por falência culposa pelo Tribunal da Relação do Distrito.37 37 Decreto nº 737, de 25 novembro de 1850, Art. 2º: “Constituem legislação commercial o Código do Commercío, e subsidiariamente os usos commerciaes (art. 291 Código) e as leis civis (arts. 121, 291 e 428 Código). Os usos commerciaes preferem ás leis civis sómente nas questões sociaes (art. 291) e casos expressos no Código”. O desembargador do Tribunal do Comércio, João Lopes da Silva Coito, considerou

que a denegação da concordata he hum dos effeitos civis da pronuncia no cazo {acórdão da Relação, que qualificou culposa a falência em 1857}, em que o falido he julgado com culpa, e esse effeito permanece, qualquer que seja o julgamento final do crime da quebra art. 82 do Cod., que embora o falido fosse absolvido no Juízo criminal, todavia ficou em vigor aquelle effeito da pronuncia, quanto mais que a sentença de absolvição está ainda dependente da decisão da appelação interposta pela Procuradoria Publica.38 38 AN, Juízo Especial do Comercio da 1ª Vara, “Relatório do desembargador do Tribunal do Comercio, João Lopes da Silva Coito de 4 de junho de 1860”, n. 6.868, cx. 361, fl. 140r. O relatório é diretamente seguido pela decisão do Tribunal do Comercio, confirmando a decisão do juiz municipal de Porto Alegre (fl. 1404).

As interações sociais e o enquadramento das partes litigantes e dos juízes no meio (ou rede) social, econômico e político influíram na maneira de trabalhar dos tribunais

O próprio processo de falência foi acompanhado por outros, nas searas civil e criminal. Francisco Ferreira de Almeida denunciou, por exemplo (sem sucesso), o seu ex-sócio, Francisco Antônio Borges,39 39 Francisco Antônio Borges sofreu bancarrota em 1852, mas, contrariamente a Francisco Ferreira de Almeida, conseguiu concluir uma concordata com seus credores. No momento da bancarrota, Borges tinha em sua posse centenas de animais, várias terras, 53 escravos, entre outros. Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS), “Processo judicial em juízo de distrito civil de Porto Alegre: Francisco Antônio Borges, falido/Francisco Ferreira de Almeida, requerente, 1852”, n. 949. que lhe vendera escravos e, durante o processo de falência de Ferreira de Almeida, os incitou a fugir.40 40 AN, Relação do Rio de Janeiro, “Apelação criminal: Francisco Ferreira de Almeida, apelante/Francisco Antônio Borges apelado, 1856 - 1857”, n. 386, cx. 129.

As disposições do Código do Comércio

O Código do Comércio brasileiro entrou em vigor em 1850 e foi complementado pelo Regulamento nº 737, de 1850, que normalizou a organização dos tribunais e deu uma nova ordem ao processo. Como o Brasil não teve um Código Civil até 1916, foram, sobretudo, o Código do Comércio, o Regulamento nº 737 e a Lei Geral das Hipotecas (1864) que serviram, em parte, como fontes de Direito Privado. Entretanto, no que tocava ao processo ordinário, o Regulamento seguia, em grande parte, as Ordenações Filipinas, as quais também continuaram a ser invocadas em questões não reguladas pelo novo Direito, cuja introdução tinha se iniciado com o Código Criminal (1830) e o Código do Processo Criminal (1832).41 41 José Reinaldo Lima Lopes, O direito na história Lições introdutórias, 4. ed., São Paulo, Atlas, 2008, p. 271-287. No processo de Ferreira de Almeida, seu advogado fundamentou o seu pleito, além dos códigos, no manual do jurista português José Ferreira Borges, Diccionario juridico-commercial, Porto, Typographia de Sebastião José Pereira, 1856 {1839} e no autor francês Jean-Marie Pardessus, que publicou, entre outras obras, Élémens de jurisprudence commerciale, Paris, Durand, 1811; Cours de droit commercial, Paris, Gamery, 1814-1816, 4v; Collection de lois maritimes, Paris, Imprimerie Royale, 1828-1845, 6v; e Les us et coutumes de la mer, Paris, Imprimerie Royale, 1847, 2v. AN, Juízo Especial do Comercio da 1ª Vara, “Apelação de Francisco Ferreira de Almeida contra a decisão do juiz municipal, substituto do comercio de Porto Alegre, José de Araújo Brusque de 7 de Abril 1859, anulando a homologação do concordata”, n. 6.868, cx. 361, fl. 1382r; 1384r.

Assim, Jose Reinaldo de Lima Lopes constata que

o Regulamento de 1850 criou uma cultura e manteve grande parte da cultura antiga. Manteve, por exemplo, os juramentos entre os meios de prova admissíveis em alguns casos e as testemunhas em grande número {...}. Elas eram inquiridas por cartas de inquirição, depositavam-se as perguntas em cartório com antecipação. As partes mesmas faziam a “audiência”, o termo era lavrado pelo escrivão e os juízes pouco compareciam. Mantivera-se um regime de provas legais (plenas e relativas). Importantíssimo na cultura jurídica foi determinar-se que cada ação correspondia a um título diferente {...} (fretamento, seguro, salario), o que resultou no formalismo processual, que já se herdara dos antigos.42 42 José Reinaldo Lima Lopes, op cit, p. 287.

O Regulamento determinou que a jurisdição comercial fosse aplicada em todas as causas normatizadas pelo Código Comercial e que uma das partes fosse comerciante, mas a dívida também tinha de ser comercial.43 43 Decreto nº 737, de 25 de novembro de 1850, Art. 10: “Competem á jurisdicção comercial todas as causas que derivarem de direitos e obrigações sujeitas as disposições do Codico Commercial, comtanto que uma das partes seja comerciante (art. 18. Tit. Único Código)”; Art 11: “Não basta que para determinar a competência da Jurisdicção comercial que ambas as partes ou alguma delas seja commerciate, mas é essencial que a divida seja também comercial: outrossim não basta que a divida seja comercial, mas é essencial que ambas ou uma das partes seja comerciante, salvos os casos e excepções do art. 20”. O art. 2º do mesmo Regulamento prescrevia que “{c}onstituem legislação comercial o Código do Commercio, e subsidiariamente os usos commerciaes (art. 291) e as leis civis (arts. 121, 291 e 428 Código). Os usos commerciaes preferem ás leis civis somente nas questões sociaes (art. 291) e casos expressos no Código”.44 44 Decreto nº 737, de 25 de novembro de 1850, Art. 2º.

Segundo o Regulamento, eram os “Juizes Municipaes, ou do Civel” competentes pelas causas comerciais em primeira instância.45 45 Ibidem, Art. 6º: “As attribuições conferidas pelo Código aos Juizes de Direito do Commercio e o conhecimento das causas commerciaes em primeira instancia, competem aos Juizes Municipaes, ou do Civel, onde os houver (art. 17 Tit. unico Código)”. Os Tribunais da Relação do distrito (Bahia, Rio de Janeiro, Maranhão e Pernambuco) atuavam como segunda e última instâncias.46 46 Decreto nº 737, de 25 de novembro de 1850, Art. 7º: “As relações do districto são Tribunaes de segunda e ultima instancia nas causas commerciaes, e lhes competem: § 1º O conhecimento por appellação das causas commerciaes cujo valor exceder de 200 mil reis (art. 26 Tit. Unico Codico). § 2.º O conhecimento da appellação interposta das sentenças do Tribunal do Commercio nos casos dos arts. 851, 860 e 906 Código)”. Em Porto Alegre, os comerciantes se organizavam em “praça do comercio”, formando a “Associação Comercial de Porto Alegre” em 1858.47 47 Cláudia Simone de Freitas Munhoz, A Associação Comercial do Rio Grande de 1844 a 1852: interesses e atuação representativa do setor mercantil, Dissertação de mestrado, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2003, p. 83. A autora constata que a “Associação Comercial da cidade do Rio Grande” foi criada em 1844, cujo regulamento aprovado pelo Presidente da Província, Conde de Caxias, em 1845, não mudou seu estatuto depois da introdução do Código Comercial de 1850. As fontes provam, segundo a autora, que, ainda em junho 1889, o estatuto continuava sendo o de 1845. Este demostra a continuidade das práticas já estabelecidas nas praças comerciais. Munhoz afirma que “o Código Comercial apenas regulou o que já era estabelecido por uso e costume nas praças comerciais” (p. 87). Eugene Ridings, Business interest groups in nineteenth-century Brazil, Cambridge, Cambridge University Press, 1994, p. 287, vai além disso e sublinha o papel das autoridades locais na formulação - por meio da prática jurídica - da lei: “The Commercial Code of 1850 provided that usages and customs be determined by the local commercial association, whereupon they became law, duly registered by the commercial courts.” Porém, já antes dessa data, as fases iniciais de processamento da conciliação e arbitragem foram realizadas pelos mercadores na função de juízes leigos. Nota-se que, mesmo na fase inicial de conciliação e arbitragem, já havia a participação de advogados.

A aplicação da legislação

A aplicação da legislação representa um processo condicionado por vários fatores. Assim, o procedimento dos tribunais foi influenciado por uma interpretação das normas e dos fatos jurídicos, pela própria maneira de trabalhar e comunicar do tribunal e dos tribunais entre si, assim como pela comunicação na esfera pública. Ademais, as interações sociais e o enquadramento das partes litigantes e dos juízes no meio (ou rede) social, econômico e político influíram na maneira de trabalhar dos tribunais.

Comunicação no tribunal: o papel da prova jurídica e da honra

O processamento no foro comercial do caso de falência de Francisco Ferreira de Almeida provou-se difícil do ponto de vista dos juízes. Isso porque, desde a primeira fase, que Edson Alvisi Neves denomina de “prejudicial”, os juízes arbitrais não conseguiram nem estabelecer um balanço definitivo dos negócios do falido, nem definir quem foram seus credores.48 48 Edson Alvisi Neves, Magistrados e negociantes na Corte do Império do Brasil: o Tribunal do Comércio, Rio de Janeiro, Jurídica; FAPERJ, 2008, p. 164. Nota-se que o autor só trata da hierarquia entre as diferentes instâncias judiciais no sistema português. Ele não nos fornece qualquer esclarecimento sobre o sistema brasileiro pós-1850. Entretanto, as fases de conciliação e arbitragem existiam também no foro comercial português e eram previstas pelas Ordenações Filipinas. Porém, pode-se discutir o porquê (a partir de qual critério) de denominar essas duas componentes do processamento de “fase prejudicial”, sendo que elas foram previstas pela lei como fases integrais de todo o processo de falência e que, em caso de desacordo, o processo seria transferido para o tribunal municipal. Cf. Benoît Garnot, “Justice, infrajustice, parajustice et extrajustice dans la France d’Ancien Régime”, Crime, Histoire & Sociétés/Crime, History and Societies, vol. 4, n. 1, 2000, p. 103-120. A partir desse imbróglio inicial, os tribunais Municipal e da Relação buscaram chegar a uma decisão, multiplicando o número das testemunhas, a maioria das quais argumentava “saber por ter ouvido dizer a diferentes pessoas” ou “ter ouvido dizer geralmente”.49 49 Entre outras, AN, Relação do Rio de Janeiro, n. 2.408, cx. 1.605, fl. 569v; 596r. Assim, põe-se a questão de saber o que constitui, do ponto de vista do tribunal, uma prova jurídica.

Segundo o Regulamento nº 737, em seu art. 138, eram admitidas no Juízo Comercial as seguintes provas:

§ 1º As escripturas publicas e instrumentos, que são como taes considerados pelo Código Commercial e leis civis. § 2 Os escriptos particulares. § 3º A confissão judicial. § 4º A confissão extrajudicial. § 5º O juramento suppletorio. § 6º O juramento in litem. § 7ºAs testemunhas. § 8º As presumpções. § 9º O arbitramento. § 10 O depoimento da parte. § 11 As vistorias.50 50 Regulamento nº 737, Art. 138.

No caso da falência de Francisco Ferreira de Almeida, verificamos que um dos principais problemas do processo foi criado pelo fato de que seus livros de comércio revelaram erros, seja porque foram manipulados pelo próprio Ferreira, seja porque o foi pelo seu ex-sócio Borges. Assim, não foi possível determinar se certas pessoas foram ou não seus credores. Também não ficou claro se os fundos, objeto do conflito entre Ferreira de Almeida e Borges, foram aqueles com que o segundo havia entrado na sociedade comercial constituída pelos dois, ou se eram os que Ferreira de Almeida devia a Borges. Em consequência, por saberem como foram administrados os bens da sociedade, as testemunhas foram perguntadas se as partes haviam tido “entre se intima amizade e ilimitada confiança”.51 51 AN, op cit., fl. 588v; 594v-595r; 598r; 566r. Um problema similar surgiu em outro caso de falência, o de A. S. Levy, comerciante de joias e judeu da Alsácia, que, em 1858, por ter incorrido em falência culposa em Pelotas, fugiu da cidade. Nesse caso, o Tribunal da Relação tinha grandes dificuldades em determinar se Levy estivera, na verdade, em uma sociedade comercial ou se ele tinha agido sozinho.52 52 Idem, “Juiz de Distrito da 1a Vara Crime da Corte do Rio de Janeiro: Carlos Constant Chatenay e Randolpho Fischer, administradores da massa falida de A. S. Levy, apelantes/Santiago de Prate, e M. I. Schlosmann, apelados, 1859”, n. 837, maço 163. Em ambas as situações, tratava-se de comerciantes não matriculados, e os tribunais tinham de confiar no depoimento das testemunhas para tentar resolver os casos.53 53 Nota-se que os documentos jurídicos fornecem uma ferramenta importante para o estudo de todo tipo de mercador, mas, sobretudo, eles possibilitam o estudo de pequenos mercadores e não matriculados, cujas ações são difíceis de captar de outra maneira.

Comunicação entre os tribunais

Os documentos testemunhais que subiram ao Tribunal da Relação em favor de Francisco Ferreira de Almeida repetiam, de uma maneira concertada, o depoimento, segundo o qual um dos juízes arbitrais, Joaquim José de Oliveira Castro, teria escrito uma nota - conforme algumas testemunhas, a lápis - referente aos valores das dívidas, objeto do contraditório entre Ferreira de Almeida e Borges.54 54 AN, Relação do Rio de Janeiro, n. 2.408, cx. 1.605, fl. 569v; 573r-576r; 578v; 579v-580r; 584v; 593v; 594r; 597v. Esse tipo de argumentação tornou-se possível porque os documentos do Tribunal da Relação não contêm qualquer informação oficial dada pelo tribunal ou juiz respectivo. O processamento de conciliação e arbitragem foi oral e não houve qualquer comunicação entre essa instância judicial e o Tribunal da Relação. Em consequência, os juízes acabaram por indagar as testemunhas se existia tal nota e em que ela consistia. Não existe evidência de que o juiz arbitral teria sido contatado pelo Tribunal para dar informações sobre o assunto. As mesmas testemunhas também argumentavam que Borges teria confessado ao chefe de polícia haver autorizado Ferreira de Almeida a fazer uso da quantia que lhe havia entregado.55 55 Ibidem, fl. 569v; 578v; 584v. Entretanto, os atos do processo não contêm qualquer traço de comunicação entre o chefe de polícia e o Tribunal Municipal ou o Tribunal da Relação.

De fato, o processo judicial foi, sobretudo, dominado por escrivães. As partes recolheram as provas e os testemunhos foram lavrados. Os escrivães requeriam aos tribunais contrapagamento para lavrar termos sobre os processos e as decisões já tomadas em outras instâncias. As partes também colheram testemunhos em audiências que foram conduzidas pelo juiz de Direito Civil de comércio em presença dos advogados das partes contrárias. Esse tipo de procedimento resultou em uma documentação muito extensa, com várias repetições. Os processos foram caros e demoraram. Por outro lado, as decisões do Tribunal da Relação, muitas vezes, não ultrapassaram meia página de cada folha dos autos.

Típico dos casos de falência foi o fato de que processos judiciais iniciados por diferentes credores foram conduzidos ao mesmo tempo por vários tribunais

Típico dos casos de falência foi o fato de que processos judiciais iniciados por diferentes credores foram conduzidos ao mesmo tempo por vários tribunais. A existência de processos paralelos pôde, assim, influenciar o procedimento. No caso de Ferreira de Almeida, existiam dúvidas sobre a natureza da falência (culposa ou ordinária) e sobre o reconhecimento dos credores como tais. Os tribunais tinham de decidir se o julgamento podia ser concluído antes de outros processos que já haviam sido ou não concluídos. A multiplicidade de processos era também uma tentativa de frear outro processo ou introduzir novas evidências no procedimento, referindo se a casos que já haviam sido decididos em torno da falência em questão por outros credores.

Discursos fora dos tribunais: o papel dos jornais

Em 1855, foi publicado no jornal Correio do Sul de Porto Alegre uma carta ao redator quanto ao caso de falência de Francisco Ferreira de Almeida. A carta escrita por um dos juízes arbitrais pintou uma imagem sinistra do falido:

Lendo a correspondencia assignada pelo Sr. Francisco Ferreira de Almeida {...} na qual aquelle Sr. vomitou contra mim toda a sua bilis por haver eu dado uma sentença, na qualidade de juiz do comercio, contra os seus desejos e calculos, devo agradecer a V.S. a officiosidade com que tomou a minha defesa {...} porque a homem completamente desacreditado na opinião publica e por ella apontado como passador de sedulas falças, falsificador de firmas, e de haver-se apossado da fortuna de muitos inexpertos por meio do jogo, não devia por certo ser affeiçoado a todo aquelle, que presando a honra, e a honestidade, em toda a sua vida publica e particular, mereceu sempre a estima e consideração dos homens de bem.56 56 Joaquim Lopes de Barros no Correio do Sul, n. 269, 1855, p. 3. Trata-se de um dos principais agentes exportadores de carne (1831-1842) na estatística recolhida por Gabriel Santos Berute, Atividades mercantis do Rio Grande de São Pedro: negócios, mercadorias e agentes mercantis (1808-1850), Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011, p. 82. O autor verifica ainda que “o capitão Joaquim Lopes de Barros era um dos principais procuradores {…} e atuava no comércio de cabotagem com o Rio de Janeiro. Seu patacho ‘Cruzeiro do Sul’ entrou, no mínimo por duas oportunidades, carregando vários gêneros e escravos. Para o porto ‘carioca’ enviou carnes e couros, além de ‘dois escravos a entregar’, segundo consta em três registros da praticagem da barra de Rio Grande”, p. 253. Assim, o juiz arbitral Lopes de Barros foi ativo no mesmo tipo de comércio que o falido.

Percebemos, assim, que mesmo o juiz arbitral participou de um discurso em foro público sobre o processo. De fato, houve várias publicações sobre o caso de Ferreira de Almeida nos jornais Correio do Sul, O Mercantil e Rio Grandense.57 57 Nem todos os artigos foram juntados aos autos. Nos artigos conservados no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro e relativos ao caso de Ferreira de Almeida, há citações dos jornais: O Mercantil, de 20 de outubro de 1853; 24 de dezembro de 1853; 04 e 05 de janeiro de 1854; 1º de abril de 1854; 30 de maio de 1854; 20 de janeiro de 1855. Correio do Sul: de 17 de março de 1853; 30 de dezembro de 1853; 27 de maio de 1854; 02 de julho de 1854; 15 de março de 1855. Rio Grandense, de 08 de março de 1855. Os artigos foram escritos pelo próprio Ferreira de Almeida, por seu ex-sócio e adversário Francisco Antônio Borges, pelos advogados dos dois e por autores anônimos. Borges utilizou os jornais para sistematicamente descreditar Ferreira de Almeida em público, publicando excertos do processo e denúncias sobre a conduta do réu.58 58 Em particular, Correio do Sul, n. 206, de 02 de julho de 1854, p. 1-4; Idem, de 17 de março de 1853.

Esses artigos de jornais acabaram por ser anexados aos autos do processo junto ao Tribunal da Relação. O ato de desacreditar publicamente os adversários pode também ser considerado uma tentativa de influenciar indiretamente, por meio da pressão pública, os juízos arbitrais e municipais e, por meio da introdução de novos argumentos, o próprio processo.59 59 Não encontramos tais artigos em outros autos do processo. Seria interessante, no futuro, tentar sistematizar o estudo dos jornais como fórum de contestação dos conflitos judiciais. É provável que publicações sobre os processos de falência nos jornais locais tenham sido recorrentes, mas foram elas tomadas em consideração pelos tribunais e, se esse foi o caso, é possível avaliar o impacto delas no procedimento?

Redes sociais e a autonomia dos tribunais

O ex-sócio de Ferreira de Almeida, Francisco Antônio Borges, protestou publicamente, no jornal Correio do Sul, contra os atrasos no processo inicial de arbitragem. O seu protesto revela alguns dos problemas relacionados ao fato de os juízes de arbitragem serem comerciantes e leigos. Assim, quando Ferreira de Almeida, durante a arbitragem, foi preso por distribuição de moeda falsa e continuava administrando seus bens da prisão, o seu advogado (Antônio Joaquim da Silva Maia), segundo o Borges, tirou vantagem da situação:

tirava o maior partido que podia daquela circunstancia para procrastinar o nosso pleito; e finalmente no primeiro ensejo que teve, para melhor ganhar tempo, como fiz ver pelo Mercantil de 1.° de abril apresentou uma injustificável e cabilosa suspeição contra três dos Srs. árbitros, com a notável circunstancia de serem dois deles da escolha do seo comitente e pelo seu conselho, além de gozarem todos d’uma reputação e conceito q’ os devião ter posto a coberto das suspeitas do honradíssimo Sr. Almeida e do seu digno advogado, o Sr. Maia. Esta esperteza de rabula, deo o resultado que o Sr. Advogado Maia desejava, e que convinha aos interesses do seu digno cliente, ocupando grande parte do tempo com exigências infundadas, 40 dias com as segundas alegações, quando 8 somente devia ter, vinte e tantos demais no termo probatório, e 17 dias que ultimamente se perderão em dar vista aos saspeicionados, ouvir as suas respostas, e falhar o Sr. Juiz do comercio {...} (grifos no original).60 60 Correio do Sul, de 02 de julho de 1854; se acha junto aos documentos do Tribunal da Relação. AN, Relação do Rio de Janeiro, n. 2.408, cx. 1.605, fl. 932.

No decorrer da arbitragem, o irmão de Francisco Ferreira de Almeida, comerciante residente no Rio de Janeiro, João Augusto Ferreira de Almeida, tentou agir como intermediário e, segundo Borges, retardou o processo intencionalmente. Assim, quando João Augusto voltou da visita a seu irmão na prisão, sem a assinatura necessária deste último com base em um acordo, Borges avisou os árbitros, que declararam o seguinte:

não tinhão podido ultimar os seus trabalhos pelo pouco tempo de que havião podido dispor, acontecendo que havia mais de dose dias que um d’entre eles o respeitável Sr. Antônio José Pedrosó, tinha estado e estava ainda doente, pelo que tudo tinha parado: contando também com a prorrogação que o Sr. João Augusto havia garantido.61 61 Correio do Sul, op cit

Nessa situação, João Augusto Ferreira de Almeida pressionou os juízes a tomarem uma decisão, dizendo que ele precisava retornar, no próximo vapor, para o Rio de Janeiro. Os árbitros resolveram finalmente, depois de 16 meses, encerrar o caso sem decisão, indicando que podia haver recursa ao juízo cível.

Borges continua seu artigo no Correio do Sul, elogiando os juízes arbitrais como homens de honra, mas acusa também um deles de ter sido aliado de Ferreira Almeida:

Infelizmente para chegar a este vergonhoso resultado, o Sr. Almeida achou só a boa pessoa do Sr. Advogado Maia, porque também teve de seu lado ao Sr. João Caetano Ferraz, negociante mais espirito de classe, zello pela moralidade do comercio, rectidão e independência de caráter, e que aceitando a nomeação de arbitro muito pela sua vontade, depois foi um estorvo continuo para seos honrados colegas, com continuadas moléstias em que ninguém acreditava, e portando-se por maneira a dar lugar a fundadas suspeitas de estar concluindo com o Sr. Maia para ganhar tempo, como ganhou quase um mez em que os outros Srs. Arbitros, a não oser embaraçar ele, terião podido decidir a questão; e não só concorrendo para os meus novos transtornos e padecimentos porem até para que se lhe possa julgar incurso no art. 240 do Regulamento n.º 737 de 25 de Novembro de 1850, que diz o seguinte: - Terminado o prazo mareado para a decisão da causa (art. 437 § 3.º) poderá o juiz punir com multa de um a cinco por cento do valor da causa, e prisão de oito a vinte dias o arbitro que for convencido de conluio com uma das partes para demorar a decisão ou frustrar o compromisso (grifos no original).62 62 Correio do Sul, de 02 de julho de 1854. Borges tinha, um dia antes do lançamento do artigo, protestado diretamente junto aos árbitros. Em seu requerimento, ele nota os seguintes impedimentos: “primeiro ausência do escrivão quando andam em uma medição, ficando os autos feixados no Cartório: segundo repetidas vezes falta do numero completo de Vossas Senhorias já por moléstias já porque as suas ocupações não permittião o comparecimento de alguns de certos actos do processo; e terceiro a suspenção posta pelo contendor do suplicante a alguma dos senhores primeiros árbitros. Além disto deo-se também a longa interrupção das ferias do Natal que interpocerão a marcha do processo quase mês e meio e eventualidade da prisão do mesmo Almeida pela qual na forma do mesmo Regimento foi preciso duplicar a prazo da dilação e dar vista ao Curador e que ao tempo do ultimo adiantamento do compromisso era imprevisto, e como é bem sabido o processo tornou se imediamente complicado digo tornou-se reiniciamente complicado e voluminoso”. AN, Relação do Rio de Janeiro, “Requerimento de Francisco Antônio Borges, de 1. junho de 1854”, n. 2.408, cx. 1.605, fl. 682v.

O protesto mostra, mesmo quando escrito pelo adversário de Ferreira de Almeida, o quão complicado foi o processo de arbitragem e quais foram as ferramentas utilizadas pelas partes litigantes. Ele ilustra também o papel das redes sociais que tinham o poder de influenciar o processo. Os juízes arbitrais eram comerciantes e tinham, muitas vezes, cargos governamentais como vereadores da Câmara Municipal, juízes de paz e deputados provinciais em nível local e provincial.63 63 Cláudia Simone de Freitas Munhoz, A Associação Comercial do Rio Grande de 1844 a 1852: interesses e atuação representativa do setor mercantil, Dissertação de mestrado, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2003, p. 124-133. Em uma cidade pequena como Porto Alegre, que contava com cerca de 12 mil habitantes em 1846 e 16 mil habitantes em 1858,64 64 Os números compreendem somente a população livre. Gabriel Santos Berute, Atividades mercantis do Rio Grande de São Pedro: negócios, mercadorias e agentes mercantis (1808-1850), Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011, p. 44. os comerciantes, com certeza, se conheciam.65 65 A tese de Berute analisa as redes dos comerciantes e, em especial, dos negociantes de grosso trato matriculados na Junta do Comércio. Segundo o autor, no livro de matrícula de negociantes de grosso trato da Real Junta do Comércio, no Rio de Janeiro (1809-1850), foram listados 52 negociantes em Porto Alegre e, pelo Almanack da Vila de Porto Alegre (1808), 57. Gabriel Santos Berute, op cit, p. 141-142. Trata-se da elite comercial e não da totalidade dos comerciantes, mas foi essa elite que se associou a outros agentes econômicos pelas ligações de negócio e de crédito e ocupou os cargos dos juízes arbitrais e dos juízes de paz, entre outros cargos jurídicos, administrativos e políticos.

Os limites físicos pouco claros entre o espaço público dos tribunais e o espaço privado refletem também a falta de autonomia dos tribunais.66 66 Sobre a interferência das elites político-econômicas no funcionamento da Justiça, cf. Edson Alvisi Neves, Magistrados e negociantes na Corte do Império do Brasil: o Tribunal do Comércio, Rio de Janeiro, Jurídica; FAPERJ, 2008, p. 306-314. Enquanto o exame dos livros de negócio na arbitragem de Ferreira de Almeida teve lugar na Câmara Municipal de Porto Alegre,67 67 Correio do Sul, n. 206, de 02 de julho de 1854, p. 1-4. a nomeação do curador para administração da massa falida e os depoimentos das testemunhas aconteceram na casa do juiz do comércio José Pereira da Costa Motta.68 68 AN, Relação do Rio de Janeiro, n. 2.408, cx. 1.605, “Sentença do juiz do comercio José Pereira da Costa Motta, de 21 de setembro de 1854”, fl. 535v-536r; “Depoimentos das testemunhas, 23 e 24 de novembro de 1853”, fl. 568v-585v. Tendo em vista que os processos se desdobraram essencialmente utilizando-se a forma escrita, o tratamento dos documentos no curso do processo mereceria ser examinado de uma maneira mais profunda.69 69 Em comparação, na Idade Moderna, Arndt Brendecke, Imperium und Empirie Funktionen des Wissens in der Spanischen Kolonialherrschaft, Köln; Weimar; Wien, Böhlau, 2009, p. 166; 331-333 {edição em espanhol: Imperio e información. Funciones del saber en el domínio colonial español, Madrid, Iberoamericana; Frankfurt am Main, Vervuert, 2012}, mostra como os consejeros do Consejo de Indias interagiam constantemente com os peticionários, agentes e partes litigantes em suas casas ou no caminho para o trabalho. A separação entre as funções oficiais e privadas dos consejeros já era bem pequena no século XVI, pois eles não possuíam condições de trabalho adequadas. Tamar Herzog, Upholding justice Society, State, and the Penal System in Quito (1650-1750), Ann Arbor, University of Michigan Press, 2004, p. 127-160, ilustra, de maneira bem profunda, os laços sociais, econômicos e familiares existentes entre os juízes de Quito e as elites locais nos séculos XVII e XVIII. Como foram transmitidas as informações no tribunal e também entre o tribunal e o seu entorno? Como foram processadas as informações? Afinal, todo tipo de administração interpreta ou traduz as normas e instruções que recebe. Esse processo de aplicação gera, assim, sua própria lógica de administração.

Desacreditar publicamente os adversários pode também ser considerado uma tentativa de influenciar indiretamente, por meio da pressão pública, os juízos arbitrais e municipais

Conclusão

A partir do caso de falência estudado aqui, podemos chegar a algumas conclusões sobre o estudo da organização jurídica do Brasil imperial. Assim, foi demostrado, a partir da análise do caso de falência de Francisco Ferreira de Almeida, que o sistema jurídico dos anos 1850-1860 foi caracterizado por uma grande complexidade de tribunais, que trabalhavam às vezes em paralelo e interagiam ou se comunicavam de maneira indireta, quer dizer, sobretudo, mediante os termos trazidos a juízo e lavrados pelas partes litigantes. Resulta claramente do caso estudado que o próprio procedimento do Tribunal da Relação foi intensamente condicionado pelos atores locais e pelas ações na fase inicial do processo de falência (conciliação e arbitragem). Fica claro também que os papéis públicos e privados dos atores envolvidos no processo judicial mesclaram-se e influíram no processo que ainda continha elementos da legislação filipina.

Entretanto, a questão que se procura resolver em relação ao Código do Comércio e aos tribunais do Império não é se eles têm de ser caracterizados como modernos ou como antigos/arcaicos. Trata-se, em vez disso, de saber como foi aplicada a legislação, como funcionavam os tribunais e qual foi a maneira de definir essas instituições e de lidar com elas por parte dos atores sociais da época.

Nossa análise do caso demostra que, para entender o que foi a cultura jurídica do Império ou como funcionavam os tribunais, não basta invocar tão somente a legislação, nem deduzir por meio da organização institucional as práticas de administração da Justiça. A complexidade das organizações judiciais torna-se mais visível quando elas são estudadas a partir das práticas administrativas e comunicativas dos atores sociais que as compõem. Cada ação expressa uma variedade de possibilidades de comportamento no âmbito do sistema jurídico. Entretanto, vale a pena sublinhar que tal estudo não pode ser realizado a partir apenas dos autos dos processos. É preciso examinar a legislação e o contexto social dos atores, assim como as dinâmicas próprias do procedimento judicial.70 70 Essas reflexões foram inspiradas com base na leitura de Simona Cerutti, Giustizia sommaria: pratiche e ideali di giustizia in una società di Ancien Régime (Torino, XVIII secolo), Turim, Feltrinelli, 2003; Hans Joas, Die Kreativität des Handelns, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1992; Niklas Luhmann, Legitimation durch Verfahren, 3. ed., Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1983 {1969}; Birgit Näther, “Produktion von Normativität in der Praxis: das landesherrliche Visitationsverfahren im frühneuzeitlichen Bayern”, In: Stefan Brakensiek; Corinna von Bredow; Birgit Näther (orgs.), Herrschaft und Verwaltung in der Frühen Neuzeit, Berlin, Duncker & Humblot, 2014, p. 121-135. Dessa forma, uma pesquisa que tem por objetivo investigar como a justiça mercantil se articulou em ações cotidianas das partes litigantes e dos tribunais - ou seja, como a justiça mercantil foi compreendida e interpretada pelos atores privados e institucionais da época - pode ser unicamente interdisciplinar, levando-se em conta tanto as obras dos historiadores quanto as dos historiadores do Direito.

  • 1
    Pesquisa financiada pela Fundação Carlos Chargas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), Bolsa de Pós-Dotorado Sênior, março 2013-fevereiro 2014 (processo nº E-26/100.046/2013). O projeto foi conduzido no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro.
  • 2
    Cf. Lisa Bernstein, “Merchant Law in a merchant court: rethinking the code’s search for immanent business norms”, University of Pennsylvania Law Review, vol. 144, n. 5, 1996, p. 1796-1802; Paul R. Milgrom; Douglass C. North; Barry Weingast, “The role of institutions in the revival of the trade: the Law Merchant, private judges, and the Champagne Fairs”, Economics and Politics, vol. 2, n. 1, 1990, p. 1-23. Sobre a Nova Economia Institucional aplicada ao estudo do comércio medieval, ver os trabalhos de Avner Greif, sobretudo, Institutions and the path to the modern Economy: lessons from medieval trade, New York, Cambridge University Press, 2006.
  • 3
    Simona Cerutti, Giustizia sommaria: pratiche e ideali di giustizia in una società di Ancien Régime (Torino, XVIII secolo), Turim, Feltrinelli, 2003; Amalia D. Kessler, A revolution in commerce. The Parisian merchant court and the rise of commercial society in eighteenth-century France, New Haven; London, Yale University Press, 2007.
  • 4
    Mary Elizabeth Basile et al. (orgs.), Lex mercatoria and legal pluralism: a late thirteenth-century treatise and its afterlife, Cambridge, Ames Foundation, 1998; Albrecht Cordes, “À la recherche d’une lex mercatoria au Moyen Âge”, In: Pierre Monnet; Otto G. Oexle (orgs.), Stadt und Recht im Mittelalter, Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 2003, p. 117-132; Emily Kadens, “Order within law, variety within custom: the character of the medieval Merchant Law”, Chicago Journal of International Law, vol. 5, n. 1, 2004, p. 39-65; Carlos Petit, Compañías mercantiles en Bilbao: 1737-1829, Sevilla, Servicio de Publicaciones de la Universidad de Sevilla, 1979; Vito Piergiovanni (org.), From lex mercatoria to Commercial Law, Berlin, Duncker & Humblot, 2005; Leon E. Trakman, The Law Merchant: the evolution of Commercial Law, Littletown, Fred B. Rothman, 1983.
  • 5
    Amalia D. Kessler, op cit. De forma geral, os estudos da História do Direito mais recentes representam uma nova maneira de estudar os tribunais comerciais - não como uma organização separada, mas como um ator que faz parte de uma pluralidade de jurisdições. Além do mais, eles sublinham a importância da lei consuetudinária; veja, por exemplo, Ezequiel Abásolo, “El código de comercio español de 1829 en los debates y las prácticas jurídicas del extremo sur de América”, Anuario de Historia del Derecho Español, vol. 78-79, 2009, p. 447-460; Dave de Ruysscher, Naer het Romeinsch recht alsmede den stiel mercantiel. Handel en recht in de Antwerpse rechtbank (16de-17de eeuw), Kortrijk, UGA, 2009; Carlos Petit, “Mercatvra y Ivs mercatuvrum. Materiales para una antropologia del comerciante premoderno”, In: ______. (org.), Del ius mercatorium al derecho mercantile. III Seminario de Historia del Derecho Privado, Sitges, 28-30 de mayo de 1992, Madrid, Marcial Pons, 1997, p. 15-70; Idem, “Del Vsvs Mercatorvm al uso de comercio. Notas y textos sobre la costumbre mercantil”, Revista da Faculdade de Direito - UFPR, vol. 48, 2008, p. 7-38.
  • 6
    Por exemplo, sobre o mundo hispânico, Antonio-Miguel Bernal, La financiación de la Carrera de Indias: 1492-1824 Dinero y crédito en el comercio colonial español con América, Sevilla, Fundación Cajasol, 1992; Huguette Chaunu; Pierre Chaunu, Séville et l’Atlantique (1504-1650), Paris, Armand Colin, 1955-1960, 9v; Manuel Basas Fernández, El consulado de Burgos en el siglo XVI, Madrid, CSIC, 1963; Lutgardo Garcia Fuentes, El comercio español con América, Sevilla, CSIC, 1980; Bernd Hausberger; Antonio Ibarra (orgs.), Comercio y poder en América colonial: los consulados de comerciantes, siglos XVII-XIX, Frankfurt am Main, Vervuert; México, Iberoamericana, 2003; Teófilo Guiard y Larrauri, Historia del consulado y casa de contratación de Bilbao y del comercio de la villa, Bilbao, José de Astuy, 1972, 3v; Ana Crespo Solana, La casa de contratación y la intendencia general de la Marina en Cádiz (1717-1730), Cádiz, Servicio de Publicaciones de la Universidad de Cádiz, 1996; Enriqueta Vila Vilar; Allan J. Kuethe (orgs.), Relaciones de poder y comercio colonial: nuevas perspectivas, Sevilla, Escuela de Estudios Hispano-Americanos, 1999.
  • 7
    Simona Cerutti, Giustizia sommaria: pratiche e ideali di giustizia in una società di Ancien Régime (Torino, XVIII secolo), Turim, Feltrinelli, 2003.
  • 8
    Ibidem, p. 12. Em uma tentativa similar de combinar história social e jurídica, Guillaume Calafat vem estudando litígios marítimos e comerciais no Mediterrâneo. Em sua tese de doutorado, pesquisou o Governatore e o Auditore de Livorno, o Consoli do Mar del Mare de Pisa e a Ruota Civile de Florença. Seu objetivo foi analisar a complexidade das noções jurídicas no Mediterrâneo, além de investigar a cultura jurídica dos comerciantes e marinheiros durante os séculos XVII e XVIII. Cf. Guillaume Calafat, Une mer jalousie. Juridictions maritimes, ports francs et regulation du commerce en Méditerranée (1590-1740), Tese de doutorado, Université Paris 1 Pantheon-Sorbonne ; Università degli Studi di Pisa, 2013; Idem, “L’institution de la coexistence. Les communautés et leurs droits à Livourne (1570-1630)”, In: David do Paço; Mathilde Monge; Laurent Tatarenko (orgs.), Des religions dans la ville Ressorts et stratégies de coexistence dans l’Europe des XVIe-XVIIIe siècles, Rennes, Presses Universitaires de Rennes, 2010, p. 83-102.
  • 9
    Simona Cerutti, op cit 2003, p. 12, defende a ideia de que o procedimento era o elemento central do processo judicial na Idade Moderna. O objetivo da Justiça não era criar uma igualdade diante da lei, nem chegar a um julgamento imparcial, mas, ao contrário, criar um consenso entre as partes. Mais recentemente, o historiador alemão André Krischer se referiu diretamente à teoria de Luhmann. Cf André Krischer, “Das Verfahren als Rollenspiel? Englische Hochverratsprozesse im 17. und 18. Jahrhundert”, In: Barbara Stollberg-Rilinger; André Krischer (orgs.), Herstellung und Darstellung von Entscheidungen, Verfahren, Verwalten und Verhandeln in der Vormoderne, Berlin, Ducker & Humblot, 2010, p. 211-251; Idem, “Sociological and cultural approaches to pre-modern decision-making”, In: Marie-Joséphine Werlings; Fabian Schulz (orgs.), Débats antiques, Paris, De Boccard, 2011, p. 129-140.
  • 10
    Bruno Latour, La fabrique du droit Une ethnologie du Conseil d’État, Paris, La Découverte, 2002; Niklas Luhmann, Legitimation durch Verfahren, 3. ed., Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1983 {1969}; Dominique Schnapper, Une sociologue au Conseil constitutionnel, Paris, Gallimard, 2010. Pela crítica recente de Latour e Schnapper, ver Liora Israël, “Conseils de sociologues. Bruno Latour et Dominique Schnapper face au droit”, Genèses, vol. 87, n. 2, 2012, p. 136-152.
  • 11
    Niklas Luhmann, Legitimation durch Verfahren, 3. ed., Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1983 {1969}, p. 44-46; Bruno Latour, La fabrique du droit Une ethnologie du Conseil d’État, Paris, La Découverte, 2002, p. 83-118 (em particular, o capítulo 2 - “Savoir faire mûrir un dossier”). Entretanto, observa-se que os autores não entram em acordo sobre a definição e significação do Direito. Para Latour, o Direito é onipresente e dissociável da sociedade, enquanto que, para Luhmann, é um sistema parcial da função na sociedade.
  • 12
    Niklas Luhmann, op cit, p. 69-74.
  • 13
    Estudos recentes defendem que os tribunais da Idade Moderna não eram autônomos, especialmente por causa da falta de distinção entre os papéis público e privado dos atores. Havia uma constante demanda de que os procedimentos legitimassem e mantivessem a ordem social e política em vigor. A legitimidade era criada através de um processo de aprendizagem, que envolvia os atores jurídicos e o público mais amplo. André Krischer, “Das Problem des Entscheidens in systematischer und historischer Perspektive”, In: Barbara Stollberg-Rilinger; André Krischer (orgs.), Herstellung und Darstellung von Entscheidungen Verfahren, Verwalten und Verhandeln in der Vormoderne, Berlin, Ducker & Humblot, 2010, p. 56.
  • 14
    Ruben Zahler, Ambitious rebels: remaking honor, law, and liberalism in Venezuela, 1780-1850, Tucson, University of Arizona Press, 2013. Observa-se, contudo, que Zahler não trata somente dos processos judiciais econômicos, mas da Justiça em geral.
  • 15
    Ezequiel Abásolo, “El código de comercio español de 1829 en los debates y las prácticas jurídicas del extremo sur de América”, Anuario de Historia del Derecho Español, vol. 78-79, 2009, p. 447-460.
  • 16
    Cf. Hugh Baxter, “Niklas Luhmanns’s theory of autopoietic legal systems”, Annual Review of Law and Social Science, vol. 9, 2013, p. 167-184.
  • 17
    Uma exceção é o estudo de Keila Grinberg, Liberata - a lei da ambiguidade: as ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX, 2. ed., Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1994. José Reinaldo de Lima Lopes (org.), O Supremo Tribunal de Justiça do Império: 1828-1889, São Paulo, Saraiva, 2010, fala também das decisões do Tribunal, mas não trata do processo do julgamento. Quanto ao livro de Edson Alvisi Neves, Magistrados e negociantes na Corte do Império do Brasil: o Tribunal do Comércio, Rio de Janeiro, Jurídica; FAPERJ, 2008, o autor não tematiza a prática judicial, mas enfatiza a organização jurídica e administrativa do tribunal. O mesmo ocorre com os estudos de Arno Wehling; Maria José Wehling, Direito e justiça no Brasil Colonial: o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro (1751-1808), Rio de Janeiro, Renovar, 2004; Stuart B. Schwarz, Sovereignty and society in Colonial Brazil: the High Court of Bahia and its judges, 1699-1751, Berkeley, University of California Press, 1973; Walter de Mattos Lopes, A Real Junta do Commercio, Agricultura, Fabricas e Navegação deste Estado do Brazil e seus Domínios Ultramarinos: um Tribunal de Antigo Regime na Corte de Dom João (1808-1821), Dissertação de mestrado, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009. Disponível em: <http://www.historia.uff.br/stricto/td/1339.pdf>. Acesso em: 10 de fevereiro de 2014; Paulo Paranhos, A Casa da Suplicação do Brasil A Modernidade na Justiça Brasileira, Rio de Janeiro, Erregê, 1993.
  • 18
    Definimos cultura jurídica de uma maneira ampla como “a fábrica de valores e posições que regula a ação jurídica”. Nota-se que essa definição inclui todo e qualquer ator jurídico, dentro e fora dos tribunais.
  • 19
    O jornal Rio Grandense foi explicitamente criado em 1845 para servir aos interesses dos comerciantes. Cláudia Simone de Freitas Munhoz, A Associação Comercial do Rio Grande de 1844 a 1852: interesses e atuação representativa do setor mercantil, Dissertação de mestrado, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2003, p. 118.
  • 20
    A obtenção da matrícula na Junta do Comércio do Rio de Janeiro foi obrigatória a partir de 1809 pelos negociantes de grosso trato.
  • 21
    Francisco Ferreira de Almeida foi comerciante pecuarista e agrícola (notadamente animais, couros, charque e feijão), mas também comercializou têxteis, utensílios de cozinha, ferragem e livros. Ele tinha quota-parte em um navio (“Patacho Lívia”) e era proprietário de algumas casas e terras em Porto Alegre. Arquivo Nacional (AN), Relação do Rio de Janeiro, “José Francisco de Azevedo Quintão e Francisco Lopes da Costa Moreira, agravantes/Francisco Ferreira de Almeida, agravado, 1854”, n. 2.408, cx. 1.605, fl. 652v; 659v-670v.
  • 22
    Decreto nº 737, de 25 novembro de 1850, Art. 16: “Na arrecadação, administração e distribuicão dos bens dos negociantes que não forem matriculados, nos casos de fallencia, se guardará no Juizo Commercial quanto se acha determinado pelo Código para as quebras dos commerciantes, na parte que fôr applicavel (art. 909 Código).” Lei nº 556, de 25 de junho de 1850, Art. 909: “Todavia na arrecadação, administração e distribuição dos bens dos negociantes que não forem matriculados, nos casos de fallencia, se guardará no Juizo ordinario quanto se acha determinado pelo presente Código para as quebras dos commerciantes matriculados, na parte que for applicavel.” Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/decreto/Historicos/DIM/DIM737.htm>. Acesso em: 10 de fevereiro de 2014.
  • 23
    Edson Alvisi Neves, Magistrados e negociantes na Corte do Império do Brasil: o Tribunal do Comércio, Rio de Janeiro, Jurídica; FAPERJ, 2008, p. 235, afirma que a conciliação só foi autorizada pelos comerciantes matriculados - uma situação, segundo ele, “confirmada pelo Aviso de 8 de julho de 1851”. Ora, o caso de Ferreira de Almeida mostra que o aviso não foi observado ou demorou a ser aplicado em Porto Alegre. Segundo Eugene Ridings, Business interest groups in nineteenth-century Brazil, Cambridge, Cambridge University Press, 1994, p. 295: “Despite the law, the benefits of the Commercial Code apparently were increasingly given to nonregistered businessmen as well, for the requirement was more and more ignored”.
  • 24
    Decreto nº 737, de 25 novembro de 1850, Art. 24: “Póde intentar-se a conciliação perante qualquer Juiz de Paz, onde o réo fôr encontrado, ainda que não seja a freguenzia do seu domicilio”.
  • 25
    Na forma do Art. 411 § 1 do Regulamento nº 737, de 25 de novembro de 1850, o qual refere que o juízo arbitral “{é} voluntario, quando é instituido por compromisso das partes”.
  • 26
    Edson Alvisi Neves, op cit, p. 164-165.
  • 27
    A decisão foi publicada pelo ex-sócio e adversário de Ferreira de Almeida, Francisco Antônio Borges, no jornal Correio do Sul, de 02 de julho de 1854, p. 4, e acha-se junto aos documentos do AN, op cit, fl. 932: “Não tendo sido possível aos árbitros proferirem sentença definitiva n’estes autos, dentro do prazo, em que as partes combinarão, porque devendo-se com atenção e cuidado, que e matéria exigia, examinar as contas, imensos documentos, e as alegações que constão dos autos {...}, e ao juiz arbitral, não é permitido segundo o código do comercio e seu respectivo regulamento, ir além do mesmo prazo, sem ficar invalidada toda e qualquer decisão, que definitivamente proferisse sobre as questões, que lhe forão submetidas, os árbitros entregão os presentes autos sem sentença alguma, pelos motivos acima expedidos, devendo o escrivão intimar este despacho ás partes, para seu conhecimento, e poderem requerer o seu direito no juízo, e pelos meios que foram competentes. Porto Alegre 5 de junho de 1854. - José Domingos dos Santos, Joaquim Lopes de Barros, João Correia de Oliveira, Joaquim José de Oliveira Castro, José Antônio Coelho Junior, Antônio José Pedroso”.
  • 28
    Decreto nº 737, de 25 novembro de 1850, Art. 6: “As attribuições conferidas pelo Código aos Juizes de Direito do Commercio e o conhecimento das causas commerciaes em primeira instancia, competem aos Juizes Municipaes, ou do Civel, onde os houver”.
  • 29
    AN, Relação do Rio de Janeiro, “Sentença do juiz do comercio José Pereira da Costa Motta, de 21 de setembro 1854”, n. 2.408, cx. 1.605, fl. 535v-536r.
  • 30
    O Tribunal da Relação competente pelo Rio Grande do Sul foi o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro, conhecido também como Tribunal da Relação da Corte. O Tribunal da Relação do Rio Grande do Sul e Santa Catarina somente foi criado em 1873, com sede a Porto Alegre.
  • 31
    AN, Juízo Especial do Comercio da 1ª Vara, “Decisão do juiz municipal, substituto do comercio de Porto Alegre, José de Araújo Brusque, de 7 de Abril 1859”, n. 6.868, cx. 361, fl. 1358v.
  • 32
    Decreto nº 707, de 09 de outubro de 1850, Art. 18: “No crime de banca-rota, ou quebra com culpa e quebra fraudulenta, formarão a culpa até ao primeiro de Janeiro de mil oitocentos cincoenta e hum os Juizes Municipaes. D’esta data em diante será a mesma attribuição exercida pelos referidos Juizes tão somente nas Provincias onde não houver Tribunal do Commercio, ou Relação”; Art. 19: “Formada a culpa pelos ditos Juizes, se proseguirá no processo pela fórma estabelecida nos Artigos antecedentes. Quando porêm tiverem procedido a formação da culpa os Tribunaes do Commercio, ou Relações, remettido o traslado do processo, na conformidade do Artigo oitocentos e vinte do Código do Commercio, o Juiz de Direito, procederá a julgamento pela fórma estabelecida a respeito dos crimes de que trata este Regulamento”; Art. 20: “Não haverá recurso do despacho de pronuncia ou não pronuncia, quando for proferido pelos Tribunaes de Commercio ou Relações”.
  • 33
    Prevista pelo Regulamento nº 738, de 25 de novembro de 1850, Art. 132. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/decreto/Historicos/DIM/DIM738.htm>. Acesso em: 10 de fevereiro de 2014.
  • 34
    AN, Juízo Especial do Comercio da 1ª Vara, “Homologação da concordata pelo juiz municipal suplente, e substituto do comercio, Luiz Alfonso de Azambuja, 1 de setembro 1857”, n. 6.868, cx. 361, fl. 1224r-v.
  • 35
    AN, Juízo Especial do Comercio da 1ª Vara, “Decisão do juiz municipal, substituto do comercio de Porto Alegre, José de Araújo Brusque, de 7 de Abril 1859”, n. 6.868, cx. 361, fl. 1358r-v.
  • 36
    Lei nº 556, de 25 de junho de 1850, Art. 848 : “{…} Não póde dar-se concordata no caso em que o fallido for julgado com culpa ou fraudulento, e quando anteriormente tenha sido concedida, será revogada.” Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1824-1899/lei-556-25-junho-1850-501245-publicacaooriginal-1-pl.html>. Acesso em: 10 de fevereiro de 2014.
  • 37
    Decreto nº 737, de 25 novembro de 1850, Art. 2º: “Constituem legislação commercial o Código do Commercío, e subsidiariamente os usos commerciaes (art. 291 Código) e as leis civis (arts. 121, 291 e 428 Código). Os usos commerciaes preferem ás leis civis sómente nas questões sociaes (art. 291) e casos expressos no Código”.
  • 38
    AN, Juízo Especial do Comercio da 1ª Vara, “Relatório do desembargador do Tribunal do Comercio, João Lopes da Silva Coito de 4 de junho de 1860”, n. 6.868, cx. 361, fl. 140r. O relatório é diretamente seguido pela decisão do Tribunal do Comercio, confirmando a decisão do juiz municipal de Porto Alegre (fl. 1404).
  • 39
    Francisco Antônio Borges sofreu bancarrota em 1852, mas, contrariamente a Francisco Ferreira de Almeida, conseguiu concluir uma concordata com seus credores. No momento da bancarrota, Borges tinha em sua posse centenas de animais, várias terras, 53 escravos, entre outros. Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS), “Processo judicial em juízo de distrito civil de Porto Alegre: Francisco Antônio Borges, falido/Francisco Ferreira de Almeida, requerente, 1852”, n. 949.
  • 40
    AN, Relação do Rio de Janeiro, “Apelação criminal: Francisco Ferreira de Almeida, apelante/Francisco Antônio Borges apelado, 1856 - 1857”, n. 386, cx. 129.
  • 41
    José Reinaldo Lima Lopes, O direito na história Lições introdutórias, 4. ed., São Paulo, Atlas, 2008, p. 271-287. No processo de Ferreira de Almeida, seu advogado fundamentou o seu pleito, além dos códigos, no manual do jurista português José Ferreira Borges, Diccionario juridico-commercial, Porto, Typographia de Sebastião José Pereira, 1856 {1839} e no autor francês Jean-Marie Pardessus, que publicou, entre outras obras, Élémens de jurisprudence commerciale, Paris, Durand, 1811; Cours de droit commercial, Paris, Gamery, 1814-1816, 4v; Collection de lois maritimes, Paris, Imprimerie Royale, 1828-1845, 6v; e Les us et coutumes de la mer, Paris, Imprimerie Royale, 1847, 2v. AN, Juízo Especial do Comercio da 1ª Vara, “Apelação de Francisco Ferreira de Almeida contra a decisão do juiz municipal, substituto do comercio de Porto Alegre, José de Araújo Brusque de 7 de Abril 1859, anulando a homologação do concordata”, n. 6.868, cx. 361, fl. 1382r; 1384r.
  • 42
    José Reinaldo Lima Lopes, op cit, p. 287.
  • 43
    Decreto nº 737, de 25 de novembro de 1850, Art. 10: “Competem á jurisdicção comercial todas as causas que derivarem de direitos e obrigações sujeitas as disposições do Codico Commercial, comtanto que uma das partes seja comerciante (art. 18. Tit. Único Código)”; Art 11: “Não basta que para determinar a competência da Jurisdicção comercial que ambas as partes ou alguma delas seja commerciate, mas é essencial que a divida seja também comercial: outrossim não basta que a divida seja comercial, mas é essencial que ambas ou uma das partes seja comerciante, salvos os casos e excepções do art. 20”.
  • 44
    Decreto nº 737, de 25 de novembro de 1850, Art. 2º.
  • 45
    Ibidem, Art. 6º: “As attribuições conferidas pelo Código aos Juizes de Direito do Commercio e o conhecimento das causas commerciaes em primeira instancia, competem aos Juizes Municipaes, ou do Civel, onde os houver (art. 17 Tit. unico Código)”.
  • 46
    Decreto nº 737, de 25 de novembro de 1850, Art. 7º: “As relações do districto são Tribunaes de segunda e ultima instancia nas causas commerciaes, e lhes competem: § 1º O conhecimento por appellação das causas commerciaes cujo valor exceder de 200 mil reis (art. 26 Tit. Unico Codico). § 2.º O conhecimento da appellação interposta das sentenças do Tribunal do Commercio nos casos dos arts. 851, 860 e 906 Código)”.
  • 47
    Cláudia Simone de Freitas Munhoz, A Associação Comercial do Rio Grande de 1844 a 1852: interesses e atuação representativa do setor mercantil, Dissertação de mestrado, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2003, p. 83. A autora constata que a “Associação Comercial da cidade do Rio Grande” foi criada em 1844, cujo regulamento aprovado pelo Presidente da Província, Conde de Caxias, em 1845, não mudou seu estatuto depois da introdução do Código Comercial de 1850. As fontes provam, segundo a autora, que, ainda em junho 1889, o estatuto continuava sendo o de 1845. Este demostra a continuidade das práticas já estabelecidas nas praças comerciais. Munhoz afirma que “o Código Comercial apenas regulou o que já era estabelecido por uso e costume nas praças comerciais” (p. 87). Eugene Ridings, Business interest groups in nineteenth-century Brazil, Cambridge, Cambridge University Press, 1994, p. 287, vai além disso e sublinha o papel das autoridades locais na formulação - por meio da prática jurídica - da lei: “The Commercial Code of 1850 provided that usages and customs be determined by the local commercial association, whereupon they became law, duly registered by the commercial courts.”
  • 48
    Edson Alvisi Neves, Magistrados e negociantes na Corte do Império do Brasil: o Tribunal do Comércio, Rio de Janeiro, Jurídica; FAPERJ, 2008, p. 164. Nota-se que o autor só trata da hierarquia entre as diferentes instâncias judiciais no sistema português. Ele não nos fornece qualquer esclarecimento sobre o sistema brasileiro pós-1850. Entretanto, as fases de conciliação e arbitragem existiam também no foro comercial português e eram previstas pelas Ordenações Filipinas. Porém, pode-se discutir o porquê (a partir de qual critério) de denominar essas duas componentes do processamento de “fase prejudicial”, sendo que elas foram previstas pela lei como fases integrais de todo o processo de falência e que, em caso de desacordo, o processo seria transferido para o tribunal municipal. Cf. Benoît Garnot, “Justice, infrajustice, parajustice et extrajustice dans la France d’Ancien Régime”, Crime, Histoire & Sociétés/Crime, History and Societies, vol. 4, n. 1, 2000, p. 103-120.
  • 49
    Entre outras, AN, Relação do Rio de Janeiro, n. 2.408, cx. 1.605, fl. 569v; 596r.
  • 50
    Regulamento nº 737, Art. 138.
  • 51
    AN, op cit., fl. 588v; 594v-595r; 598r; 566r.
  • 52
    Idem, “Juiz de Distrito da 1a Vara Crime da Corte do Rio de Janeiro: Carlos Constant Chatenay e Randolpho Fischer, administradores da massa falida de A. S. Levy, apelantes/Santiago de Prate, e M. I. Schlosmann, apelados, 1859”, n. 837, maço 163.
  • 53
    Nota-se que os documentos jurídicos fornecem uma ferramenta importante para o estudo de todo tipo de mercador, mas, sobretudo, eles possibilitam o estudo de pequenos mercadores e não matriculados, cujas ações são difíceis de captar de outra maneira.
  • 54
    AN, Relação do Rio de Janeiro, n. 2.408, cx. 1.605, fl. 569v; 573r-576r; 578v; 579v-580r; 584v; 593v; 594r; 597v.
  • 55
    Ibidem, fl. 569v; 578v; 584v.
  • 56
    Joaquim Lopes de Barros no Correio do Sul, n. 269, 1855, p. 3. Trata-se de um dos principais agentes exportadores de carne (1831-1842) na estatística recolhida por Gabriel Santos Berute, Atividades mercantis do Rio Grande de São Pedro: negócios, mercadorias e agentes mercantis (1808-1850), Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011, p. 82. O autor verifica ainda que “o capitão Joaquim Lopes de Barros era um dos principais procuradores {…} e atuava no comércio de cabotagem com o Rio de Janeiro. Seu patacho ‘Cruzeiro do Sul’ entrou, no mínimo por duas oportunidades, carregando vários gêneros e escravos. Para o porto ‘carioca’ enviou carnes e couros, além de ‘dois escravos a entregar’, segundo consta em três registros da praticagem da barra de Rio Grande”, p. 253. Assim, o juiz arbitral Lopes de Barros foi ativo no mesmo tipo de comércio que o falido.
  • 57
    Nem todos os artigos foram juntados aos autos. Nos artigos conservados no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro e relativos ao caso de Ferreira de Almeida, há citações dos jornais: O Mercantil, de 20 de outubro de 1853; 24 de dezembro de 1853; 04 e 05 de janeiro de 1854; 1º de abril de 1854; 30 de maio de 1854; 20 de janeiro de 1855. Correio do Sul: de 17 de março de 1853; 30 de dezembro de 1853; 27 de maio de 1854; 02 de julho de 1854; 15 de março de 1855. Rio Grandense, de 08 de março de 1855.
  • 58
    Em particular, Correio do Sul, n. 206, de 02 de julho de 1854, p. 1-4; Idem, de 17 de março de 1853.
  • 59
    Não encontramos tais artigos em outros autos do processo. Seria interessante, no futuro, tentar sistematizar o estudo dos jornais como fórum de contestação dos conflitos judiciais. É provável que publicações sobre os processos de falência nos jornais locais tenham sido recorrentes, mas foram elas tomadas em consideração pelos tribunais e, se esse foi o caso, é possível avaliar o impacto delas no procedimento?
  • 60
    Correio do Sul, de 02 de julho de 1854; se acha junto aos documentos do Tribunal da Relação. AN, Relação do Rio de Janeiro, n. 2.408, cx. 1.605, fl. 932.
  • 61
    Correio do Sul, op cit
  • 62
    Correio do Sul, de 02 de julho de 1854. Borges tinha, um dia antes do lançamento do artigo, protestado diretamente junto aos árbitros. Em seu requerimento, ele nota os seguintes impedimentos: “primeiro ausência do escrivão quando andam em uma medição, ficando os autos feixados no Cartório: segundo repetidas vezes falta do numero completo de Vossas Senhorias já por moléstias já porque as suas ocupações não permittião o comparecimento de alguns de certos actos do processo; e terceiro a suspenção posta pelo contendor do suplicante a alguma dos senhores primeiros árbitros. Além disto deo-se também a longa interrupção das ferias do Natal que interpocerão a marcha do processo quase mês e meio e eventualidade da prisão do mesmo Almeida pela qual na forma do mesmo Regimento foi preciso duplicar a prazo da dilação e dar vista ao Curador e que ao tempo do ultimo adiantamento do compromisso era imprevisto, e como é bem sabido o processo tornou se imediamente complicado digo tornou-se reiniciamente complicado e voluminoso”. AN, Relação do Rio de Janeiro, “Requerimento de Francisco Antônio Borges, de 1. junho de 1854”, n. 2.408, cx. 1.605, fl. 682v.
  • 63
    Cláudia Simone de Freitas Munhoz, A Associação Comercial do Rio Grande de 1844 a 1852: interesses e atuação representativa do setor mercantil, Dissertação de mestrado, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2003, p. 124-133.
  • 64
    Os números compreendem somente a população livre. Gabriel Santos Berute, Atividades mercantis do Rio Grande de São Pedro: negócios, mercadorias e agentes mercantis (1808-1850), Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011, p. 44.
  • 65
    A tese de Berute analisa as redes dos comerciantes e, em especial, dos negociantes de grosso trato matriculados na Junta do Comércio. Segundo o autor, no livro de matrícula de negociantes de grosso trato da Real Junta do Comércio, no Rio de Janeiro (1809-1850), foram listados 52 negociantes em Porto Alegre e, pelo Almanack da Vila de Porto Alegre (1808), 57. Gabriel Santos Berute, op cit, p. 141-142. Trata-se da elite comercial e não da totalidade dos comerciantes, mas foi essa elite que se associou a outros agentes econômicos pelas ligações de negócio e de crédito e ocupou os cargos dos juízes arbitrais e dos juízes de paz, entre outros cargos jurídicos, administrativos e políticos.
  • 66
    Sobre a interferência das elites político-econômicas no funcionamento da Justiça, cf. Edson Alvisi Neves, Magistrados e negociantes na Corte do Império do Brasil: o Tribunal do Comércio, Rio de Janeiro, Jurídica; FAPERJ, 2008, p. 306-314.
  • 67
    Correio do Sul, n. 206, de 02 de julho de 1854, p. 1-4.
  • 68
    AN, Relação do Rio de Janeiro, n. 2.408, cx. 1.605, “Sentença do juiz do comercio José Pereira da Costa Motta, de 21 de setembro de 1854”, fl. 535v-536r; “Depoimentos das testemunhas, 23 e 24 de novembro de 1853”, fl. 568v-585v.
  • 69
    Em comparação, na Idade Moderna, Arndt Brendecke, Imperium und Empirie Funktionen des Wissens in der Spanischen Kolonialherrschaft, Köln; Weimar; Wien, Böhlau, 2009, p. 166; 331-333 {edição em espanhol: Imperio e información. Funciones del saber en el domínio colonial español, Madrid, Iberoamericana; Frankfurt am Main, Vervuert, 2012}, mostra como os consejeros do Consejo de Indias interagiam constantemente com os peticionários, agentes e partes litigantes em suas casas ou no caminho para o trabalho. A separação entre as funções oficiais e privadas dos consejeros já era bem pequena no século XVI, pois eles não possuíam condições de trabalho adequadas. Tamar Herzog, Upholding justice Society, State, and the Penal System in Quito (1650-1750), Ann Arbor, University of Michigan Press, 2004, p. 127-160, ilustra, de maneira bem profunda, os laços sociais, econômicos e familiares existentes entre os juízes de Quito e as elites locais nos séculos XVII e XVIII.
  • 70
    Essas reflexões foram inspiradas com base na leitura de Simona Cerutti, Giustizia sommaria: pratiche e ideali di giustizia in una società di Ancien Régime (Torino, XVIII secolo), Turim, Feltrinelli, 2003; Hans Joas, Die Kreativität des Handelns, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1992; Niklas Luhmann, Legitimation durch Verfahren, 3. ed., Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1983 {1969}; Birgit Näther, “Produktion von Normativität in der Praxis: das landesherrliche Visitationsverfahren im frühneuzeitlichen Bayern”, In: Stefan Brakensiek; Corinna von Bredow; Birgit Näther (orgs.), Herrschaft und Verwaltung in der Frühen Neuzeit, Berlin, Duncker & Humblot, 2014, p. 121-135.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    17 Fev 2014
  • Aceito
    06 Ago 2014
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