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O passado norte-americano na Era da Fratura: episódios das guerras de história nos Estados Unidos da década de 1990

Le Passé Américain à l’Ére de Fracture: épisodes de de guerres d’historire aux États-Unis des années 1990

El Pasado Americano en la Era de la Fractura: episodios de las guerras de historia en los Estados Unidos de la década de 1990

Resumo

Na década de 1990, os Estados Unidos enfrentaram diversas guerras de história sobre o significado do passado nacional para aquele presente. Dentre elas, podem-se destacar as controvérsias sobre os National History Standards, que buscavam incorporar minimamente certas perspectivas multiculturais ao ensino da história no país, e sobre a exposição Crossroads, imaginada como uma reflexão crítica sobre o fim da Segunda Guerra Mundial e o uso das bombas atômicas contra o Japão. Essas contendas, argumenta o artigo, podem ser entendidas a partir do contexto mais amplo tanto das culture wars que grassavam no período quanto de um retorno ao passado impelido pela gradual erosão de projetos futuristas ao longo daqueles anos. Finalmente, discute-se brevemente o impacto dessas guerras de história na historiografia disciplinada estadunidense.

Palavras-chave:
guerras de história; National History Standards; Crossroads.

Résumé

Dans les années 1990, les Etats-Unis face à plusieurs guerres d’histoire sur le sens du passé national pour ce présent. Parmi eux, nous pouvons souligner la controverse sur les National History Standards, qui a cherché à incorporer au minimum certaines perspectives multiculturelles pour l’enseignement de l’histoire dans le pays, et l’exposition Crossroads, imaginée comme une réflexion critique sur la fin de la Seconde Guerre Mondiale et l’utilisation des bombes atomiques contre le Japon. Ces différences, l’article soutient, peuvent être comprises dans le contexte plus large de la guerre des cultures qui ont fait rage dans la période, ainsi que le retour vers le passé entraîné par l’érosion progressive des projets futuristes au cours de ces années. Enfin, nous discutons brèvement l’impact des guerres d’histoire dans l’historiographie disciplinée américaine. T

Mots-clés:
guerres d’historie; National History Standards; Crossroads.

Resumen

En la década de 1990, los Estados Unidos se enfrentó a varias guerras de historia sobre el significado del pasado nacional para aquel presente. Entre ellas, podemos destacar la controversia sobre los National History Standards, que pretendía incorporar mínimamente ciertas perspectivas multiculturales a la enseñanza de historia en el país, y la exposición Crossroads, imaginada como una reflexión crítica sobre el final de la Segunda Guerra Mundial y el uso de las bombas atómicas contra Japón. Estas disputas, argumenta el artículo, se pueden entender en el contexto más amplio tanto de las guerras culturales que se desencadenaran en el período cuanto de un retorno al pasado impulsado por la erosión gradual de proyectos futuristas largo de esos años. Finalmente, se discute brevemente el impacto de las guerras de historia en la historiografía disciplinada americana.

Palabras-clave:
guerras de historia; National History Standards; Crossroads.

Abstract

In the 1990s, the United States faced several history wars about the meaning of the national past for that present. Among these, we can highlight the controversy over National History Standards, which sought to minimally incorporate certain multicultural perspectives for the teaching of history in the country, and the Crossroads exhibition, imagined as a critical reflection about the end of World War II and the use of atombombs against Japan. These disputes, the article argues, can be understood in the broader context of the culture wars that raged in the period as well as the return to the past driven by the gradual erosion of futuristic projects during those years. Finally, we briefly discuss the impact of the history wars in the American disciplined historiography.

Keywords:
history wars; National History Standards; Crossroads.

That’s one of the central problems of history, isn’t it, sir? {…} the fact that we need to know the history of the historian in order to understand the version that’s being put in front of us. ( Barnes, 2012 BARNES, Julian. The sense of an ending. Londres: Vintage Books, 2012. , p. 13)

Introdução

Uma das principais características das sociedades ocidentais de nosso tempo é certa fixação pelo passado, simbolizada, entre outras coisas, por sua mercantilização, pela patrimonialização quase obsessiva de seus vestígios, por diversas modas “retrô” e pela nostalgia chic de alguns (De Groot, 2009DE GROOT, Jerome. Consuming history: historians and heritage in contemporary culture. Londres: Routledge, 2009.; Hartog, 2014HARTOG, François. Creer en la historia. Santiago de Chile: Universidad Finis Terrae, 2014.). Sinal de um presentismo exacerbado, que transforma o tempo antes de agora em uma espécie de “escravo” de suas próprias necessidades, ou sintoma do colapso global de projetos futuristas e/ou utópicos, o fato é que, para citar Geoff Eley (2011ELEY, Geoff. The past under erasure? History, memory, and the contemporary. Journal of Contemporary History, v. 46, n. 3, p. 555-573, 2011., p. 557), a sensibilidade contemporânea constantemente nos convida a posicionar-nos em relação a diversos tipos de passados, um mais evanescente do que o outro. Nessa conjuntura, estamos constantemente questionando aquilo que fomos, somos ou, ao menos, poderíamos ter sido (Eley, 2011ELEY, Geoff. The past under erasure? History, memory, and the contemporary. Journal of Contemporary History, v. 46, n. 3, p. 555-573, 2011., p. 558).

Talvez como consequência disso, as três últimas décadas testemunharam a eclosão de diversas “guerras de história” (history wars)1 1 A expressão history wars parece ser derivada de culture wars, um fenômeno político norte-americano mais amplo dos anos 1990, principalmente, e que dizia respeito à luta para definir a América, para usar a formulação clássica de James Hunter (1992). Salvo engano, seu primeiro uso mais conhecido é no título da seminal obra organizada por Edward Linenthal e Tom Engelhardt (1996) sobre as “batalhas pelo passado norte-americano” daquela década. O termo acabou sendo importado por Stuart MacIntyre e Anna Clark (2003) para se referir aos confrontos públicos sobre o passado australiano da década de 1990 e, a partir daí, para nomear conflitos sobre o passado em diversas outras sociedades. em vários países, como a Alemanha, Austrália, África do Sul2 2 Para as guerras de história australianas e sul-africanas, respectivamente, ver MacIntyre e Clark (2003) e Rufer (2010). Para a Historikerstreit alemã, ver Baldwin (1990). e, caso que me interessa aqui, os Estados Unidos, quando na década de 1990 houve a famosa “luta pela alma da América”, para usar a excelente metáfora de Andrew Hartman (2015)141 CONG. REC. S1282 - SENATE RESOLUTION 66. To prevent the adoption of certain national history standards, 20 jan. 1995. Disponível em: <Disponível em: https://www.congress.gov/bill/104th-congress/senate-resolution/66 >. Acesso em: 24 ago. 2015.
https://www.congress.gov/bill/104th-cong...
. Do uso da bomba atômica à conquista do Oeste, nenhuma seara ficou intocada pelos conflitos daqueles anos; mais do que simples contendas historiográficas acerca de questões empíricas, factuais ou epistemológicas, as guerras de história envolveram amplos setores da sociedade, tiveram grande repercussão pública e trouxeram à tona as divergências, especialmente políticas, entre as representações profissionais/disciplinadas do passado e aquelas de outros atores sociais. Não raro, a profissão se viu confrontada por críticos que impugnavam sua autoridade em falar sobre e pelo passado e colocavam em questão sua legitimidade como a “única guardiã” do passado nacional. Talvez chocados, os historiadores e historiadoras norte-americanos acabaram descobrindo que não só suas interpretações podiam ser bastante impopulares entre seus conterrâneos, como podiam ser abertamente rejeitadas por eles.

Este artigo tem, assim, por objetivo contribuir minimamente para o debate teórico e historiográfico sobre as guerras de história norte-americanas, a partir do estudo de algumas de suas raízes culturais mais amplas e de seus efeitos para a historiografia disciplinada. Para tanto, ele está dividido em três partes, além desta breve Introdução: na primeira, percebo as possíveis origens das history wars tanto na dissociação entre a história disciplinar e a ideia de nação quanto no regime de historicidade que parece ordenar nossa atual relação com o tempo. No segundo ponto, discorro sobre duas contendas públicas sobre o passado nacional dos Estados Unidos nas décadas de 1990, durante a chamada “Era da Fratura” (Rodgers, 2011RODGERS, Daniel. The Age of Fracture. Princeton: Princeton University Press, 2011.):3 3 Para Rodgers (2011, p. 8-9), a “Era da Fratura”, iniciada durante os turbulentos anos 1960 e 1970, tem por característica principal a fragmentação das palavras e ideias em comum sobre o que significa e significava ser “norte-americano” e o que constituía historicamente tal ser. Segundo ele, “fortes metáforas de sociedade foram suplantadas por metáforas fracas. Coletividades imaginadas diminuíram; noções de estrutura e poder foram desbastadas. {…} o último quarto de século foi um período de desagregação, uma grande era da fratura” (Rodgers, 2011, p. 3). as controvérsias acerca dos National History Standards (NHS) e do script da exposição Crossroads, elaborado pelos curadores do Museu Nacional do Ar e do Espaço (NASM) norte-americano. Finalmente, no epílogo, aponto alguns dos efeitos dessas batalhas das history wars locais para a historiografia disciplinada estadunidense.

Et pluribus, unum? A fratura da história nacional nos Estados Unidos

Nos Estados Unidos, os anos 1990 foram anos duros para a profissão, mas não necessariamente para o passado em si. Como apresentou Michael Kammen (1997KAMMEN, Michael. In the past lane: historical perspectives on American culture. Oxford: Oxford University Press , 1997., p. 200-201) em análise clássica, o history boom daqueles anos transformou a “memória” e a “história” em “panaceias” para uma época em que a nação parecia padecer de ansiedades tremendas. Em um contexto de intensas “guerras culturais” e de uma aparente desagregação mesma da ideia de “Estados Unidos”, o passado tornou-se um dos campos de batalhas ideológicos mais importantes das culture wars (Hartman, 2015HARTMAN, Andrew. A war for the Soul of America: a history of the culture wars. Chicago: The University of Chicago Press, 2015., p. 253-284).

Mas o que parece ter impelido esse retorno norte-americano, muitas vezes dramático, ao passado? A resposta parece estar vinculada a duas questões fundamentais: em primeiro lugar, à lenta separação entre a historiografia disciplinada e a ideia de nação ocorrida ao longo da segunda metade do século XX e consolidada, por assim dizer, nas três últimas décadas daquela centúria; em segundo lugar, à confusão mais ampla do “sentido histórico” verificada no mesmo período, a partir daquilo que Chris Lorenz (2014LORENZ, Chris. Blurred lines: history, memory and the experience of time. International Journal for History, Culture and Modernity, v. 2, n. 1, p. 43-62, 2014., p. 43-62) chamou de “embaço” entre as linhas temporais do passado, do presente e do futuro, como consequência da (re)emergência de demandas antes pensadas como superadas.

A historiografia disciplinada, como se sabe, surgiu com a principal, mas não única, função de conferir genealogias legítimas, e pretensamente científicas, às nações em formação e consolidação durante o século XIX. Ancorados em uma rede de lugares de produção cada vez mais extensa, os historiadores tornaram-se os “guardiões do passado pátrio”, na metáfora de Gerald Nash (1993NASH, Gerald. Creating the West: historical interpretations, 1890-1990. Albuquerque: University of New Mexico Press, 1993., p. 273), asseverando a “historicidade” e a “naturalidade” das nações. Nesse processo, a história se transformou no processo de sua origem e desenvolvimento, ou de seu fracasso e desintegração, sendo as nações agora imaginadas tanto como as personagens principais dos textos historiográficos quanto os loci privilegiados de realização do próprio devir histórico (Lorenz, 2010LORENZ, Chris. Unstuck in time. Or: the sudden presence of the past. In: TILMANS, Karin; VREE, Frank van; WINTER, Jay (Org.). Performing the past: memory, history, and identity in modern Europe. 1. ed. Amsterdã: Amsterdam University Press, 2010. p. 67-102., p. 75-80). Como consequência, tentou-se impedir que narrativas rivais a essa teleologia pudessem emergir ou, pelo menos, angariar a mesma legitimidade pública daquelas produzidas pela disciplina. Pensada como uma espécie de “biografia da nação”, a historiografia fornecia as bases para sua unificação imaginária e a criação de “cidadãos” cujas lealdades, especialmente em países com grande população de origem imigrante ou com importantes minorias étnicas, deveriam ser garantidas (Lorenz, 2010LORENZ, Chris. Blurred lines: history, memory and the experience of time. International Journal for History, Culture and Modernity, v. 2, n. 1, p. 43-62, 2014.; Berger, 2007BERGER, Stefan. The power of national pasts: writing national history in nineteenth- and twentieth-century Europe. In: BERGER, Stefan (Org.). Writing the nation: a global perspective. Londres: Pallgrave-McMillan, 2007. p. 30-62., p. 30-62).

Nos Estados Unidos, essa “biografia da nação”, ou que Nathan Huggins (1991HUGGINS, Nathan. The deforming mirror of truth. Radical History Review, n. 49, p. 25-48, inverno 1991., p. 25-48) chamou de a “meta-história norte-americana”, adquiriu contornos variados desde o fim do século XIX, mas, em linhas gerais, mantinha como alguns de seus pilares principais a visão otimista sobre o passado nacional, uma crença no progresso contínuo da América e a defesa de seu caráter excepcional diante dos outros países do globo. Dos turnerianos defensores da frontier thesis aos consensualistas da década de 1950, passando pela “Escola Dunning”, prevaleceu na historiografia norte-americana um compromisso, às vezes implícito, com a legitimação daquilo que os Estados Unidos foram, eram e deveriam ser, sem espaços maiores para críticas à ordem dominante.4 4 A frontier thesis inspirada nas ideias de Frederick Jackson Turner postulava que a expansão das fronteiras ocidentais dos Estados Unidos fora fundamental para o surgimento de uma democracia verdadeiramente americana, já que serviu para “americanizar” os imigrantes e para incorporar milhões de hectares de terras livres à nação. Já os “consensualistas” afirmavam haver um “consenso histórico” sobre determinados valores e ideias nos Estados Unidos, como a liberdade econômica, a democracia política e a moralidade judaico-cristã; esse consenso, segundo eles, teria evitado que o país enfrentasse conflitos similares às guerras e revoluções do Velho Mundo. Finalmente, a “Escola Dunning” argumentava em prol do suposto papel “civilizador” da escravidão em terras americanas, minimizando sua violência e defendendo a legitimidade da supremacia branca como um instrumento de controle das populações afro-americanas. Todas essas interpretações, mesmo que heterogêneas e continuamente contestadas por uma série de historiadores e historiadoras, apresentavam uma visão progressista e otimista do passado nacional. Para uma introdução a todas elas, ver o já citado trabalho de Peter Novick (1988) e a obra clássica de Ian Tyrrell (1986). Dessa maneira, como deixaram claro Novick (1988NOVICK, Peter. That noble dream: the “objectivity question” and the American historical profession. Cambridge: Harvard University Press, 1988., p. 47-85) e Thomas Bender (2011BENDER, Thomas. Writing American history, 1789-1945. In: MACINTYRE, Stuart; MAIGUASCHA, Juan; PÓK, Attila (Org.). The Oxford history of historical writing: 1800-1945. Oxford: Oxford University Press, 2011. v. 4, p. 369-389., p. 369-389), isso envolveu, em larga medida, o silenciamento ou o apagamento de personagens e processos diversos da história norte-americana e na conformação de narrativas que, mesmo quando eram não abertamente nacionalistas, racistas e sexistas, davam chancela ideológica a discriminações e exclusões diversas.

No entanto, a partir dos anos 1950 e 1960, o casamento entre os historiadores e a nação, que, de fato, nunca fora muito tranquilo, começou a ruir por causa, principalmente das críticas da new left e da nova história social àquilo que, corretamente, identificavam como sendo o papel da historiografia como afiançadora do status quo. Dessa maneira, a emergência de novos objetos e personagens históricos pela inspiração da nova história social, se não anulava a possibilidade última de sua integração à história nacional, no mínimo a tornava bastante problemática (Novick, 1988NOVICK, Peter. That noble dream: the “objectivity question” and the American historical profession. Cambridge: Harvard University Press, 1988., p. 469-523). Como, por exemplo, representar o passado dos afro-americanos e dos ameríndios dos Estados Unidos, para ficarmos apenas com dois exemplos, sem mencionar sua violenta e brutal exclusão da “comunidade imaginada” norte-americana por séculos? Como se poderiam narrar as experiências dos diversos imigrantes sem necessariamente assumir um rápido e eficaz processo de assimilação? Como falar do capitalismo norte-americano sem mencionar seus enormes custos humanos e ambientais? Ou, para trazermos o problema do espaço à tona, como escrever a história das diversas fronteiras nacionais, espaços fluidos de integração e separação, e suas constituições a partir de uma lógica estritamente nacional?

Um segundo processo, interno à disciplina, também contribuiu para o gradual aparte entre a história e nação: o processo de superespecialização ou, para usar os termos de Ian Tyrrell (2005TYRRELL, Ian. Historians in the public: the practice of American history, 1890-1970. Chicago: The University of Chicago Press, 2005., p. 25-40), de “feudalização” da historiografia disciplinada em uma série de campos e subcampos que não necessariamente dialogavam entre si ou que sequer tinham a história nacional como seu horizonte mais amplo. Chegara a era em que, na ótima metáfora bíblica usada por Novick (1988NOVICK, Peter. That noble dream: the “objectivity question” and the American historical profession. Cambridge: Harvard University Press, 1988., p. 573), rei algum parecia reinar em Israel.

Para além das jeremiadas, aparentemente intermináveis, sobre a “crise da história”, os desdobramentos teóricos dessa “fragmentação” da historiografia são bastante conhecidos: a nova história social foi ela própria alvo de contundentes e devidas críticas por parte da história cultural e, de forma ainda mais radical, pelo posterior “giro linguístico”.5 5 Sobre o impacto de tais turns na historiografia norte-americana, ver o dossiê recente da American Historical Review (2012). Em poucas décadas, as antigas certezas sobre a “objetividade” e a “imparcialidade” da história foram submetidas a escrutínios sistemáticos que, para seu próprio bem, fizeram com que a disciplina meditasse sobre seus pilares epistemológicos mais amplos. Se, evidentemente, essas críticas tiveram (ou deveriam ter tido…) um efeito libertador para a mais conservadora das humanidades, um de seus efeitos colaterais foi solapar aquele pilar prático que a havia legitimado por mais de um século: a sustentação da nação (White, 2012WHITE, Hayden. Politics, history and the practical past. Storia della Storiografia, v. 1, n. 61, p. 127-134. , p. 128). Não é de surpreender, portanto, que as guerras de história acabaram por confrontar historiadores que assumiam uma postura assumidamente crítica em relação à “biografia da nação” e uma audiência que, apesar das mudanças na historiografia acadêmica, continuava imaginando a história nestes exatos termos, como apresentou Antonis Liakos (2008LIAKOS, Antonis. History wars: notes from the field. Yearbook of the International Society for the Didactics of History. Augsburg: International Society for the Didactics of History, 2008-2009. p. 57-74.-2009, p. 57-58): “as esferas públicas nacionais ainda são dominadas pela história nacional. Como consequência, tentativas de dissociar a história da nação frequentemente resultam em guerras de história”.6 6 “The national public spheres are still dominated by national history. As a consequence, attempts to disassociate history from the nation often result in history wars.”

De certo modo, o surgimento dessas novas demandas historiográficas estava ligado ao reconhecimento da existência das “feridas históricas”, na acepção de Dipesh Chakrabarty (2007CHAKRABARTY, Dipesh. History and the politics of recognition. In: JENKINS, Keith; MORGAN, Sue; MUNSLOW, Alun (Org.). Manifestos for history. Londres: Routledge, 2007. p. 77-87., p. 77-87), que haviam sido constituintes da própria nação norte-americana. Como diria William Faulkner, para alguns o passado não só não estava morto, como nem mesmo era passado. Para que os Estados Unidos pudessem dar conta das injustiças de seu presente, era necessário, assim, confrontar aquilo que Patricia Limerick (2001LIMERICK, Patricia Nelson. Haunted America. In: Something in the soil: legacies and reckonings in the New West. 2. ed. Nova York: W. W. Norton, 2001. p. 33-73., p. 33-73) chamou de a “América assombrada”, isto é, as formas como diversos legados do passado, mesmo que constantemente negados e/ou minimizados, continuavam subsistindo e atemorizando o presente. Na medida em que o presente se recusava a elaborar tais violências ou minimamente reconhecê-las, sob a forma de amnésias ou negacionismos diversos, mais esse passado “quente”, na acepção de Lorenz (2014LORENZ, Chris. Blurred lines: history, memory and the experience of time. International Journal for History, Culture and Modernity, v. 2, n. 1, p. 43-62, 2014.), retornava para assombrar os vivos - e, em parte, parece ter sido essa uma das raízes das history wars norte-americanas.

Como será visto, a incorporação mínima de histórias multiculturais, por exemplo, ao currículo das escolas locais, assim como a consideração ética sobre o uso das bombas contra o Japão, parece obedecer a essa lógica, na medida em que buscava iluminar certos aspectos do passado não facilmente incorporáveis àquela meta-história progressista e otimista descrita. Em outras palavras, era como se os elementos recalcados ou negados por essa narrativa subitamente retornassem à superfície da sociedade norte-americana com o claro de intuito de exigir suas devidas elaborações públicas. De outro modo, como entender a virulência das respostas conservadoras a essas demandas?

Por outro lado, a disjunção entre uma disciplina histórica cada vez menos interessada em ser a “guardiã da nação” e a demanda de partes substanciais da audiência para que ela assim o fosse parece ter gerado uma espécie de nostalgia por uma história supostamente “menos complicada”, para usar a expressão de um comentarista norte-americano (Hartman, 2015HARTMAN, Andrew. A war for the Soul of America: a history of the culture wars. Chicago: The University of Chicago Press, 2015., p. 272), isto é, centrada nos principais homens e eventos nacionais e com a função de fomentar um senso de patriotismo entre seus cidadãos. Para esses críticos, a “nova história”, chamada pejorativamente de “revisionista”, com sua cacofonia de personagens, temas e objetos até então (relativamente) outsiders da esfera pública, significava a desestruturação de um modo de compreender a história que resultava em um desejo por um passado estável, estático e sem conflitos:

Enquanto a própria linguagem da sociedade ameaçava quebrar-se em fragmentos, o passado tornou-se uma esfera em que os desejos por comunidade e comunhão podiam ser projetados. […] A impressão de se estar vivendo em um tempo fragmentado e acelerado transformava a história em um ponto de aguda importância. (Rodgers, 2011RODGERS, Daniel. The Age of Fracture. Princeton: Princeton University Press, 2011., p. 221)7 7 “As the very language for society threatened to break into fragments, the past became a sphere onto which desires for community and cohesion could be projected. {…} A sense of living within fragmenting and accelerating time made history a point of acute importance.”

Em última instância, a “Era da Fratura”, então, parece ter a ver com aquele esvaziamento dos grandes projetos coletivos e a indisponibilidade da própria linguagem nacional típicas do capitalismo tardio e de sua lógica cultural, como apresentou Fredric Jameson (1984JAMESON, Fredric. Postmodernism or the cultural logic of late capitalism. New Left Review, n. 146, p. 53-92, jul./ago. 1984., p. 65). A melancolia pela “perda” de determinada história, que servia como o nexo fundamental de determinadas identidades, parecia gerar, assim, uma nostalgia por um tempo em que a “história verdadeira” era propalada pelos quatro cantos do país sem ser ameaçada por imposturas “politicamente corretas” ou “antiamericanas”. Portanto, se o presente era fonte e palco de incertezas e confrontos virulentos, o passado era tomado como uma forma de idade dourada, os good old’ days em que os homens eram homens, a civilização prosperava e os valores morais do Ocidente eram defendidos e respeitados.

De museus e currículos: com quantas batalhas se faz uma guerra de história?

Essa conjuntura mais ampla nos ajuda a compreender as history wars norte-americanas dos anos 1990 e, especialmente, sua virulência pública. Das várias guerras de história travadas no período, as duas mais conhecidas foram aquelas acerca dos National History Standards e da exposição Crossroads sobre o fim da Segunda Guerra Mundial e o uso das bombas atômicas contra o Japão, no Museu Nacional do Ar e do Espaço (NASM, em inglês), ambas com seus ápices entre 1994 e 1995. Nas duas contendas, que muitas vezes se confundiram, os historiadores e historiadoras se viram confrontados com uma torrente de críticas públicas, especialmente políticas, às suas representações do passado norte-americano, vindas de diferentes grupos e movidas por interesses diversos.

No primeiro caso, um grupo de historiadores e historiadoras profissionais, pedagogas, professores e professoras de middle e high schools de todo o país reuniu-se para elaborar parâmetros curriculares nacionais voluntários para o ensino de história, com financiamento público da National Endowment for the Humanities (NEH).8 8 A NEH é uma agência pública destinada ao fomento e financiamento de pesquisas e outras atividades das humanidades nos Estados Unidos. Durante os anos 1980 e 1990, a agência foi continuamente atacada pelos republicanos por sua suposta politização das ciências humanas e pelo alegado suporte a produções “antiamericanas”, como destaca Andrew Hartman (2015, p. 217-218) em sua história das “guerras culturais” do período. O projeto teve início em 1992 e tinha por meta a incorporação de alguns dos postulados da nova história social às salas de aula estadunidenses, superando aquilo que, na visão de seus idealizadores, seria uma história estéril, centrada nos grandes nomes e feitos do passado e tomada como excessivamente nacionalista. O interesse aqui era tanto pedagógico quanto político: no primeiro caso, as diretrizes tinham por interesse ir além daquele compêndio de nomes, datas e fatos que, segundo Gary Nash et al. (1997NASH, Gary. et al. History on trial: culture wars and the teaching of the past. 2. ed Nova York: Vintage, 1997., p. 25) e Linda Symcox (2002SYMCOX, Linda. Whose history? The struggle for the National Standards in American classrooms. 1. ed. Nova York: Teachers College Press, 2002., p. 25-28), ainda compunham o cerne do ensino de história nas escolas do país e, com isso, tornar complexa a relação dos alunos com o passado.

Ainda que os trabalhos de elaboração desses documentos não tivessem sido sem conflitos, a polêmica sobre eles tornou-se manifesta após a publicação de um editorial de Lynne Cheney, ex-presidente da NEH e uma das inspiradoras do projeto, no The Wall Street Journal, em outubro de 1994. Nele, a republicana lamentava o “sequestro” da história do país por grupos “politicamente corretos”, condenava a ausência de “figuras notórias”, como George Washington, dos Standards e criticava a “falta” de “história tradicional” do documento. Mas, para além de questões factuais mais específicas, o problema dos NHS seria, para Cheney, sua visão “negativa” da experiência histórica norte-americana, que ameaçava “enfraquecer” o patriotismo dos jovens do país: “nós somos um povo melhor do que o indicado pelos NHS e nossas crianças merecem sabê-lo” (Cheney, 1994CHENEY, Lynne. The end of history. The Wall Street Journal, Nova York: Dow Jones and Co., p. A26, 20 out. 1994., p. E2).9 9 “We are a better people than the National Standards indicate, and our children deserve to know it.” Pouco importava para Cheney o fato de que a adoção dos NHS era voluntária; para ela, os autores dos documentos estavam tentando impor uma pérfida “história oficial” ao país.

De imediato, uma torrente de assaltos se seguiu ao editorial, com jornalistas, radialistas e historiadores conservadores, além do grande público, tomando partido contra os NHS. Logo após a publicação do artigo de Cheney, o histriônico radialista conservador Rush Limbaugh (apud Hartman, 2015HARTMAN, Andrew. A war for the Soul of America: a history of the culture wars. Chicago: The University of Chicago Press, 2015., p. 273), um dos principais propagadores da contenda, proferiu suas usuais diatribes contra os “intelectuais politicamente corretos do país”, e, talvez convertido a um caricato rankeanismo tardio, afirmou ser a história algo bastante simples, ou seja, o que “meramente ocorreu e nada mais”:

O problema ocorre quando caras como esses tentam distorcer a história dizendo “bom, vamos interpretar o que ocorreu porque talvez não consigamos encontrar a verdade nos fatos. Então mudamos a interpretação pouco a pouco para que as coisas sejam do jeito que gostaríamos que fossem”. Bem, isso não é história. História é simplesmente o que ocorreu e a história deve ser nada mais do que a busca para descobrir o que de fato aconteceu. (Limbaugh apud Nash et al., 1997NASH, Gary. et al. History on trial: culture wars and the teaching of the past. 2. ed Nova York: Vintage, 1997., p. 6)10 10 “The problem you get into is when guys like this try to skew history by saying: ‘well, let’s interpret what happened because maybe we can’t the truth in the facts, or at least we don’t like the truth as it’s presented. So let’s change the interpretation a little bit so that will be the way we wished it were’. Well, that’s not what history is. History is what happened and history ought to be nothing more than the quest to find out what happened.”

De maneira geral, nos meses que se seguiram, boa parte dos críticos repetiu as acusações de Cheney e Limbaugh: os guias curriculares eram “excessivamente politicamente corretos e multiculturalistas”, demasiadamente focados nos “subalternos” (mulheres, afro-americanos e indígenas, por exemplo), extremamente críticos do capitalismo e, finalmente, “antiocidentais”, já que supostamente rejeitavam a herança “europeia” do país. Alguns colunistas e intelectuais conservadores, como John Leo, John Patrick Diggins e Walter McDougall, iam mais longe e acusavam os “historiadores politicamente corretos” de terem “sequestrado” a história nacional para transformá-la em uma litania de sofrimentos que visava a “balcanizar” o passado estadunidense e, consequentemente, atacar os fundamentos mesmos da ideia americana de et pluribus unum. O jornalista John Leo resumiu muito bem esse ponto de vista quando declarou: “se você vê a América como inerentemente opressiva, então a única história possível é a do gradual crescimento de mais e mais rebeliões contra as elites brancas dominantes” (Leo apud Nash et al., 1997NASH, Gary. et al. History on trial: culture wars and the teaching of the past. 2. ed Nova York: Vintage, 1997., p. 192).

Como se pode inferir dessas críticas, para alguns conservadores, a velha história centrada nos grandes homens do passado e nos “valores americanos” ainda seria a “verdadeira” narrativa nacional, apesar de “modismos” e apelos àquilo que consideravam uma história que visava unicamente a “aumentar a autoestima de minorias” que, segundo eles, “pouco haviam contribuído para a civilização ocidental” (Hartman, 2015HARTMAN, Andrew. A war for the Soul of America: a history of the culture wars. Chicago: The University of Chicago Press, 2015., p. 253-284). Walter McDougall, professor de história americana na Universidade da Pensilvânia, deixou claro que, para além de uma ou outra questão factual, o problema maior dos Standards era justamente seu âmbito político, em especial no que se referia à história da nação e sua vinculação com os “valores ocidentais”. Sobre isso, McDougall (1995)MCDOUGALL, Walter. What Johnny still won’t know about history. Commentary Magazine, 1o jul 1996. Disponível em: <https://www.commentarymagazine.com/articles/what-johnny-still-wont-know-about-history/>. Acesso em: 24 ago. 2015.
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era claro: qualquer tentativa de minimizar o impacto global positivo da civilização ocidental era algo a ser condenado. “A decência da vida na próxima geração”, segundo ele, dependia disso.

Por causa dessa posição, McDougall (1995)MCDOUGALL, Walter. What Johnny still won’t know about history. Commentary Magazine, 1o jul 1996. Disponível em: <https://www.commentarymagazine.com/articles/what-johnny-still-wont-know-about-history/>. Acesso em: 24 ago. 2015.
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censurava duramente qualquer tentativa de tornar complexa a história norte-americana para os alunos das middle e high schools do país; antes de aprender sobre a ganância e o cinismo que também faziam parte do passado nacional, o professor sugeria que os estudantes deveriam conhecer os “feitos excepcionais” da civilização norte-americana e os “inúmeros sacrifícios” envolvidos em sua criação e preservação. Sua suposta tentativa de “elevar a autoestima” das minorias étnicas e dos grupos subalternos era algo até louvável, mas não poderia vir às expensas da negação da centralidade da “liberdade” e da “igualdade” para a história nacional. Para McDougall (1995), em suma, a luta contra os NHS fazia parte daquela guerra maior pela preservação dos aspectos “centrais” da história do país em um momento em que ela supostamente estava sob ataque cerrado das fileiras “politicamente corretas”.

John Patrick Diggins, professor de história intelectual na City University of New York (Cuny), repetiu as admoestações de McDougall, adicionando-lhes uma crítica mais contundente àquilo que considerava o aspecto mais nefasto da nova história social, representada pelas diretrizes: sua “mistificação” dos subalternos. Para Diggins (1997DIGGINS, John Patrick. Can the social historian get it right?. Society, v. 34, n. 2, p. 9-19, 1997., p. 10), a história social, como exposta pelos NHS, não ensinaria aos jovens norte-americanos sobre as liberdades políticas que sustentavam o país, na medida em que negligenciava a ação dos grandes homens que haviam lutado para garanti-las a todos os norte-americanos. Na visão do professor, a ideia de que a história dos Estados Unidos iniciava com o contato entre ameríndios, africanos e europeus era uma falácia “politicamente correta”. De acordo com Diggins (1997DIGGINS, John Patrick. Can the social historian get it right?. Society, v. 34, n. 2, p. 9-19, 1997., p. 9), portanto, a história era dividida entre aqueles que a faziam e aqueles que a sofriam, sendo “natural”, segundo suas próprias palavras, que as pessoas se identificassem com os primeiros:

Houve um tempo em que era natural se identificar com aqueles que fizeram a história e negligenciar aqueles que simplesmente a enfrentavam, como era natural se identificar com uma estrela atlética e negligenciar os espectadores, cuja simples presença indicava que eles também apreciavam a mesma identificação visceral com o superior e o glorioso.11 11 “Once upon a time it was as natural to identify with those who made history and to neglect those who simply endured it as it was to identify with an athletic star to the neglect of the spectators, whose very attendance indicated that they, too, enjoyed the same visceral identification with the superior and the glorious.”

As perspectivas dos professores podem ser tomadas como uma forma conservadora paradigmática de se imaginar a história dos Estados Unidos, aos moldes da meta-história nacional descrita na primeira parte do artigo. Nos interstícios de suas críticas aos NHS, emerge a ideia do passado norte-americano como sendo algo a ser celebrado e compartilhado pelos habitantes do país, especialmente no que tange à sua herança ocidental e ao seu lugar no concerto internacional de nações, como o corolário do apagamento ou, ao menos, do silenciamento, de quaisquer histórias que possam colocar tal ideia em questão. Centrada, como afirmou McDougall (1996)MCDOUGALL, Walter. What Johnny still won’t know about history. Commentary Magazine, 1o jul 1996. Disponível em: <https://www.commentarymagazine.com/articles/what-johnny-still-wont-know-about-history/>. Acesso em: 24 ago. 2015.
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em outro momento, em uma série de “datas, fatos e personagens centrais” que exemplificam a “busca da liberdade e da autorrealização” como o mote principal da experiência nacional, a história imaginada pelos professores não pode admitir nenhuma melodia dissonante à harmonia central sob o risco de perder seu sentido. As “feridas históricas” permaneceriam, assim, sem o reconhecimento, porque eram desimportantes para o “tema central” da história do país.

As vozes de McDougall e Diggins, mesmo que minoritárias entre os historiadores e historiadoras profissionais, pareciam ecoar o sentimento de diversos outros comentaristas conservadores sobre a aparente necessidade de preservar certa constância para o passado no contexto das guerras culturais nos anos que se seguiram às turbulentas décadas de 1960 e 1970, à derrota no Vietnã e ao fim da Guerra Fria. Se o presente se apresentava como crise, isto é, como um locus de instabilidade, de divisão e de conflitos ideológicos profundos, então somente uma história que reafirmasse a continuidade e a estabilidade da nação poderia salvá-la daquilo que, aos olhos dos conservadores, era o declínio quase irreversível de sua alma:

A meta da história era simplesmente inculcar o amor pela pátria. Tal objetivo se tornou ainda mais importante com a perda do propósito nacional que se seguiu ao fim da Guerra Fria - e, mais importante, à crise de identidade nacional que acompanhou a declínio do poder norte-americano, que se tornou manifesto nas florestas do Vietnam. (Hartman, 2015HARTMAN, Andrew. A war for the Soul of America: a history of the culture wars. Chicago: The University of Chicago Press, 2015., p. 276)12 12 “The goal of history was to inculcate a love of country, plain and simple. Such an objective became more paramount than ever with the loss of national purpose that accompanied the end of the Cold War — and more poignantly, the crisis of national identity that ensued alongside the decline of American power made manifest in the jungles in Vietnam.”

Após meses de polêmicas, ecoadas em jornais, no rádio e na televisão, e com os organizadores dos NHS submetidos a ataques cada vez mais histriônicos, o ápice da contenda foi a vitória da resolução senatorial de rejeição aos guias, mesmo que com valor somente simbólico, por 99 a 1, votada em janeiro de 1995. Segundo os senadores, o dinheiro dos taxpayers norte-americanos só poderia financiar projetos que, em suas palavras, tinham “um respeito decente pelas contribuições da civilização ocidental ao mundo, à história dos Estados Unidos e ao aumento da prosperidade e liberdade ao redor do mundo” (141 Cong. Rec. S1282 - Senate Resolution 66, 1995). Justificadamente, vozes de intelectuais respeitados, como Eric Foner e Joyce Appleby, se levantaram contra essa tentativa dos legisladores de criar um arremedo de história oficial para o país. Importantes jornais, como o New York Times, também denunciaram o autoritarismo implícito na moção (Nash et al., 1997NASH, Gary. et al. History on trial: culture wars and the teaching of the past. 2. ed Nova York: Vintage, 1997., p. 236). As denúncias, embora ecoadas publicamente, surtiram pouco efeito prático, contudo. A primeira versão dos NHS estava condenada. Com o recado dado pelos políticos e incapazes de se contrapor à resolução senatorial, não houve outra solução para seus organizadores que não a de emendar as diretrizes, com a publicação de sua versão final um ano mais tarde. Alguns conservadores mais exaltados continuaram atacando o documento, mas seu último formato, supostamente “mais patriótico” que o primeiro, agradou a maioria dos antigos críticos e foi, assim, finalmente liberado para as escolas (Symcox, 2002SYMCOX, Linda. Whose history? The struggle for the National Standards in American classrooms. 1. ed. Nova York: Teachers College Press, 2002., p. 147-149).

A Enola Gay Controversy foi tão rumorosa quanto a dos NHS. Desde os anos 1980, existia um importante lobby de políticos, militares e aeronautas para a restauração do avião Enola Gay, até então abandonado em um galpão no estado de Maryland. No início dos anos 1990, contudo, o NASM obteve fundos suficientes para dar início ao restauro da nave que havia largado a bomba atômica sobre Hiroshima. A meta era utilizar a aeronave em uma exposição sobre o cinquentenário do fim da Segunda Guerra Mundial e lembrar seu papel no encerramento das hostilidades entre os Estados Unidos e o império japonês.

Elaborado por Martin Harwit, diretor do NASM, e por seus curadores, alguns deles historiadores profissionais, Crossroads buscava contextualizar o uso das bombas atômicas no Japão, as intenções do governo norte-americano ao ordenar a destruição de Hiroshima e Nagasaki e seu legado para a modernidade. Em outras palavras, os organizadores da mostra almejavam abrir um espaço para a reflexão crítica sobre as bombas e a “Era Atômica” a partir da exibição de uma série de artefatos, de roupas e materiais resgatados das ruínas das cidades japonesas a cartas enviadas da frente de batalha pelos soldados norte-americanos, culminando com a exposição de um restaurado e imponente Enola Gay (Linenthal, 1996LINENTHAL, Edward .; ENGELHARDT, Tom (Org.). History wars: the Enola Gay and other battles for the American past. Nova York: Metropolitan Books, 1996., p. 28-32). A elaboração desse primeiro script não fora sem discordâncias, como o próprio Harwit (1996) afirmou em seu relato sobre o episódio, mas elas tomaram uma proporção gigantesca com seu vazamento à mídia em 1994.

Contrariados com as posições dos organizadores, os veteranos que os assessoravam entregaram o script à imprensa. Uma crítica devastadora publicada na Air Force Magazine, revista da poderosa Air Force Association, atraiu a ira de políticos e antigos militares preocupados com o “relativismo” excessivo da planejada exibição. Nos meses seguintes, o documento seria alvo de uma série de ataques contra aquilo que seus opositores imaginavam ser uma “preocupação excessiva” com o “lado japonês” da guerra, a “ausência” de uma “contextualização eficaz” da decisão de usar as bombas atômicas, a “falta” de explicações sobre o “comportamento brutal” dos nipônicos no Pacífico e, por fim, a suposta antipatia dos organizadores pelos soldados norte-americanos e seu sacrifício pela pátria. A Legião Americana, organização dos veteranos das Forças Armadas norte-americanas, considerou os planos iniciais como não menos que “insultantes” e “ofensivos” à memória dos militares que deram sua vida pelos Estados Unidos (Dubin, 1999DUBIN, Steven C. Displays of power: controversy in the American museum from the Enola Gay to Sensation. Nova York: New York University Press, 1999., p. 162-163). Já John Correll (1994aCORRELL, John. The Smithsonian plan for the Enola Gay: a report on the revisions. Air Force Magazine, 1994a. Disponível em: <http://www.airforcemag.com/MagazineArchive/EnolaGayArchive/Pages/default.aspx>. Acesso em: 20 ago. 2015.
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), editor da AFM, afirmou que, indubitavelmente, o uso da bomba contra o “inimigo japonês” era um dos mais éticos e menos ambíguos eventos do século XX, por causa da quantidade de futuras vidas por ele poupadas. Ao não tratar tal acontecimento com o “devido respeito”, os elaboradores do script propunham, na visão de Correll (1994b)CORRELL, John. War stories at Air and Space. Air Force Magazine, 1994b. Disponível em: <Disponível em: http://www.airforcemag.com/MagazineArchive/EnolaGayArchive/Pages/default.aspx >. Acesso em: 20 ago. 2015.
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, uma postura demasiadamente “revisionista” sobre a Segunda Guerra Mundial e seus efeitos no presente.

Um dos argumentos principais dos críticos de Crossroads era a suposta incapacidade dos historiadores contemporâneos de julgar os eventos da guerra do Pacífico, principalmente por não terem sido testemunhas ou participantes deles. Um dos veteranos, por exemplo, afirmou “não compreender” o motivo de “tamanha simpatia” por aqueles que quiseram matá-lo, salvo por algum “desconhecimento” da história “real”. Em sua visão, os organizadores da exposição deveriam ficar ao lado dos norte-americanos que sofreram durante a guerra, e não defender seus algozes (Dubin, 1999DUBIN, Steven C. Displays of power: controversy in the American museum from the Enola Gay to Sensation. Nova York: New York University Press, 1999., p. 192-193). Segundo esses críticos, a “verdadeira história” era simples e fácil de ser acessada; bastava que Harwit e seus companheiros abandonassem a postura “revisionista” que supostamente os movia e respeitassem a suposta “verdade intrínseca” dos testemunhos dos antigos militares (Newman, 2007NEWMAN, Robert P. Enola Gay at Air and Space: anonymity, ignorance, hypocrisy. In: MADDOX. Robert (Org.). Hiroshima in history: the myths of revisionism. Columbia/Londres: University of Missouri Press, 2007. p. 168-170., p. 168-170).

A exposição de fotos de mortos e feridos no ataque e artefatos recolhidos do ground zero das explosões foi alvo de especial ira dos veteranos e seus aliados; segundo eles, tais peças só estavam no script somente por causa de seu “valor emocional”, e sua exibição supostamente não contribuiria “em nada” para a “devida” compreensão da guerra no Pacífico e da decisão de lançar as bombas sobre o Japão. Para esses críticos, não se poderia compreender o bombardeio de Hiroshima e Nagasaki sem que a crueldade japonesa, exemplificada em episódios como o Estupro de Nanking e a Marcha da Morte de Bataan, fosse levada em consideração. Do mesmo modo, alguns se engajavam em especulações contrafactuais, mesmo sem comprovação empírica alguma, afirmando que o uso das bombas evitou uma invasão ao Japão que teria custado milhões de vidas - um comentarista chegou a levantar o espectro do Holocausto ao afirmar que “6 milhões de almas”, o suposto custo de um ataque terrestre, haviam sido poupadas pelo bombardeio às cidades japoneses (Dubin, 1999DUBIN, Steven C. Displays of power: controversy in the American museum from the Enola Gay to Sensation. Nova York: New York University Press, 1999., p. 214).

O próprio comandante do Enola Gay, Paul Tibbets, chamou o script de uma “pilha de lixo”, com outras vozes ecoando argumentos parecidos (Correll, 1994aCORRELL, John. The Smithsonian plan for the Enola Gay: a report on the revisions. Air Force Magazine, 1994a. Disponível em: <http://www.airforcemag.com/MagazineArchive/EnolaGayArchive/Pages/default.aspx>. Acesso em: 20 ago. 2015.
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). Mesmo com as explicações dos organizadores e o apoio à exibição por certos setores da imprensa, militares, veteranos, jornalistas e políticos pressionaram a opinião pública de tal maneira que, como no episódio dos NHS, a polêmica encontrou seu ápice em uma resolução senatorial de rejeição a Crossroads em setembro de 1994. Durante a sessão que votou a moção, um dos senadores republicanos afirmou que a missão do museu era “preservar a história” dos Estados Unidos, não “reescrevê-la”. Outro ainda acusou o script de ser mais um atentado dos “radicais politicamente corretos” contra a “verdadeira” história nacional:

Enquanto, ao memorializar o papel dos Estados Unidos em conflitos armados, o Museu Nacional do Ar e do Espaço tem obrigação sob a lei federal de retratar a história no contexto apropriado dos tempos: agora, portanto, que seja decidido que é o senso desse Senado que qualquer exposição exibida pelo Museu Nacional do Ar e do Espaço com respeito ao Enola Gay deva refletir uma sensibilidade apropriada para com os homens e as mulheres que serviram os Estados Unidos fiel e altruisticamente durante a Segunda Guerra Mundial e deva evitar impugnar a memória daqueles que deram sua vida pela liberdade (140 Cong. Rec. - Senate Resolution 257, 1994).13 13 “Whereas, in memorializing the role of the United States in armed conflict, the National Air and Space Museum has an obligation under the Federal law to portray history in the proper context of the times: Now, therefore, be it Resolved, That it is the sense of the Senate that any exhibit displayed by the National Air and Space Museum with respect to the Enola Gay should reflect appropriate sensitivity toward the men and women who faithfully and selflessly served the United States during World War II and should avoid impugning the memory of those who gave their lives for freedom.”

Sem saída e enfraquecida por meses de embates públicos, a direção do NASM encerrou os planos para Crossroads. Em seu lugar, foram expostos apenas a fuselagem restaurada do Enola Gay e vídeos sobre sua missão sobre o Pacífico, bem como sua posterior restauração. Nenhuma menção às consequências mais amplas do ataque ao Japão era feita. A exibição acabou sendo um sucesso de público, atraindo mais de 4 milhões de pessoas nos três anos em que esteve em cartaz (Linenthal, 1996LINENTHAL, Edward .; ENGELHARDT, Tom (Org.). History wars: the Enola Gay and other battles for the American past. Nova York: Metropolitan Books, 1996., p. 45-58).

Como reagiram, então, os historiadores e historiadoras profissionais a essas contendas? Em 1995, por exemplo, o Journal of Social History, um dos mais importantes periódicos da historiografia profissional norte-americana, publicou um dossiê que buscava analisar e encontrar soluções para os problemas apresentados pelos embates dos anos anteriores. Focando principalmente a questão dos NHS, os colaboradores da edição se perguntavam sobre o motivo do que Peter Stearns (1995STEARNS, Peter. Uncivil war: current American conservatives and social history. The Journal of Social History, v. 29, p. 7-15, 1995., p. 7) chamou de a “uncivil war” dos conservadores contra a história social. Ecoado também por Gary Nash (1995NASH, Gary. The history standards controversy and social history. The Journal of Social History, v. 29, p. 39-49, 1995., p. 39-49) e Roy Rosenzweig (1995ROSENZWEIG, Roy. The best of times, the worst of times. The Journal of Social History, v. 29, p. 99-107, 1995., p. 99-107) em suas contribuições, o principal argumento de Stearns (1995, p. 10-12) era o de que a controvérsia sobre os Standards, em especial, fora resultado do choque entre duas visões de história bastante antagônicas: uma era focada na história das massas, na complexidade do passado, incluindo seus aspectos obscuros, e na rejeição da “história dos grandes homens”; a outra, por sua vez, seria o espectro invertido desta: a busca de estabilidade e otimismo no passado, a veneração de grandes figuras e o culto a um nacionalismo bastante antiquado. Não deveria ser espantoso, portanto, o fato de que os historiadores não conseguiam construir pontes entre eles e seus críticos: não havia um middle ground suficiente para isso.

Gary Nash (1995NASH, Gary. The history standards controversy and social history. The Journal of Social History, v. 29, p. 39-49, 1995., p. 44-46), que, na condição de coordenador dos NHS, esteve no olho da tormenta, parece ter percebido bem o âmbito político das narrativas em jogo ao afirmar, mesmo que com certo exagero, que a principal ameaça da nova história social norte-americana aos conservadores era sua revelação de que a nação estadunidense nunca havia sido tão unificada quanto imaginavam os nacionalistas mais extremados. Muito pelo contrário, a história dos Estados Unidos era, desde a chegada dos primeiros europeus às praias da Virgínia, repleta de conflitos, tensões e violências diversas. Sobre isso, Nash (1995, p. 45) afirmou que, compreensivelmente, qualquer forma de imposição de uma única forma de “cultura americana” ou visão sobre o passado do país era “antidemocrática” (Nash, 1995, p. 45). E, na visão do historiador, era exatamente isso que os conservadores, escudados pelas resoluções senatoriais, estavam decididos a fazer.

Epílogo

O que tais history wars parecem demonstrar, assim, é justamente aquela dissociação disciplinar, notada anteriormente, entre “história” e “nação” e seus resultados políticos e públicos, em especial por causa das expectativas de alguns setores sociais importantes acerca daquilo que imaginavam ser a função maior da história. De um lado, tínhamos historiadores e outros intelectuais interessados na problematização da ideia de nação e no reconhecimento mínimo de certas “feridas históricas” inseparáveis de sua formação e legitimação; de outro, aqueles que, por cálculo político ou por uma real sinceridade, acreditavam que qualquer ênfase nos aspectos obscuros dos diferentes passados pátrios contribuiria para o enfraquecimento das identidades nacionais. Ainda que argumentos empíricos e factuais tenham sido empregados por ambos os lados durante as contendas, seu âmbito final, para citar as considerações de Liakos (2008LIAKOS, Antonis. History wars: notes from the field. Yearbook of the International Society for the Didactics of History. Augsburg: International Society for the Didactics of History, 2008-2009. p. 57-74.-2009, p. 73-74), não era necessariamente cognitivo, mas político: tratava-se de usar o passado para dar conta de ansiedades e incertezas de então e/ou dar sustentação a determinados projetos políticos.

Para parte da audiência, como perspicazmente percebeu Tom Engelhardt (1996ENGELHARDT, Tom. The victors and the vanquished. In: ENGELHARDT, Tom; LINENTHAL, Edward (Org.). History wars: the Enola Gay and other battles for the American past. Nova York: Metropolitan Books, 1996. p. 210-249., p. 210-249), as novas histórias pareciam desafiar a ordem e a estabilidade que ela buscava encontrar no passado. Diante de um presente que se afirmava cada vez mais instável e, em certos momentos, quase incompreensível, a nostalgia pelas histórias sobre a era de ouro da “América vitoriosa” emergiu com um dos motes centrais das críticas aos NHS e à Crossroads. De certo modo, os conservadores e seus simpatizantes continuavam sustentando a centralidade da “metanarrativa histórica norte-americana” para a autodefinição nacional dos Estados Unidos e negavam legitimidade a qualquer história que minimamente pudesse colocar em questão essa mesma metanarrativa. Para tanto, contudo, era necessário manter uma postura higienizada sobre o passado estadunidense, uma em que as “feridas históricas” da nação não ameaçassem seu presente e seu passado e em que a dor da história, por assim dizer, estivesse ausente.

Não seria esse o motivo, por exemplo, para a reação desmesurada à incorporação de vozes subalternas e críticas ao ensino da história nacional, considerada nem tanto como “histórias falsas”, mas como histórias “perigosas”? Não seria essa uma das razões para os ataques a Crossroads e seus criadores? Não seria essa a causa do temor conservador de que a nação estivesse sob ataque “politicamente correto”? Não seria essa a raiz de seus medos em relação à “fragmentação” estimulada por histórias com as quais eles não concordavam politicamente?

Por outro lado, e isso é assaz importante para os historiadores e historiadoras profissionais atuais, essas history wars demonstram, ao menos em um primeiro olhar, a dificuldade, quando não incapacidade, da disciplina de compreender ou encontrar uma nova função pública após seu divórcio (acrimonioso?) com a nação. As controvérsias norte-americanas são um bom exemplo disso, na medida em que, tanto na contenda sobre os NHS quanto na Enola Gay controversy, a profissão sofreu derrotas importantes. É evidente que parte disso se deu por motivos óbvios: a ausência do recurso à força simbólica de votações no Congresso Nacional ou às chantagens puras e simples, ambos empregados com habilidade sui generis pelos políticos profissionais. Ainda assim, a perceptível fragilidade da posição dos historiadores e historiadoras é sintomática dos modos contraditórios e tensos de como a legitimidade disciplinar parece ser compreendida por uma parcela desse mesmo público (Nash et al., 1997NASH, Gary. et al. History on trial: culture wars and the teaching of the past. 2. ed Nova York: Vintage, 1997., p. 218-221). Para ela, a historiografia, quando não em sua função tradicional de ser um dos sustentáculos da nação, não parecia ter mais autoridade para lidar com o passado do que outras formas e/ou instituições que competiam igualmente por aceitação e pela palavra final, por assim dizer, sobre o que o passado deveria significar.

A reação dos historiadores e historiadoras norte-americanos é paradigmática desse momento, como demonstram as admoestações sobre a “história sitiada” ou a insistente contraposição entre suas histórias “verdadeiras” e as “ideológicas” de seus antagonistas, encontradas, por exemplo, nos dossiês sobre as contendas publicados no Journal of Social History e no Journal of American History, logo após suas ocorrências. Embora dissessem respeito a preocupações válidas, especialmente diante das autoritárias e indefensáveis moções senatoriais vistas anteriormente, elas ainda tratavam a história disciplinada como sendo a única forma, ou a mais, legítima para dar conta do passado e, com isso, aparentemente não percebiam que ela é apenas mais um dos modos de se representar o passado nas sociedades ocidentais. Se, por um lado, a historiografia tem suma importância nas maneiras como cada sociedade imagina seu passado, é preciso ir além e considerar que a história é, sim, uma prática social de confrontação contínua de passados, alguns espúrios, outros não, e que é dessa confrontação que nascem novas, e talvez mais relevantes, formas de imaginar esses mesmos passados. Para os historiadores, portanto, o reconhecimento disso é fundamental para que a disciplina adquira uma nova importância pública, ainda que a custo de algumas de suas mais antigas e queridas premissas. Por isso, concordo com Antonis Liakos (2014LIAKOS, Antonis. From the poetics of history to history as social practice, 2014. Disponível em: <https://www.academia.edu/4087481/History_as_Social_Practice>. Acesso em: 7 jul. 2015.
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, p. 4) quando afirma que a compreensão da história como uma prática social, ampliada pelas análises de diferentes guerras de história, nos ajuda a:

Melhor compreender a complexidade e as dimensões múltiplas do contexto em que trabalhamos. A história se torna uma arena em que grupos variados demandam sua emancipação de estigmas passados e reivindicam sua participação na construção do futuro. Ao mesmo tempo, novas elites estabelecem sua própria hegemonia e minam a autoridade daquelas mais antigas.14 14 “It helps historians to understand better the complexity and the multiple dimensions of the environment in which we now work. History becomes an arena where social or ethnic groups demand their emancipation from the past stigmas and claim their participation to the shaping of the future. At the same ground, newly emerging elites establish their own hegemony undermining the authority of older ones.”

Guerras de história envolvem, assim, mais do que o conflito entre diferentes memórias, na medida em que transcendem problemas envolvendo, por exemplo, a constituição de lieux de mémoires específicos ou a confiabilidade em determinados testemunhos de vitimização e/ou subalternização - embora também envolvam essas questões.15 15 Agradeço a um dos pareceristas o fato de ter levantado o problema da memória em face das guerras de história. Pretendo tratar dessa questão específica em um segundo momento. Nesse sentido, as history wars articulam demandas específicas sobre o papel que o conhecimento histórico e a historiografia devem ter em dada sociedade; sobre a posição dos historiadores e historiadoras acerca de temas de seu presente; e, finalmente, sobre os sentidos divergentes de produções historiográficas em conflitos, acadêmicas ou não.

Em suma, tais guerras podem ser ganhas ou podem ser perdidas; elas, contudo, continuarão acontecendo, a despeito das boas (ou más…) vontades e dos humores da disciplina histórica. Saber como tais conflitos ocorrem, e conhecer a conjuntura mais ampla que os alimenta, é um dos passos fundamentais para que não vejamos nossos futuros, se é que ainda existem, consumidos por passados que talvez não desejemos - como parecem demonstrar as history wars norte-americanas.

Uma versão preliminar deste texto foi apresentada na conferência de abertura do III Encontro Nacional de História dos Estados Unidos, ocorrido em novembro de 2015 na Unirio (RJ). O autor agradece aos organizadores o convite e os comentários produtivos sobre o trabalho.

Referências bibliográficas

  • 140 CONG. REC. S - SENATE RESOLUTION 257. Relating to the Enola Gay exhibit, 19 set. 1994. Disponível em: <Disponível em: https://www.congress.gov/bill/103rd-congress/senate-resolution/257 >. Acesso em: 24 ago. 2015.
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  • 1
    A expressão history wars parece ser derivada de culture wars, um fenômeno político norte-americano mais amplo dos anos 1990, principalmente, e que dizia respeito à luta para definir a América, para usar a formulação clássica de James Hunter (1992). Salvo engano, seu primeiro uso mais conhecido é no título da seminal obra organizada por Edward Linenthal e Tom Engelhardt (1996) sobre as “batalhas pelo passado norte-americano” daquela década. O termo acabou sendo importado por Stuart MacIntyre e Anna Clark (2003) para se referir aos confrontos públicos sobre o passado australiano da década de 1990 e, a partir daí, para nomear conflitos sobre o passado em diversas outras sociedades.
  • 2
    Para as guerras de história australianas e sul-africanas, respectivamente, ver MacIntyre e Clark (2003) e Rufer (2010). Para a Historikerstreit alemã, ver Baldwin (1990).
  • 3
    Para Rodgers (2011, p. 8-9), a “Era da Fratura”, iniciada durante os turbulentos anos 1960 e 1970, tem por característica principal a fragmentação das palavras e ideias em comum sobre o que significa e significava ser “norte-americano” e o que constituía historicamente tal ser. Segundo ele, “fortes metáforas de sociedade foram suplantadas por metáforas fracas. Coletividades imaginadas diminuíram; noções de estrutura e poder foram desbastadas. {…} o último quarto de século foi um período de desagregação, uma grande era da fratura” (Rodgers, 2011, p. 3).
  • 4
    A frontier thesis inspirada nas ideias de Frederick Jackson Turner postulava que a expansão das fronteiras ocidentais dos Estados Unidos fora fundamental para o surgimento de uma democracia verdadeiramente americana, já que serviu para “americanizar” os imigrantes e para incorporar milhões de hectares de terras livres à nação. Já os “consensualistas” afirmavam haver um “consenso histórico” sobre determinados valores e ideias nos Estados Unidos, como a liberdade econômica, a democracia política e a moralidade judaico-cristã; esse consenso, segundo eles, teria evitado que o país enfrentasse conflitos similares às guerras e revoluções do Velho Mundo. Finalmente, a “Escola Dunning” argumentava em prol do suposto papel “civilizador” da escravidão em terras americanas, minimizando sua violência e defendendo a legitimidade da supremacia branca como um instrumento de controle das populações afro-americanas. Todas essas interpretações, mesmo que heterogêneas e continuamente contestadas por uma série de historiadores e historiadoras, apresentavam uma visão progressista e otimista do passado nacional. Para uma introdução a todas elas, ver o já citado trabalho de Peter Novick (1988) e a obra clássica de Ian Tyrrell (1986).
  • 5
    Sobre o impacto de tais turns na historiografia norte-americana, ver o dossiê recente da American Historical Review (2012).
  • 6
    “The national public spheres are still dominated by national history. As a consequence, attempts to disassociate history from the nation often result in history wars.”
  • 7
    “As the very language for society threatened to break into fragments, the past became a sphere onto which desires for community and cohesion could be projected. {…} A sense of living within fragmenting and accelerating time made history a point of acute importance.”
  • 8
    A NEH é uma agência pública destinada ao fomento e financiamento de pesquisas e outras atividades das humanidades nos Estados Unidos. Durante os anos 1980 e 1990, a agência foi continuamente atacada pelos republicanos por sua suposta politização das ciências humanas e pelo alegado suporte a produções “antiamericanas”, como destaca Andrew Hartman (2015, p. 217-218) em sua história das “guerras culturais” do período.
  • 9
    “We are a better people than the National Standards indicate, and our children deserve to know it.”
  • 10
    “The problem you get into is when guys like this try to skew history by saying: ‘well, let’s interpret what happened because maybe we can’t the truth in the facts, or at least we don’t like the truth as it’s presented. So let’s change the interpretation a little bit so that will be the way we wished it were’. Well, that’s not what history is. History is what happened and history ought to be nothing more than the quest to find out what happened.”
  • 11
    “Once upon a time it was as natural to identify with those who made history and to neglect those who simply endured it as it was to identify with an athletic star to the neglect of the spectators, whose very attendance indicated that they, too, enjoyed the same visceral identification with the superior and the glorious.”
  • 12
    “The goal of history was to inculcate a love of country, plain and simple. Such an objective became more paramount than ever with the loss of national purpose that accompanied the end of the Cold War — and more poignantly, the crisis of national identity that ensued alongside the decline of American power made manifest in the jungles in Vietnam.”
  • 13
    “Whereas, in memorializing the role of the United States in armed conflict, the National Air and Space Museum has an obligation under the Federal law to portray history in the proper context of the times: Now, therefore, be it Resolved, That it is the sense of the Senate that any exhibit displayed by the National Air and Space Museum with respect to the Enola Gay should reflect appropriate sensitivity toward the men and women who faithfully and selflessly served the United States during World War II and should avoid impugning the memory of those who gave their lives for freedom.”
  • 14
    “It helps historians to understand better the complexity and the multiple dimensions of the environment in which we now work. History becomes an arena where social or ethnic groups demand their emancipation from the past stigmas and claim their participation to the shaping of the future. At the same ground, newly emerging elites establish their own hegemony undermining the authority of older ones.”
  • 15
    Agradeço a um dos pareceristas o fato de ter levantado o problema da memória em face das guerras de história. Pretendo tratar dessa questão específica em um segundo momento.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2016

Histórico

  • Recebido
    13 Mar 2016
  • Aceito
    28 Abr 2016
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