Acessibilidade / Reportar erro

Giordano of Pisa (1260-1311) and the threefold meanings of the city. An essay on medieval urban politics

Giordano de Pisa (1260-1311) e os três significados da cidade: um ensaio de política urbana medieval

Abstract:

From the sermons of the Dominican friar Jordan of Pisa (Giordano da Rivalto), between 1302-1307, this article intends to investigate the intersection between preaching and politics in 14th-century Italy, particularly in Florence. The aim is to investigate foremost the political mobilization aspect of preaching, which made the pulpit a forum for political reproduction and negotiation of the public debate and divisions inside the civic assembly; secondly, this paper discuss the role of preachers as political men, since they intended to interfere in public and individual practices in order to answer the urgent problems of the urban life. Based on the study of data obtained from three sermons of Giordano specially devoted to political issues, we discuss the medieval republicanism without separating the political and the religious and without incurring the political assumptions provided by modernity. In giordanian understanding the contrast between the City of God and the earthly city affirms the historicity of politics and, at the same time, expresses its perpetual essence, not doomed to disappear with the end of history.

Keywords:
medieval republicanism; Italian comunes; preaching.

Resumo:

Este artigo pretende investigar a relação entre pregação com a política no século XIV italiano, particularmente em Florença, a partir dos sermões do frade dominicano Giordano de Pisa (Giordano da Rivalto), entre 1302 e 1307. O objetivo deste texto é, em primeiro lugar, explorar o aspecto de mobilização política da pregação que tornava o púlpito um lugar de reprodução e negociação dos debates públicos e das dissensões da assembleia citadina; em segundo lugar, investiga-se o papel do pregador como agente político, já que seu discurso visa interferir nas práticas públicas e individuais, respondendo aos assuntos urgentes da vida citadina. A partir de três sermões de Giordano especialmente dedicados à temática do político, discute-se o republicanismo medieval em uma chave de leitura que não segmenta o político e o religioso e que toma distância dos pressupostos políticos da modernidade. No entendimento giordaniano, o contraste entre a cidade de Deus e a cidade terrena afirma a historicidade da política e, ao mesmo tempo, manifesta sua essência eviterna, não fadada a desaparecer com o fim da história.

Palavras-chave:
republicanismo medieval; comunas italianas; pregação.

Introdução

Em um esclarecedor capítulo da obra coletiva organizada por Chris Wickham e Dean Trevor (2003)MANNI, Domenico Maria. Prediche del beato f. Giordano da Rivalto dell’Ordine de’ Predicatori. Florença: Stamperia di Pietro Gaetano Viviani, 1739., Bernadette Paton (2003, p. 109-123) mostrou o quanto os pregadores dominicanos de Siena envolveram-se na defesa dos valores republicanos em uma época de grande crise política como o século XV italiano. A autora defendeu a premissa de que os dominicanos de Siena compartilhavam com seus confrades de Florença igual engajamento na reflexão e ação políticas, sobretudo sustentando os ideais cívicos que creditavam à comuna. O resultado do trabalho dá conta de explicar que os frades não contrariavam a tradição política de suas cidades, ainda que, com isso, tivessem de infringir certos cânones da teologia dominicano-tomasiana, própria de espaços régios como Paris, em que a política era interpretada pelo viés da monarquia; assim, os pregadores traduziram os termos políticos clássicos (aristotélicos e ciceronianos), de modo a dar maior realce às próprias ideias, e, ao fazer isso, não agiram individual, mas corporativamente, como ordem, isto é, segundo um cabedal de reflexão política fradesca nascido nas comunas e na relação com elas. Paton nos ajuda a perceber como os sermões pregados em Siena, no século XV, continham um verdadeiro pensamento político que não pode ser negligenciado na hora de estudar a dinâmica de poder nas cidades comunais italianas.

Por sua vez, Daniel Lesnick (1989)LESNICK, Daniel R. Preaching in Medieval Florence: the social world of Franciscan and Dominican spirituality. Athens (EUA): University of Georgia Press, 1989., priorizando o caso de Florença, entre os séculos XIII e XIV, investigou o papel social dos dois principais conventos mendicantes da cidade, Santa Maria Novella, dos dominicanos, e Santa Croce, dos franciscanos, e, com isso, verificou que os sermões produzidos nesses conventos urbanos continham um significado social, econômico e político perceptível, inclusive pelo confronto com os ouvintes, seja os do popolo grasso (a elite banqueira e mercantil), que frequentava Santa Maria Novella, seja os do popolo (uma espécie de classe média formada de artesãos e comerciantes locais), que preferia Santa Croce.

A especial relação dos dominicanos com a elite dirigente reproduzia-se também no interno do convento; John M. Najemy calcula que 43% dos frades professos de Santa Maria Novella, em 1300, pertenciam às poderosas famílias da cidade, como os Adimari, Bardi, Cavalcanti, Donati, Mannelli, Soldanieri, Spini, Tornaquinci, Uberti e Visdomini (Najemy, 2006NAJEMY, Jonh M. A history of Florence, 1200-1575. Malden (EUA): Blackwell Publishing, 2006., p. 34). Essa percepção viva da pregação, cujos sermões, longe de fornecer a imagem de uma cidade homogênea, acentuavam suas idiossincrasias, aguça a curiosidade por um tipo de prática política cotidiana em que o púlpito podia transmitir o eco das discussões e dissensões da assembleia. Especialmente influente nos jogos de poder de Florença foi o frade Remígio dei Girolami, filho de uma dessas linhagens fortes que controlavam a política local; entre 1293 e 1315, Remígio dedicou numerosos sermões a tentar aplacar os ânimos dos grupos dirigentes, proferindo várias prédicas especialmente aos priores da assembleia comunal. De particular interesse é o fato de Remígio com frequência unir seus sermões aos conteúdos de seus tratados políticos, como o De bono comuni (de 1301-1302) e o De bono pacis (de 1304), como se pode ver nos chamados Sermones de pace, pregados entre 1314 e 1315 (Gagliardi, 2013GAGLIARDI, Isabella. Coscienze e città: la predicazione a Firenze tra la fine del XIII e gli inizi del XV. Considerazioni introduttive. Annali di Storia di Firenze, v. VIII, p. 113-144, 2013., p. 118).

De minha parte, pretendo investigar a relação de pregação com a política, no século XIV florentino, pela análise de três sermões2 2 A escolha de apenas três sermões, em um universo de quase 400 que Giordano de Pisa pregou, justifica-se, primeiramente, por se tratar de um artigo ensaístico e não exaustivo, em segundo lugar, por esses três exemplos conterem um volume sistematizado de ideias de cunho político que esse pregador apresentava dispersas em várias prédicas, e, por fim, pelo fato de esses três sermões serem intencionalmente propostos pelo pregador como parte de uma mesma reflexão pública sobre a condição da política urbana florentina. No entanto, a proposta de leitura desses três exemplares da pregação de Giordano exigiu que se fizesse uma avaliação conjunta de seu acervo sermonístico dedicado às questões políticas, como será possível verificar pelas referências apresentadas ao longo do texto. de Giordano de Pisa (ou da Rivalto), discípulo e sucessor de Remígio dei Girolami no cargo de pregador-geral do Convento de Santa Maria Novella. Entre 1302 e 1307, Giordano fez ecoar sua pregação em Florença de modo intenso: contam-se 399 sermões pregados na cidade e anotados em vulgar toscano por peritos (reportatores), provavelmente membros das confrarias leigas que orbitavam ao redor de seu convento (Iannella, 1999, p. 7-24); para nossa sorte, os reportatores registraram também as datas, os momentos do dia e do ambiente em que as prédicas aconteceram, de modo que temos uma profusão de informações que colocam os sermões de Giordano entre os mais fecundos para um estudo das inter-relações entre política e pregação na Itália comunal.

Quanto a isso, é o próprio pregador quem nos encaminha para tais considerações; suas prédicas são prioritariamente destinadas às populações urbanas, com destaque para os membros das organizações artesanais que, em Florença, eram pelo menos cinco: Calimala, Cambio, Por Santa Maria, Giudici e Notai e Arte della Lana, esta última citada diversas vezes;3 3 Giordano refere-se às Artes, em Florença, em diversos sermões, mas nem sempre particulariza seus nomes, preferindo dizer “tutte l’arti”; por isso, chama a atenção o fato de se referir à Arte della Lana de maneira especial e sempre em tom de reprimenda, uma vez que, para o pregador, essa corporação de profissionais do tecido apresentava uma grave situação de corrupção, extorsão e improbidade (alguns sermões que tratam disso podem ser lidos em Delcorno, 1974, p. 269; Manni, 1739, p. 105; Narducci, 1867, p. 144-145; Bodleian Library de Oxford, manuscrito Canoniciano italiano 132, fls. 74v-75r apud Iannella, 1999, p. 106). a menção às Artes durante os sermões não é mera informação. Em Florença, desde 1282, os membros da aristocracia patrícia (magnati) foram repelidos do centro das decisões políticas e do governo com a ascensão das Artes que impuseram seus representantes (os priores) como colégio governante da comuna. Alijados do poder, os aristocratas passaram a fazer ferrenha oposição aos priores, organizando-se no partido dos Neri (os guelfos negros), cindindo a tradicional unidade política da Parte Guelfa filopapal. Os membros das Artes, por sua vez, organizaram-se em um partido oposto conhecido como os Bianchi (os guelfos brancos), em que predominavam os ricos banqueiros e comerciantes (popolo grasso) (Dessì, 2011DESSÌ, Rosa Maria. Guelfi e Ghibellini, prima e dopo la battaglia di Montaperti (1246-1358). In: Montaperti, 1260-2010, nella ricorrenza dei 750 anni della battaglia. Siena: Accademia degli Intronati, 2011. p. 21-32., p. 22).

A proclamação dos Ordinamenti di Giustizia, em 1293, intensificou a ingerência das Artes na vida política de Florença e, entre elas, a Arte della Lana, o que amiúde provocou o enfrentamento entre a aristocracia patrícia e os ricos mercadores, levando a cidade à luta armada, ao exílio de diversas famílias e ao derramamento de sangue. Essa oposição entre núcleos sociais distintos, todos em disputa pela maior fatia dos recursos municipais, atingiu o Convento de Santa Maria Novella, bastante ligado ao partido aristocrático; em 1301, diante da luta armada, o frade Remigio dei Girolami, de resto oriundo de família guelfa branca, pregou nove sermões aos priores de Florença, sermões esses justamente intitulados De Pace (Sobre a Paz), pelos quais imprecava os governantes a empregar as vias legais para o restabelecimento dos equilíbrios políticos da cidade (Gagliardi, 2013GAGLIARDI, Isabella. Coscienze e città: la predicazione a Firenze tra la fine del XIII e gli inizi del XV. Considerazioni introduttive. Annali di Storia di Firenze, v. VIII, p. 113-144, 2013., p. 119).

A realidade histórica oferecia a pregadores florentinos, como Remígio e Giordano, a oportunidade de manifestar sua opinião em relação à realidade histórica. Nesse pormenor, vê-se que o frade Giordano não assume uma simples postura de tendência aristocrática ou antiaristocrática, mas procura pensar o político pela chave da complementaridade partidária e profissional. A recorrência com que Giordano menciona os comerciantes (mercatanti), usurários (usurai), sapateiros (calzolai), alfaiates (sartori), forneiros (fornai), médicos (medici) e cavaleiros (cavalieri) demonstra que sua pregação, como uma prática social legítima (Zorzi, 2008ZORZI, Andrea. “Fracta est civitas magna in tres partes”. Conflitto e costituzione nell’Italia comunale, Scienza & Politica, v. 39, p. 61-87, 2008., p. 62), visava a encontrar soluções aplicáveis para a cidade e seus problemas.

Os exemplos que toma para incrementar seus sermões são tirados do cotidiano urbano, e seu grande empenho pastoral é sempre aquele de restaurar o equilíbrio da comunidade urbana, donde a recorrência de temas como o bem comum, o governo, a justiça, o bom uso do dinheiro e do comércio etc. Como escreve Zorzi (2008ZORZI, Andrea. “Fracta est civitas magna in tres partes”. Conflitto e costituzione nell’Italia comunale, Scienza & Politica, v. 39, p. 61-87, 2008., p. 62), “a Itália comunal representa um caso exemplar de sociedade complexa em que os modos institucionais interagiam com práticas informais de ação política” e, entre estas, encontrava-se a pregação, cuja natureza, simultaneamente retórica, performática, coletiva e, ao mesmo tempo, religiosa, concentrava boa parte da força simbólica que alguns teóricos das comunas denominam religião cívica (Iogna-Prat, 2016IOGNA-PRAT, Dominique. La invención social de la iglesia en la Edad Media. Buenos Aires: Miño y Dávila, 2016., p. 196), e outros, religião comunal (Thompson, 2005THOMPSON, Augustine. Predicatori e politica nell’Italia del XIII secolo: la “grande devozione” del 1233. Tradução de Stefano Flores. Milão: Biblioteca Francescana, 1996.), isto é, a assunção, pelo corpo comunal, da força simbólica manipulada pela religião oficial em prol da cidade. Diante disso, não é estranho que as elites florentinas tenham investido tanto capital na manutenção dos pregadores, alargando praças para conter a multidão e favorecendo a participação dos pregadores (clérigos e leigos) nos assuntos públicos municipais.

No entendimento giordaniano, a pregação ultrapassa os tradicionais significados que lhe são atribuídos, como o de exposição pública e oral de um texto bíblico; Giordano considera esse sentido, mas enfatiza outros elementos, como o caráter instrucional, pedagógico e especulativo da pregação; por isso, ele a associa à escola, e o pregador, ao mestre que educa para a vida em comunidade. Essa característica, para nós, é de suma importância: o frade mostra-se ciente do quanto sua época se destacava das demais pela maior oferta de escolas e de mestres; contrariando a tradicional visão petrarquiana4 4 Trata-se de Francesco Petrarca (1304-1374), pensador e poeta italiano, que na epístola “Ad Franciscum priorem SS. Apostolorum de Florentia” lamentava-se por viver em uma época de trevas e ignorância (Epistolae Metricae, III, 33). de um século XIV imerso em trevas, Giordano chega a colocar sua época acima dos tempos antigos, dada a acessibilidade da ciência, que faz com que o presente seja mais iluminado do que o passado: seu tempo tem mais luz devido “à abundância de sabedoria, à abundância de pregadores e professores e pelo exemplo dos santos” (Manni, 1739MANNI, Domenico Maria. Prediche del beato f. Giordano da Rivalto dell’Ordine de’ Predicatori. Florença: Stamperia di Pietro Gaetano Viviani, 1739., p. 152).5 5 A edição de Moreni (1831b) está disponível na internet, no site citado a seguir, no qual o leitor poderá acompanhar as referências textuais na língua original. Neste texto, todas as traduções para o português são de minha responsabilidade. 158. Disponível em: <https://books.google.com.br/books?id=vVpz15empg0C&pg=PA1&dq=Prediche+del+Beato+Fra+Giordano+ da+Rivalto+dell’Ordine+dei+Predicatori+recitate+in+Firenze+Tomo+II&hl=pt-BR&sa=X&ved=0ahUKEwi0oanl9ZTPAhWBhpAKHTvQA8oQ6AEIIDAA#v=onepage&q=Prediche%20del%20Beato%20Fra%20Giordano%20da%20Rivalto%20dell’Ordine%20dei%20Predicatori%20recitate%20in%20Firenze%20Tomo%20II&f=false>. Acesso em: 16 set. 2016. Deve-se ressaltar a estreita relação entre pregador e professor: ambos exercem ofício semelhante, isto é, transmitem sabedoria e retiram os ouvintes da ignorância. Por isso, muito melhor é quando os pregadores, como os dominicanos, abrem também escolas e aumentam as chances de aprendizado, inclusive para citadinos leigos:

Vivemos neste tempo de luz graças aos muitos doutores e mestres que existem hoje. Antigamente não havia mestres: e se havia alguns, eram raríssimos e de pouca virtude; costumava bastar um mestre para toda uma província. {…} Mas hoje são tantos os mestres, todas as cidades estão plenas deles; tantos pregadores, e bastante bons e verazes; existem escolas em cada convento, e estes são milhares onde quotidianamente procura-se, declara-se e ensina-se a sabedoria; e mesmo assim, não saímos do lugar. (Manni, 1739MANNI, Domenico Maria. Prediche del beato f. Giordano da Rivalto dell’Ordine de’ Predicatori. Florença: Stamperia di Pietro Gaetano Viviani, 1739., p. 152-153)

O lamento do frade não oculta seu contentamento com a realidade institucional de sua ordem espalhada pelas comunas e trabalhando por elas. Ao falar de pregadores é bem de dominicanos que o frade fala, esses mestres de iscuola di divinitade que povoam o mundo todo. No caso de Florença, essas escolas eram de nível superior (universitário) e funcionavam nos três conventos mendicantes da cidade, isto é, em Santa Maria Novella (dos dominicanos), Santa Croce (dos franciscanos) e Santo Spirito (dos agostinianos). No tempo de Remígio dei Girolami, Dante Alighieri (1265-1321), como atesta seu Convivio (II, xii, 17), frequentou essas escolas e ali aprendeu “a doçura da filosofia” com frades como Pietro di Giovanni Olivi e o próprio Remígio (cf. Brunetti e Gentili, 2000BRUNETTI, Giuseppina; GENTILI, Sonia. Una biblioteca nella Firenze di Dante: i manoscritti di Santa Croce. In: RUSSO, E. (Org.). Testimoni del vero: su alcuni libri in biblioteche di autore. Roma: Bulzoni, 2000. p. 21-48., p. 22). Como se vê, Giordano não exagera quando destaca a capacidade inventiva das escolas dos conventos.

Para esse frade, a ação social da prédica é muito concreta e se relaciona com o âmbito do saber prático: “em quanta escuridão não estaria o mundo se não existissem os pregadores? Certo, estaríamos em trevas máximas, como se diz dos Gregos {isto é, os bizantinos ortodoxos} que não têm pregadores. {…} Ainda, se não existissem as pregações estaríamos em piores erros e sujeira que os Sarracenos” (Moreni, 1831MORENI, Domenico. Prediche del beato fra Giordano da Rivalto dell’Ordine dei Predicatori recitate in Firenze dal MCCCIIII al MCCCVI ed ora per la prima volta pubblicate. Florença: Per il Magheri , 1831b. t. II.a, p. 236); no entender de Giordano, os frades pregadores ensinavam a ciência, a teologia, a política e o exemplo dos santos que constituem o núcleo duro da vida comunitária.

Os sermões que tomarei para investigar o sentido político contido na pregação da Baixa Idade Média italiana, particularmente no caso de Giordano de Pisa, foram escolhidos pela afinidade temática - todos os três exemplos comentam a mesma perícope evangélica, retirada de Mateus (9,10) Venit in civitatem suam {Jesus voltou à sua cidade}; o tema do Cristo que volta à sua cidade deu ao pregador o motivo para explanar acerca dos muitos sentidos do termo cidade e de sua realidade fundamental. Acrescente-se a isso a estreita ligação cronológica entre eles: seguindo a datação proposta pela edição de Moreni (1831MORENI, Domenico. Prediche del beato fra Giordano da Rivalto dell’Ordine dei Predicatori recitate in Firenze dal MCCCIIII al MCCCVI ed ora per la prima volta pubblicate. Florença: Per il Magheri , 1831b. t. II.b), temos que o primeiro sermão ocorreu na manhã de 4 de outubro de 1304, no Convento de Santa Maria Novella; o segundo, na tarde desse mesmo dia que, sendo domingo, comportava duas pregações {essa segunda prédica aconteceu no centro da cidade, na Igreja de Santa Reparata}; o terceiro sermão foi pregado no dia 8 de outubro na Praça do Bispado. A fim de evitar confusões, adotarei a numeração utilizada por Moreni no segundo volume das Prediche del beato fra Giordano da Rivalto dell’Ordine dei Predicatori, correspondendo respectivamente aos Sermões 44, 45 e 46.

O pregador e a cidade: esboços de uma teologia política de púlpito

“Mas hoje não há ninguém que se esforce para retornar àquela cidade verdadeira que é cidade veraz, que jamais deve ser considerada menor” (Sermão 44; Moreni, 1831bMORENI, Domenico. Prediche del beato fra Giordano da Rivalto dell’Ordine dei Predicatori recitate in Firenze dal MCCCIIII al MCCCVI ed ora per la prima volta pubblicate. Florença: Per il Magheri , 1831b. t. II., p. 66); “Cidade soa tanto como amor e por amor é que se edificaram as cidades” (Sermão 45; Moreni, 1831bMORENI, Domenico. Prediche del beato fra Giordano da Rivalto dell’Ordine dei Predicatori recitate in Firenze dal MCCCIIII al MCCCVI ed ora per la prima volta pubblicate. Florença: Per il Magheri, 1831a. t. I., p. 77); “{…} e assim ficamos de boa vontade nas cidades, onde existem muitas coisas e onde se encontra tudo aquilo de que se necessita” (Sermão 46; Moreni, 1831bMORENI, Domenico. Prediche del beato fra Giordano da Rivalto dell’Ordine dei Predicatori recitate in Firenze dal MCCCIIII al MCCCVI ed ora per la prima volta pubblicate. Florença: Per il Magheri, 1831a. t. I., p. 89). Três citações tomadas das prédicas dedicadas à meditação do versículo evangélico “E Jesus voltou à sua cidade” (Mat. 9,10), isto é, Cafarnaum. Como bom pregador, Giordano explora os quatro sentidos da Escritura, isto é, o literal, o alegórico, o moral e o anagógico, mas não obedece a essa ordem; antes, parte do fim e vai ao começo: é o sentido anagógico que dá substância a toda a sua fundamentação teológica; a cidade, nesse caso, é aquela “bem-aventurada cidade de vida eterna, onde habitam os bem-aventurados cidadãos” (Moreni, 1831MORENI, Domenico. Prediche del beato fra Giordano da Rivalto dell’Ordine dei Predicatori recitate in Firenze dal MCCCIIII al MCCCVI ed ora per la prima volta pubblicate. Florença: Per il Magheri, 1831a. t. I.b, p. 66); justamente por isso, ela é a cidade verdadeira e veraz, como insiste o sermonista. Na sequência vem o sentido moral: a cidade do céu é modelo para a cidade da terra, construída pela vontade deliberada dos homens. O sentido literal fica por último: refere-se à cidade naquilo que tem de pragmático, pois ela supre a deficiência humana, que não dá conta de viver no isolamento ou na selva. Chama a atenção o fato de o sentido alegórico não vir atrelado a nenhum dos três significados de cidade em particular, mas, antes, aparecer conectado a todos os outros, como que os costurando entre si.

Não se trata de forçar a unidade dos três sermões; o próprio pregador enuncia esse propósito na terceira prédica,6 6 Assim começa o terceiro sermão: “[Jesus] voltou à sua cidade. Sobre esta palavra, pregamos ao longo desta semana, e ainda haveremos de pregar nesta manhã em honra desta gloriosa virgem e mártir, Santa Reparata” (Moreni, 1831b, p. 88). e o faz de uma maneira, ao mesmo tempo, mnemônica e didática: retoma o conteúdo dos sermões anteriores e dá-lhes nova síntese:

Ora, como eu vos disse anteontem, nosso Senhor Jesus Cristo teve três cidades, as quais foram consideradas cidades de Cristo; a primeira é aquela onde nasceu, Belém; a segunda onde viveu por muito tempo, Nazaré; a terceira, onde ele mais pregou, mostrou mais virtude e operou mais milagres, chama-se Cafarnaum, sua cidade de adoção.7 7 Há certa dificuldade de tradução para o sentido dado pela expressão do autor cittade di cognizione; de fato, o substantivo cognição/conhecimento, oriundo do mesmo verbo latino cognoscere, traduz o termo “italiano” do pregador, mas o sentido que a expressão parece ter refere-se mais ao fato de que, apesar de Cristo ter nascido em Belém, adotou Cafarnaum, como São Pedro adotou Roma, como o próprio frade explica na sequência. Cristo teve três cidades também num outro modo, isto é, o mundo, onde nasceu; o país dos judeus, onde viveu; e o Paraíso. E assim nós temos estas três cidades; como Cristo teve estas três cidades, também nós as temos de modo semelhante. A primeira é este mundo, a segunda é o Paraíso - aquele bendito lugar que a Escritura todos os dias chama de cidade, a terceira é a cidade de adoção, como Roma é de São Pedro, pois ali se verificam mais coisas e virtudes de São Pedro do que em qualquer outro lugar; e como Florença é {cidade} especial de Santa Liperata. (Moreni, 1831MORENI, Domenico. Prediche del beato fra Giordano da Rivalto dell’Ordine dei Predicatori recitate in Firenze dal MCCCIIII al MCCCVI ed ora per la prima volta pubblicate. Florença: Per il Magheri , 1831b. t. II.b, p. 89)

Novamente, os quatro sentidos da exegese antiga são decisivos; o sentido literal (ou histórico) encabeça a todos, referindo-se às cidades concretas em que o Cristo histórico nasceu, cresceu e atuou; os demais sentidos se misturam, levando o ouvinte a ultrapassar o nível histórico, mas sem perdê-lo de vista: Cristo, São Pedro e Santa Liperata (ou Reparata) habitam a “cidade do céu”, mas foram, antes, cidadãos de cidades da terra. O pregador não despreza nenhum dos quatro sentidos, apenas brinca com eles ao sabor de seu engenho oratório. A história, nesse caso, dá-lhe matéria para levar o ouvinte a subir os degraus do entendimento, passando para o sentido moral (iluminar as práticas) a fim de chegar ao nível anagógico (a fruição de Deus), meta sublime de toda pregação cristã.

Essas prédicas pronunciadas no coração da república de Florença podem nos levar a conhecer algumas facetas da complexa compreensão política do mundo comunal italiano: em síntese, a primeira prédica nos força a ir em busca da “verdadeira cidade”, que transcende os muros e prédios dos centros urbanos; a segunda insiste na ineludível analogia entre a “cidade do alto” e esta “de baixo”, e compreendemos que o fenômeno citadino está intimamente ligado ao âmbito da vontade humana e à sua fundamental antropologia; a terceira faz-nos, enfim, tocar a concretude da história com suas contradições. O exercício político do tempo das comunas exige esse percurso; sua natureza primária é a autoridade, não o poder; é a sociedade, não o Estado; é o ordenamento jurídico, não o direito-lei (Grossi, 2014GROSSI, Paolo. A ordem jurídica medieval. Tradução de Denise Rossato Agostinetti. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014., p. 22-23). Nada disso a inferioriza, nem marca seu lugar temporário em uma cadeia progressiva de evoluções. Em um mundo, como o nosso, que enfrenta a coerção do onipotente Estado de direito, as repúblicas comunais oferecem a experiência de outro arranjo social, em que o Estado atua pelo direito, mas não é sua fonte, nem seu exclusivo guardião (Reynolds, 2006REYNOLDS, Susan. Government and community. In: LUSCOMBE, David (Org.). The New Cambridge medieval history. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. v. IV, parte I, p. 86-112., p. 89-112).

Mas o historiador, sobretudo o historiador da política medieval, quando lê discursos como esses de Giordano de Pisa, sente-se tentado a deixar de lado os sentidos alegórico, moral e anagógico para só reter o literal, como se aquilo que Giordano definiu como cidade “histórica” fosse suficiente para explicar o que ele entendia por cidade (e por cidadania) na Florença do século XIV. Tal procedimento é anacrônico e não respeita a lógica exegética do período; trabalhos como o de Honess (2006)HONESS, Claire E. From Florence to the heavenly city: the poetry of citizenship in Dante. Londres: Legenda, 2006. e Mackin (2013)MACKIN, Zane D. R. Dante praedicator: sermons and preaching culture in the Commedia. Tese (Doutorado), Nova York: Columbia University Graduate School of Arts and Sciences, 2013. 331p. destacam que nem mesmo o “laico” Dante Alighieri articulava seu pensamento em chave oposta ao dos pregadores florentinos, em primeiro lugar porque ele aplicava os quatro sentidos das escrituras às suas obras e, em segundo lugar, porque não reproduzia simplesmente a polarização política-religião/clerical-laico, que caracteriza as pesquisas de tantos intérpretes contemporâneos da política comunal medieval.

A observação torna-se mais inteligível se nos lembrarmos de que essa cidade toscana é evocada, na tradição política ocidental, como um dos lugares fundadores da política moderna, berço do republicanismo cívico e dos humanistas (Skinner, 1996SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. Tradução de Renato Janine Ribeiro e Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.; Zorzi, 2008ZORZI, Andrea. “Fracta est civitas magna in tres partes”. Conflitto e costituzione nell’Italia comunale, Scienza & Politica, v. 39, p. 61-87, 2008., p. 64). Do ponto de vista de uma crítica da narrativa da modernidade, que instaurou o medievo como o tempo antípoda da razão e da liberdade civil, retornar a Giordano de Pisa e, a partir dele, aos dominicanos florentinos é tentar restabelecer o chão teórico-prático do movimento político comunal italiano naquilo que teve de experiência política, ousaria dizer, de vivência do político, na integralidade social que o conceito supõe: os politólogos modernos conhecem os tratados políticos “medievais”, elencando-os e definindo-os a partir de uma seleção extemporânea baseada na oposição secular/religioso. Por conta dessa oposição anacrônica, a literatura sermonária e, com ela, uma pilha de outros tratados eclesiásticos, pelo simples fato de serem supostamente “palavra da Igreja” em um mundo “civil” (portanto, oposto a ela), foram completamente excluídos do estudo do republicanismo medieval; persistir nesse procedimento é permitir que a narrativa da modernidade continue a embalar nosso sono dogmático idealista ou materialista e evolucionista. Não é minha intenção polemizar as escolhas dos historiadores do político; quero trazer para este debate textos e aspectos que, em um contexto historiográfico específico, já vêm sendo debatidos, mas cujos resultados ainda não ultrapassaram os limites da pesquisa especializada.

La nostra verace cittade (Sermão 44): primeiro significado da cidade

Dia 4 de outubro de 1304, convento dominicano de Santa Maria Novella, festa de São Francisco de Assis. O pregador tem diante dos olhos a passagem do Evangelho de Mateus, capítulo 9, verso 1: “Jesus subiu a uma barca, atravessou à outra margem e chegou à sua cidade”, isto é, Cafarnaum, banhada pelo mar da Galileia. Como é esperado de um pregador, o sermonista precisa fazer coincidir o trecho da liturgia do dia com a festa de São Francisco; sua perícia oratória reside justamente nessa capacidade de adaptar o discurso às ocasiões e situações. E Giordano domina seu ofício. O “ammaestramento” que tira dessa passagem evangélica puramente descritiva ou narrativa é de suma importância para entendermos o lugar que o pregador confere à pregação na história da Igreja e na história das cidades. Cafarnaum é a cidade em que “Cristo maximamente pregou, e onde mais sinais e prodígios mostrou do que em qualquer outra cidade” (Moreni, 1831MORENI, Domenico. Prediche del beato fra Giordano da Rivalto dell’Ordine dei Predicatori recitate in Firenze dal MCCCIIII al MCCCVI ed ora per la prima volta pubblicate. Florença: Per il Magheri , 1831b. t. II.b, p. 65); Giordano insiste: Cristo nasceu em Belém, cresceu em Nazaré, mas sua cidade mesmo é Cafarnaum; ali ele mostrou que é mais do que um homem e fez isso por meio da pregação.

Podia-se pensar que a cidade de Cristo fosse Jerusalém; afinal, os evangelhos associam-no à descendência do rei Davi e ao messianismo libertador de Israel, o que o torna vocacionado à cidade de Davi, a capital do povo eleito; ali Cristo morreu crucificado, gesto lido em chave sacrificial e escatológica. Mas, para o pregador de Florença, o gesto redentor já começa com a pregação de Cristo, longe de Jerusalém, na Galileia das Nações. Seria isso um modo de o pregador dotar de força carismática e escatológica seu próprio ofício? A sequência desse e dos demais sermões mostra que sim.8 8 O carismatismo da pregação de alguns dominicanos florentinos, como Giovanni Dominici (1400-1406) vem discutido por Nirit Debby (2002). Ao voltar para “sua cidade”, Cristo ensinou aos homens o caminho para a “cidade da vida eterna”, caminho que não é feito sem um extremo esforço por parte dos homens, mas o pregador está ali, no coração das cidades, para incentivar essa trajetória e facultar a caminhada.

Cristo volta à sua cidade, como também São Francisco; eis o exemplum a ser seguido pelos fiéis florentinos. Mas Giordano deixa esse exemplo para depois e inicia a prédica mostrando que até mesmo as criaturas insensíveis, como as pedras, as estrelas, o sol e os planetas, e as sensíveis, como o pássaro e o leão, voltam sempre a seu lugar de origem, a seu lugar natural, como afirmavam os filósofos antigos. Diz o pregador que uma pedra cairia infinitamente se não encontrasse a terra, para a qual tende. É a lei da física, isso é natural. Um pássaro na gaiola, uma vez solto, volta imediatamente a seu lugar de origem, ao bosque onde foi capturado; o mesmo sucede ao leão. Então, por que os homens, dotados de espírito imortal, não voltariam para seu lugar natural, isto é, o reino do céu? Há algo de errado com essas criaturas compostas de corpo e espírito; elas tendem naturalmente a Deus, mas se veem presas a realidades sufocantes. O pregador reconhece: é preciso muito esforço, muito amor e dedicação para retornar à nossa cidade verdadeira, onde todos seremos santos. Constatação um pouco pessimista expressa em um jogo retórico: quem em Florença quer ir para o céu e ser santo? Ninguém! Quem se esforça para se superar? Ninguém. Mas como? Não é o céu o lugar natural das almas? Por que os homens não correspondem mais à sua natureza?

A compreensão de uma “natureza sobrenatural” constitui boa parte do pensamento cristão ao longo dos séculos. Giordano é formado na escola dominicana, cujos mestres ensinavam que a graça supõe a natureza e a aperfeiçoa (Narducci, 1867NARDUCCI, Enrico. Prediche inedite del B. Giordano da Rivalto dell’Ordine de’ Predicatori recitate in Firenze dal 1302 al 1305. Bolonha: Gaetano Romagnoli, 1867., p. 3). Para esses frades, o fim da teologia é a pregação, e o fim da pregação é a salvação dos filhos de Deus;9 9 Para a Ordem dominicana, a autoridade de Humberto de Romans, no De eruditionem Praedicatorum, é fundamental: “[…] pois as demais ciências procedem ou da razão, ou da natureza, ou do livre arbítrio: esta ciência [a pregação], ao contrário, procede das coisas divinas que transcendem infinitamente todas as demais. […] Grande coisa é tratar da Trindade e Unidade divinas, da encarnação do Filho de Deus, e de assuntos como estes, diante dos quais nenhum outro assunto supera” (Catalani, 1739, p. 2). no fundo, os frades veem-se como agentes da graça, libertadores das gaiolas que prendem as almas que, por isso, não voam para o céu, seu lugar natural. Pregar, portanto, é uma ação obrigatoriamente política, pois ela só existe em vista de homens pecadores, e foi o pecado a origem da primeira cidade; todo o pensamento político de Giordano e, com ele, o de outros dominicanos, como Guilherme Peraldo (Guillelmus Peraldus) (c. 1200-1271), Vicente de Beauvais (1184/1194-1264), Iacopo de Varagine (1228-1298) e Ptolomeu de Lucca (1236-1327), dependem de uma leitura atenta dos três primeiros capítulos do Gênesis, das obras políticas de Santo Agostinho e de Dionísio, o pseudo-Areopagita.

De modos diversos e com nuanças próprias, esses dominicanos conceberam que o regimen politicum já existia na história antes do pecado, de modo natural, isto é, perfeitamente ordenado para seu fim, que é a máxima felicidade dos homens, como já previa Aristóteles na Política, cuja tradução latina era conhecida dos frades desde 1260; mas a ação do pecado, que originou a cidade e o governo tirânico, não permite mais a realização do homem, donde os pregadores, como Giordano, insistem com tanto afinco em um “céu político”, como veremos: é o casamento de Aristóteles com o Evangelho, da razão com a fé.

Patrick Gilli (2013BOUCHERON, Patrick. Villes, cathédrales et histoire urbaine, Histoire Urbaine, vol. 7, p. 5-16, 2003., p. 45) fala de uma “forma mentis florentina”, que se mostra concreta no arrazoado de Remígio dei Girolami (no tratado De bono comuni), mas também em Dante Alighieri (poderia estar também em Giordano?). Essa forma mentis florentina é “urbanocêntrica”, de modo que a Política de Aristóteles era interpretada em um sentido estrito (quem não é cidadão não é homem). Em Giordano, encontramos não só a autoridade de Aristóteles, mas também a de Agostinho de Hipona e sua metáfora das duas cidades. O pregador organiza seu pensamento a partir da prática da vida em sociedade: quando pede para que seus ouvintes partam de um lugar não natural (a cidade deste mundo) e vão para seu lugar natural (a cidade da vida eterna), imitando Cristo, que foi a Cafarnaum, Giordano não desmerece a política propriamente dita, bem como sua historicidade; ao contrário, reforça ainda mais a compreensão de que a política, por ser tão natural ao homem, encontra seu fundamento na eternidade,10 10 Aqui o termo eternidade tem o sentido de “vida eterna”, como define Giordano nos sermões, isto é, a vida perpétua garantida pela salvação como dádiva de Deus aos justos. pois para a eternidade os homens foram criados. A política não é passageira; não é um modo provisório de existência, mas é toda a existência, neste e no outro mundo.

Nesse Sermão 44, Giordano toma o exemplo de São Francisco, um santo reconhecidamente comunal, filho de Assis e das novas estruturas políticas italianas. As biografias de Francisco ressaltam a imbricação desse santo com as vicissitudes das comunas, e por elas vemos que toda a missionação franciscana foi pensada como ação intracitadina (Miatello, 2013MIATELLO, André Luis Pereira. Santos e pregadores nas cidades medievais italianas: retórica cívica e hagiografia. Belo Horizonte: Fino Traço, 2013.). Francisco é mais do que um exemplo para Giordano, é a confirmação de sua teoria. O texto bíblico comentado encontra-se encarnado em Francisco: ele pôs-se em fuga de uma cidade de pecado e rumou para a cidade dos santos, “com velocidade, com integridade e com severidade” (Moreni, 1831MORENI, Domenico. Prediche del beato fra Giordano da Rivalto dell’Ordine dei Predicatori recitate in Firenze dal MCCCIIII al MCCCVI ed ora per la prima volta pubblicate. Florença: Per il Magheri , 1831b. t. II.b, p. 67).

Velocidade porque começou cedo, ainda na juventude. Giordano adota a visão tradicional de que as crianças são tábuas rasas sobre quais nada foi ainda escrito e, desse modo, estão isentas das deturpações de uma sociedade malvada. Se esses jovens, desde cedo, forem expostos à sã doutrina moral, não tomarão a forma do mundo e, consequentemente, poderão receber a forma de Deus. Nas entrelinhas, vemos o lugar capital dado aos pregadores, pois se é fato que em uma cidade nem todos são monges ou frades, todos podem beneficiar-se desses educadores cívicos de que fala Nicole Bériou (2002)BÉRIOU, Nicole. L’avènement des maîtres de la parole: la prédication à Paris au XIIIe siècle. Paris: Institut d’Études Augustiniennes, 1998. 2v.. São eles que estimulam a partida de uma má vida social com velocidade e integralmente: perscrutadores das consciências e disciplinadores dos costumes, os pregadores creem-se artífices da verdadeira cidade. No caso de Giordano, essa construção moral da cidade pela via da pregação exige a penitência (a “severidade”, como ele dizia), isto é, o exercício individual daqueles que querem endireitar sua tortuosidade interior e crescer.

Por isso, a penitência é exercício corporal e espiritual com o intuito de reprogramar as condutas individuais e coletivas, é uma autoviolência que pretende extirpar o que atrapalha o aperfeiçoamento moral: “{…} ele macerava seu corpo com jejuns, com longas vigílias, com frio, fadigas, humilhações tais e tantas que ninguém poderia descrever a sua penitência” (Moreni, 1831MORENI, Domenico. Prediche del beato fra Giordano da Rivalto dell’Ordine dei Predicatori recitate in Firenze dal MCCCIIII al MCCCVI ed ora per la prima volta pubblicate. Florença: Per il Magheri , 1831b. t. II.b, p. 70). Esse tipo de prática ascética, impressionantemente difícil e dura, não era raridade nas cidades comunais. Augustine Thompson (2005THOMPSON, Augustine. Predicatori e politica nell’Italia del XIII secolo: la “grande devozione” del 1233. Tradução de Stefano Flores. Milão: Biblioteca Francescana, 1996., p. 70), por exemplo, analisa detidamente o lugar comunitário e, diria, político da penitência na vida comunal, principalmente no norte italiano. Segundo o autor, ao longo dos séculos XI, XII e XIII, na Itália, dezenas de grupos leigos {confraternite} oriundos das cidades comunais adotaram para si um modo de vida religiosamente comprometido, chamando-se de conversi ou penitenti. Esses leigos, homens e mulheres, casados ou solteiros, ao abraçarem a via da penitência de modo algum fugiam dos dramas de suas cidades; muito ao contrário, geralmente o estatuto público da penitência conferia a indivíduos ou confrarias específicos um destacado lugar no jogo das relações de poder, extrapolando qualquer controle eclesiástico. Francisco de Assis, citado por Giordano de Pisa, bem antes de fundar uma ordem de religiosos, viveu como penitente na Úmbria, de modo espontâneo, integrando-se aos quadros da devoção comunal cujo apelo religioso coincidia com a demanda espiritual que as próprias comunas criavam.

O lugar político da penitência ressalta-se no sermão giordaniano:

São Francisco foi grande conversor de almas, tanto pelo exemplo quanto pelas ardentes palavras, pois lê-se que foi pregador e pregou pelas Marcas e nestas regiões de cá, e muitas pessoas, por ele, voltaram à penitência; e ele quis e ordenou pela sua Regra que {os frades} pregassem e fossem pregadores. (Moreni, 1831MORENI, Domenico. Prediche del beato fra Giordano da Rivalto dell’Ordine dei Predicatori recitate in Firenze dal MCCCIIII al MCCCVI ed ora per la prima volta pubblicate. Florença: Per il Magheri , 1831b. t. II.b, p. 73)

“Voltar à penitência”, como vimos, pode ter um duplo significado: indica o indivíduo que espontaneamente deixa o gênero de vida considerado ruim e abraça um novo gênero pautado pelo ascetismo, mas também indica o indivíduo que se associa a um grupo de penitentes organizados dentro das comunas e ali experimenta a ascese. Independentemente do sentido original da expressão, faço notar que ambos manifestam estreita relação com a comuna, pois o penitente não abandona sua cidade, dela vive (mendigando ou trabalhando) e nela exerce o papel de pregoeiro de um novo tipo de vida civil, como se pode conferir por uma lista volumosa de penitentes comunais que foram canonizados pela Igreja Romana. A insistência do frade Giordano em indicar o trânsito necessário de uma cidade ruim para a cidade verdadeira encontra na vida dos santos sua finalidade e, na penitência, seu ethos, simultaneamente espiritual e cívico.

Città tanto suona come amore, e per amore s’edificaro le cittadi (Sermão 45): segundo significado de cidade

Desde o início do Sermão 45, Giordano emprega um jogo retórico de contraste entre luz e sombras; a cidade de Deus, onde habitam os santos, é a verdadeira cidade, pois só nela é que se verificam as condições caritativas para que uma cidade exista (“cidade soa tanto como amor”); as cidades históricas, habitadas por cidadãos maus, interesseiros e viciados, não merecem o nome de “cidade”, pois, ao contrário da celeste, aquelas não têm o amor como virtude estruturante.11 12 “Que cidade deve ser aquela onde os cidadãos estarão em tanto amor que cada um te amará com amor perfeitíssimo e por todos verás que és amado, e amarás a todos de modo geral e singular?” (Moreni, 1831b, p. 78). O contraste entre as duas cidades pode ser reduzido à oposição histórica entre o bem comum e o bem particular, oposição essa que, no caso da pregação giordaniana, aparece sempre como critério de distinção das ações sociais, e só as ações que visam ao bem comum são verdadeiramente políticas.

“Por amor é que se edificaram as cidades.” O argumento não é só político, mas antropológico. Giordano explora este sentido: o homem não vive sozinho ou se basta a si mesmo, ele é um ser de relações. Grande é sua necessidade de sentir-se querido; então, ele ama para que o amem, ele ama porque é amado, e esse é um aspecto natural (Moreni, 1831MORENI, Domenico. Prediche del beato fra Giordano da Rivalto dell’Ordine dei Predicatori recitate in Firenze dal MCCCIIII al MCCCVI ed ora per la prima volta pubblicate. Florença: Per il Magheri , 1831b. t. II.b, p. 78). A cidade permite que exista esse locus de complementaridade em vista da supressão da deficiência: indivíduos diferentes, com vontades distintas e interesses diversos necessitam ultrapassar a pluralidade que divide para alcançar certa unidade que não liquida a diferença, apenas disciplina a vontade.

Antes de examinar o importante aspecto da vontade como substrato da política, é preciso esclarecer em que modo essa unidade não liquida a diferença; para além da tradicional analogia corpo-igreja/corpo-sociedade, própria da teologia paulina e, depois, revisitada por pensadores como Agostinho, Gregório Magno, João de Salisbury e o próprio Giordano, o pregador de Florença também explica a vida social por meio de outra analogia, mais próxima do contexto militar, em que cada profissão ou estatuto social é comparável a uma fileira de soldados no exército. Essa referência aparece no sermão Ego sum pastor bonus, pregado em 9 de março de 1305. Nele, Giordano expõe que o Criador dispôs todos os humanos em fileiras, consoante a função que deviam desempenhar coletivamente. São muitos os estratos sociais, mas todos compõem um “exército” bem-montado, indestrutível. A ordem na cidade exige que cada cidadão ocupe seu lugar em sua ischiera, como fala Giordano:

Olhai estas fileiras: há aquele que é rei, aquele que é conde, cavaleiro, juiz, mercador, religioso. Todo o mundo é assim ordenado; e, porém, são tantas as diversidades no mundo! Tudo isso é dispensação divina, a fim de que o mundo seja governado e regido, e ninguém deve sair de sua fileira e não deve deixar de estar assim ordenado. {…} Assim deves fazer, não te movas por ti mesmo para fora do teu estado; pois o homem deve estar no estado em que Deus o pôs, e por si não deve sair. No entanto, vede que todas as lutas e males que nascem, nascem porque o homem abandona a sua fileira {…}. (Narducci, 1867NARDUCCI, Enrico. Prediche inedite del B. Giordano da Rivalto dell’Ordine de’ Predicatori recitate in Firenze dal 1302 al 1305. Bolonha: Gaetano Romagnoli, 1867., p. 51)

À primeira vista, esse raciocínio pode dar a entender certo imobilismo social; mas, a meu ver, ele indica antes que, na sociedade humana, ninguém marcha sozinho: o exército marcha em bloco, em um mesmo ritmo articulado; nas fileiras de um exército, os indivíduos desaparecem no coletivo, eles não competem entre si, e, dessa forma, o que importa é a tropa e sua marcha coletiva.

O pregador está ciente do quanto custa, para o indivíduo, adequar-se ao comunitário. Não à toa, ele afirma que é ato de humildade permanecer no próprio estado, e, ao contrário, sair dele é ato de soberba, raiz de todas as lutas, guerras e confusões entre os homens. O sermão Ego sum pastor bonus, de 1305, conecta-se conceitualmente ao Sermão 45, de 1304, que estamos analisando. A vontade permanece o núcleo estruturante da organização social e, por conseguinte, da política. Permanecer ou sair de sua fileira é ato movido ou pela humildade, ou pelo orgulho, isto é, ou por uma vontade sadia, ou por uma vontade corrompida, mas, de todo modo, por um ato de vontade. O amor, que edifica as cidades, também é ato supremo da vontade: talvez o mais meritório.

Portanto, viver na cidade exige que as vontades individuais sejam disciplinadas, e essa é a tarefa da pregação e dos pregadores, da confissão e dos confessores: como expoente da ordem dominicana, Giordano de Pisa conecta pregação e confissão e defende a perícia de seus confrades na salvação político-espiritual das cidades. O pregador ensina a vontade individual a querer o bem dos outros como se fosse seu próprio bem e ensina a vontade coletiva dos cidadãos a amar o bem de cada um. Nos sermões de Giordano, não há diferenciação entre o bem individual e o bem comum, pois ambos se reduzem a um único bem. Essa é, sobretudo, a lição aprendida de seu mestre e antecessor no Convento de Santa Maria Novella, frade Remígio dei Girolami, cuja obra política engrossa a discussão sobre a vida civil de Florença.

Não só o bem comum inclui e supera todos os bens particulares, como Remígio defende no De bono comuni (1301), mas a vontade assume o posto de princípio ordenador (ou desordenador) da cidade; no tratado intitulado Speculum, escrito por Remígio na mesma época em que Giordano pregava (1302-1304), ele identifica a causa das lutas políticas de Florença e, por conseguinte, a dissolução da cidade naquilo que chamou de disiunctio seu contrarietas voluntatum: “No que diz respeito ao propósito de falar da conjunção disjuntiva, deve-se saber que nunca houve tanta disjunção ou contrariedade das vontades entre os gibelinos e os guelfos ou entre a plebe e os grandes quanta a que agora existe entre {o partido} dos brancos e dos negros” (Panella, 2014PANELLA, Emilio. Speculum fratris Remigii Florentini Ordinis Praedicatorum. 2014. Disponível em: <Disponível em: http://www.e-theca.net/emiliopanella/remigio3/dbc.htm >. Acesso em: 1o out. 2015.
http://www.e-theca.net/emiliopanella/rem...
).

Para Remígio, era um escândalo que Florença, unida em torno do movimento guelfo, se visse cindida pelas lutas fratricidas entre os guelfos brancos e guelfos negros, uno sconcio e male istato, nas palavras do cronista Giovanni Villani (Nuova cronica, Liv. IX, cap. XII). A vontade dividida, fracionada, levava a cidade à ruína, por mais rica e honorável que fosse. Giordano aprendeu de seu mestre que a “unidade de vontade” (Moreni, 1831MORENI, Domenico. Prediche del beato fra Giordano da Rivalto dell’Ordine dei Predicatori recitate in Firenze dal MCCCIIII al MCCCVI ed ora per la prima volta pubblicate. Florença: Per il Magheri , 1831b. t. II.b, p. 79) é uma das razões pelas quais nasce o amor e, com ele, as cidades. É a vontade que proporciona a reductio ad unum de que falava Giordano. No Sermão 45, o tema aparece ligado ao plano celeste (la cittade di vita eterna), no qual os santos se reduzem a uma só coisa em Deus (Moreni, 1831MORENI, Domenico. Prediche del beato fra Giordano da Rivalto dell’Ordine dei Predicatori recitate in Firenze dal MCCCIIII al MCCCVI ed ora per la prima volta pubblicate. Florença: Per il Magheri , 1831b. t. II.b, p. 80); mas o pregador, ao contemplar que a união de vontades é natural na cidade dos santos, não deixa de apresentá-la como modelo para a cidade dos pecadores; nessa cidade histórica, os muitos “tu” também precisam reduzir-se ao “nós” e formar uma só coisa (Moreni, 1831MORENI, Domenico. Prediche del beato fra Giordano da Rivalto dell’Ordine dei Predicatori recitate in Firenze dal MCCCIIII al MCCCVI ed ora per la prima volta pubblicate. Florença: Per il Magheri , 1831b. t. II.b, p. 78).

A reductio ad unum é a forma concreta com que a ordem manifesta-se na história e dá origem às cidades, como o frade declara no mesmo sermão: “Outro motivo pelo qual ela é chamada cidade é pela ordem. Vede como é bela a cidade quando é ordenada com seus muitos ofícios! A ordem na cidade é uma coisa muito bela e esta ordem dá três coisas, Beleza, Fortaleza e Grandeza” (Moreni, 1831MORENI, Domenico. Prediche del beato fra Giordano da Rivalto dell’Ordine dei Predicatori recitate in Firenze dal MCCCIIII al MCCCVI ed ora per la prima volta pubblicate. Florença: Per il Magheri , 1831b. t. II.b, p. 80).

A ordem de que fala o pregador, nessa prédica, coaduna-se bem com a ideia de ischiera, do sermão Ego sum pastor bonus: os ofícios (arti) ordenam-se em um conjunto coeso, harmônico e complementar:

{…} não há ofício algum que não seja útil; o sapateiro é útil a toda a cidade que ele calça; o forneiro é útil e necessário, pois te cozinha o pão; o alfaiate outro tanto; o cavaleiro é útil a toda a cidade, pois a defende; assim, o bem do sapateiro é o bem do cavaleiro, e o do cavaleiro é o mesmo que do sapateiro; e ainda a sua obra e o seu ofício é mais para os outros do que para si. (Moreni, 1831MORENI, Domenico. Prediche del beato fra Giordano da Rivalto dell’Ordine dei Predicatori recitate in Firenze dal MCCCIIII al MCCCVI ed ora per la prima volta pubblicate. Florença: Per il Magheri , 1831b. t. II.b, p. 80)

Mas a história florentina desmentiria essa reductio caritativa que o pregador propõe para a comuna: como vimos, as corporações de ofício (as Artes), sobretudo a Arte della Lana, alcançaram um alto grau de influência política, obstaculizando o poder dos magnates justamente por volta do fim do século XIII: no dizer de Dino Compagni (m. 1324), surge daqui uma luta entre as partes (magnati e popolani) que ameaçava acabar com “a beleza da vossa cidade” (Cronica, Liv. II, cap. I). Por isso, inserir cavaleiros e sapateiros em um contexto de complementaridade social pode significar, além do peso da tradição romana antiga, uma clara tentativa de conciliação de vontades discordantes. Como já apontado, o pregador torna-se um agente político na medida em que seu discurso de púlpito favorece uma pública revisão das condutas políticas e traz à cena coletiva assuntos ainda dolorosos no imediato da experiência citadina.

Daí que não creio que, no trecho citado, Giordano esteja apenas evocando a complementaridade cívica, já fundamentada, por exemplo, no De oficiis de Túlio Cícero (106 a.C.-43 a.C.), obra que, aliás, gozava de grande importância na tratadística medieval. Ao propor a matéria de seu sermão, o dominicano afirma que a cidade é um produto da vontade, tese pouco explorada antes de Santo Agostinho; além disso, a cidade, definida a partir da caritas, assume um contorno ideal que destoa muito de sua real condição histórica, donde, como Agostinho, parece que Giordano professa uma desconfiança em relação a ela. Para os antigos, ao contrário, não haveria nada de errado com a cidade histórica, fundada pela livre racionalidade e pela equidade de direito entre todos os seus cidadãos.12 12 Quanto a isso, basta conferir o De republica, de Marco Túlio Cicero, Liv. 1, 49: “Pois o que é cidade senão a participação de todos no direito comum?” Em Giordano, ao contrário, as cidades são fracas (sono le città debili) e desordenadas (disordinate), porque seus construtores, corrompidos pelo pecado, deixam de agir pela razão ou pelo intelecto. O pecado faz dos homens bestas selvagens, e não somente bestas, mas bestiais (Narducci, 1867NARDUCCI, Enrico. Prediche inedite del B. Giordano da Rivalto dell’Ordine de’ Predicatori recitate in Firenze dal 1302 al 1305. Bolonha: Gaetano Romagnoli, 1867., p. 61). Ou seja, o pecado é antípoda do político, como a selva é o antípoda da cidade.13 13 “[…] como disse aquele grande Sábio [isto é, Aristóteles], o homem é animal congregacional e social, e não consegue estar sem companhia. Os demais animais são selvagens e estranhos e, por isso, vivem solitários na selva” (Moreni, 1831b, p. 89).

Aqui, é preciso enfatizar bastante: o pecado é ato deliberado de uma vontade desordenada; é não saber usar as coisas postas a serviço do homem. Giordano o afirma citando Santo Agostinho: “pecado outra coisa não é do que usar mal as coisas” (Moreni, 1831MORENI, Domenico. Prediche del beato fra Giordano da Rivalto dell’Ordine dei Predicatori recitate in Firenze dal MCCCIIII al MCCCVI ed ora per la prima volta pubblicate. Florença: Per il Magheri , 1831b. t. II.b, p. 95). No Sermão 46, explora-se justamente o fato de os pecadores não serem “senhores”, mas “escravos” de todas as coisas que cobiçam, dominados pela ganância: e, como escravos, não sabem habitar a cidade; esta pertence aos senhores, isto é, àqueles que têm liberdade plena e podem dispor dos outros, porque não são subjugados por ninguém (la cittade dei santi ou dei giusti).14 14 A ideia se repete no Sermão 44, em outro sentido: “Se as pessoas se esforçassem para retornar à nossa verdadeira cidade, não duvido de que todos seríamos santos e grandes santos” (Moreni, 1831b, p. 66). Além disso, o pecado impede a caritas de congregar a diversidade dos homens em uma sociedade harmônica. Portanto, o pecado tem graves consequências sociais: ele é sempre desordem, seja espiritual, psicológica ou social. No sermão Sicuti Moises exaltavit serpentem, de 13 de maio de 1303, Giordano desenvolve bem essa ideia: “A desordem é a outra miséria do pecado, Arre!, a que se dá o mísero pecador! O pecado é todo uma desordem, pois ele é contrário a Deus e ao próximo, é contra a razão; ele macula a consciência, tolhe a honra e a boa fama, e vitupera o homem de muitos modos, neste mundo e no outro infinitamente” (Narducci, 1867NARDUCCI, Enrico. Prediche inedite del B. Giordano da Rivalto dell’Ordine de’ Predicatori recitate in Firenze dal 1302 al 1305. Bolonha: Gaetano Romagnoli, 1867., p. 61).

Desse ponto de vista é que se entende por que o pregador acredita que só no plano divino é que a cidade pode existir: lá não há pecado, nem pecador. Lá habitam os santos com Deus. Mas voltemos ao Sermão 45:

Uma harmoniosa cidade que fosse ordenada e estivesse em concórdia seria tão forte que não seria possível vencê-la jamais, ao contrário, ela venceria todos os demais povos. Quão grande deve ser a fortaleza daquela cidade {a de Deus} onde há tanta concórdia e tanta ordem? E os santos, porém, vencem todas as batalhas. (Moreni, 1831MORENI, Domenico. Prediche del beato fra Giordano da Rivalto dell’Ordine dei Predicatori recitate in Firenze dal MCCCIIII al MCCCVI ed ora per la prima volta pubblicate. Florença: Per il Magheri , 1831b. t. II.b, p. 84)

Parece-me muito apropriado mencionar os santos nesse contexto; a cidade histórica é metáfora da cidade divina; os pecadores-cidadãos desse mundo têm seus contrários entre os santos-cidadãos do outro mundo. É tudo cidade. Ela é o bem maior. Os santos ocupam, na sermonística giordaniana, um papel mediador riquíssimo que faz todo o sentido político. Eles aparecem como baluartes para os homens oprimidos pelos demônios (que pretendem destruir as cidades); para Giordano, são os santos que ajudam os homens a vencerem a pugna contra o diabo. Em outras palavras, a cidade do céu está em relação direta com a cidade da terra, como que “trocando” seus dons: a cidade celeste oferece refúgio, enquanto a cidade terrena, novos bem-aventurados - a comunhão dos santos é perfeita e necessária.

A ideia de comunhão dos santos, cara à teologia cristã, é desenvolvida nesse sermão de uma maneira peculiar. Os santos estão na glória de Deus, mas a alegria de que gozam ainda não é suprema. Embora os santos habitem o céu, eles são cidadãos e, nesse sentido, precisam uns dos outros para participarem daquela glória que só é completa no conjunto, não no indivíduo. Giordano defende que no céu há santos maiores e menores e, como fileiras, uns e outros condividem a glória entre eles, mas esperam dividi-la também com os habitantes deste mundo.15 15 Para o sermão analisado, isto é uma máxima constitutiva: “Essa é a razão pela qual cremos que, na vida eterna, haverá tanta comunidade, pois meu bem e minha glória serão de todos os outros, mais do que meus; e terei a glória, o bem e a beleza de todos os demais. E por essa razão desejarei assim a tua glória, e reputarei meu o teu bem e tu reputarás ser teu o meu bem. E todos glorificarão um ao outro por cada um” (Moreni, 1831b, p. 87). O sermão, ao mesmo tempo em que afirma a superioridade da vida eterna, sustenta que a política não é uma experiência fadada ao fracasso, pois encontra no céu seu fundamento. E os santos, apesar de habitarem o céu, continuam a atuar como cidadãos de suas comunas. Não nos esqueçamos de que as ordens dominicana e franciscana foram grandes legatárias de santos novos para as novas repúblicas da Itália dos séculos XIII e XIV, como São Francisco e Santa Clara de Assis, São Pedro de Verona (ou São Pedro Mártir), Santo Antônio de Pádua (ou de Lisboa), São Domingos de Gusmão e Santa Catarina de Siena.

Giordano pregava esse sermão na igreja de Santa Reparata, isto é, a igreja catedral de Florença que, em 1304, já se encontrava em processo adiantado de reconstrução sob o novo título de Santa Maria dei Fiori, em frente à qual se destacava o batistério de San Giovanni, tão elogiado pelos florentinos da época e representado em miniaturas de manuscritos e afrescos. Em Florença, vivia-se profundamente a convicção de que a cidade terrena estava em comunhão com a cidade celeste, habitada por santos, sobretudo com aqueles que a cidade invocava como seus patronos; a catedral era, a uma só vez, a casa desses patronos e de seus protegidos, os cidadãos florentinos. A argumentação giordaniana, nesse sermão, certamente encontrava ampla acolhida por parte de seus ouvintes naquela igreja; as cidades italianas do período comunal, Florença sobretudo, eram entendidas como entidades simultaneamente cívicas e religiosas, sagradas em si mesmas, e isso não decorria da simples presença de forças clericais, mas pela convicção de que a existência da comuna era tão legítima como aquela do sacro império romano (Thompson, 2005THOMPSON, Augustine. Predicatori e politica nell’Italia del XIII secolo: la “grande devozione” del 1233. Tradução de Stefano Flores. Milão: Biblioteca Francescana, 1996., p. 3-4). A historiografia vem chamando essa realidade híbrida de “religião cívica” (Vauchez, 1995VAUCHEZ, André (Org.). La religion civique à l’époque médiévale et moderne (chrétienté et islam). Roma: École Française de Rome , 1995.), influenciada, talvez em excesso, por uma forma moderna de ver o passado. De todo modo, há de se elogiar o esforço de certos historiadores, como Giorgio Chittolini (1990CHITTOLINI, Giorgio. Civic religion and the countryside in Late Medieval Italy. In: DEAN, Trevor; WICKHAM, Chris (Org.). City and Countryside in Late Medieval and Renaissance Italy: essays presented to Philip Jones. Londres: The Hambledon Press, 1990. p. 69-80., p. 69), em superar a tendência anacrônica de conceber o fenômeno comunal como parte de um processo longo, mas certeiro, de laicização e secularização da política nos fins do período medieval (Weinstein, 1974WEINSTEIN, Donald. Critical issues in the study of civic religion in Renaissance Florence. In: TRINKAUS, Ch.; OBERMAN, H. (Org.). The pursuit of holiness in Late Medieval and Renaissance religion. Leiden: Brill, 1974. p. 265-270., p. 268).

De fato, desde o século XIX, na Itália e fora dela (Sismondi, 1850SISMONDI, I. L. Simondo. Storia delle Repubbliche Italiane del Medio Evo. Milão: Tipografia Borroni e Scotti, 1850. v. 1.; Baron, 1966BARON, Hans. The crisis of the Early Italian Renaissance. Ed. reed. Princeton: Princeton University Press, 1966.), eruditos vêm insistindo no ineditismo italiano como marco temporal para separar o medievo da modernidade, tendo por base uma ideia pouco apropriada de religião no contexto das comunas. Não que o movimento comunal não tenha trazido à cena política novos atores, como os universitários, juristas, notários públicos e chanceleres, cujo estatuto laico destacava-os dos anteriores enlaces nobiliárquicos e clericais, mas daí considerar que as comunas tardo-medievais representaram uma ruptura com a ideologia da ecclesia (Boucheron, 2003BOUCHERON, Patrick. Villes, cathédrales et histoire urbaine, Histoire Urbaine, vol. 7, p. 5-16, 2003., p. 6) é deixar de considerar as motivações que encontramos em uma vasta documentação de natureza variada, na qual se destacam os sermões de Giordano de Pisa.

Se, de fato, há uma debilidade nas cidades históricas, há para elas uma alternativa. O pregador oferece o espelho da cidade perfeita, em que impera a complementaridade, a condivisão e o bem comum: trata-se de uma imagem invertida da cidade terrena:

A segunda cidade é a cidade de vida eterna, a qual a Santa Escritura todos os dias chama de cidade. {…} Esta outra cidade é significada em Nazaré, que se diz florida, como Florença é chamada cidade florida, pois é cheia de flores. Mas aquela cidade do alto é a correta Florença, ela é de fato florida. Ela é a cidade correta, e ela é toda de fruição; ali existe expressamente o senhorio dos santos e, ali, os pecadores não têm lugar. (Moreni, 1831MORENI, Domenico. Prediche del beato fra Giordano da Rivalto dell’Ordine dei Predicatori recitate in Firenze dal MCCCIIII al MCCCVI ed ora per la prima volta pubblicate. Florença: Per il Magheri , 1831b. t. II.b, p. 95-96)

A desordem da comuna decorre do fato de, nela, haver mais partidarismo que harmonia, mais espírito de acúmulo que de partilha, mais defesa do bem pessoal que do comum; não podemos perder de vista aquele aspecto factual que dava carne ao sermão giordaniano: entre 1300 e 1304, Florença atravessava uma crise civil importante; os membros da elite mercantil e do popolo travaram renhida guerra que, após deposições de priores, isto é, representantes das guildas municipais que compunham o governo florentino e exílios de membros de famílias facciosas (como o próprio Remígio dei Girolami), culminou na intervenção de Carlos de Anjou, irmão de Felipe IV de França, enviado como pacificador pelo papa Bonifácio VIII (Najemy, 2006NAJEMY, Jonh M. A history of Florence, 1200-1575. Malden (EUA): Blackwell Publishing, 2006., p. 92). A chegada do poder angevino subverte os equilíbrios internos da cidade, alçando os membros do partido guelfo negro a patamares de domínio sobre a cidade contra os guelfos brancos. Por conta disso, as referências a “vícios” mobilizadas por Giordano, nesse sermão, não me parecem ter um fundamento meramente moral e religioso, mas ético e político. O mesmo se diga acerca de seu antídoto, a penitência, que recorrentemente preenche os sermões de Giordano e, principalmente, esses dois de 4 e 8 de outubro de 1304.

Já apontei o quanto as comunas italianas, ao passo que se organizavam politicamente a partir das corporações de ofício, eram influenciadas pelas confrarias leigas penitenciais, sendo muitas vezes os membros das guildas igualmente participantes dessas confrarias.16 16 A fim de auxiliar o leitor não familiarizado com essa temática comunal italiana, gostaria de precisar que confrarias e corporações (ou guildas) não eram, necessariamente, associações opostas ou excludentes; ambas eram grupos mais ou menos espontâneos, dotados de regimentos/estatutos que agregavam leigos (homens e mulheres) e clérigos (com destaque para o clero secular) para finalidades simultaneamente cívicas e religiosas. Acontece que, não raro, as confrarias tinham um nítido caráter devocional, caritativo e penitencial, com rituais, emblemas e vestuários próprios do âmbito religioso, que as distinguiam das corporações. Estas, por sua vez, tinham um caráter profissional, isto é, congregavam membros de ofícios exclusivos a fim de garantir o bem-estar material de seus membros e a defesa de interesses de classe e trabalho, embora não fossem estranhos os motivos religiosos, como o culto aos santos patronos, as festas devocionais, a oferta pelos mortos, a construção de igrejas e cemitérios próprios. A mistura do sacro e do profano, que caracterizava as corporações e as confrarias, é, por si só, um bom motivo para se observar o hibridismo da instituição comunal. Cf. De La Roncière (1973, p. 31 e segs.) e Orioli (1984). A proposta de penitência, como antídoto social, não era exclusividade dos frades pregadores, pois fazia parte do arcabouço comunal laico. A penitência, tanto quanto o sofrimento, tinha valor pedagógico; ela era método de aperfeiçoamento e crescimento.

No sermão giordaniano, a penitência diz respeito também à disposição do homem de procurar meios de forçar seu amor carnal {diletto carnale} a diminuir seus efeitos nocivos. Fazer penitência leva o homem a enfraquecer em si o que o impede de subir/crescer e, como se diz no Sermão 45, de instaurar uma comunidade digna desse nome. No caso de Giordano, ele não reforça o papel das confrarias, mas dos pregadores, sobretudo daqueles ligados às ordens dominicana e franciscana:

O senhor São Francisco foi grande conversor de almas tanto pelo exemplo quanto pelas ardentes palavras, pois dele se lê que foi pregador {…} e ele quis e ordenou, na Regra, que {seus frades} pregassem e fossem pregadores, embora este modo de pregar se encontrasse, antes, naquele bendito senhor São Domingos. (Moreni, 1831MORENI, Domenico. Prediche del beato fra Giordano da Rivalto dell’Ordine dei Predicatori recitate in Firenze dal MCCCIIII al MCCCVI ed ora per la prima volta pubblicate. Florença: Per il Magheri , 1831b. t. II.b, p. 73)

O frade mostra conhecer bem a história da Ordem dos Frades Menores e a vida de São Francisco; ele sabe que o santo pretendeu fundar uma ordem de pregadores, como a Regra o expressa. Uma pregação penitencial que devia converter os habitantes das cidades da Úmbria, das Marcas, mas também da Toscana, como bem notou Giordano. Francisco não foi o primeiro, antes dele havia Domingos. Há uma estreita ligação entre ambos os santos fundadores e entre ambas as pregações, e essa ligação é a penitência. Giordano parece bastante alheio ao clichê histórico que credita uma ênfase doutrinária à pregação dominicana, enquanto a pregação franciscana enfatizaria o aspecto moral. Ambas as pregações são moralistas, pois ambas privilegiam a penitência, a conversão, a vida conformada à paixão de Cristo. Frades Menores e Pregadores são agentes de salvação da sociedade, pois trabalham pela salvação de cada alma e de todas as almas: é forçoso lembrar que, como proclama Giordano, a alma tem valor infinito e, por isso, salvar almas é a mais elevada de todas as ações.

É por conta disso que creio que, apesar de Giordano, em ambos os sermões, privilegiar uma leitura espiritual da cidade e, no limite, atribuir consistência apenas à cidade de Deus, ele não desacredita da cidade histórica e nem lhe nega uma alternativa. Toda a primeira parte do Sermão 44 apresenta a penitência como a via ordinária, isto é, a diuturna meditação da Paixão de Cristo que leva o meditante a ir superando cada vício e a ir passando lentamente o mar deste mundo; tal disciplina obviamente estava à altura da vida secular, dos leigos e leigas, cidadãos das comunas. Nesse exercício ordinário, existem os santos como faróis e modelos; mas existem também os pregadores que estão lá nos púlpitos, todos os dias estimulando os penitentes a seguir por esse caminho.

Stiamo volentieri alle cittadi (Sermão 46): o terceiro significado da cidade

O Sermão 46 inicia-se por uma paráfrase da afirmação aristotélica de que o homem é um animal político (Política, Liv. 1, cap. 1); no dizer de Giordano, “o homem é animal congregável {congregale} e social {sociale} e não consegue ficar sem companhia” (Moreni, 1831MORENI, Domenico. Prediche del beato fra Giordano da Rivalto dell’Ordine dei Predicatori recitate in Firenze dal MCCCIIII al MCCCVI ed ora per la prima volta pubblicate. Florença: Per il Magheri , 1831b. t. II.b, p. 89). A Política aristotélica, livremente referida, é o ponto de partida dessa prédica, o que nos coloca diante da já tradicional exegese dominicana desse texto, a começar pelo Comentário à Política de Aristóteles, feito por Tomás de Aquino, provavelmente entre 1269 e 1272: aqui é preciso lembrar da consolidada proximidade que os mestres dominicanos, não só Tomás de Aquino e Alberto Magno, estabeleceram com as traduções latinas de Aristóteles, como é o caso de Remígio dei Girolamo.

A compreensão de cidade, segundo os ditames aristotélicos, prevê que ela seja a fonte de satisfação das muitas necessidades humanas, tais como a sobrevivência, o bem-estar e a segurança, coisas que constituem a finalidade natural da cidade, motivo pelo qual o pregador acentua a diferença entre os seres humanos e os animais, sobretudo os selvagens, que precisam de bem poucas coisas para viver (Moreni, 1831MORENI, Domenico. Prediche del beato fra Giordano da Rivalto dell’Ordine dei Predicatori recitate in Firenze dal MCCCIIII al MCCCVI ed ora per la prima volta pubblicate. Florença: Per il Magheri , 1831b. t. II.b, p. 89). Tendo esse horizonte em mente, Giordano põe-se a destacar nas cidades aquilo que têm de belo e ordenado:

{…} entre os motivos que vos disse para que uma cidade receba este nome é quando é bem organizada e estão presentes as muitas artes e todas respondem umas às outras. Assim, este mundo é uma cidade ordenadíssima na qual estão presentes as muitas artes e os muitos artífices. E quais são estes? Toda criatura faz sua arte e não existe nenhuma que não faça a sua obra, e todas as artes são úteis e necessárias, e as artes são tantas quantas são as criaturas e todas respondem uma à outra de modo extremamente ordenado; {…} desta forma, somando tudo, este mundo inteiro é uma cidade belíssima. (Moreni, 1831MORENI, Domenico. Prediche del beato fra Giordano da Rivalto dell’Ordine dei Predicatori recitate in Firenze dal MCCCIIII al MCCCVI ed ora per la prima volta pubblicate. Florença: Per il Magheri , 1831b. t. II.b, p. 90)

Apesar de o sentido de arte vir, nesse sermão, entendido como ofício e, até, como talento próprio de cada cidadão que, ao pactuar com a vida comum, põe à disposição do comum suas capacidades, é bom nos lembrarmos de que Florença, no tempo de Giordano, praticava um regime de governo comunal em que “Artes” era o nome das corporações de ofício cujos representantes, um por cada Arte, compunham o conselho governamental: “o priorado das Artes” (Najemy, 2006NAJEMY, Jonh M. A history of Florence, 1200-1575. Malden (EUA): Blackwell Publishing, 2006., p. 79). O número dessas corporações podia variar entre cinco (incluindo as maiores e mais influentes) a 32, o que indica a extrema capacidade de interferência das ricas famílias de banqueiros e comerciantes nos jogos políticos da comuna florentina. Para Giordano, essa profusão de Artes não significava qualquer fraqueza no sistema comunal, uma vez que a variação de partes contribuía para a beleza da cidade, do mesmo modo que, no Sermão 45, o corpo humano mostrava-se belo na pluralidade de seus membros.

Giordano propõe uma adequação entre a finalidade do organismo político, que é a cidade, e a finalidade do ser do homem, que é a liberdade; não pode haver descompasso entre as duas, sob o risco de desnaturalização da política e de inversão da ordem. A vida em cidade assegura que os homens não são como os animais, principalmente os selvagens: dotados de razão e liberdade, os homens têm a capacidade de contrariar seus apetites,17 17 Por apetites, Giordano entende a vontade de comer, de beber, de fazer sexo, possuir coisas etc. (cf. Moreni, 1831b, p. 91). coisa que os animais não podem, presos que são aos hábitos de sua espécie: “Deus nos fez de tal modo livres que não quer que sejamos obrigados a nada” (Moreni, 1831MORENI, Domenico. Prediche del beato fra Giordano da Rivalto dell’Ordine dei Predicatori recitate in Firenze dal MCCCIIII al MCCCVI ed ora per la prima volta pubblicate. Florença: Per il Magheri , 1831b. t. II.b, p. 99). O ato de contrariar-se, portanto, caracteriza o humano e, ao mesmo tempo, afirma sua natureza senhorial, nos termos usados pelo livro de Gênesis;18 18 Gênesis, cap. 1, v. 26: “E Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança; que eles dominem os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos e todos os répteis” (grifo nosso). acontece que, nesse ponto, o homem racional de Aristóteles é deslocado por Giordano para o sentido que lhe confere a tradição agostiniana do pecado original. Esse pecado significa a quebra da ordem primitiva, ordem essa que, em termos giordanianos, é o avesso da cidade belissimamente ordinata: o pecado torna feio, porque desordena, aquilo que no princípio era belo.19 19 “[…] foi o nosso primeiro pai Adão que a emporcalhou, bem como a todo o gênero humano. Tornamo-nos todos emporcalhados com o pecado original” (Moreni, 1831b, p. 100).

Por um desvio de sua liberdade, definida por Giordano como a capacidade de usar todas as coisas segundo sua justa finalidade, o homem pecador abriu mão do domínio natural sobre as coisas e colocou-se sob o poder das coisas. O pregador insiste nessa imagem tomando como exemplos o avarento e o glutão: o primeiro não é mais livre porque, em vez de possuir o dinheiro, é por ele possuído, e o segundo porque, antes de comer para viver, vive para comer. Nos dois casos, inverteu-se a ordem, renunciou-se à liberdade e perdeu-se a razão. Por conta da perda da liberdade e, por conseguinte, da razão, ocorre um retrocesso antropológico, pois o homem pecador desce para o estatuto do animal e, com isso, desabilita-se à vida cidadã, que supõe sempre a liberdade; em outras palavras, o pecador, na qualidade de escravo de seus vícios, renuncia à sua natureza sociável e política e adquire uma condição selvagem: não está mais apto a viver como cidadão.

Giordano interpreta os primeiros capítulos de Gênesis de modo peculiar: ora, a tradição de leitura, baseada em Gregório Magno (Moralia in Iob e Regula Pastoralis), enfatiza a superioridade do homem diante das criaturas e a igualdade dos homens entre si. Os dominicanos Vicente de Beauvais e Guilherme Peraldo, seguindo Gregório, analisam o Gênesis pela oposição entre o estágio pré-lapsário, isto é, o período antes do pecado, em que o homem dominava os animais, mas não dominava outros homens, e o estágio pós-lapsário, quando, em decorrência do pecado, os homens passaram a dominar uns aos outros, o que confere ao poder político um sentido antinatural e pecaminoso.

Por seu turno, o Sermão 46 opera em outro registro, o do elogio; convém recordar que esse discurso foi pregado na festa de Santa Reparata, copatrona de Florença, celebrada no dia 8 de outubro. Essa festa não era apenas uma data litúrgica, mas cívica; como vimos, Reparata dava nome à primeira catedral da cidade, depois substituída pela atual Santa Maria dei Fiori. A data marcava a vitória dos florentinos, auxiliados pelas tropas romanas, sobre os ostrogodos comandados por Radagaiso, em 406; o fato de a cidade ter vencido seu inimigo, após um cerco, justamente no dia em que comemorava a mártir sepultada na igreja central, deu ensejo para que, segundo o testemunho de Giovanni Villani (Liv. I, cap. 61), essa festa se tornasse um marco na luta de Florença pela liberdade, donde seu significado prioritariamente político.

A celebração litúrgico-cívica propiciava ao pregador a ocasião de associar o louvor de Reparata ao louvor de Florença, sua cidade; por isso, não convinha que Giordano insistisse na origem pecaminosa da política, mas, antes, realçasse o modo pelo qual a cidade se identificava com Deus. A saída do pregador não implicava, por si mesma, uma negação das autoridades de sua ordem, mas uma estratégia retórica de tirar elogio até daquilo que parece torpe. Isso explica por que Giordano insistia em equiparar o verdadeiro cidadão ao homem justo e santo, isto é, ao que não é tomado pelo pecado: observe que não há separação de estágio pré e pós-lapsário. O pecado já está posto na história, e sua consequência é a dessemelhança entre os homens, uns livres, outros cativos; uns senhores, outros escravos; mas, nem por isso o poder é intrinsecamente mau, pois há um modo de permanecer bom: quando exercido por santos! “Mas, ainda que se diga que o homem é senhor, não são todos os homens que possuem a senhoria, mas os que são justos e os santos; a estes pertencem a senhoria, aos outros não, pois são bestiais e se tornaram escravos”20 20 É bem verdade que o termo aqui empregado é servo, e não ischiavo, mas traduzi por “escravo” a fim de marcar a situação de redução radical da liberdade. Nesse mesmo Sermão 46, Giordano assim se expressa em relação ao “servo”: “Così eziandìo nelle leggi de’ pagani era, che qualunque in battaglia vincesse il nemico suo, sì gli era servo, ed era suo uomo, e vendealo per ischiavo, e tutte le cose sue s’avea […]” (Moreni, 1831b, p. 93). O escravo era uma situação pior do que a do servo, porque, afora a ausência de liberdade, ainda podia ser posto à venda. (Moreni, 1831MORENI, Domenico. Prediche del beato fra Giordano da Rivalto dell’Ordine dei Predicatori recitate in Firenze dal MCCCIIII al MCCCVI ed ora per la prima volta pubblicate. Florença: Per il Magheri , 1831b. t. II.b, p. 92).

A partir daqui, o pregador inicia uma longa exposição dos motivos pelos quais apenas os santos são verdadeiros senhores e autênticos governantes. Recupera-se todo o significado cívico desses homens e mulheres, que, apesar de mortos, ainda trabalham por suas cidades, contribuindo para o crescimento do bem comum. As comunas italianas não se entendem fora dessa estreita relação entre a sociedade de devotos, congregados em confrarias, e a sociedade de santos citadinos, congregados no céu em prol de suas cidades, como vemos ilustrado na Maestà do Palazzo Pubbico de Siena (1315), obra de Simone Martini, e na cúpula do batistério de Pádua (1375-1376), de Giusto de Menabuoi.

A comemoração de Santa Reparata, como referido, oferecia ao pregador o motivo moral necessário para reafirmar o valor social da pregação: corrigir a cidade e endireitar seus habitantes. Giordano tira sentido, inclusive, do nome da santa florentina, que, chamando-se Reparata, indicava um processo de reparação, isto é, de conserto e de melhora: “Reparata significa restaurada na vida eterna. Ora, quem a danificou? Deus não, nem ela, pois foi o nosso primeiro pai Adão que a danificou bem como a todo o gênero humano. Tornamo-nos todos defeituosos com o pecado original. Santa Reparata dele foi purificada. Deo Gratias” (Moreni, 1831MORENI, Domenico. Prediche del beato fra Giordano da Rivalto dell’Ordine dei Predicatori recitate in Firenze dal MCCCIIII al MCCCVI ed ora per la prima volta pubblicate. Florença: Per il Magheri , 1831b. t. II.b, p. 100).

Em síntese, Giordano não apenas reafirma o limite histórico da política, maculada pelo pecado, como encontra para ela uma solução que, sem deixar de ser racional e livre, passa pela disciplina interior dos cidadãos. Essa característica que, a princípio, soa tão conventual está bastante presente na compreensão que a comuna fazia de si mesma, expressa, por exemplo, nas numerosas confrarias e corporações que a compunham, instituições baseadas em laços morais e práticas penitenciais, como atesta a Confraternità della Misericordia, fundada em Florença nos inícios do século XIII, cujos membros leigos dedicavam-se a socorrer os necessitados pela via das sete obras de misericórdia corporais. Associações leigas como essas testemunham que a dinâmica social das comunas deixava-se influenciar pelos pregadores não porque fossem crédulas, mas porque, como eles, professavam um extremo comunitarismo assentado na ideia cristã de caridade.21 21 André Luis Pereira Miatello é professor do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais.

Referências bibliográficas

  • CATALANI, Joseph. Beati Humberti de Romanis Burgundi olim Ordinis Praedicatorum quinti Genaralis Magistri De Eruditione religiosorum praedicatorum Libri duo. Roma: Typis Antonii de Rubeis apud Pantheon, 1739.
  • DELCORNO, Carlo (Ed.). Giordano da Pisa. Quaresimale Fiorentino 1305-1306. Edizione critica a cura di Carlo Delcorno. Florença: G. C. Sansoni Editore, 1974.
  • MANNI, Domenico Maria. Prediche del beato f. Giordano da Rivalto dell’Ordine de’ Predicatori. Florença: Stamperia di Pietro Gaetano Viviani, 1739.
  • MORENI, Domenico. Prediche del beato fra Giordano da Rivalto dell’Ordine dei Predicatori recitate in Firenze dal MCCCIIII al MCCCVI ed ora per la prima volta pubblicate. Florença: Per il Magheri, 1831a. t. I.
  • MORENI, Domenico. Prediche del beato fra Giordano da Rivalto dell’Ordine dei Predicatori recitate in Firenze dal MCCCIIII al MCCCVI ed ora per la prima volta pubblicate. Florença: Per il Magheri , 1831b. t. II.
  • NARDUCCI, Enrico. Prediche inedite del B. Giordano da Rivalto dell’Ordine de’ Predicatori recitate in Firenze dal 1302 al 1305. Bolonha: Gaetano Romagnoli, 1867.
  • PANELLA, Emilio. Speculum fratris Remigii Florentini Ordinis Praedicatorum. 2014. Disponível em: <Disponível em: http://www.e-theca.net/emiliopanella/remigio3/dbc.htm >. Acesso em: 1o out. 2015.
    » http://www.e-theca.net/emiliopanella/remigio3/dbc.htm

Estudos

  • BARON, Hans. The crisis of the Early Italian Renaissance. Ed. reed. Princeton: Princeton University Press, 1966.
  • BÉRIOU, Nicole. L’avènement des maîtres de la parole: la prédication à Paris au XIIIe siècle. Paris: Institut d’Études Augustiniennes, 1998. 2v.
  • BÉRIOU, Nicole. Un mode singulier d’éducation: la prédication aux derniers siècles du Moyen Âge, Communications, v. 72, p. 113-127, 2002.
  • BOUCHERON, Patrick. Villes, cathédrales et histoire urbaine, Histoire Urbaine, vol. 7, p. 5-16, 2003.
  • BRUNETTI, Giuseppina; GENTILI, Sonia. Una biblioteca nella Firenze di Dante: i manoscritti di Santa Croce. In: RUSSO, E. (Org.). Testimoni del vero: su alcuni libri in biblioteche di autore. Roma: Bulzoni, 2000. p. 21-48.
  • CHITTOLINI, Giorgio. Civic religion and the countryside in Late Medieval Italy. In: DEAN, Trevor; WICKHAM, Chris (Org.). City and Countryside in Late Medieval and Renaissance Italy: essays presented to Philip Jones. Londres: The Hambledon Press, 1990. p. 69-80.
  • DEBBY, Nirit Ben-Aryeh. Political views in the preaching of Giovanni Dominici in Renaissance Florence, 1400-1406, Renaissance Quarterly, v. 55, n. 1, p. 19-48, 2002.
  • DE LA RONCIÈRE, Charles. La place des confréries dans l’encadrement religieux du contado florentin: l’exemple de la Val d’Elsa. Mélanges de l’École Française de Rome, Moyen Âge/Temps Modernes, v. 85, p. 31-77, 1973.
  • DESSÌ, Rosa Maria. Guelfi e Ghibellini, prima e dopo la battaglia di Montaperti (1246-1358). In: Montaperti, 1260-2010, nella ricorrenza dei 750 anni della battaglia. Siena: Accademia degli Intronati, 2011. p. 21-32.
  • GAGLIARDI, Isabella. Coscienze e città: la predicazione a Firenze tra la fine del XIII e gli inizi del XV. Considerazioni introduttive. Annali di Storia di Firenze, v. VIII, p. 113-144, 2013.
  • GILLI, Patrick. Cité et citoyens dans la pensée politique italienne et française (fin XIIIe-fin XIVe siècle). Unité et diversité des lectures d’Aristote. In: LEMONDE, Anne; TADDEI, Ilaria (Org.). Circulation des idées et des pratiques politiques: France et Italie (XIIIe-XVIe siècle). Roma: École Française de Rome, 2013. p. 37-53.
  • GROSSI, Paolo. A ordem jurídica medieval. Tradução de Denise Rossato Agostinetti. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014.
  • HONESS, Claire E. From Florence to the heavenly city: the poetry of citizenship in Dante. Londres: Legenda, 2006.
  • IANNELLA, Cecilia. Giordano da Pisa: etica urbana e forme della società. Pisa: ETS, 1999.
  • IOGNA-PRAT, Dominique. La invención social de la iglesia en la Edad Media. Buenos Aires: Miño y Dávila, 2016.
  • LESNICK, Daniel R. Preaching in Medieval Florence: the social world of Franciscan and Dominican spirituality. Athens (EUA): University of Georgia Press, 1989.
  • MACKIN, Zane D. R. Dante praedicator: sermons and preaching culture in the Commedia. Tese (Doutorado), Nova York: Columbia University Graduate School of Arts and Sciences, 2013. 331p.
  • MIATELLO, André Luis Pereira. Santos e pregadores nas cidades medievais italianas: retórica cívica e hagiografia. Belo Horizonte: Fino Traço, 2013.
  • NAJEMY, Jonh M. A history of Florence, 1200-1575. Malden (EUA): Blackwell Publishing, 2006.
  • ORIOLI, Luciano. Le confraternite medievali e il problema della povertà: lo statuto della Compagnia di Santa Maria Vergine e di San Zenobio di Firenze nel secolo XIV. Roma: Edizioni di Storia e Letteratura, 1984.
  • PATON, Bernadette. “Una città fatticosa”: Dominican preaching and the defence of the republic in Late Medieval Siena. In: TREVOR, D.; WICKHAM, Ch. (Org.). City and countryside in Late Medieval and Renaissance Italy: essays presented to Philip Jones. Hambledon: Continuum, 2003. p. 109-123.
  • REYNOLDS, Susan. Government and community. In: LUSCOMBE, David (Org.). The New Cambridge medieval history. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. v. IV, parte I, p. 86-112.
  • SISMONDI, I. L. Simondo. Storia delle Repubbliche Italiane del Medio Evo. Milão: Tipografia Borroni e Scotti, 1850. v. 1.
  • SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. Tradução de Renato Janine Ribeiro e Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
  • THOMPSON, Augustine. From texts to preaching: retrieving the medieval sermon as an event. In: MUESSIG, Carolyn (Org.). Preacher, Sermon and audience in the Middle Ages. Leiden/Boston/Köln: Brill, 2002. p. 13-39.
  • THOMPSON, Augustine. Predicatori e politica nell’Italia del XIII secolo: la “grande devozione” del 1233. Tradução de Stefano Flores. Milão: Biblioteca Francescana, 1996.
  • THOMPSON, Augustine. Cities of God: the religion of the Italian communes, 1125-1325. Pennsylvania: The Pennsylvania State University Press, 2005.
  • VAUCHEZ, André (Org.). La religion civique à l’époque médiévale et moderne (chrétienté et islam). Roma: École Française de Rome , 1995.
  • WEINSTEIN, Donald. Critical issues in the study of civic religion in Renaissance Florence. In: TRINKAUS, Ch.; OBERMAN, H. (Org.). The pursuit of holiness in Late Medieval and Renaissance religion. Leiden: Brill, 1974. p. 265-270.
  • WICKHAM, Chris; TREVOR, Dean (Org.). City and countryside in Late Medieval and Renaissance Italy. Londres: The Hambledon Press , 1990.
  • ZORZI, Andrea. “Fracta est civitas magna in tres partes”. Conflitto e costituzione nell’Italia comunale, Scienza & Politica, v. 39, p. 61-87, 2008.
  • 2
    A escolha de apenas três sermões, em um universo de quase 400 que Giordano de Pisa pregou, justifica-se, primeiramente, por se tratar de um artigo ensaístico e não exaustivo, em segundo lugar, por esses três exemplos conterem um volume sistematizado de ideias de cunho político que esse pregador apresentava dispersas em várias prédicas, e, por fim, pelo fato de esses três sermões serem intencionalmente propostos pelo pregador como parte de uma mesma reflexão pública sobre a condição da política urbana florentina. No entanto, a proposta de leitura desses três exemplares da pregação de Giordano exigiu que se fizesse uma avaliação conjunta de seu acervo sermonístico dedicado às questões políticas, como será possível verificar pelas referências apresentadas ao longo do texto.
  • 3
    Giordano refere-se às Artes, em Florença, em diversos sermões, mas nem sempre particulariza seus nomes, preferindo dizer “tutte l’arti”; por isso, chama a atenção o fato de se referir à Arte della Lana de maneira especial e sempre em tom de reprimenda, uma vez que, para o pregador, essa corporação de profissionais do tecido apresentava uma grave situação de corrupção, extorsão e improbidade (alguns sermões que tratam disso podem ser lidos em Delcorno, 1974, p. 269; Manni, 1739, p. 105; Narducci, 1867, p. 144-145; Bodleian Library de Oxford, manuscrito Canoniciano italiano 132, fls. 74v-75r apud Iannella, 1999, p. 106).
  • 4
    Trata-se de Francesco Petrarca (1304-1374), pensador e poeta italiano, que na epístola “Ad Franciscum priorem SS. Apostolorum de Florentia” lamentava-se por viver em uma época de trevas e ignorância (Epistolae Metricae, III, 33).
  • 5
    A edição de Moreni (1831b) está disponível na internet, no site citado a seguir, no qual o leitor poderá acompanhar as referências textuais na língua original. Neste texto, todas as traduções para o português são de minha responsabilidade. 158. Disponível em: <https://books.google.com.br/books?id=vVpz15empg0C&pg=PA1&dq=Prediche+del+Beato+Fra+Giordano+ da+Rivalto+dell’Ordine+dei+Predicatori+recitate+in+Firenze+Tomo+II&hl=pt-BR&sa=X&ved=0ahUKEwi0oanl9ZTPAhWBhpAKHTvQA8oQ6AEIIDAA#v=onepage&q=Prediche%20del%20Beato%20Fra%20Giordano%20da%20Rivalto%20dell’Ordine%20dei%20Predicatori%20recitate%20in%20Firenze%20Tomo%20II&f=false>. Acesso em: 16 set. 2016.
  • 6
    Assim começa o terceiro sermão: “[Jesus] voltou à sua cidade. Sobre esta palavra, pregamos ao longo desta semana, e ainda haveremos de pregar nesta manhã em honra desta gloriosa virgem e mártir, Santa Reparata” (Moreni, 1831b, p. 88).
  • 7
    Há certa dificuldade de tradução para o sentido dado pela expressão do autor cittade di cognizione; de fato, o substantivo cognição/conhecimento, oriundo do mesmo verbo latino cognoscere, traduz o termo “italiano” do pregador, mas o sentido que a expressão parece ter refere-se mais ao fato de que, apesar de Cristo ter nascido em Belém, adotou Cafarnaum, como São Pedro adotou Roma, como o próprio frade explica na sequência.
  • 8
    O carismatismo da pregação de alguns dominicanos florentinos, como Giovanni Dominici (1400-1406) vem discutido por Nirit Debby (2002).
  • 9
    Para a Ordem dominicana, a autoridade de Humberto de Romans, no De eruditionem Praedicatorum, é fundamental: “[…] pois as demais ciências procedem ou da razão, ou da natureza, ou do livre arbítrio: esta ciência [a pregação], ao contrário, procede das coisas divinas que transcendem infinitamente todas as demais. […] Grande coisa é tratar da Trindade e Unidade divinas, da encarnação do Filho de Deus, e de assuntos como estes, diante dos quais nenhum outro assunto supera” (Catalani, 1739, p. 2).
  • 10
    Aqui o termo eternidade tem o sentido de “vida eterna”, como define Giordano nos sermões, isto é, a vida perpétua garantida pela salvação como dádiva de Deus aos justos.
  • 12
    “Que cidade deve ser aquela onde os cidadãos estarão em tanto amor que cada um te amará com amor perfeitíssimo e por todos verás que és amado, e amarás a todos de modo geral e singular?” (Moreni, 1831b, p. 78).
  • 12
    Quanto a isso, basta conferir o De republica, de Marco Túlio Cicero, Liv. 1, 49: “Pois o que é cidade senão a participação de todos no direito comum?”
  • 13
    “[…] como disse aquele grande Sábio [isto é, Aristóteles], o homem é animal congregacional e social, e não consegue estar sem companhia. Os demais animais são selvagens e estranhos e, por isso, vivem solitários na selva” (Moreni, 1831b, p. 89).
  • 14
    A ideia se repete no Sermão 44, em outro sentido: “Se as pessoas se esforçassem para retornar à nossa verdadeira cidade, não duvido de que todos seríamos santos e grandes santos” (Moreni, 1831b, p. 66).
  • 15
    Para o sermão analisado, isto é uma máxima constitutiva: “Essa é a razão pela qual cremos que, na vida eterna, haverá tanta comunidade, pois meu bem e minha glória serão de todos os outros, mais do que meus; e terei a glória, o bem e a beleza de todos os demais. E por essa razão desejarei assim a tua glória, e reputarei meu o teu bem e tu reputarás ser teu o meu bem. E todos glorificarão um ao outro por cada um” (Moreni, 1831b, p. 87).
  • 16
    A fim de auxiliar o leitor não familiarizado com essa temática comunal italiana, gostaria de precisar que confrarias e corporações (ou guildas) não eram, necessariamente, associações opostas ou excludentes; ambas eram grupos mais ou menos espontâneos, dotados de regimentos/estatutos que agregavam leigos (homens e mulheres) e clérigos (com destaque para o clero secular) para finalidades simultaneamente cívicas e religiosas. Acontece que, não raro, as confrarias tinham um nítido caráter devocional, caritativo e penitencial, com rituais, emblemas e vestuários próprios do âmbito religioso, que as distinguiam das corporações. Estas, por sua vez, tinham um caráter profissional, isto é, congregavam membros de ofícios exclusivos a fim de garantir o bem-estar material de seus membros e a defesa de interesses de classe e trabalho, embora não fossem estranhos os motivos religiosos, como o culto aos santos patronos, as festas devocionais, a oferta pelos mortos, a construção de igrejas e cemitérios próprios. A mistura do sacro e do profano, que caracterizava as corporações e as confrarias, é, por si só, um bom motivo para se observar o hibridismo da instituição comunal. Cf. De La Roncière (1973, p. 31 e segs.) e Orioli (1984).
  • 17
    Por apetites, Giordano entende a vontade de comer, de beber, de fazer sexo, possuir coisas etc. (cf. Moreni, 1831b, p. 91).
  • 18
    Gênesis, cap. 1, v. 26: “E Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança; que eles dominem os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos e todos os répteis” (grifo nosso).
  • 19
    “[…] foi o nosso primeiro pai Adão que a emporcalhou, bem como a todo o gênero humano. Tornamo-nos todos emporcalhados com o pecado original” (Moreni, 1831b, p. 100).
  • 20
    É bem verdade que o termo aqui empregado é servo, e não ischiavo, mas traduzi por “escravo” a fim de marcar a situação de redução radical da liberdade. Nesse mesmo Sermão 46, Giordano assim se expressa em relação ao “servo”: “Così eziandìo nelle leggi de’ pagani era, che qualunque in battaglia vincesse il nemico suo, sì gli era servo, ed era suo uomo, e vendealo per ischiavo, e tutte le cose sue s’avea […]” (Moreni, 1831b, p. 93). O escravo era uma situação pior do que a do servo, porque, afora a ausência de liberdade, ainda podia ser posto à venda.
  • 21
    André Luis Pereira Miatello é professor do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais.

Publication Dates

  • Publication in this collection
    May-Aug 2017

History

  • Received
    19 June 2016
  • Accepted
    10 Oct 2016
EdUFF - Editora da UFF Instituto de História/Universidade Federal Fluminense, Rua Prof. Marcos Waldemar de Freitas Reis, Bloco O, sala 503, 24210-201, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil, tel:(21)2629-2920, (21)2629-2920 - Niterói - RJ - Brazil
E-mail: tempouff2013@gmail.com