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Escalas da identidade na literatura africana das independências: uma abordagem exploratória sobre nacionalismo, identidades sociais e produção cultural

Resumo

Este artigo busca investigar de que maneira escritores africanos da época das independências recorriam, em seus textos, a identidades sociais demarcadas em termos de nação, raça, etnia e classe, no esforço de definir, explicar e pautar a ação coletiva pelo quadro de projetos políticos nacionais específicos. Após revisar a possibilidade de se falar de uma “literatura africana das independências”, busca-se definir a conveniência de uma abordagem “de baixo para cima” das classificações sociais envolvidas, entendendo-as como pontos em uma escala de identidades, mais que como campos conceituais discretos, e enfatizando seu “uso prático” como um índice analítico privilegiado para o universo mais amplo do nacionalismo africano e suas disputas. Finalmente, apresenta-se um pequeno esboço comparativo das possibilidades de tratamento divergente da identidade em diferentes escalas a partir de um corpus ilustrativo de autores africanos.

Palavras-chave:
literaturas africanas; classificações sociais; nacionalismo.

Abstract

This paper questions how African writers in the age of independences referred in their texts to social identities fashioned upon nation, race, ethnicity and class, in order to define, explain and influence collective action in the frame of particular nation-building projects. After reviewing the possibility of talking of a ‘literature of African independences,’ it is sought to establish the convenience of a ‘bottom-up’ approach to the social classifications involved, understanding them as marks on a scale of identities, rather than discrete conceptual fields. Emphasized here is their ‘practical use’ as a privileged analytical index for the broader universe of African nationalism and its internal struggles. Finally, a small comparative sketch of the divergent possibilities of writing about identities on different scales is presented, drawing upon an illustrative corpus of African writers.

Keywords:
African literatures; social classifications; nationalism

Este artigo estampa em seu título duas formulações que não são muito usuais nos debates sobre a literatura africana, seja no campo da história, seja no dos estudos literários. Vou começar, portanto, por tentar explicitar o que pretendo dizer com “escalas da identidade” e “literatura africana das independências”.

No conjunto dos esforços para estabelecer uma periodização da literatura africana que vêm sendo empreendidos ao longo das últimas décadas, há um consenso de que os esquemas de periodização “clássicos”, ou seja, aqueles originalmente propostos para a literatura europeia, não são aplicáveis ao espaço africano - diferentemente do Brasil, em que se assume, até que se complete a formação de uma literatura nacional, um processo de sucessivas importações, mais ou menos adaptativas, dos movimentos literários europeus. Outro consenso tácito é o pressuposto de que o principal (e por vezes o único) aspecto histórico a determinar a transformação temática e estilística da literatura produzida na África, e, por consequência, suas diversas fases, foi a dominação colonial europeia.

De modo geral, reconhece-se a existência de uma literatura colonial sobre a África, escrita por europeus ou colonos, em que a exotização das paisagens e dos povos africanos constitui o pano de fundo para aventuras prometeicas, em que protagonistas brancos perseveram diante de uma gama extensa de adversidades para alcançar um objetivo moral maior, o qual muitas vezes envolve salvar os africanos de si mesmos e de sua própria suposta barbárie, justificando de passagem a necessidade do jugo colonial. Essa fase, a que corresponderia historicamente um silenciamento imposto aos africanos pelo roubo de sua soberania política representado pela dominação europeia, seria seguida de uma literatura anticolonial, já agora escrita por africanos e caracterizada pela reiterada denúncia do colonialismo, enfocando especialmente a aguda contradição entre sua representação metropolitana como esforço civilizatório desinteressado e a brutalidade empírica da exploração da força de trabalho e dos recursos naturais africanos em proveito próprio. Outra característica seria um forte impulso nativista, orientado para a celebração das realidades africanas do passado e sua recuperação como alternativas de valores sociais e civilizatórios para contrapor à predação inescrupulosa e cínica a que se resumia a contribuição europeia ao desenvolvimento do continente. A essa fase corresponderia uma “retomada da iniciativa”, com a conscientização progressiva por parte dos africanos da necessidade de recuperar o controle político de sua própria história, coincidindo com a emergência do nacionalismo moderno, inicialmente como movimento intelectual, mas logo em seguida reconvertido em movimento de massas que iria encampar os embates, políticos ou militares, que levariam à emancipação (p. ex., Chaves, 1999CHAVES, R. A formação do romance angolano: entre intenções e gestos. São Paulo: Edusp, 1999.; Bittencourt, 1999BITTENCOURT, M. Dos jornais às armas: trajectórias da contestação angolana. Lisboa: Vega, 1999., 2010BITTENCOURT, M. “Estamos juntos”: o MPLA e a luta anticolonial (1961-1974). Luanda: Kilombelombe, 2010. 2v.; Hamilton, 1984HAMILTON, R. Literatura africana: literatura necessária. Lisboa: 70, 1984. 2v.; Venâncio, 1992VENÂNCIO, J. C. Literatura e poder na África lusófona. Lisboa: Ministério da Educação/Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1992.).

Quanto ao que vem depois, há controvérsias. Nos manuais, predomina a noção de que a literatura escrita após a obtenção da independência deve ser classificada como “pós-colonial”, conferindo ao termo um sentido primário fundamentalmente cronológico (Boehmer, 2005BOEHMER, E. Colonial and postcolonial literature: migrant metaphors. 2. ed. Oxford: Oxford University, 2005.; Riesz, 2007RIESZ, J. De la littérature coloniale à la littérature africaine: prétextes - contextes - intertextes. Paris: Karthala, 2007.). Já outros autores reservam o termo para um sentido de orientação temática, localizando-o em um momento posterior, no qual os escritores, um pouco por todo o continente, foram abandonando a euforia da independência e começaram a retratar criticamente os regimes políticos e as sociedades dos novos países saídos da dominação europeia (Appiah, 1997APPIAH, K. A. Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.; Mata, 2003MATA, I. A condição pós-colonial das literaturas africanas de língua portuguesa: algumas diferenças e convergências e muitos lugares-comuns. In: LEÃO, A. V. (Org.). Contatos e ressonâncias: literaturas africanas de língua portuguesa. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003. p. 43-72., 2007MATA, I. A literatura africana e a crítica pós-colonial: reconversões. Luanda: Nzila, 2007.). Ainda dentro desse campo e avançando da literatura para o conjunto da produção intelectual, alguns parecem entender o “pós-colonial” como a contraparte periférica do “pós-moderno”, apontando suas íntimas relações teóricas e suas homologias como tentativas de superação da modernidade ou de sua apropriação crítica (Young, 1990YOUNG, R. White mythologies: writing history and the West. Londres/Nova York: Routledge, 1990. ; Ahluwalia, 2001AHLUWALIA, P. Politics and post-colonial theory: African inflections. Londres/Nova York: Routledge, 2001.). Por sua vez, alguns autores demonstram reticências quanto ao rótulo, quer admitindo sua conveniência, mas caucionando contra o que consideram ser seus limites (Irele, 2001IRELE, A. The African imagination: literature in Africa & the black diaspora. Oxford: Oxford University Press, 2001.), quer preferindo outras caracterizações, como a recuperação do “neocolonial” proposto por Nkrumah na década de 1960 (Henriques, 2014HENRIQUES, I. C. Colónia, colonização, colonial, colonialismo. In: SANSONE, L.; FURTADO, C. (Org.). Dicionário crítico das ciências sociais dos países de fala oficial portuguesa. Salvador: EDUFBA, 2014. p. 45-58.) ou a adesão ao mais recente “descolonial” (Ndlovu-Gatsheni, 2013NDLOVU-GATSHENI, S. J. Empire, global coloniality and African subjectivity. Nova York: Berghahn, 2013.).

Como em todo enquadramento macroexplicativo, há inúmeros problemas que podem ser apontados nesses esforços de periodização. Em primeiro lugar, há em diversas partes da África tradições literárias autóctones muito anteriores à chegada dos europeus, para não falar dos inúmeros gêneros de narrativas orais ficcionais, amplamente disseminados por todo o continente (Munro-Hay, 2001MUNRO-HAY, S. A sixth century Kebra Nagast? Annales d’Ethiopie, v. 17, n. 1, p. 43-58, 2001.; Mafundikwa, 2006MAFUNDIKWA, S. Afrikan alphabets: the story of writing in Afrika. Enfield: Mark Batty, 2006.; Finnegan, 2014FINNEGAN, R. Oral literature in Africa. Cambridge: Open Book, 2014.). A solução ad hoc de encaixotar todas essas contribuições díspares, que podem distar entre si vários séculos, sob o rótulo de “literatura pré-colonial”, apenas ajuda a desnudar o viés eurocêntrico embutido no esquema. Em segundo lugar, e articulado com o anterior, há a questão do idioma no qual a literatura africana é produzida. A narrativa-padrão toma como dado o uso da língua colonial como veículo literário - quando muito, tematiza-se o processo de “apropriação” pela literatura da língua do colonizador e sua transformação em arma cultural a ser mobilizada contra a dominação (p. ex., Leite, 2004LEITE, A. M. Pós-colonialismo: um caminho crítico e teórico. In: Literaturas africanas e formulações pós-coloniais. 2. ed. Maputo: Universidade Eduardo Mondlane, 2004. p. 5-46.), de forma paralela à noção, subjacente a boa parte da historiografia, da apropriação dos ideais da filosofia política europeia contemporânea, em especial a nação e o Estado racional-burocrático, pelo nacionalismo africano (Mata, 2006MATA, I. Da língua à cultura: alguns aspectos da problemática linguística nos Cinco (Angola, Cabo Verde, Moçambique, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe). Quo vadis, Romania? Zeitschrift für eine aktuelle Romanistik, n. 27, p. 38-45, 2006.; Prah, 2008PRAH, K. K. Anthropological prisms: studies on African realities. Cape Town: Centre for Advanced Studies of African Society, 2008.; Sow e Abdulaziz, 2010SOW, A. I.; ABDULAZIZ, M. H. Língua e evolução social. In: MAZRUI, A.; WONDJI, C. (Org.). África desde 1935. Brasília: Unesco, 2010, p. 631-662. (História Geral da África, VIII).).2 2 Outra questão interessante, mas que escapa pela tangente da linha de argumentação aqui desenvolvida, é a definição da literatura colonial e os tropos a ela associados como uma fase ou um período. De fato, a literatura colonial permaneceu popular no Ocidente durante todo o século XX, tendo se estendido para o cinema desde o início dos filmes sonoros, na década de 1930, e ali estabelecido um nicho de mercado extremamente bem-sucedido, como demonstra a ampla circulação de obras recentes como O jardineiro fiel ou O último rei da Escócia.

O problema da língua literária na África está intimamente relacionado com os enquadramentos espaciais nos quais essa literatura circula. É patente que, apesar de sua concordância geral, a maior parte das periodizações é proposta para os espaços linguísticos que correspondem aos antigos impérios coloniais. O próprio termo “pós-colonial” surgiu na Austrália, no contexto da crítica literária de língua inglesa, para abarcar as produções originadas em todos os quadrantes do extinto império britânico, que estabeleciam um diálogo crítico e tenso com a herança colonial (Ashcroft, Griffiths e Tiffin, 1989ASHCROFT, B.; GRIFFITHS, G.; TIFFIN, H. The empire writes back: theory and practice in post-colonial literatures. Londres: Routledge, 1989.). Isso aponta para um padrão de circulação dominante, em que a produção literária africana não se completa nos territórios dos novos países saídos da dominação, mas requer uma validação pela crítica nas antigas potências (ou em seus substitutivos americanos, como os Estados Unidos ou o Brasil), e encontra ali também boa parte de seu público leitor. Isso termina por conformar uma extraversão estrutural da literatura africana (Appiah, 1997APPIAH, K. A. Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.; Irele, 2001IRELE, A. The African imagination: literature in Africa & the black diaspora. Oxford: Oxford University Press, 2001.; Moraes, 2010MORAES, A. M. R. Notas sobre o conceito de “sistema literário” de Antonio Candido nos estudos de literaturas africanas de língua portuguesa. Itinerários: Revista de Literatura, v. 30, p. 65-84, 2010.) - ainda que, obviamente, não se possa reduzi-la apenas a esse aspecto de sua mercadização. Não deixa de ser notável a esse respeito mais um paralelo entre o campo da crítica literária e o da ciência política, entre as teses da incompletude da implantação de um sistema literário e do próprio Estado-nação nesses países.3 3 Essas correspondências teóricas entre literatura e história não são fortuitas, nem a rigor exclusivamente europeias em sua ancoragem enunciativa. Elas podem ser lidas no quadro da crítica de Mbembe (2001), para quem as formas africanas de autoinscrição têm sido estruturadas (e limitadas) pela articulação do significado canônico de três eventos: a escravidão, o colonialismo e o apartheid, que em conjunto impõem uma grande narrativa centrada nas noções da alienação (e divisão do self), da expropriação material e da degradação histórica (perda da autonomia).

Tomar a língua colonial como fator primordial a determinar a constituição dos corpora a serem analisados em termos teóricos implica obliterar liminarmente o conjunto de discursos literários que escapavam ao circuito cultural no qual a colonização europeia na África progressivamente se desenvolveu ao longo do século XX, reforçando e validando a tríade dialética constituída pelos termos “colonial”, “anticolonial” e “pós-colonial”. Ao mesmo tempo, ao subsumir a literatura produzida no continente africano em um espaço geográfico mais amplo, cujos contornos são determinados pela história de sua comum subordinação a dada potência colonial europeia, opera-se certa diluição da condição africana desses discursos e de seus contextos de enunciação, circulação e recepção. Nesse sentido, cabe indicar como interessante um esforço de crítica que busque escapar do enquadramento linguístico e mercadológico imposto pela herança colonial (“anglofonia”, “francofonia”, “lusofonia”) e interrogar o espaço africano em seu conjunto para verificar se e em que medida não estamos perdendo possibilidades analíticas importantes ao nos conformarmos com fronteiras que não foram necessariamente respeitadas pelos atores envolvidos no processo de produção cultural, nos intercâmbios de sentidos que caracterizaram a história do continente africano no decorrer do século XX.

É verdade que as diferentes “eurofonias” criam espaços preferenciais de circulação que não são, ademais, homólogos, mas hierarquicamente dispostos em relação uns aos outros - sendo a expressão em inglês aquela que permite o maior espectro de abrangência, e a escrita em português, o menor. Também é muito mais intenso o fluxo de produtos literários entre francofonia e anglofonia, pela via da tradução, ficando a lusofonia relativamente isolada da circulação mercadológica mais ampla da produção africana. Essa disposição produz uma série de efeitos sobre a própria produção intelectual nos diversos espaços continentais, que não poderão ser desenvolvidos aqui. Em todo caso, é preciso ressalvar que isso não bloqueia completamente a circulação cruzada nem é suficiente para constituir, ao redor de cada língua colonial, um espaço completamente autônomo que subsuma o enquadramento africano mais amplo.

Essas considerações pretendem dar conta do “africano” na “literatura africana das independências”, mas falta, por certo, indicar em que medida penso poder agrupar uma multiplicidade de esforços literários em um conjunto autônomo, e por que acredito que “as independências” sejam o melhor termo para defini-lo. Como já se pode supor, estou aqui me aproximando dos autores que reservam o termo pós-colonial, no contexto africano, para um momento de virada crítica em relação aos regimes políticos e sociedades construídos nas duas primeiras décadas de autogoverno, cuja cronologia precisa varia conforme os diversos países e regiões do continente. Os primeiros sinais desse movimento, extemporâneos, surgiram já no fim da década de 1960, mas foi a partir da década de 1980 que ele pôde ser decididamente percebido como um processo coletivo que logo se tornaria dominante no conjunto da produção literária (Appiah, 1997APPIAH, K. A. Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.).

Segundo esse ponto de vista, o “pós” do pós-colonial representa um impulso de superação de uma construção simbólica previamente hegemônica sobre a realidade empírica e sobre as possibilidades históricas dos países africanos recém-independentes. Isso confere à literatura produzida na África durante as décadas anteriores uma orientação de conjunto, ou seja, implica que a “literatura africana das independências”, como proponho chamá-la, não pode ser utilizada apenas como um termo de conveniência para designar um período de transição entre a “literatura anticolonial” e a “literatura pós-colonial”, nem como um rótulo fundamentalmente cronológico - de fato, importa menos que determinadas obras tenham sido escritas antes da data da emancipação política, e mais seu enraizamento no contexto político e intelectual das independências africanas, entendidas coletivamente. Quero defender que havia, de fato, certo espectro de preocupações temáticas, de experimentos formais, mas também de esforços de institucionalização, que em seu conjunto apresentam uma forte unidade, espraiando-se por todo o espaço continental, ainda que em tempos e ritmos diversificados.

Há, sem dúvida, certa continuidade da literatura das independências em relação ao que costuma ser denominado “período anticolonial”, no acerto de contas com o significado das estruturas sociais e culturais impostas pela colonização. Da mesma forma, ela se adianta em boa medida às preocupações identitárias, à insatisfação com os novos regimes e à crítica social que posteriormente seriam trazidas para o centro do debate. Entretanto, essa produção se destaca ao propor um multifacetado exercício de imaginação de sociedades africanas passadas ou futuras, no quadro institucional da constituição de tradições literárias que pudessem, em cada caso, ser reconhecidas como nacionais. Em outras palavras, há nessa literatura uma forte dominância do nacionalismo, tanto em seu enquadramento geral quanto em termos de projetos nacionais específicos.

Com essas observações, não pretendo afirmar que a produção literária africana das independências seja dotada de homogeneidade ou de uma fundamental concordância. Ao contrário: ainda que fortemente ancorada no projeto nacionalista, ela foi um dos mais instigantes espaços de debate público do século XX. Isso porque o próprio nacionalismo do qual essa literatura era parte integrante estava longe de ser monolítico, sendo atravessado pelas principais tensões globais que estavam então moldando nosso mundo, assim como pelos modos particulares conforme os quais as hierarquias sociais entrecruzadas que caracterizam nosso tempo estavam sendo mobilizadas, questionadas e transformadas nos diversos territórios em vias de se constituir em entidades politicamente autônomas. Muita coisa estava em jogo nas independências africanas, e não apenas para os africanos. Precisamente por isso, abrir um espaço para a investigação da literatura africana das independências pode ajudar a ampliar o campo da pesquisa histórica sobre as relações entre política e cultura no mundo contemporâneo.

Uma investigação nesses termos deve levar em consideração a existência de dois grandes planos ao longo dos quais, nos diversos países africanos, um pouco antes e um pouco depois da data da independência política, deu-se a emergência de uma literatura nacional - um primeiro, concernente às representações coletivas veiculadas nas obras literárias (como o caráter do povo ou dos povos, o sentido de sua história, as perspectivas de futuro), e um segundo, relacionado com o processo de legitimação das próprias pretensões nacionalistas, que circulava em torno da defesa da existência empírica de uma especificidade nacional na literatura que era produzida naquele lugar e naquele momento. Nesse segundo plano, é preciso considerar os esforços de institucionalização, tais como congressos literários, publicação de coletâneas, fundação de editoras e associações nacionais de escritores etc. Tanto a construção de representações coletivas quanto a defesa de uma especificidade nacional implicam marcas temáticas e estilísticas nos próprios textos; a utilidade de separar esses dois planos para fins analíticos consiste no fato de que assim se torna mais fácil identificar o que estou chamando de “escalas da identidade”.

Neste ponto, peço licença para fazer uma digressão. Antes de mais nada, devo reconhecer que a análise de relações entre a construção nacional e a escrita literária não é novidade. Desde meados da década de 1980, alguns estudos vêm apontando a íntima relação entre a constituição de um mercado estável de leitores em determinada língua vernácula e os efeitos práticos da imaginação coletiva de uma ampla entidade anônima que recebeu historicamente o nome de “nação”. Esse trajeto interpretativo vem conferindo ao conceito uma progressiva ênfase em seu aspecto narrativo, contrariando o entendimento “clássico”, que conceituava a nação como uma entidade substantiva (Anderson, 2008ANDERSON, B. The spectre of comparisons: nationalism, Southeast Asia and the world. Londres/Nova York: Verso, 1998. {1985ANDERSON, B. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008{1985}.}; Bhabha, 1990BHABHA, H. K. (Ed.). Nation and narration. Londres: Routledge , 1990.; Chatterjee, 1995CHATTERJEE, P. Nationalist thought and the colonial world: a derivative discourse?. 2. ed. Minneapolis: University of Minnesota, 1995.).

Para o caso da literatura africana das independências, é particularmente relevante o debate que vem sendo travado entre Benedict Anderson e Partha Chatterjee acerca das relações entre as narrativas da nação, por um lado, e a ação do Estado sobre as populações a ele submetidas, por outro. Importa ainda a contenda sobre a posição específica que devem ocupar na teoria os nacionalismos anticoloniais. As formas assumidas pela nova “comunidade imaginada” em cada um dos territórios coloniais africanos em busca da emancipação política são decalcadas de projetos que podem ser claramente identificados no espectro do pensamento político da época. Pode-se ler o romance como o gênero-chave da imaginação da nação no continente africano tanto quanto na Europa. De forma semelhante, o surgimento e a disseminação (mais ou menos conturbados) de jornais locais estão claramente relacionados com esse momento de construção de novas identidades coletivas. Por fim, a importância, para essa literatura e para o nacionalismo em geral, da participação de funcionários nativos no Estado colonial e sua circulação ao longo do território do império também é patente (Anderson, 1998ANDERSON, B. The spectre of comparisons: nationalism, Southeast Asia and the world. Londres/Nova York: Verso, 1998., 2008ANDERSON, B. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008{1985}. {1985ANDERSON, B. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008{1985}.}). Por outro lado, a contradição estrutural inerente ao discurso nacionalista no mundo colonial pode ser identificada sem hesitação na África, na forma como a modernização, sendo o principal fundamento da filosofia política sobre o qual a dominação europeia estava baseada, embasava também os discursos nacionalistas que procuravam superá-la (Chatterjee, 1993CHATTERJEE, P. The nation and its fragments: colonial and postcolonial histories. Princeton: Princeton University, 1993., 1995CHATTERJEE, P. Nationalist thought and the colonial world: a derivative discourse?. 2. ed. Minneapolis: University of Minnesota, 1995.).

Entretanto, há algumas particularidades na literatura africana das independências que eludem as explicações oferecidas no debate entre esses dois autores, baseadas em outros contextos empíricos, respectivamente a Europa do século XVIII e a Índia dos séculos XIX e XX. Na África das independências, a questão da escala da “comunidade imaginada” impõe-se de forma aguda como um problema. Embora a “nação” seja quase sempre o referente privilegiado nos discursos políticos formais, o mesmo não ocorre na literatura, em que se pode observar a tendência a um deslizamento da nação para o grupo étnico, por um lado, ou para a “África” (entendida como a terra dos homens negros), por outro. Em outras palavras, os lugares físicos e sociais constituídos pela literatura das independências são mediados não apenas pela categoria narrativa da nação como também, alternativa ou simultaneamente, por duas outras categorias: raça e etnia. A pertinência dessas duas categorias, às quais se recorreu exaustivamente no decurso dos últimos séculos de conhecimento europeu sobre o continente africano, não chega a surpreender (Amselle e M’Bokolo, 2014AMSELLE, J.-L.; M’BOKOLO, E. (Org.). Pelos meandros da etnia: etnias, tribalismo e Estado em África. Mangualde: Pedago; Luanda: Mulemba, 2014{1985}. {1985}; Mudimbe, 2013MUDIMBE, V. Y. A invenção de África: gnose, filosofia e a ordem do conhecimento. Mangualde: Pedago; Luanda: Mulemba , 2013{1988}. {1988}), embora o grosso das análises da literatura nacionalista tenha, até agora, elidido mais ou menos sistematicamente as implicações teóricas da questão.

Neste artigo, proponho tomar nação, etnia e raça como categorias correlatas de descrição, explicação e ação social, cujas oposições mútuas e eventuais interpenetrações são especialmente relevantes para o estudo da história africana recente. Além disso, pretendo observar como essas categorias interagem com outra, que as atravessa de modo tenso, sendo alternativamente afirmada e negada: a classe. Nesse sentido é que me refiro a “escalas” - em vez de tentar definir de partida e em termos teóricos os conteúdos que supostamente deveriam caracterizar raça, ou etnia, ou nação, ou classe, procuro entender essas categorias como pontos em um espectro aberto de diferentes opções referenciais de identidade e mobilização coletivas. Em outras palavras, trata-se de perceber como essas categorias foram mobilizadas simbolicamente por diferentes atores, no contexto de um mesmo campo de disputas políticas, e como elas foram continuamente redefinidas por esse “uso prático” e necessariamente polissêmico. Quando um autor se refere aos “africanos”, aos “ibos”, aos “angolanos” ou à “negrada”, raramente as fronteiras sociais que regulam o pertencimento a cada uma dessas entidades estão constituídas com recurso exclusivo a uma lógica biológica, ou cultural, ou política, ou econômica - em geral, trata-se de tudo isso, e mais um pouco. E, no entanto, fazia toda diferença conclamar pessoas para a ação coletiva referindo-se a dada escala da identidade, e não a outra. No âmbito da literatura das independências, a opção privilegiada por qualquer uma dessas categorias, feita por autores específicos, para mediar o discurso sobre a mudança social (ou, em outras palavras, o protagonismo da história), pode ajudar a compreender os projetos políticos em disputa durante as décadas das independências para o futuro da África, de suas nações e de seus grupos étnicos.

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Definidos os termos do objeto, proponho um rápido passeio exploratório pelas obras de alguns escritores africanos com o objetivo de produzir um esboço das convergências e divergências entre os projetos políticos e as escalas da identidade mobilizadas por essas obras, comparando seu uso, direto ou indireto, das categorias de nação, etnia, raça e classe. Além disso, pretendo observar como essa problemática se articula com temas, digamos, mais corriqueiros nas análises da literatura no mundo colonial, como, por exemplo, sua atinência ao particularismo ou ao universalismo, a um olhar privilegiado sobre o passado ou sobre o futuro, sua opção pela conservação ou pela superação das lealdades infraestatais e suas expectativas acerca de coletividades supranacionais, continentais ou ainda mais amplas - ou seja, das tensões que Mbembe (2001MBEMBE, A. As formas africanas de auto-inscrição. Estudos Afro-Asiáticos, v. 23, n. 1, p. 171-209, 2001.) atribui alternadamente às duas principais correntes do pensamento africano contemporâneo, que ele classifica respectivamente como nacionalista e nativista.

A forma do artigo permitirá que esse passeio seja feito sem que uma preocupação muito rígida tenha de recair sobre a escolha do corpus, ou assim espero. De fato, selecionei as obras a serem trabalhadas mais a partir de uma relação afetiva construída ao longo dos anos que de uma orientação sistemática. Dessa forma, há uma nítida predominância de autores que escreveram em inglês, oriundos de países relativamente hegemônicos no concerto da política africana contemporânea - um efeito, certamente, da posição dominante da anglofonia nas lógicas de circulação da produção intelectual africana. Todos são homens, em um reflexo da patente desigualdade de gênero vigente na produção intelectual e no mercado editorial do período. Também não incluí nenhum autor que escrevesse em português. Tomei esse caminho por questões de espaço, mas também de ênfase, confiando em que diversos desses autores farão sombra à leitura e proporcionarão oportunidades comparativas, fartamente conhecidos que são do público brasileiro especializado. Finalmente, é preciso dizer que esse passeio não pretende tanto uma demonstração de tudo o que foi dito até agora quanto uma mera sugestão da existência e da relevância de dado objeto e da viabilidade de determinado olhar. Sem dúvida, um corpus mais balanceado em termos da língua de expressão, da origem nacional e de gênero, bem como um tratamento mais extensivo de cada uma das obras, resultaria em um panorama mais vívido e bem-delineado, mas acredito que, mesmo com suas limitações, esse texto tenha uma contribuição a dar.

Antes de prosseguir, cabe uma última caução sobre a relação entre literatura e nacionalismo na África. No Brasil e em Portugal, há uma tendência a sobrevalorizar a importância da produção literária para o sucesso do projeto nacionalista nas antigas colônias portuguesas no continente. Essa tendência é, em parte, fruto da ampla disponibilidade de obras literárias como instrumento para o estudo dos processos sociais, culturais e políticos desses países na contemporaneidade em comparação com outros materiais de pesquisa ou outros produtos culturais mais fugazes. Ao mesmo tempo, ela deriva de uma poderosa construção da memória coletiva, com o envolvimento ativo dos próprios escritores, que fez da apropriação da língua colonial e de sua mudança em instrumento de combate um dos lances fundamentais do mito fundador de seus respectivos países.

O alcance efetivo da literatura escrita em língua colonial na época das independências, foi, em todo o continente, muito baixo - a quantidade de africanos capazes de ler em inglês, francês ou português era irrisória em relação ao total da população que precisava ser mobilizada para as atividades nacionalistas, tanto nos casos de independência “negociada” quanto nos de guerra aberta. Não há dúvida de que a literatura desempenhou um papel de muito menos relevo na mobilização popular e na disseminação de um sentimento nacional do que, por exemplo, programas de rádio, apresentações de teatro popular ou música veiculados nas línguas africanas. Isso, obviamente, não retira importância à análise da literatura das independências, mas exige que ela seja reposicionada no conjunto da produção intelectual e encarada em uma perspectiva menos triunfalista, o que ao fim e ao cabo pode ampliar nossa capacidade de compreendê-la em sua complexidade e de fazer justiça à criatividade de suas construções identitárias.

Dito isso, vamos começar por um contraponto - já proposto por Appiah (1997APPIAH, K. A. Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997., cap. 7) com outra finalidade analítica - entre dois dos mais conhecidos e festejados escritores nigerianos, Chinua Achebe e Wole Soyinka. Embora ambos tratem da relação das sociedades africanas com a dominação colonial de forma sofisticada e em seus significados profundos, e partam igualmente da etnia como escala de identificação coletiva, as orientações a que direcionam o desenvolvimento de seus textos são divergentes.

Na trilogia Things fall apart (1958), No longer at ease (1960) e Arrow of God (1964), Achebe trata o étnico como uma experiência humana particular, mas plenamente significativa e legítima em si mesma: a cultura ibo, da qual o próprio autor provém, é descrita como socialmente dinâmica, com relevo para as disputas de poder e as formas endógenas (mas nunca idílicas) de resolução de conflitos.4 4 O primeiro e o último desses romances foram traduzidos para o português há um bom tempo. Arrow of God foi publicado em Lisboa pelas Edições 70, em 1979, como A flecha de Deus. Já Things fall apart recebeu o título de O mundo se despedaça, em uma edição de 1983 da Ática. No longer at ease só foi traduzido em 2013, como A paz dura pouco, pela Companhia das Letras (que também lançou edições de O mundo se despedaça e A flecha de Deus, respectivamente em 2009 e 2011). Em 2008, saiu uma edição portuguesa de Things fall apart, intitulada Quando tudo se desmorona, pela editora Mercado de Letras. Outros livros do autor estão disponíveis em tradução. Para Achebe, o passado colonial com o qual é preciso se haver é o lugar de um confronto desigual, em que as tentativas ibo de adaptação e de resistência à imposição da dominação e à penetração de uma nova religião e de novos padrões sociais são extremamente plásticas e sofisticadas. Entretanto, ao fim e ao cabo, essas estratégias não são capazes de evitar um encontro colonial verdadeiramente catastrófico para as formas locais de organização social e política. Se o administrador colonial é retratado como alguém fundamentalmente ignorante do que realmente está acontecendo nas sociedades sob seu jugo, refém de esquemas interpretativos simplistas e presunçosos, o resultado da dominação permanece sendo um impasse no qual a resistência africana esbarra, e diante do qual a cultura étnica se desagrega e despedaça, sendo forçada a se transformar profundamente e a se submeter aos ditames de uma ordem exógena, para não ser completamente destruída.

Na peça teatral Death and the king’s horseman (2003 {1976}), Soyinka compartilha com Achebe o retrato do administrador colonial como um tolo arrogante que não faz a mínima ideia do que realmente acontece sob seu próprio nariz.5 5 A peça reelabora, em inglês, um enredo bastante frequentado pelo teatro popular nigeriano em língua iorubá (Soyinka, 2003 {1976}; Barber, 2003). Até onde tenho notícia, a obra não foi traduzida para o português. A única tradução de Soyinka que conheço é a de The lion and the jewel, peça escrita e encenada em 1959, traduzida pela Geração Editorial em 2012 como O leão e a joia. Mas o tratamento da etnicidade vai em outra direção: interessa a Soyinka universalizar a cultura iorubá, da qual também provém, demonstrando sua capacidade de expressar, de modo complexo e significativo, os dramas humanos de sempre e de toda parte: o medo diante da morte, a coerção da tradição, as responsabilidades do poder, a conflitualidade inerente a todas as sociedades humanas.

Os iorubás de Soyinka estão entre os tiranos de Eurípedes e os reis de Shakespeare, e é exatamente por meio da irredutibilidade de sua pertença étnica que sua universalidade se faz mais poderosa. O encontro colonial, por trágico que tenha sido, não passa de pano de fundo, um interlúdio no desenvolvimento histórico de uma civilização africana autônoma, que prosseguirá. As marcas dessa dominação não são percebidas como de natureza particularmente distinta das marcas deixadas por outros eventos macro-históricos pelos quais as sociedades africanas milenarmente foram afetadas, e os valores profundos iorubás são irredutíveis mesmo à mais bem acabada formação universitária em solo inglês. Com efeito, Soyinka expõe a via da “aculturação” - talvez o problema central para Achebe - em uma caricatura sem piedade: os soldados africanos a serviço da administração europeia, aliados, submissos e hostilizados pela população, falam um inglês macarrônico, enquanto o cavaleiro do rei de Oió e as mulheres do mercado se expressam, em uma demonstração de cortesia aristocrática, por meio de metáforas e provérbios iorubás - no mais perfeito inglês.

Aqui, a própria ideia de tragédia, presente na caracterização do encontro colonial e fortemente ancorada sobre a tradição que vai do drama ateniense do século V a.C. ao teatro inglês do século XVI, tem de ser remetida ao questionamento da pretensão de propriedade europeia sobre a Antiguidade e seus legados culturais. Não se trata, entretanto, nem de um caminho diopiano, no sentido de disputar a paternidade última da civilização clássica, nem de uma vereda relativista em busca de uma equiparação civilizatória, a exemplo das homologias construídas por Marcel Griaule na década de 1930 entre a cosmogonia dogon e as mitologias grega e suméria. O que Soyinka parece postular está mais próximo das reflexões de um W. E. B. du Bois ou de um Léopold Senghor sobre a existência de uma contribuição especificamente africana para a construção de uma civilização universal. Entretanto, ao contrário desses autores, não é na raça que essa contribuição vai ser ancorada, mas na etnia.

Tanto Achebe quanto Soyinka partem do étnico como lugar de articulação de uma identidade coletiva a partir da qual se posicionar diante do significado da dominação colonial europeia e em função da qual pensar futuros possíveis para as sociedades africanas. Para ambos, o étnico, como lugar da cultura e da mundividência, seja ele tomado em sua especificidade ou em sua universalidade, é o lugar primário da identidade coletiva e, por conseguinte, da articulação de qualquer discurso africano. Já o escritor ganês Ayi Kwey Armah recusa taxativamente o étnico como uma distração e parte em busca de uma unidade africana esquecida, projetada sobre o passado longínquo, em The healers (1979).6 6 Apesar de ter escrito diversos romances, desde 1968, e de ser um ativo dinamizador do circuito editorial africano, não parece haver uma única tradução de Ayi Kwei Armah para o português.

Assim como em Soyinka, o encontro colonial não é representado como particularmente diferente, em sua natureza, de outros grandes processos históricos vivenciados pelos africanos. Ainda que marcante, o jugo colonial não seria mais que a culminação de um processo milenar de migrações e divisões sucessivas de um único povo negro (vindo de um “leste” que poderia muito bem ser o Egito) que perdeu a memória de sua origem comum e se deixou arrastar para guerras fratricidas. Como contraponto, Armah condensa ficcionalmente o corpus de conhecimento africano (extremamente fragmentário, ou assim descrito pelo conjunto da produção etnográfica sobre o continente), na forma de uma tradição iniciática unitária cuidadosamente escondida dos olhos europeus, transmitida oralmente, ligada ao conhecimento da natureza e do poder de previsão sobre seus fenômenos, com especial ênfase no herbalismo, mas que também seria o último bastião de uma filosofia existencial ancestral da recusa do poder e da manipulação do outro. Os muitos rituais específicos observáveis e identificáveis com culturas étnicas do passado recente, por sua vez, não seriam mais que meras reminiscências, formas preservadas de significados esquecidos, tendo perdido sua orientação colaborativa original para assumir cada vez mais uma disposição competitiva.

Em uma posição que poderíamos chamar de “anarcoafrocêntrica”, Armah enfatiza a correlação entre a realeza africana e a escravidão, e aponta muito duramente a colaboração das aristocracias reinantes e escravistas com os novos senhores coloniais que se instalam por meio da força, mas também da cooptação e do suborno. Para ele, a origem dos males contemporâneos do continente não pode ser atribuída a elementos exteriores, mas a uma tendência interna do desenvolvimento das sociedades africanas, de estratificação e diferenciação progressivas, que teria sua origem no uso político do conhecimento e a consequente restrição à sua livre circulação no tecido social, e na instituição da escravidão de corte, que teria possibilitado uma expansão da capacidade de dominação dos Estados sobre as populações africanas.

Se esse longo processo de fragmentação foi o fator determinante da incapacidade do continente africano de resistir à imposição da administração colonial, por outro lado é a própria realidade dessa nova situação que poderia permitir, para Armah, uma recuperação da unidade africana perdida, a partir da experiência comum de um novo tipo de opressão e do enfraquecimento das estruturas de poder dos Estados africanos preexistentes. A “cura” estaria no retorno radical ao igualitarismo e no acerto de contas dos africanos com suas próprias opções políticas na longa duração. Mas, curiosamente, é o administrador colonial britânico (com base em sua prerrogativa de justiça universal em crimes de morte) quem assume o papel de deus ex machina para salvar os bons e punir os maus, no desfecho da trama.

Entre as obras em análise, The healers é certamente aquela mais diretamente relacionável com a chamada “tese comunitária” - proposição corrente nos discursos políticos nacionalistas africanos das décadas de 1950 a 1970, segundo a qual as sociedades tradicionais no continente estavam orientadas para um ethos coletivista, sendo o individualismo uma interpolação exógena e recente. Mas há importantes desacordos entre Armah e os nacionalistas que defendiam essa tese, como Kaunda e Nyerere (e mesmo Nkrumah, até sofrer o golpe de Estado em 1966). Para esses, o coletivismo “tradicional” das sociedades africanas implicava a virtual ausência de conflitos e de diferenciação social e significava particularmente a inexistência de classes e de luta de classes. Além disso, essa representação comunitária era tida como válida para a maior parte das zonas rurais africanas contemporâneas (ou seja, para quase toda a África), sendo a missão do nacionalismo precisamente a de impedir a emergência de uma sociedade de classes, muitas vezes por meio de regimes de partido único que lidavam muito mal com o dissenso político. Dificilmente Armah concordaria com essa representação da África “tradicional” nos tempos do escravismo e do colonialismo, para ele momentos profundamente marcados pelo exercício do poder de elites descomprometidas com as populações sob seu governo. Mas há ainda outra discrepância importante: para a formulação canônica da tese comunitária, o lugar do exercício do coletivismo é precisamente o grupo étnico, ou a “tribo”, como se dizia então. Já para Armah, a etnia é precisamente o resultado da fragmentação histórica do povo negro, que diluiu o ethos igualitário e coletivista original; o lugar de enunciação dos discursos e a escala de imaginação de um futuro coletivo viável só podem ser a raça.

Mas raça e etnia não eram as únicas possibilidades de convergência para projetos de unidade diante da opressão. Em Remember Ruben (1974), do camaronês Mongo Beti, e em Petals of blood (1978), do queniano Ngũgĩ wa Thiong’o, nenhuma unidade racial ou étnica é evocada.7 7 Remember Ruben foi traduzido por José Saramago para o português, mantendo-se o título original na edição de 1983 da Editorial Caminho. Do mesmo autor, as Edições 70 publicaram, em 1979, Le pauvre Christ de Bomba, como O pobre Cristo de Bomba. Petals of blood foi publicado também em 1979 pelas Edições 70 como Pétalas de sangue, em uma tradução muito irregular. A Editorial Caminho publicou em 1980 uma tradução de Weep not child, de 1964, como Não chores, menino. O romance A grain of wheat, de 1967, foi recentemente publicado no Brasil (2015) como Um grão de trigo pela Alfaguara. Após 1980, Ngũgĩ wa Thiong’o passou a escrever em sua língua natal, o gĩkũyũ, e dessas obras não há tradução para o português. Os motivos da mudança linguística estão relacionados precisamente com a tentativa de reverter a extroversão estrutural da literatura africana que foi apontada acima. A isso se seguiu um instigante debate com Chinua Achebe (Achebe, 1975; Thiong’o, 1986). Assim como no romance de Armah, tanto os protagonistas quanto seus adversários são africanos negros, em contextos neocoloniais, antes e depois da independência política. Nesses dois casos, entretanto, o protagonismo tende a um coletivo, mesmo havendo um ou dois personagens individuais em torno dos quais a narrativa é tecida. E, mais importante, a origem étnica e a atribuição racial não servem para unir esse grupo, muito pelo contrário; os ambientes em que a ação se desenrola são multiétnicos e por vezes plurirraciais - é a uma identidade de classe compartilhada que se recorre nessas obras, o que as aproxima do romance pioneiro Mine boy (1946), do sul-africano Peter Abrahams, em que se examina a possibilidade de um sindicalismo multirracial sob uma liderança da maioria negra na África do Sul em vias de consolidar diversas medidas legais de segregação no sistema de apartheid.8 8 Mine boy foi publicado pelas Edições 70 como O rapaz da mina, em 1980. Até onde sei, essa é a única tradução de Peter Abrahams para o português. Devo confessar que inicialmente tive dúvidas em incluir esse romance na análise, dada sua anterioridade em relação às demais obras citadas. Entretanto, optei por fazê-lo por considerar “as independências” como um processo mais longo e complexo que a simples operação de transferência de soberania. Não é demais lembrar que, um ano antes da primeira edição de Mine boy, realizava-se em Manchester o V Congresso Pan-africano, que reuniu um bom número de intelectuais e políticos que se tornariam, nas duas décadas seguintes, os primeiros governantes soberanos de seus respectivos países. Além disso, o romance de Abrahams atesta a relevância persistente da classe e suas articulações com raça e outras escalas da identidade — o que considero um dos eixos constitutivos do quadro geral do debate público africano a que pretendo me referir.

Entre Mine boy e Remember Ruben ou Petals of blood, há 30 anos e um contexto histórico muito discrepante, mas o exercício ficcional de Peter Abrahams se orienta de modo inequívoco para a busca de um caminho para a emancipação da maioria da população do país, sendo o regime de autogoverno conferido pela Coroa britânica à minoria branca da África do Sul, em 1921, caracterizado a partir de traços marcadamente coloniais. O romance propõe uma série de deslocamentos identitários por meio das fronteiras que estruturavam a sociedade sul-africana de meados do século XX, em particular a raça e a distinção urbano-rural, a começar pela escolha de um protagonista branco, de origem urbana, operário das minas que sustentaram o crescimento econômico da África do Sul desde o século XIX. Seu dilema será o de optar por uma identificação coletiva com os demais trabalhadores, em sua imensa maioria negros e de origem rural, ou com os capatazes e gerentes, necessariamente brancos. O caminho do sindicalismo aproxima Mine boy do neorrealismo europeu canônico, em um momento em que havia muito pouca produção literária africana circulando para se estabelecer um diálogo interno mais denso. Ainda assim, Abrahams não deixa de apresentar questões específicas ao problematizar a necessidade de trabalhadores brancos se submeterem a uma liderança negra como único caminho para a emancipação coletiva e para a construção de uma identidade nacional “por baixo”.

Em Petals of blood, por sua vez, apresentam-se de forma positiva personagens africanos de ascendência indiana, visibilizando uma parcela minoritária, mas muito significativa, da população africana em toda a África oriental e austral. Enraizada há séculos ou décadas, conforme os distintos espaços, essa parcela da população costuma ser excluída das formas canônicas de imaginação coletiva, tanto nos discursos políticos quanto na produção intelectual mais abrangente, e de tempos em tempos serve de bode expiatório das tensões sociais, sendo publicamente hostilizada e apontada como oportunista, exploradora e parasitária por seu papel no comércio varejista popular, das grandes cidades às pequenas aldeias do interior.

Para Thiong’o, o pertencimento à nação será dado não por qualquer direito de nascimento, mas pelo comprometimento com um projeto de emancipação que não se esgote na formalidade dos estatutos jurídicos, apontando para a conquista de uma autonomia em seu sentido profundo, de produção e distribuição compartilhada das riquezas e da própria vida - e o personagem de ascendência indiana, de quem todos desconfiam, se mostrará afinal mais digno de ser integrado a um pertencimento coletivo que o abastado pastor evangélico negro, de quem todos esperam um apoio e um acolhimento que jamais virá. Ao contrário, esse personagem epitomiza o desprezo e o medo nutrido pela burguesia compradora africana em relação à maioria esmagadora da população, camponesa e proletarizada ao longo da dominação colonial, vista como uma ameaça a seus esforços de acumulação.

Em Petals of blood, o locus da identidade é a pequena aldeia do interior do Quênia que se organiza para ir à capital exigir sua quota-parte das benesses da modernidade prometidas durante a luta de libertação, mas que é sistematicamente excluída das decisões sobre suas próprias vidas e sobre a terra que habitam e trabalham, para terminar “contemplados” por um projeto de desenvolvimento na forma de um empreendimento turístico voltado para o mercado europeu, que enriquece os novos administradores do Estado independente e seus parceiros privados, às custas da proletarização e da favelização dos antigos moradores. Já em Remember Ruben, a aldeia do interior mantém com a gigantesca favela da capital uma relação intrínseca, de espelho, mas também de continuidade, uma vez que ambas conformam os polos espaciais e temporais em torno dos quais giram as trajetórias dos principais personagens. Não há, entretanto, nenhuma romantização da aldeia - em ambos os espaços, as pessoas estão submetidas a um poder ilegítimo, exercido por africanos, mas imposto pela antiga potência colonial, que escolhia conforme suas próprias diretrizes os “chefes tradicionais” tanto quanto os partidos e líderes políticos “modernos” que deveriam governar o país independente; em ambos, há também uma insurgência prestes a explodir, logo abaixo da capa adaptativa do cotidiano do trabalho expropriado e extenuante, em torno do qual os personagens constroem seus próprios esquemas, com base na astúcia e na colaboração interessada.

Ao contrário de Thiong’o, no entanto, Beti enxerga na memória coletiva um meio de escapar ao circo neocolonial que nenhum dos dois considera equivalente à verdadeira independência. Não se trata da mesma memória evocada por Armah, de um passado milenar cujos princípios existenciais é necessário retomar, e sim de uma memória da exploração que se articula em temporalidades múltiplas, correndo desde a impostura secular da chefia tradicional até a repressão militar recente ao movimento de libertação e a morte em combate de seus heróis, como o Ruben do título. Para Beti, é o compartilhamento dessa memória, da luta contra a despossessão, durante o regime colonial e depois dele, que confere possibilidade da ação coletiva e uma perspectiva de reviravolta histórica. De forma curiosa, e em um paralelo à resolução da trama em The healers, é também com um deus ex machina que Beti reconcilia a legitimidade da tradição pré-colonial e a legitimidade dos novos tempos do pós-independência na figura do herói proletário da cidade, reconhecido finalmente como o legítimo herdeiro da chefia da aldeia, usurpada em sua infância, em um ato de violência, por um colaborador da dominação francesa.

Do mesmo modo que a tese comunitária incide diretamente sobre o texto de Ayi Kwei Armah, sobre os textos de Mongo Beti e de Ngũgĩ wa Thiong’o incidem os debates em torno da modernização, do desenvolvimento e da dependência. A partir do final da década de 1960, uma abordagem crítica que enfatizava precisamente a continuidade das relações econômicas coloniais nos contextos do pós-independência veio a se afirmar no campo das ciências humanas a partir de contribuições vindas um pouco de todo o antigo mundo colonial, em particular da América Latina e da própria África, a exemplo de Walter Rodney, Samir Amin, Issa Shivji, Archie Mafeje e diversos outros.

Esse movimento foi contemporâneo à emergência do “Terceiro Mundo” como uma identidade coletiva e como um ponto de articulação da ação política em nível global, muito para além do conteúdo primariamente descritivo que os teóricos da modernização haviam dado ao termo quando o cunharam na década de 1950. Sendo essas abordagens teóricas bastante influenciadas pelo pensamento marxista, pode parecer que o afastamento das categorias de etnia e de raça como lugares da identificação coletiva seja uma decorrência óbvia e talvez eurocêntrica. Não me parece, entretanto, que esse seja o caso, e isso por dois motivos principais. O primeiro é que o pensamento marxista originado no mundo colonial, desde as primeiras produções de C. L. R. James, na década de 1930, não era redutível às formulações ditas “clássicas” - incluindo, por exemplo, articulações de classe e raça, ou a recusa em considerar as relações de trabalho na Inglaterra fabril como a definição quintessencial do capitalismo. O segundo é que os intelectuais africanos problematizaram o uso preferencial das categorias de raça e etnia como ferramentas explicativas das realidades sociais e políticas do continente muito antes que seus colegas europeus se insurgissem contra as chamadas “políticas da identidade” - o que não se deu senão na década de 1980, quando movimentos organizados em torno de demandas étnicas e raciais vieram se juntar aos organizados em termos de gênero, mais antigos, ameaçando fragmentar a base social unitária do sindicalismo nos próprios países europeus.

Nas obras aqui tratadas, os principais debates intelectuais travados na África das independências encontram meios de expressão a partir de construções narrativas ficcionais em que o protagonismo da mudança social é alternativamente conferido a grupos que se nomeiam e se definem segundo distintas categorias de identificação, implicando diferentes estratégias de mobilização articuladas a diferentes projetos de sociedades futuras. O recurso a dada categoria é o reflexo de uma tomada de posição política em meio aos diferendos da época, evidenciando uma ampla erudição investida no processo de escrita, ancorada não apenas na tradição literária da língua colonial utilizada, mas também nas ciências sociais e políticas correntes, bem como nos estudos africanos. Essa erudição pouco convencional demanda de nós um significativo esforço de leitura intertextual que nos permita ir além da assunção ingênua de que os escritores exprimem a identidade e a cultura de “seu povo”. Ao contrário, os escritores africanos das independências buscam ativamente participar da criação de “seu povo” a partir de possibilidades identitárias múltiplas e conflituosas, que apontam para operações de inclusão e exclusão de pessoas e grupos no corpo da nação e no interior do Estado, com efeitos potenciais bastante significativos. Sem dúvida, o impacto direto de uma obra literária da época das independências sobre a sociedade que ela interpelava era quase sempre pequeno, como vimos. Mas esse esforço criativo é indiciário de processos mais amplos, em reforço dos quais, ou contra os quais, o texto se posicionava.

***

Neste artigo, busquei determinar a pertinência heurística de refletir sobre um conjunto de textos, que chamei de literatura das independências, e de problematizar a escala das categorias de identificação coletiva mobilizadas por essas obras a partir da observação de que a emergência das literaturas nacionais no continente, um pouco antes e um pouco depois da obtenção da emancipação política, buscou construir lugares de enunciação de um discurso identitário que frequentemente deslizava da nação para a etnia, por um lado, e para a raça, por outro, mantendo-se sempre uma tensão em relação à classe. Da análise de um pequeno conjunto de obras de autores africanos, escritas de 1946 a 1978, em locais como África do Sul, Gana, Nigéria, Quênia e Camarões, busquei apontar as múltiplas possibilidades de articulação entre essas diversas categorias, além de traçar brevemente os vínculos entre as opções de ancoragem identitária engendradas nas obras e os debates intelectuais mais vastos no campo do nacionalismo africano.

É certo que, em parte, esse deslizamento aponta para as condições locais vigentes no período de produção das obras. Por exemplo, no caso da Nigéria, o processo de etnização ocorrera em duas vias, em paralelo à implantação da dominação colonial, desde o início do século XIX - tanto com a promoção e a estandardização, por parte dos próprios africanos, das línguas e das instituições étnicas presentes no território, quanto com o tratamento diferenciado dos distintos grupos pela administração colonial, que atribuía a cada etnicidade determinadas características de temperamento e direcionava de acordo com esses estereótipos as oportunidades disponíveis de formação e emprego. O resultado foi uma independência em formato de Federação de Estados mais ou menos correspondentes aos territórios étnicos, mas com as três maiores etnias desigualmente posicionadas no aparelho estatal e na sociedade independente (os iorubás concentrados nas universidades, os ibos no serviço público e os hauçás no exército). É interessante que, durante a Guerra de Biafra, por meio da qual o Estado de maioria ibo tentou separar-se da Federação, tanto o ibo Achebe quanto o iorubá Soyinka tenham ficado do mesmo lado - o que mostra o quanto a etnia era muito mais uma opção identitária entre outras, em uma escala de opções possíveis, e não uma marca de origem inescapável e determinística.

Outra parte da explicação reside no encaixe dessas obras no campo mais amplo do nacionalismo africano e seus muitos diferendos internos. Se seguirmos a caracterização proposta por Mbembe (2001MBEMBE, A. As formas africanas de auto-inscrição. Estudos Afro-Asiáticos, v. 23, n. 1, p. 171-209, 2001.), podemos facilmente aproximar os textos de Peter Abrahams, Mongo Beti e Ngũgĩ wa Thiong’o do que ele chama de corrente nacionalista, enquanto as obras de Chinua Achebe, Wole Soyinka e Ayi Kwei Armah estariam mais afeitas ao conjunto de discursos classificados como nativistas e centrados na identidade africana. É verdade que Mbembe disseca de forma muito mais aguda a corrente nacionalista e dedica muito pouco espaço a uma análise do pensamento sobre a “condição nativa”. Isso pode estar relacionado com o fato de que, enquanto a produção nacionalista tinha uma forte organicidade em sua atinência aos debates em torno da modernização, do desenvolvimento e da dependência, a ponto de Mbembe defini-la como marxista (o que certamente não correspondia à autorrepresentação de boa parte dos autores envolvidos), a corrente nativista repousava em um conjunto de enunciados muito menos estruturado, além de ser, em termos do volume da produção, muitas vezes mais vasta. Mbembe limita-se a apontar que, para o nativismo africano, a raça (negra) serviu como ponto de convergência da relação tensa entre dois postulados: o da universalidade do pertencimento à espécie humana e o da particularidade da tradição específica.

Embora a análise de Mbembe seja precisa e coloque questões críticas fundamentais principalmente dirigidas às crenças subjacentes ao nacionalismo político - de que resultou uma boa parcela de suas limitações práticas nos anos posteriores à obtenção da independência -, é preciso cuidar para não reforçar uma dicotomia demasiado rígida que costuma opor as propostas de construção do Estado no pós-independência ditas “modernizadoras” daquelas ditas “tradicionalistas”. É preciso ter em mente, em primeiro lugar, de que ambas as correntes definidas por Mbembe se interpenetram na absoluta maior parte dos casos empíricos, não sendo comuns exemplos de pensadores “nacionalistas” que não articulam a tensão entre particularidade e universalidade por meio da raça, nem de “nativistas” que não estejam de alguma forma preocupados com as formas e os meios de construção de um futuro coletivo viável para a África no conjunto, e para seus respectivos países em particular. Em segundo lugar, é preciso perceber que todos os projetos intelectuais que buscaram pensar esse futuro coletivo são inescapavelmente modernizadores, no sentido em que procuraram definir os termos pelos quais as sociedades africanas deveriam se transformar para reassumir sua autonomia política, ainda que baseassem toda a sua concepção de uma sociedade ideal em valores e instituições associados à tradição.

As reflexões feitas aqui são, de certa forma, o delineamento de um programa de pesquisa. Vivemos um momento de forte expansão do campo dos estudos africanos no Brasil, e penso ser o momento de tentar colocar em diálogo duas áreas de concentração que têm liderado as pesquisas nas universidades brasileiras, mas também têm se tangenciado mais que se engajado em uma construção coletiva: a crítica literária e a história política. Nesse sentido, a proposta aqui apresentada tem três orientações principais. A primeira é deixar de considerar como uma fronteira natural o circuito intelectual posto em movimento pelas línguas coloniais, tanto nos estudos da literatura quanto nos da história. Mesmo em análises dos países africanos de língua oficial portuguesa, uma abordagem regional e um quadro geral continental podem ajudar a corrigir certa tendência a recair em uma perspectiva imperial, em que Portugal e suas especificidades assumem um valor explicativo bastante inflacionado. A segunda é entrelaçar de modo mais firme a produção intelectual africana, incluindo a literatura, mas não se restringindo a ela, à história política, ampliando o espaço das formulações africanas tanto como objetos empíricos quanto como intertextos e referenciais teóricos. Isso não precisa significar a eliminação peremptória das referências a autores europeus apenas por serem europeus, mas avaliar de modo mais crítico a relevância das diversas contribuições levando em consideração as realidades africanas e os esforços endógenos de lidar com elas em termos teóricos e reflexivos. A terceira é colocar em suspensão as categorias de análise com as quais invariavelmente partimos para cima das realidades africanas. Raça, nação, classe e etnia, para ficar naquelas das quais tratei diretamente, não são dados intrínsecos do mundo empírico nem podem ser definidas aprioristicamente com base nesta ou naquela referência clássica das ciências sociais, mas são construções coletivas mobilizadas em uma série muito diversa de situações, por um conjunto muito diverso de atores, com finalidades políticas as mais variadas. Elas são a um só tempo de natureza descritiva, normativa e mobilizadora, e os esforços em busca da precisão conceitual que decorrem nos debates acadêmicos representam apenas uma parte no fluxo social circular ao longo do qual elas adquirem significação. No processo de seu uso cotidiano e da produção de seus efeitos, cada uma dessas categorias é transformada e vai ganhando uma polissemia prática e multinível que pode ser, também, objeto de nossas histórias e críticas.

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  • 2
    Outra questão interessante, mas que escapa pela tangente da linha de argumentação aqui desenvolvida, é a definição da literatura colonial e os tropos a ela associados como uma fase ou um período. De fato, a literatura colonial permaneceu popular no Ocidente durante todo o século XX, tendo se estendido para o cinema desde o início dos filmes sonoros, na década de 1930, e ali estabelecido um nicho de mercado extremamente bem-sucedido, como demonstra a ampla circulação de obras recentes como O jardineiro fiel ou O último rei da Escócia.
  • 3
    Essas correspondências teóricas entre literatura e história não são fortuitas, nem a rigor exclusivamente europeias em sua ancoragem enunciativa. Elas podem ser lidas no quadro da crítica de Mbembe (2001), para quem as formas africanas de autoinscrição têm sido estruturadas (e limitadas) pela articulação do significado canônico de três eventos: a escravidão, o colonialismo e o apartheid, que em conjunto impõem uma grande narrativa centrada nas noções da alienação (e divisão do self), da expropriação material e da degradação histórica (perda da autonomia).
  • 4
    O primeiro e o último desses romances foram traduzidos para o português há um bom tempo. Arrow of God foi publicado em Lisboa pelas Edições 70, em 1979, como A flecha de Deus. Já Things fall apart recebeu o título de O mundo se despedaça, em uma edição de 1983 da Ática. No longer at ease só foi traduzido em 2013, como A paz dura pouco, pela Companhia das Letras (que também lançou edições de O mundo se despedaça e A flecha de Deus, respectivamente em 2009 e 2011). Em 2008, saiu uma edição portuguesa de Things fall apart, intitulada Quando tudo se desmorona, pela editora Mercado de Letras. Outros livros do autor estão disponíveis em tradução.
  • 5
    A peça reelabora, em inglês, um enredo bastante frequentado pelo teatro popular nigeriano em língua iorubá (Soyinka, 2003SOYINKA, W. Death and the king’s horseman: authoritative text, backgrounds and contexts, criticism. Nova York: Norton, 2003{1976}. {1976}; Barber, 2003BARBER, K. The generation of plays: Yoruba popular life in theater. Bloomington: Indiana University, 2003.). Até onde tenho notícia, a obra não foi traduzida para o português. A única tradução de Soyinka que conheço é a de The lion and the jewel, peça escrita e encenada em 1959, traduzida pela Geração Editorial em 2012 como O leão e a joia.
  • 6
    Apesar de ter escrito diversos romances, desde 1968, e de ser um ativo dinamizador do circuito editorial africano, não parece haver uma única tradução de Ayi Kwei Armah para o português.
  • 7
    Remember Ruben foi traduzido por José Saramago para o português, mantendo-se o título original na edição de 1983 da Editorial Caminho. Do mesmo autor, as Edições 70 publicaram, em 1979, Le pauvre Christ de Bomba, como O pobre Cristo de Bomba. Petals of blood foi publicado também em 1979 pelas Edições 70 como Pétalas de sangue, em uma tradução muito irregular. A Editorial Caminho publicou em 1980 uma tradução de Weep not child, de 1964, como Não chores, menino. O romance A grain of wheat, de 1967, foi recentemente publicado no Brasil (2015) como Um grão de trigo pela Alfaguara. Após 1980, Ngũgĩ wa Thiong’o passou a escrever em sua língua natal, o gĩkũyũ, e dessas obras não há tradução para o português. Os motivos da mudança linguística estão relacionados precisamente com a tentativa de reverter a extroversão estrutural da literatura africana que foi apontada acima. A isso se seguiu um instigante debate com Chinua Achebe (Achebe, 1975ACHEBE, C. The African writer and the English language. In: Morning yet on creation day: essays. Garden City: Anchor, 1975. p. 91-103.; Thiong’o, 1986THIONG’O, N. wa. Decolonising the mind: the politics of language in African literature. Londres: J. Currey; Portsmouth: Heinemann, 1986.).
  • 8
    Mine boy foi publicado pelas Edições 70 como O rapaz da mina, em 1980. Até onde sei, essa é a única tradução de Peter Abrahams para o português. Devo confessar que inicialmente tive dúvidas em incluir esse romance na análise, dada sua anterioridade em relação às demais obras citadas. Entretanto, optei por fazê-lo por considerar “as independências” como um processo mais longo e complexo que a simples operação de transferência de soberania. Não é demais lembrar que, um ano antes da primeira edição de Mine boy, realizava-se em Manchester o V Congresso Pan-africano, que reuniu um bom número de intelectuais e políticos que se tornariam, nas duas décadas seguintes, os primeiros governantes soberanos de seus respectivos países. Além disso, o romance de Abrahams atesta a relevância persistente da classe e suas articulações com raça e outras escalas da identidade — o que considero um dos eixos constitutivos do quadro geral do debate público africano a que pretendo me referir.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    17 Mar 2017
  • Aceito
    23 Maio 2017
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