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Entre o passado disciplinar e os passados práticos: figurações do historiador na crise das humanidades

Resumo:

O objetivo deste artigo é refletir sobre a historicidade das formas disciplinares, investigando os critérios que balizaram as condições de emergência da disciplina histórica, assim como seus atuais (possíveis) esgotamento e crise. Em uma conjuntura em que a cultura histórica se difunde por meio de diferentes mídias, nas quais se valoriza muito mais a fragmentação e a pluralização, via memória, do que uma homogeneização, via história disciplinar, torna-se importante investigar os modos pelos quais os historiadores hoje redefinem sua identidade, enfrentando esse encontro entre a tradição disciplinar e as demandas contemporâneas.

Palavras-chave:
humanidades; historiador; disciplina

Abstract:

The purpose of this article is to investigate the historicity of disciplinary forms, investigating the criteria which guide the conditions for the emergence of the discipline of history, as well as its current (possible) exhaustion and crisis. In a context in which historical culture is disseminated by different media, and in which the fragmentation and plurality of identities — via memory — are far more highly valued than homogeneity — by means of the discipline of history —, it is important to investigate how historians of the present redefine their identity and approach this juncture between the disciplinary tradition and contemporary demands.

Keywords:
humanities; historian; discipline

“Cada época deve tentar sempre arrancar a tradição da esfera do conformismo que se prepara para dominá-la.”- Walter Benjamin

Vivemos uma intensa discussão em torno das condições de trabalho dos historiadores e do lugar da história disciplinar e das humanidades na sociedade1 1 Este texto é fruto das reflexões desenvolvidas junto ao ciclo de encontros “A história (in)disciplinada”, ocorridos na UFRGS. Agradeço a todos os participantes pelas valiosas críticas e sugestões, assim como aos colegas Pedro Caldas, Mateus Henrique de Faria Pereira, Aline Mgalhães, Martin Wiklund, Thiago Nicodemo, Géssica Gaio e Arthur Assis pela leitura crítica de versões anteriores do ensaio. . Um sinal inequívoco disso são os atuais projetos, em diferentes países, de remodelação do sistema de ensino, que visam à diminuição da carga horária das humanidades, ou mesmo sua extinção, em nome de uma pedagogia voltada às habilidades exigidas por um mercado em acelerada transformação. Do mesmo modo, percebe-se uma diminuição sensível nos investimentos nas humanidades dentro do sistema universitário, sob a justificativa, cada vez mais comum, de sua “inutilidade” frente às ciências mais práticas (Ordine, 2016ORDINE, Nuccio. A utilidade do inútil. São Paulo: Zahar, 2016.; Nussbaum, 2015NUSSBAUM, Martha. Sem fins lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades. São Paulo: Martins Fontes, 2015.). Não por acaso, considera-se hoje como algo concreto um possível “fim da história”, não no sentido que lhe deu Fukuyama, no início dos anos 1990, mas antes no sentido disciplinar e, com isso, também, um consequente “fim dos historiadores” (Léon; Martin, 2008LÉON, Pablo; MARTÍN, Jesus Izquierdo(Eds.). El fin de los historiadores: pensar históricamente en el siglo XXI. Madrid: Siglo XXI, 2008.). É a face institucional das humanidades e de seu papel social, tal como existe desde o século XIX, que parece estar agora em perigo de extinção.

Mais do que reagir brandindo as supostas virtudes inerentes ao conhecimento histórico, sedimentadas em determinados lugares-comuns legados pela tradição, talvez seja o momento de a disciplina também realizar um movimento de autoanálise, buscando pensar com e contra aquela tradição que a constituiu, como condição de elaboração de uma nova imaginação disciplinar. O objetivo deste texto é ensaiar alguns caminhos para essa reflexão, tentando ao mesmo tempo desenhar um amplo arco temporal que permita visualizar tanto as condições de emergência como de crise da forma disciplinar da história, no seio mais amplo das humanidades, assim como as tensões, os embates e os conflitos que cercam hoje a reconfiguração do lugar da disciplina e de sua identidade. O argumento central que procurarei desenvolver nos três movimentos que compõem o ensaio, dirige-se a identificar de que modo o esgotamento das condições originais de emergência da disciplina acabou por levá-la a enfrentar uma dupla pressão, tanto externa como interna. Externa, no que diz respeito às novas configurações entre Estado-sociedade-universidade, no mundo globalizado e acelerado do capitalismo tardio, incidindo em políticas específicas de avaliação e desvalorização da produção historiográfica, especificamente, e das humanidades em geral; e interna, na medida em que essas novas configurações também representaram, de outro modo, o esvaziamento das bases e das fronteiras que conformaram a identidade disciplinar, incidindo tanto em um déficit teórico de autolegitimação, como em uma dispersão atual, no que diz respeito à compreensão de suas finalidades pedagógicas, como irei analisar ao fim do artigo. Ou seja, a disciplina histórica, assim como as humanidades, está sujeita a uma dupla pressão por reformas, seja de fora, movida pelas novas políticas de gerenciamento público e suas linguagens, como “excelência”, “produtividade”, “impacto”; seja de dentro, a partir de um trabalho de reorganização de seus objetos e de fronteiras disciplinares, avançando novas linguagens teóricas de legitimação e também, novas finalidades e habilidades em sua formação. Duas formas de ação e de temporalidade estão em jogo: a autonomia disciplinar e a heteronomia do Estado-mercado.

Para iniciar essa reflexão, no entanto, gostaria de começar resgatando duas reportagens e dois fatos recentes, a fim de introduzir o problema a ser desenvolvido.

A primeira reportagem, publicada em um blog sobre educação em um jornal de grande circulação, intitula-se “Educar para a felicidade”. O objetivo da reportagem é orientar os pais, ofertando-lhes certas diretrizes a partir das quais planejar a educação de seus filhos. Para isso, a autora estabelece uma analogia persuasiva para seu leitor implícito, ao mesmo tempo que reveladora para o argumento que aqui interessa.

É conhecido que a maioria das empresas tem excelentes estratégias para desenvolver seus negócios e crescer. Apenas algumas, porém, conseguem realmente implementar as estratégias escolhidas. A diferença está justamente na capacidade de foco e na implementação de um bom plano de ação.

Assim também é com nossos filhos (Estadão, 2015ESTADÃO, Educar para a felicidade, de 9/9/2015. Disponível em: Disponível em: http://vida-estilo.estadao.com.br/blogs/educar-para-a-felicidade/educar-filhos-sem-ter-planos-de-acao-e-tatear-no-escuro/ . Acesso em:10 abr. 2016.
http://vida-estilo.estadao.com.br/blogs/...
).

A segunda reportagem, dedicada às “profissões do futuro”, concentra-se em mostrar as novas oportunidades que podem ser exploradas pelos historiadores, mais especificamente pela categoria “historiadores corporativos”, na elaboração dos arquivos e estratégias de “soluções de memória” para empresas. Tal atividade demandaria, por um lado, as (supostas) habilidades técnicas do historiador com os arquivos e, por outro, um grau de perspicácia para entender as demandas das empresas e sua inserção no mercado, em relação às quais ele deve oferecer as mencionadas “soluções de memória”. A reportagem, inclusive, não deixa de contextualizar essas demandas dentro de uma atual intensificação dos estudos acadêmicos sobre memória. Como afirma um dos entrevistados, historiadora de formação e com pós-graduação em administração:

a busca da memória pela sociedade pós-moderna vem se contrapor à aceleração do tempo. Acho que a memória serve um pouco para nutrir a identidade individual e coletiva e atribuir sentidos à realidade. Então, o papel do historiador é dar um uso para isso. Não vale fazer memória pela memória. Você tem de dar uso para isso (Estadão, 2015ESTADÃO, Educar para a felicidade, de 9/9/2015. Disponível em: Disponível em: http://vida-estilo.estadao.com.br/blogs/educar-para-a-felicidade/educar-filhos-sem-ter-planos-de-acao-e-tatear-no-escuro/ . Acesso em:10 abr. 2016.
http://vida-estilo.estadao.com.br/blogs/...
).

O que gostaria de destacar, a partir dessas reportagens, é o modo como uma mesma linguagem conforma essas duas instâncias, da formação escolar e do ofício historiográfico, o modo como, enfim, revelam uma mesma gramática a partir da qual experiências diversas hoje são concebidas e medidas, inclusive (e acima de tudo) a educação e a história. Educar, nessa chave, é ser empreendedor, fazendo incorporar essa mesma linguagem empreendedora, assentada na eficácia, na otimização, em uma razão instrumental voltada a alimentar a si mesma e a se expandir (Dardot; Laval, 2016DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.). Da mesma forma, a relação com o passado, na chave da memória, inscreve-se como um bem a ser otimizado, capitalizado, possibilitando tanto uma maior eficácia nas resoluções de desafios no mercado, como propriamente um bem (e um serviço) a ser vendido em função de demandas plurais (e ocasionais) de identidades, como compensação a um mundo cada vez mais acelerado. O próprio princípio teórico de uma reescrita contínua da história se transforma, aqui, em uma oportunidade, em um princípio de capitalização. Afinal, como diz a reportagem: “A história continua a ser contada todos os dias. Bem administrado, esse núcleo existe no ‘para sempre’ e tem muito valor”. A tópica tuticideana da escrita da história como um “bem para sempre” encontra aqui uma nova fortuna.

Primeiro movimento: experiência histórica, aceleração e novos conceitos de movimento

Nas justificativas elaboradas para a reforma do ensino médio no Brasil, de maneira análoga, o vocabulário no qual esse processo vem se expressando não deixa de ser revelador: o aluno idealizado nesses projetos precisa “adquirir competências básicas” a fim desenvolver a “flexibilidade” necessária para um mercado em contínua e acelerada transformação. É com esses princípios, seguindo o modelo PISA, Programme for International Student Assessment, da base de dados OECD, que se legitima o domínio nas amplas áreas da matemática e da linguagem, concebidas aí como os “instrumentos” mais apropriados a essa nova forma de finalidade sem fim, a flexibilidade. Em vez de noções como as de “formação” e “desenvolvimento”, que embasaram os projetos pedagógicos na modernidade clássica, e que indicavam uma determinada concepção de subjetividade, assim como de temporalidade, vemos a sedimentação de novas categorias que revelam formas de historicidade e de subjetividades distintas. A noção já citada de “flexibilidade”, por exemplo, que está no centro desse processo, caracteriza-se por uma abertura espaçotemporal sem qualquer télos. Diz respeito à capacidade de reação (mais do que de ação) a um estado de movimento contínuo e hiperacelerado, mas que não se dirige a nenhum lugar específico. Não por acaso, esse conceito se tornou cada vez mais corrente na sociedade a partir da década de 1980, primeiro como vocabulário econômico e de organização do trabalho, substituindo a rigidez do modelo fordista, e depois expandindo-se para outras esferas, como a cultural. A “acumulação flexível”, como a chamou David Harvey, inseria-se em um processo de rápidas mudanças nos padrões de desenvolvimento, produzindo uma diversificação no setor industrial, criando, por exemplo, o chamado “setor de serviços”, assim como implicava uma “compressão do espaço-tempo”, quando “os horizontes temporais da tomada de decisões privada e pública se estreitavam” (Harvey, 1997HARVEY, David. A condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1997., p. 140). Tornando-se um vocábulo comum para expressar diferentes experiências em uma mesma forma temporal, o conceito de “flexibilidade” traz em si uma transformação sensível na concepção de história, esvaziando as diversas dimensões teleológicas, carregadas de futuro, que qualificaram a sua dimensão processual desde a modernidade clássica.

A metáfora moderna do “trem da história”, aqui, é esvaziada de sentido, pois não há ponto de partida, muito menos ponto de chegada. Há apenas movimento, mas um movimento cujos instantes deixam de possuir qualquer qualidade diferencial entre o “antes” e o “depois”. Assim como o conceito de “progresso” se firmou a partir do fim do século XVIII como um indicador abstrato capaz de ser usado em variadas experiências da modernidade, do mesmo modo agora o conceito de flexibilidade parece assumir essa função de categoria temporal sem conteúdo determinado, podendo ser, por isso mesmo, estendido às mais diversas experiências: do gerenciamento do Estado a projetos pedagógicos, tornando-se mesmo uma espécie de virtude universal a ser buscada e adquirida. A implosão das metanarrativas, alardeada desde o clássico livro de Lyotard, encontra seu homólogo na implosão das formas narrativas da temporalidade cotidiana, e isso se enraíza em experiências sociais concretas. A emergência de novos conteúdos de experiência coloca em xeque, portanto, não apenas as formas sedimentadas da grande narrativa histórica, mas igualmente as formas de narrativa de si, expressas tradicionalmente em noções como “libertação”, “emancipação” e “projeto” (Elliot; Urry, 2010ELLIOT, Anthony; URRY, John. Mobile lives. London: Routledge, 2010.). Enquanto os conceitos de movimento da modernidade clássica caracterizavam-se, essencialmente, em função de determinados télos históricos, esses novos conceitos de movimento que parecem emergir na sociedade contemporânea figuram uma nova forma de temporalidade, marcada pela hiperaceleração social e pela ausência de télos que a organize enquanto ordem narrativa.

Não é possível pensar a criação das instituições modernas de ensino, no sistema escola-universidade, sem levar em consideração as metas históricas que as orientaram. Ao visitar os textos fundadores dessas instituições, como o de W. Humboldt, vemos como os conceitos de “autonomia” e de “liberdade” são elaborados como condições necessárias à “formação” de um indivíduo integral, aquilo que Goethe chamou de “indivíduo universal-histórico” (Humboldt, 2003HUMBOLDT, Wilhelm. Sobre a organização interna e externa das instituições científicas superiores em Berlim. In: KRETSCHMER, Johannes; ROCHA, João Cezar de Castro(Orgs). Um mundo sem universidades? Rio de Janeiro: Eduerj, 2003.; Dilthey, 2010DILTHEY, Wilhelm. Vivência e autobiografia. In: Filosofia e educação. São Paulo: Edusp, 2010.). Por mais que houvesse tensões entre as demandas de um ainda incipiente mercado de trabalho especializado e as demandas propriamente pedagógicas, sempre estas puderam manter-se como substrato último de legitimação do sistema de ensino, na medida em que promoviam o trabalho de “sincronização” social e política, fazendo o indivíduo parte de seu tempo e, com isso, com um determinado senso de orientação histórica. Não por acaso, como destacou Aleida Assmmann, o conceito de Bildung (formação) surge justamente quando a época moderna institucionaliza o conceito de “progresso”. A Bildung é, portanto, essencialmente ligada à história; “ela é sinônimo da educação do homem no tempo, ou de evolução da humanidade na história” (Assmann, 1994ASSMANN, Aleida. Construction de la memóire nationale: une brève histoire de l’idée allemand de Bildung. Paris: Éditions de la Maison des sciences de l’Homme, 1994., p. 25). Mesmo em sua primeira crise, no início do século XX, diante da espiral de especialização, esse vínculo pôde ser rearticulado, como no caso de Weber, Jaspers, entre outros, projetando um ideal regulador para as disciplinas universitárias (Weber, 2015WEBER, Max. Ciência como vocação. In: Ciência e política: duas vocações. São Paulo, Cultrix, s/d.; Jaspers, 1989JASPERS, Karl. Ciência e verdade, O que nos faz pensar, n. 1, p. 104-117, 1989.). É essa equação entre ensino e formação, sedimentada em determinada experiência histórica, que parece estar se esvaziando de conteúdo, sendo substituída pelos princípios das “capacidades”, da “excelência” e da “flexibilidade”, mais adequados a um mundo em acelerada transformação.

O mesmo pode ser pensado a partir de alguns exemplos ofertados pelo sociólogo Hartmut Rosa (Rosa, 2010ROSA, Hartmut. Accélération: une critique sociale du temps. Paris: La Découverte, 2010.). Enquanto no século XIX e em boa parte do século XX as trajetórias profissionais eram estruturadas em atividades singulares, nas quais os indivíduos buscavam seguir “carreiras”, desde as décadas de 1970 e 1980, cada vez mais os dados mostram um processo de diversificação das profissões que o mesmo indivíduo exerce em sua vida. Devido à aceleração do fluxo de capitais, à mobilidade e segmentação dos centros de produção, à aceleração das inovações tecnológicas, entre outros fatores, os indivíduospassaram a viver a experiência de estar sempre começando de novo, os empregos virando postos temporários, vivendo situações incertas, sem que haja as antigas condições estruturais de investimento em uma carreira como “projeto de vida”. Do mesmo modo, dados similares apontam para a mudança na percepção acerca das rupturas temporais. Se até meados do século XX essa percepção de ruptura temporal se dava pela medida das gerações (avós, pais, filhos), cada vez mais a percepção de ruptura se insere em uma dimensão intrageracional. Dentro de uma mesma vivência, no curto intervalo de 20 ou 30 anos, já se produz a sensação de distanciamento das experiências passadas, tornadas em grande parte obsoletas. Isso pode ser observado no sentimento cada vez mais intenso de nostalgia não mais por “épocas” passadas, como na sensibilidade romântica, mas, sim, pelas décadas imediatamente anteriores: primeiro com os anos 1980, agora com os de 1990, resultando naquilo que Ricardo Piglia chamou de um “barateamento no mercado da história” (Piglia, 2016PIGLIA, Ricardo. Los diarios de Emilio Renzi. Los años felices. Barcelona: Anagrama, 2016., p. 13). Essa hiperaceleração, parafraseando o escritor Aleksander Hemon, acaba por produzir uma “crise ontológica”, já que o sujeito é forçado a negociar permanentemente as condições de sua individualidade sob circunstâncias existenciais perpetuamente diferentes (Hemon, 2013HEMON,Aleksandar. O livro das minhas vidas. São Paulo: Rocco, 2013., p. 23). Daí a crescente incapacidade daquelas categorias da modernidade clássica, como “formação” e “desenvolvimento” conseguirem expressar a dimensão temporal dessas novas experiências sociais fraturadas. A ausência de um futuro figurado como projeto e a substituição incessante de presentes encontram em categorias como as de “flexibilidade”, “eficiência” e “atualização” a sua rede semântica própria ( Pereira;Araujo, 2017PEREIRA, Mateus; ARAUJO, Valdei Lopes de. Reconfigurações do tempo histórico: presentismo, atualismo e solidão na modernidade digital, Revista UFMG, Belo Horizonte, v. 23, n. 1 e 2, 2016.).

As categorias não deixam de informar, igualmente, nossa experiência política contemporânea, marcada pela crescente dessincronização entre a sociedade civil e o Estado, entendido este cada vez mais como uma instância de gerenciamento, que deve reagir de modo acelerado a demandas do mercado financeiro internacional, esvaziando o tempo próprio da democracia representativa (Rosa; Scheuerman, 2009ROSA, Hartmut; SCHEUERMAN, William E. (Ed.). High-speed society: social acceleration, power and modernity. Philadelphia: Pennsylvania University Press, 2009.; Hassan, 2009HASSAN, Robert. Empires of speed: time and acceleration of politics and society. Leiden: Brill, 2009.). Disso resulta o esvaziamento dos mecanismos de representação política em nome da “eficiência” do gerenciamento. Talvez um bom projeto fosse justamente elaborar um dicionário desses novos conceitos de movimento para que pudéssemos reconstituir a complexidade das dimensões temporais de nossa atual rede semântica, em seus distintos estratos sociais, ultrapassando as categorizações demasiadamente amplas que a historiografia contemporânea ainda tem disponibilizado como diagnósticos.

Além dessas “pressões pedagógicas” amplas, geradas pelas novas configurações sociais, outro aspecto que vem afetando o lugar da disciplina histórica pode ser percebido pela intensificação dos debates em torno das implicações éticas das narrativas históricas frente às demandas por identidades e memórias plurais, assim como frente aos eventos traumáticos do século XX. Aqui, as dimensões da memória, do perdão, da justiça e da cidadania vêm colocar desafios e mesmo interpor barreiras éticas à relação que a historiografia profissional mantém tradicionalmente com os testemunhos do passado e com a elaboração de suas narrativas, tensionando as justificativas de verdade, de objetividade e de distanciamento que, dentro da tradição disciplinar, orientavam e legitimavam seu trabalho (Ricoeur, 2010RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. São Paulo: Campinas, 2010.). Ainda que seja um erro superdimencionar os efeitos sociais dos discursos de memória acerca das violências e dos traumas do passado (basta ver a retomada e a virulência contemporânea de discursos que produziram tais traumas), é certo que eles se fazem bastante presentes na comunidade historiográfica, incitando debates sobre a própria natureza da profissão e suas políticas do tempo (Lorenz; Bevernage, 2013LORENZ, Chris; BEVERNAGE, Berber. Negotiating the borders between present, past and future. In: Breaking up time.: negotiating the borders between present, past and future. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2013.).

Nesse cenário, intensificado pela variedade de mídias disponíveis aos diferentes agentes sociais, o historiador cada vez mais vê sua autoridade sendo intensamente disputada na arena pública, esmaecendo aquela forte distinção entre profissionais e amadores, estabelecida no século XIX. O que resta dessa distinção? No que hoje pode se sustentar a profissão do historiador e seu papel na sociedade diante dessas novas experiências sociais e políticas? Deve ser ele o garantidor fiel de uma verdade histórica ou, antes, tornar-se uma espécie de mediador de memórias, um curador de passados alheios? Deve oferecer os chamados “serviços em história” ou, mais exatamente, em “memória”, adequando-se às demandas de um mercado cada vez mais acelerado e flexível? Em que medida, enfim, essas novas demandas externas sociopolíticas não implicam o esvaziamento dos critérios internos, disciplinares, legados por sua tradição? É em torno dessas questões que a comunidade historiográfica acadêmica parece estar procurando encontrar uma nova inserção em seu presente.

Segundo movimento: o arco temporal da disciplina histórica

É notório que a história disciplinar é um fenômeno moderno. Antes do século XIX, ela se distribuía em uma série de gêneros distintos, envolvendo diferentes protocolos de escrita e de leitura, distintas práticas letradas e atendendo a finalidades diversas, sendo classificada geralmente pela tratadística no amplo gênero epidítico, com matizes dos gêneros deliberativo e judiciário. A escolha por escrever um texto histórico, nesse sentido amplo, apresentava-se como uma possibilidade entre outras, não implicando uma definição ou delimitação específica daquele que a escrevia. Assumia-se a voz do historiador, mais do que se era historiador. A delimitação estava, portanto, mais nos gêneros específicos do que no agente propriamente dito. Do mesmo modo, não havia qualquer projeto ou instituição de “formação histórica”, no sentido escolar. Mesmo com a formação das Academias, no século XVIII, esse modo de funcionamento da máquina de gêneros, na feliz fórmula de Alcir Pécora, não foi essencialmente alterado.

Isso só ocorreria, de fato, com a conformação de uma lógica disciplinar a partir do século XIX, cristalizando-se posteriormente nas reformas que dariam o perfil da universidade moderna. Nesse processo, ocorrido de modos distintos e com tempos específicos em diferentes países, a delimitação da autoridade do texto deixava de estar ancorada em protocolos eminentemente retóricos para ser definida pela formação de um agente específico, o historiador, a partir da implementação de um currículo obrigatório e de emblemas e títulos reconhecidos. Nesse processo, definiram-se as habilidades e certas virtudes epistêmicas que qualificavam esse sujeito do conhecimento, centradas predominantemente na crítica documental e na imparcialidade, assim como os gêneros por meio dos quais deveria se expressar, como o livro monográfico, os artigos e as resenhas, regrados por protocolos específicos que traduziriam aquelas habilidades e virtudes, constituindo o que Anthony Grafton denominou de “narrativa dupla” (Grafton, 1998GRAFTON, Anthony. As origens trágicas da erudição: pequeno tratado sobre as notas de rodapé. Campinas: Papirus, 1998.).

Como ressaltou Peter Weingart, a emergência das disciplinas modernas, ocorrida por volta de 1800, implicou um modo distinto de produzir as experiências ou os dados, os quais passaram a ser gerados e controlados a partir de protocolos prioritariamente internos, e não mais ocasionais (Weingart, 2010WEINGART, Peter. A short history of knowledge formations. In: FRODEMAN, Robert (Ed.). The Oxford Handbook of Interdisciplinarity. New York: Oxford University Press, 2010.). Ou seja, o julgamento de relevância de uma agenda de pesquisa, assim como das formas de sua execução, tornara-se regrado por pares, institucionalizando-se uma cadeia hierárquica de formação e reprodução nesse espaço relativamente autônomo. É nesse sentido que Weingart define a essência e a evolução das disciplinas a partir de uma comunicação autorreferencial, normalmente estabelecida por meio de congressos, associações e periódicos. Gerando uma espiral de especialização, ao mesmo tempo em que associava a inovação da pesquisa com o ensino, as disciplinas orientavam-se, ao menos idealmente, pelo princípio da autonomia, já que a própria abertura que caracterizava a pesquisa assentara-se na produção de novidades que não poderiam e nem deveriam ser definidas de antemão. É nesse sentido que autores como Weber e Jaspers, por exemplo, definiram a ciência como uma tarefa essencialmente aberta e infinita, do mesmo modo como, desde Humboldt, a universidade foi pensada enquanto uma instância socialmente constituída para garantir o vínculo científico-pedagógico entre autonomia e formação.

A organização pedagógica e a inovação científica, pilares da noção moderna de disciplina, não deixaram de assumir especificidades de acordo com as áreas, principalmente no que diz respeito ao grau de autonomia exercido na prática. No caso da História, particularmente, não é possível pensar sua inserção disciplinar sem vinculá-la à relação umbilical que manteve com o Estado-Nação moderno. Ao mesmo tempo em que ofertara uma linguagem a partir da qual a experiência nacional se tornava pensável, em sua abertura histórica, o Estado a abrigara e a promovera enquanto um saber legítimo a compor o espectro disciplinar. Como ressaltou Stefan Berger, esse processo de estabelecimento de uma distinção mais forte entre profissionais e amadores, garantindo uma autoridade científica, é o que possibilitou ao historiador desempenhar um papel tão preponderante na fase de formação das identidades nacionais, atuando como verdadeiros pedagogos da nação (Berger, 2007BERGER, Stefan. The power of national pasts: writing national history in nineteenth- and twentieth-century Europe. In: BERGER, Stefan (Ed.). Writing the nation: a global perspective. New York: Palgrave, 2007., p. 32-33). Conjuntamente a essa organização institucional da disciplina, investia-se em seu braço forte, qual seja, a replicação da produção historiográfica no sistema de ensino. Mesmo em espaços onde a universidade, no sentido moderno, constituiu-se mais tardiamente, essa relação forte entre disciplinarização da história e ensino é patente. No caso francês, por exemplo, o processo de disciplinarização, via liceus e Escola Normal, esteve estritamente atrelado ao esforço de Guizot em massificar o ensino, garantindo homogeneidade na formação do cidadão (Rosanvalon, 1985ROSANVALLON, Pierre. Le moment Guizot. Paris: Gallimard, 1985.). Se não fora possível evitar completamente, ao menos devia-se controlar aquilo que Fustel de Coulanges chamou de uma “guerra civil historiográfica” (Hartog, 2003HARTOG, François. O século XIX e a história: o caso Fustel de Coulanges. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2003.). No caso brasileiro, por sua vez, isso ocorre antes mesmo das universidades, com criação conjunta do IHGB e do Colégio Imperial Pedro II (Toledo, 2005TOLEDO, Maria Aparecida Leopoldino Tursi. A disciplina de história no império brasileiro, Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n. 17, p. 1-10, mar. 2005.). Na medida em que o discurso histórico se tornara fundamental para a inteligibilidade das mais distintas experiências, acima de tudo da política, o perigo de sua dispersão e os conflitos daí resultantes não deixaram de ser uma forte motivação para promover a restrição de sua produção, separando uma competência profissional, disciplinar, dos interesses e das demandas “amadoras” pelo passado. A disciplina histórica - sem que isso se desse de um modo puramente mecânico, bem entendido - apresentava-se como um saber essencial à forma política do Estado-Nação, uma vez que era em boa parte por meio dela que a soberania se efetivara em uma narrativa homogênea e homogeneizadora, realizando aquilo que Jacques Rancière denominou de um triplo contrato da poética da história: narrativo, científico e político (Rancière, 1994RANCIÈRE, Jacques. Os nomes da história: um ensaio de poética do saber. São Paulo: Pontes, 1994.). No equilíbrio entre autonomia disciplinar, demandas sociais e atuação política, o historiador pôde sustentar-se em uma posição em que a crença na objetividade empírica garantida pelos documentos do passado permitia a autoridade e os efeitos de suas enunciações políticas (Gengnagel; Hamann, 2015GENGNAGEL, Vicent; HAMANN, Julian. The making and persisting of modern germans humanities: balancing acts between autonomy and social relevance. In: BOD, Rens; MAAT, Jaap; WESTSTEIJN, Thijs (Eds.). The making of humanities. Vol. III. The Modern Humanities. Amsterdan: Amsterdan University Press, 2015.). Estabilidade esta, justamente, que pode ser entendida como um dos elementos responsáveis por aquilo que Koselleck denominou uma “indigência teórica da disciplina” (Koselleck, 2014KOSELLECK, Reinhart. Sobre a indigência teórica da ciência da História. In: Estratos do tempo: estudos sobre história. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-Rio, 2014.). Ao contrário de outras disciplinas, como a Sociologia e a Antropologia, que necessitaram de forte investimento teórico a fim de conquistar sua legitimidade, a História e o historiador puderam ancorar-se nesse vínculo pedagógico da identidade nacional, resguardando para si o lugar da empiria e de uma certa reificação do passado.

Se não houve propriamente um grande esforço teórico de legitimação, isso não quer dizer que esse processo de disciplinarização tenha deixado de resultar na elaboração de um discurso historiográfico de identidade, a partir do qual se desenhavam os critérios constitutivos de cada campo disciplinar. No mesmo movimento em que a história se tornava uma disciplina científica, conformava-se e se sedimentava um gênero (ou subgênero), a história da historiografia, que buscava evidenciar a própria unidade de seus objetos - a história e o historiador. Era, em boa medida, pela costura e pelo enfrentamento da tradição, produzidos por esse discurso meta-histórico, que as habilidades e os valores epistêmicos se desenhavam para o sujeito do conhecimento, como “objetividade” e “distanciamento”, variando as resoluções de forma e gênero, de acordo com os contextos e embates de cada momento do campo historiográfico (Turin, 2013TURIN, Rodrigo. História da historiografia e memória disciplinar: notas para um debate, História da Historiografia, Ouro Preto, n. 13, dez. 2013.).

Mas definir o que há de essencialmente histórico ou historiográfico, implica igualmente estabelecer aquilo que não há. O entendimento dessa delimitação da unidade disciplinar, portanto, não pode desconsiderar seu aspecto eminentemente relacional, ou seja, como ela se definia em relação às demais disciplinas em constituição, como a antropologia, a sociologia e mesmo a literatura. Daí a sedimentação de determinados topoi que são incorporados por professores e alunos ainda hoje em um habitus disciplinar, criando determinadas associações familiares a todos: a história com o documento, a identidade e o passado; a sociologia com as leis gerais e as sociedades modernas; a antropologia com o trabalho de campo e o estudo das alteridades. Essa constelação disciplinar e seus topoi têm, eles próprios, uma profunda vinculação com as suas condições de emergência oitocentista. Enquanto a história, por exemplo, se constituía em função da identidade nacional, da temporalidade e da escrita, a antropologia, por sua vez, lidava com as alteridades, com a espacialidade e com a oralidade - aquilo, portanto, que perfazia o negativo das nações modernas, atualizado em uma série de pares opostos e assimétricos (Duchet, 1985DUCHET, Michele. Le partage des savoirs : discours historique, discours ethnologique. Paris: La Découverte, 1985.).

Na medida, porém, em que essas clivagens passaram a ser problematizadas e esvaziadas de sentido, principalmente na segunda metade do século XX, no mesmo momento, portanto, em que as humanidades adquiriam uma maior autonomia institucional frente às ingerências externas, essas disciplinas se viram confrontadas com o desafio de elaborar, ao mesmo tempo, uma crítica de suas marcas de origem e uma nova orientação normativa e de legitimação. Nesse processo, abriu-se um caleidoscópio de abordagens, assim como o discurso de uma inter ou intradisciplinaridade. Antropologia histórica, história antropológica, antropologia urbana, sociologia histórica, história sociológica, subaltern studies, história estrutural, connected histories, cultural studies, são apenas algumas dessas manifestações que não deixaram de revelar, igualmente, as dificuldades de sair ou de ultrapassar o problema das definições disciplinares nas humanidades. Por mais que hoje seja difícil, se não impossível, estabelecer uma distinção epistemológica entre saberes como história, antropologia e sociologia, na medida mesma em que aquelas distinções que conformaram suas emergências (como a partilha das sociedades) já perderam a legitimidade, todos ainda temos conhecimento das rixas existentes e resistentes entre essas disciplinas ou, pior, o que parece dominar hoje, a sua ignorância mútua (Passeron, 1995PASSERON, Jean Claude. O raciocínio sociológico. São Paulo: Vozes, 1995.). Todo esse processo de crítica e autocrítica, de inter ou intradisciplinaridade das humanidades, desencadeado principalmente a partir da década de 1970, pouco afetou suas delimitações institucionais. Como destacou Andrew Abbot, a respeito das ciências sociais nos Estados Unidos, vigorou nesse processo, ao mesmo tempo, uma incrível estabilidade das disciplinas institucionalizadas e uma extraordinária instabilidade de seus paradigmas ou correntes teóricas. Se houve uma crise de sucessão e uma forte expansão do corpo de pesquisadores naquele momento, como destacam autores como Bourdieu e Noiriel (sendo essa uma das causas singulares desse processo crítico), as disciplinas em si mesmas pouco foram afetas em suas delimitações institucionais (Bourdieu, 2011BOURDIEU, Pierre. Homo academicus. Florianópolis: Editora da UFSC, 2011.; Noiriel, 2005NOIRIEL, Gérard. Sur la ‘crise’ de l’histoire. Paris: Gallimard, 2005.).

Sem me alongar nessa história já bem mapeada, quero destacar aqui de que modo o que se entendeu como “crise” das humanidades, nesse momento específico de sua história, entre as décadas de 1970 e 1980, não se devia tanto a sua fragilidade institucional, mas às transformações que desestabilizaram certos fatores fundamentais de sua condição de emergência. Na medida em que as disciplinas foram alcançando um grau mais elevado de autonomia e especialização, possibilitado pelo fortalecimento e expansão da instituição universitária, promoveram um movimento crítico, chamado por alguns de “autorreflexivo”, frente ao e possibilitado pelo esvaziamento daquelas experiências oitocentistas que caracterizaram sua formação. A crítica às metanarrativas, a virada linguística, a crítica pós-colonial e mesmo a problematização dos usos políticos da história e da memória, se incidiram profundamente em nossas formas de entendimento e no modo como elaboramos nossas agendas de pesquisa, pouco afetaram, naquele momento, a estabilidade institucional das disciplinas.

Conforme as formas atuais de identidade nacional e global se vinculam mais às memórias do que às narrativas históricas, dentro daquele processo de “acumulação flexível” do capital e de “compressão do espaço-tempo”, tanto quanto deixam de ancorar-se fundamentalmente no sistema de ensino para concorrer com a variedade de mídias disponíveis, a disciplina histórica se vê constrangida a justificar sua existência institucional como nunca antes, assim como a redesenhar o seu modo de inserção social. Se já pouco interessa ao historiador servir àquele antigo papel de pedagogo da nação, na medida em que conquistou uma maior autonomia de suas condições de produção, ainda assim é importante dizer que interessa muito menos aos Estados, na sua configuração atual, a manutenção desse velho e agora incômodo funcionário. Não por acaso, no epílogo do recente Oxford History of Historical Writing, Allan Megill sinaliza, justamente, para esse momento de inflexão da disciplina histórica, marcado pela perda de centralidade institucional, pela concorrência com outras narrativas de memória e pela necessidade de ultrapassar o marco nacional como critério central de produção e legitimação (Megill, 2011MEGILL, Allan. Epilogue: on the current state and future state of historical writing. In: The Oxford History of Historical Writing , Vol. 5. Oxford: Oxford University Press, 2011.).

De todo modo, é no bojo desse processo amplo de aceleração e crescente assincronia das experiências sociais contemporâneas que o lugar institucional da disciplina histórica e seu papel pedagógico são colocados em questão. O repertório tradicional a ela vinculado, formado por uma ordenação das sociedades passadas em períodos e narrativas, parece deixar de ser entendida como ferramenta apropriada ou necessária às demandas do presente ou pelo menos de um presente que parece cada vez mais expandido espacialmente pela lógica da temporalidade flexível do mercado global.

Terceiro movimento: entre o passado histórico e o passado prático

Diante desse amplo arco temporal que marca as condições de emergência e de crise da disciplina histórica, gostaria de encaminhar uma breve reflexão sobre os debates recentes ocorridos no Brasil, envolvendo a profissão do historiador e a elaboração de um currículo nacional único. O objetivo aqui não é realizar uma análise pormenorizada e verticalizada, vinculando texto e autores, mas antes perceber as orientações gerais das argumentações que a categoria vem elaborando nessa crise, levando em consideração seu lugar institucional de enunciação, a Associação Nacional de História -ANPUH, para dali alimentar uma reflexão mais ampla acerca das tensões da figuração da identidade disciplinar contemporânea2 2 Todos os textos do site da ANPUH foram acessados em agosto de 2016. .

O debate acerca da profissionalização do historiador, apesar de já ter uma longa trajetória, centra-se hoje na tramitação de um projeto no congresso brasileiro. O projeto é para regulamentar a profissão do historiador, definindo certas condições mínimas de formação universitária para o exercício da atividade, assim como a necessidade de órgãos e instituições terem em seus quadros esses profissionais regulamentados, caso elas exerçam algum tipo de “serviço em história” (termo do projeto). O que especificaria propriamente esse ramo de “serviço em história”, ou como ele seria determinado posteriormente, não é exposto no projeto, mas o termo em si parece indicar uma preocupação de aproximar a profissão das tendências contemporâneas do mercado, como o “setor de serviços”, marcado tanto pela diversificação das mídias e dos espaços de consumo do passado, como por contínuas transformações nos postos de trabalho; daí, também, a impossibilidade mesma de determinar, de antemão, como “projeto”, o que especificaria o trabalho de “serviços em história”.

No site da ANPUH, por meio de busca pelos termos “profissão/profissionalização”, encontram-se cerca de 55 textos curtos e notícias referentes ao projeto. Todos os textos publicados no site são afirmativos a respeito da proposta de profissionalização, não havendo publicações contrárias à proposta. Elas existiram, mas ficaram circunscritas ao âmbito externo ao site da Associação, em debates e polêmicas nos jornais e nas redes sociais. Algo distinto do que ocorre com o debate acerca da Base Curricular, onde diferentes vozes e perspectivas convivem e se enfrentam intensamente na plataforma da Associação. Se, portanto, há uma forte homogeneidade na apresentação pública a respeito da profissão do historiador, no debate acerca de em que consistiriam suas formas e finalidades pedagógicas encontramos alguns elementos estruturais de divergências.

A respeito da profissão, percebem-se dois focos centrais de argumentação: um voltado às necessidades pragmáticas da regulamentação, vinculadas à defesa de um mercado de trabalho para os diplomados em cursos de história ou com pós-graduação na área; outro, na definição de valores e habilidades que qualificam esse profissional de história.

No que diz respeito ao primeiro ponto, vinculado à defesa de um mercado de trabalho, interessa destacar, de imediato, uma certa inversão, onde já não parte do Estado o interesse em criar postos e lugares de atuação profissional para os historiadores, como ocorreu na formação da disciplina, tornando-se agora uma reivindicação “de baixo”, da própria categoria, em defender e ampliar o seu campo de atuação em um novo cenário social. Um campo de atuação que não se restringe mais ao ensino e à pesquisa, mas abarca um rol bastante diversificado de ocupações, desde cargos de gerenciamento de arquivos à produção de audiovisuais. Não dá para pensar a urgência pela regulamentação da profissão, hoje, sem associá-la, portanto, ao aumento vertiginoso, como ressaltou Jerome de Groot, de um consumo difuso e variado da história nos últimos anos (Groot, 2009GROOT, Jerome de. Consuming history: historians and heritage in contemporary popular culture. London and New York: Routledge, 2009.). A emergência recente e a importância que adquiriram campos como a “história digital” e a “história pública” sinalizam igualmente para essas transformações (Noiret, 2015NOIRET, Serge. História Pública Digital, Liinc em Revista, Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 28-51, 2015.).

No que diz respeito ao segundo foco de argumentação, vinculada à identidade desse historiador, destaca-se o uso preponderante de determinadas virtudes epistêmicas herdadas da tradição disciplinar, como “objetividade” e “distanciamento”, associadas a outras que poderíamos considerar mais contemporâneas e vinculadas às novas pressões da conjuntura universitária e social, como a de “excelência”. Essas virtudes normalmente vêm associadas nos textos a “habilidades específicas” que formariam o que foi sintetizado durante o debate, em diferentes momentos, como o “olhar do historiador” - um modo de percepção que o singularizaria diante dos outros modos de lidar com o passado. Entre as mais citadas está a capacidade de leitura (um “saber ler”), possibilitada tanto pelo domínio de “capacidades técnicas”, assim como por virtudes tais quais a “perseverança” e a “desconfiança” no trato com os documentos. A antiga tópica do historiador como leitor é aqui (re)atualizada, reforçando a vinculação de sua identidade profissional prioritariamente com o trabalho da exegese documental. Nos textos, o que tende a se destacar é a defesa de uma formação específica ao historiador, centrada tanto em habilidades técnicas vinculadas aos documentos, como em determinadas virtudes epistêmicas capazes de gerar conhecimentos históricos objetivos e verdadeiros acerca do passado.

É importante destacar que a escolha e o uso dessas virtudes e habilidades, retiradas em boa medida de uma imagem legada pela tradição disciplinar, direcionam-se a uma situação específica e a um público ideal específico, que não os próprios historiadores. Elas convergem, acima de tudo, para a persuasão de agentes políticos e determinadas camadas da sociedade acerca da legitimidade e da necessidade de regulamentar a profissão, frente a outros modos não especializados de trabalho com o passado - tanto amadores, sem cursos superiores, como outros profissionais, variando do jornalista ao sociólogo ou ao arquivista. Esse caráter performático do discurso direciona, de todo modo, ao uso de certas imagens mais socialmente sedimentadas e aceitas acerca da identidade do historiador, em detrimento de abordar questões mais “quentes” que vêm pautando a agenda e os debates teórico-metodológicos da disciplina nas últimas décadas.

Já no debate em torno da Base Nacional Comum Curricular - BNCC, que visa a estabelecer os princípios que organizarão o ensino de história para o ensino fundamental, o cenário e os lugares de enunciação são distintos e mais heterogêneos. O que vinha marcando esse debate, também com cerca de 50 entradas no site da Associação, é uma acirrada disputa em torno das finalidades do ensino de história e as formas narrativas de sua realização. Se há uma certa homogeneidade nos textos quanto à finalidade básica do ensino, voltada antes à formação da cidadania do que às demandas do mercado, não há um entendimento unívoco acerca de que modo o ensino de história produziria aquela cidadania.

A relação entre história e cidadania transita entre oposições, entre as quais: identidade x alteridade; nacional x cosmopolita; unidade x pluralidade. Essas oposições resultam, por sua vez, em diferentes matrizes narrativas e cronológicas, incluindo ou excluindo diferentes passados. Com isso, disputam, por exemplo, qual a centralidade que deveria ter a história do Brasil, como os diferentes grupos sociais devem ser representados, quais os valores que devem ser a eles vinculados e, por fim, quais as linguagens mais apropriadas para descrevê-los. De todo modo, o que mais se destaca no processo é a dificuldade de acomodar em uma mesma ordem narrativa interesses, demandas e visões históricas e políticas tão diversas3 3 O recente sequestro da BNCC pelo Congresso Nacional representou justamente o fim nos dissensos, sendo resolvido de modo heteronômico e igualmente autoritário. .

Nesse debate, a vinculação entre história, identidade e nação apresenta-se ainda como um ponto central, tanto de concordância como de conflito. Concordância na medida em que a vinculação é um pressuposto comum no debate que define o lugar herdado da disciplina. A história é vista ali como essencialmente vinculada a formas de identidade nacional, passando pela relação umbilical entre cidadania e Estado-Nação. A discordância diz respeito aos modos como essa relação deve ser hoje estabelecida. Assim, por exemplo, contrasta-se um critério em que a nação, em sua pluralidade, é o nexo central a partir do qual se vincula o ensino de outros passados - caso da primeira proposta da BNCC - com outro, no qual outros passados, entendidos em sua alteridade, serviriam como balizas para problematizar elementos da história nacional - como configurado na segunda versão da proposta.

De todo modo, se a nação e a função identitária da história ainda permanecem como pontos mais ou menos consensuais no debate - seguindo, nesse sentido, uma tendência mais global -, as discordâncias e as fortes disputas acerca do modo como se deve ensinar a história, e especialmente a história do Brasil, vem revelando um cenário bastante fragmentado do lugar e das formas da narrativa histórica que ainda parece estar longe de ser resolvido. Se, até meados do século XX, a disciplina histórica serviu como um elemento central de sincronização de uma memória nacional no seio da história universal, hoje ela parece encontrar dificuldades de, ao mesmo tempo, atender às distintas e candentes demandas sociais e acomodá-las nas formas narrativas e pedagógicas herdadas por sua própria tradição. Os novos conteúdos de experiência já não conseguem se encaixar sem conflitos nos conteúdos pressupostos de sua forma. Soma-se a isso o cenário atual da sociedade contemporânea, tal como destacaram Aleida Assmann e Sebastian Conrad, no qual esse papel de sincronização de memórias, no espaço globalizado ou transnacional, processa-se menos pela disciplina histórica escolar do que pela variedade de mídias disponíveis aos diferentes grupos sociais (Assmann; Conrad, 2015ASSMANN, Aleida. Construction de la memóire nationale: une brève histoire de l’idée allemand de Bildung. Paris: Éditions de la Maison des sciences de l’Homme, 1994.).

Se o foco do primeiro debate gira em torno de habilidades técnicas e de virtudes epistêmicas que garantam ao historiador profissional a produção controlada de uma verdade histórica (distanciamento, desconfiança e objetividade no trato com documentos), no segundo debate, o foco está direcionado ao consumo difuso de passados, às demandas de memória e ao que vem hoje se denominando de “passado prático”, voltado às dimensões éticas e políticas (White, 2014WHITE, Hayden. The practical past. Evanston: Northwestern University Press, 2014.). Voltados a públicos e a finalidades distintas, esses dois debates atuais revelam tanto a permanência de imagens tradicionais do historiador, sedimentadas pela herança disciplinar, como também a necessidade de sua reorientação diante de desafios contemporâneos, como a redefinição dos objetos e recortes cronológicos que definem as grades curriculares, a inserção e a formação de novas habilidades voltadas a novos mercados de trabalho e o trabalho a respeito das demandas de memória por parte de diferentes grupos e identidades sociais, étnicas e de gênero4 4 A tensão entre um passado disciplinar e um passado prático parece estar marcada, por exemplo, na própria fala que Rodrigo Patto, então presidente da ANPUH, dirigiu aos sócios da Associação, delimitando a distinção entre o historiador profissional e os amadores: “A distinção está no fato de a história operar com procedimentos científicos, seguir um método, pautar-se pela crítica das fontes e buscar evidências diversificadas. O historiador deve desconfiar de suas fontes, inquiri-las em busca da verdade, uma meta que é inalcançável em sentido puro, mas que ainda pode levar ao público um conhecimento mais crítico, mais reflexivo. Nós também podemos atender à curiosidade e à necessidade de divertimento do grande público, mas, com a peculiaridade de incluir no pacote o ‘biscoito fino’, ou seja, levar o leitor à reflexão crítica”, (Patto, 2016). .

Pode-se dizer que a disciplina histórica hoje parece transitar de modo tenso entre um passado disciplinar e um passado prático. Um passado disciplinar, cujas razões práticas vinculam-se às próprias condições de sobrevivência e de reprodução da disciplina e do historiador no sistema universitário e escolar; um passado prático, constituído pelas pressões de um cenário marcado pela difusão e pela ampliação dos meios de representação do passado, pelos efeitos da aceleração social e pela globalização das memórias sociais e nacionais.

De todo modo, nesse amplo arco temporal que procurei desenhar, o maior conflito que parece marcar hoje a condição da disciplina histórica, e das humanidades de um modo geral, pode ser visto como uma confusão entre o esgotamento de certos critérios originais de emergência das disciplinas e o esgotamento da forma disciplinar em si. A questão que se impõe nesse cenário é se o esgotamento daqueles critérios de emergência das disciplinas, sedimentados desde o século XIX, deve significar, necessariamente, o esgotamento da forma disciplinar em si, como instância social e institucionalmente estabelecida, dotada de uma autonomia relativa, para a produção de conhecimentos e linguagens. E, nesse sentido, não é possível pensar o futuro das disciplinas de Humanidades sem pensar, ao mesmo tempo, a defesa e a reformulação de um projeto de Universidade como espaço autônomo, socialmente constituído, no qual diferentes linguagens protocolares para descrever e pensar a sociedade e os grupos sociais possam desenvolver-se naquilo que Habermas chamou de um contínuo “combate comunicativo” (Habermas, 1993HABERMAS, Jurgen. A ideia da universidade: processos de aprendizagem, Revista brasileira de estudos pedagógicos, v. 74, n. 176, p. 111-130, 1993.). Um trabalho de linguagem e um combate comunicativo que se enriquece teoricamente de maneira proporcional à democratização da universidade, uma vez que a diversidade social gera o refinamento das categorias a partir das quais a própria sociedade pode se pensar.

Ao refletir sobre uma possível era pós-disciplinar, Jean Louis Fabiani aponta alguns problemas que me parecem importantes nesse sentido. Ao mapear os debates sobre o esgotamento de certas premissas disciplinares e uma possível fusão de disciplinas como a história, a sociologia e a antropologia, ele se pergunta se essa fusão, ou reformulação, viria de cima ou de baixo. Ou seja, se seria um movimento produzido dentro da própria lógica disciplinar, universitária, ou o produto de uma intervenção externa, do Estado ou do mercado (Fabiani, 2012FABIANI, Jean-Louis. Du chaos des discipline à la fin de l’ordre disciplinaire?, Pratiques, p. 153-154, 2012.). Começando a retomar os exemplos citados no início deste ensaio, é possível entender que os projetos de reforma no currículo escolar, em diferentes países, incluindo o Brasil, indicam que a segunda opção está mais próxima de ocorrer. Os agentes estatais, sabendo que não conseguiriam intervir diretamente na organização das disciplinas, agem na base de sua reprodução - o ensino - , e em suas formas de financiamento, provocando seu lento estrangulamento. Desse modo, essa idade pós-disciplinar, promovida por burocratas e por um discurso de gestão, encobre um pesadelo neoliberal, marcado por um mundo fluído, de configurações provisórias. Como diferentes estudos têm demonstrado, há uma forte tendência de implementação e/ou incorporação de formas distintas em universidades de diferentes países, de uma lógica auditiva ou avaliativa comumente denominada “novo gerenciamento público” (New Public Management). Ela se compõe em uma espécie de gramática geral a partir da qual diferentes esferas tornam-se objetos de uma intervenção pautada em conceitos como “eficiência”, “transparência” e “accountability”. Como destacou Chris Lorenz, a consequência típica desse processo é a emergência de um regime de burocratas, inspetores, comissários e especialistas que acabam por erodir a própria autonomia das disciplinas (Lorenz, 2012LORENZ, Chris. If you’re so smart, why are you under surveillance? Universities, neoliberalism, and new public management, Critical Inquiry, 38, p. 599-629, 2012.). Normalmente traduzido em marcos quantitativos de avaliação, vinculados à produtividade, a lógica auditiva implica a imposição de uma lógica geral e abstrata, não convergente com as especificidades e os sentidos de funcionamento das atividades mensuradas, gerando deformação dessas próprias atividades e corrupção do que gostariam que significassem originalmente aqueles mesmos conceitos orientadores. Se os números de produção da área são eloquentes ao mostrar pujança, pouco revelam de seus efeitos reais. Em um estudo focado no campo das letras, por exemplo, Jaime Ginzburg mostrou o descompasso entre a valorização da publicação em periódicos avaliados como A1 pela Capes e o uso, via citações e debates, desses mesmos periódicos. De 85 artigos analisados, apenas três citações foram contabilizadas (Ginzburg, 2015GINZBURG, Jaime. Periódicos acadêmicos: antagonismo entre produção e leitura, Expedições: teoria da história e historiografia, vol. 5, n. 1, p. 10-41, julho, 2014., p. 25; Araujo, 2017ARAUJO, Valdei Lopes de. O regime de autonomia avaliativo no Sistema Nacional de Pós-Graduação e o futuro das relações entre historiografia, ensino e experiência histórica. Anos 90 (Porto Alegre). v. 23, n. 44, 2017.). Portanto, um dos efeitos desse processo é a proliferação eunuca de artigos (ou de coletâneas) sem leitores, cujos efeitos em debates são cada vez menos perceptíveis. Essa lógica implica, ainda, em grande medida, a incorporação por parte dos acadêmicos dessa mesma linguagem, afetando o modo como eles veem e avaliam a si próprios. Chris Shore indicou, nesse sentido, de que modo essa cultura auditiva afeta o modo como os pesquisadores e professores percebem a si mesmos: “it encourages them to measure themselves and their personal qualities against the external ‘benchmarks’, ‘performance indicators’ and ‘ratings’ used by the auditing process” (Shore, 2008SHORE, Chris. Audit culture and illiberal governance: universities and the politics of accountability, Anthropological theory, vol. 8, n. 3, p. 278, 2008., p. 281).

Nesse contexto, as disciplinas parecem estar diante de um par de opções: ou tentar legitimar-se frente a essas novas demandas e linguagens que vêm se impondo de fora com um vigor e uma velocidade incríveis (e, com isso, provar sua “utilidade” instrumental, demarcando espaços onde possam “prestar serviços”), ou então buscar sua legitimação dentro dos princípios de autonomia da comunidade universitária e, com isso, defender essa própria autonomia como princípio e condição para a produção de conhecimento. Nesse ataque que temos vivenciado a respeito das humanidades, em particular, e da universidade, como um todo, o maior risco que enfrentamos é corroer internamente as bases conceituais que (ainda) as sustentam. Ao aplicar vocábulos como “excelência”, “eficiência” e seus medidores quantitativos para estabelecimento de rankings, por exemplo, acabamos por vampirizar todas as práticas cotidianas da universidade e, com isso, mudamos radical e silenciosamente sua estrutura em médio prazo. Defender a universidade, assim como as próprias humanidades, não é tentar legitimá-las a partir de uma linguagem que aparentemente vai causar os efeitos de persuasão já colocados hegemonicamente em certas esferas sociais, como a econômica, mas, sim, fazer valer o léxico que lhe é próprio. Como afirmou recentemente Stefan Collini:

the use of ‘excellence’ and similar bits of patter does have a function: it signals that the university accepts the sovereignty of the current cant, especially the domination of audit populism. [...] And it not only signals acceptance of the coercive fiction of competition - we try to excel, to beat the others, to win - but, implicitly, it also signals acceptance of the conventional forms of the measurement of achievement. This is the great unspoken about ‘excellence’: since it is entirely devoid of content in itself, its presence can only be vouchsafed by some quantitative evidence recognized by outsiders (Collini, 2017COLLINI, Stefan. Speaking of universities. London: Verso, 2017., p. 43).

Defender a universidade implica, em última instância, por meio das linguagens que lhe são próprias, defender também uma outra ideia de sociedade. Na conjuntura de fragmentação da esfera pública talvez também caiba pensar a universidade como um lugar possível de elaboração e ampliação de linguagens e, assim, como um elemento componente da esfera pública, não mais na figura do intelectual solitário, mas como centro canalizador de grupos e demandas sociais diversas. A democratização da universidade se torna, assim, não apenas um elemento ético-político desejável, mas também algo que compõe a própria legitimação teórica das humanidades, uma vez que é ela, a democratização, que gera, no fim, por meio da autonomia disciplinar e do combate comunicativo, a complexificação das linguagens de descrição do mundo a partir das quais a sociedade e, por consequência, as próprias humanidades, podem ser pensadas para além de seu presente imediato, abrindo-as a um futuro não dado de antemão. Ainda que uma certa inércia institucional das disciplinas e mesmo seu corporativismo imponham uma temporalidade na qual mudanças não aconteçam repentinamente, aceitá-las, de todo modo, a partir de ingerências externas específicas pode significar a escolha pelo fim daquilo que o espaço universitário e a forma disciplinar possuem de mais fundamental: a possibilidade de abertura para o que não é dado de antemão. Inclusive a abertura para a elaboração de novas e imprevisíveis linguagens, ainda mais em um mundo tão carente de imaginação de futuros. Mas, para isso, é necessário não apenas enfrentar o que vem de fora da tradição disciplinar, mas a própria tradição. Afinal, como afirmou Humboldt: “A autonomia [universitária] fica ameaçada não apenas pelo Estado, mas também pelas próprias instituições [universitárias] quando, ao assumirem determinada orientação, impedem a emergência de qualquer outra” (Humbold, 2003HUMBOLDT, Wilhelm. Sobre a organização interna e externa das instituições científicas superiores em Berlim. In: KRETSCHMER, Johannes; ROCHA, João Cezar de Castro(Orgs). Um mundo sem universidades? Rio de Janeiro: Eduerj, 2003., p. 87).

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  • WHITE, Hayden. The practical past Evanston: Northwestern University Press, 2014.
  • 1
    Este texto é fruto das reflexões desenvolvidas junto ao ciclo de encontros “A história (in)disciplinada”, ocorridos na UFRGS. Agradeço a todos os participantes pelas valiosas críticas e sugestões, assim como aos colegas Pedro Caldas, Mateus Henrique de Faria Pereira, Aline Mgalhães, Martin Wiklund, Thiago Nicodemo, Géssica Gaio e Arthur Assis pela leitura crítica de versões anteriores do ensaio.
  • 2
    Todos os textos do site da ANPUH foram acessados em agosto de 2016.
  • 3
    O recente sequestro da BNCC pelo Congresso Nacional representou justamente o fim nos dissensos, sendo resolvido de modo heteronômico e igualmente autoritário.
  • 4
    A tensão entre um passado disciplinar e um passado prático parece estar marcada, por exemplo, na própria fala que Rodrigo Patto, então presidente da ANPUH, dirigiu aos sócios da Associação, delimitando a distinção entre o historiador profissional e os amadores: “A distinção está no fato de a história operar com procedimentos científicos, seguir um método, pautar-se pela crítica das fontes e buscar evidências diversificadas. O historiador deve desconfiar de suas fontes, inquiri-las em busca da verdade, uma meta que é inalcançável em sentido puro, mas que ainda pode levar ao público um conhecimento mais crítico, mais reflexivo. Nós também podemos atender à curiosidade e à necessidade de divertimento do grande público, mas, com a peculiaridade de incluir no pacote o ‘biscoito fino’, ou seja, levar o leitor à reflexão crítica”, (Patto, 2016PATTO, Rodrigo. Os lugares dos historiadores na sociedade brasileira, Conferência de abertura do XXVIIISimpósio Nacional de História, Florianópolis, História da historiografia, Ouro Preto, 22 dez. 2016.).
  • 1
    This text is the fruit of reflections carried out in a cycle of meetings “(In)disciplined history”, held in UFRGS. I would like to thank all the participants for their valuable criticisms and suggestions, as well as my colleagues Pedro Caldas, Mateus Henrique de Faria Pereira, Aline Magalhães, Martin Wiklund, Thiago Nicodemo, Géssica Gaio, and Arthur Assis for the critical reading of previous versions of the paper.
  • 2
    All the texts from the ANPUH site were accessed in August 2016.
  • 3
    The recent sequestration of BNCC by the National Congress represented the end of dissensus, being resolved in a heteronomous and equally authoritarian manner.
  • 4
    The tension between a disciplinary past and a practical past is marked, for example, in the speech given by Rodrigo Patto, then president of ANPUH, to the members of the Association, delimiting the distinction between the professional historian and the amateur one: “The distinction lies in the fact that history operates with scientific procedures, follows a method, is based on the critique of sources and the search for diversified evidence. The historian should be skeptical of their sources, should investigate them in search of truth, a target which is unattainable in the pure sense, but which can still present to the public a more critical and reflexive knowledge. We can also satisfy the curiosity and the need for the entertainment of the general public, but with the peculiarity of including the “special treat” in the package, in other words leading the reader to critical reflection”, (Patto, 2016).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018

Histórico

  • Recebido
    25 Jun 2017
  • Aceito
    10 Jul 2017
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