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Intelectuais e culturas políticas em Portugal: à volta de Antero de Quental e António Sérgio

Intellectual and political cultures in Portugal: around Antero de Quental and António Sérgio

Resumo:

O presente artigo procura analisar as produções intelectuais de Antero de Quental e de António Sérgio tendo em vista a construção de uma cultura política racionalista e antagônica às interpretações messiânicas e providencialistas acerca da História de Portugal. Ao mesmo tempo, na medida em que tratamos de dois autores afastados no tempo cerca de meio século, o artigo procura entender em que medida podem Antero e Sérgio pertencer à mesma família política.

Palavras-chave:
Antero de Quental; António Sérgio; Culturas Políticas; Intelectuais

Abstract:

The present article aims to analyse the intellectual productions of Antero de Quental and António Sérgio in order to develop a rationalist political culture opposing the messianic and providentialist interpretations about the History of Portugal. At the same time, inasmuch as we deal with two authors who were separated in the time about half a century, the article tries to understand to what extent Antero and Sergio belong to the same political family.

Keywords:
Antero de Quental; António Sérgio; Political Cultures; Intellectuals

No ano de 1846, o historiador, jornalista e poeta Alexandre Herculano publicou o primeiro volume de sua vasta História de Portugal. Preocupado com o método e a análise racional baseados em fontes documentais, Herculano ganhou, graças a esta obra, o título de “Pai da Historiografia Científica Portuguesa”. Mas o que mais chamou a atenção de seus primeiros leitores foi a contundente crítica à mitificação da Batalha de Ourique, na qual, rezava a lenda, Cristo teria aparecido a Afonso Henriques, auxiliando o príncipe na expulsão dos muçulmanos do território. Segundo Herculano: “A aparição de Cristo ao príncipe antes da batalha estriba-se em um documento tão mal forjado que o menos instruído aluno de diplomática o rejeitará como falso ao primeiro aspecto” (Herculano, 1980HERCULANO, Alexandre. História de Portugal desde o começo da Monarquia até o fim do reinado de Afonso III. Lisboa: Bertrand: 1980. T. 1., p. 658).

Inicio o presente artigo com Alexandre Herculano por dois motivos. Em primeiro lugar, o marco fundado pelo autor, buscando romper com a visão providencialista da história portuguesa, tornou-se referência para todos os que, em seguida, enfrentaram o suposto atraso português. Entre eles, meus intelectuais aqui eleitos, Antero de Quental e António Sérgio. Em segundo lugar, porque chama a atenção o fato de que, em pleno século XIX, quase em sua segunda metade, Ourique continuasse a ser vista a partir do paradigma messiânico, a ponto de o livro de Herculano ter se tornado motivo de fervorosos embates tanto em seu favor como contra. Os trabalhos de Antero e Sérgio que aqui serão discutidos apresentam, de certa forma, os mesmos problemas: o combate a um olhar mítico, religioso e providencialista da condição portuguesa, que se mantinha apesar dos empenhos em sentido contrário.

Comecemos por Antero de Quental. Ainda que contemporâneo do século do liberalismo português, o século XIX, não deixou de criticar o atraso do país e os resquícios ultramontanos tanto em suas instituições quanto no comportamento das pessoas. Nascido em 1842 na ilha de São Miguel, arquipélago dos Açores, mudou-se para Coimbra, onde estudou Direito. Em 1868, em Lisboa, fundou o grupo Cenáculo juntamente com Eça de Queirós, Ramalho Ortigão, Guerra Junqueiro, Teófilo Braga, entre outros. Foi a partir do Cenáculo que se realizaram as famosas Conferências do Casino Lisbonense, em 1871, ocasião em que proferiu sua conhecida palestra, mais tarde transformada em livro, Causas da decadência dos povos peninsulares nos três últimos séculos (Quental 2008). Antero foi também um dos fundadores do Partido Socialista e da seção portuguesa da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT). Nesta organização, mais conhecida como Primeira Internacional, aproximou-se de Proudhon em sua acirrada polêmica com Marx. Em 1891, cometeu suicídio - com dois tiros na boca! - na mesma ilha de São Miguel onde nascera.

António Sérgio nasceu em Damão, na Índia Portuguesa, em 1883. Filho de pai militar, ingressou no Colégio Militar de Lisboa e fez carreira como oficial da Marinha. Por fidelidade ao rei deposto, abandonou a Marinha quando da Revolução Republicana de 1910. Fortemente influenciado por Espinosa e Proudhon, além de Antero, dedicou-se à defesa da educação, participando do projeto de reforma do ensino do mesmo regime republicano a que se opusera quando de sua instauração. Foi sempre articulista de importantes revistas de opinião, como Pela Grei e Seara Nova. Em 1923, no breve governo de Álvaro de Castro (1923-1924), ocupou o cargo de ministro da Educação. Em 1926, com o início da ditadura militar, exilou-se em Paris, onde permaneceu até 1933. Retornando a Portugal naquele ano, militou em favor de um socialismo democrático e de inspiração cooperativista. Entre tantos trabalhos importantes, destacam-se “O Reino Cadaveroso ou O problema da cultura em Portugal”, (Sérgio, 1957aSÉRGIO, António. O Reino Cadaveroso ou O problema da cultura em Portugal. In: SÉRGIO, António . Ensaios. 2. ed. Lisboa: Publicações Europa-América, 1957ª. T. 2, p. 41-83., p. 41-83) “As duas políticas nacionais” (Sérgio, 1957bSÉRGIO, António. As duas políticas nacionais. In: SÉRGIO, António. Ensaios. 2. ed. Lisboa: Publicações Europa-América , 1957b. T. 2, p. 85-122., p. 85-122) e Breve interpretação da História de Portugal (Sérgio, 1974SÉRGIO, António. Breve interpretação da História de Portugal. 5. ed. Lisboa: Sá da Costa, 1974.). Faleceu em Lisboa em 1969, aos 85 anos, já afastado da atividade pública.

Antero e Sérgio, portanto, procuraram dar continuidade ao empenho inaugural de Herculano. Deste modo, é possível afirmar que Portugal viveu, entre a segunda metade do século XIX e as duas primeiras décadas do século XX, um embate entre culturas políticas distintas (Sirinelli, 2002SIRINELLI, Jean-François. De la demeure à l’agora. Pour une histoire des cultures politiques. Vingtième Siècle, v. 57, n. 1, p. 121-131, 1998., 13-28). Aliás, como afirma Jean-Pierre Rioux (1998RIOUX, Jean-Pierre. A cultura política. In: RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean-François (dir.). Para uma história cultural. Lisboa: Estampa , 1998. p. 349-363.), foi na crise de legitimidade da situação revolucionária francesa entre 1789 e 1815 que nasceram, ao mesmo tempo, as culturas políticas do republicanismo e do tradicionalismo. Não há, pois, uma cultura política, mas várias, pelo menos duas, consoante a ocasião. E devem ser entendidas como expressões da cultura global de uma sociedade sem, no entanto, se confundir completamente com ela (Rioux, 1998RIOUX, Jean-Pierre. A cultura política. In: RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean-François (dir.). Para uma história cultural. Lisboa: Estampa , 1998. p. 349-363., 352-355). É verdade que as obras dos autores aqui referidos demonstram que surgiam ventos renovadores. Mas é verdade também que as reações vividas são exemplares da permanência de uma cultura ultramontana bastante consolidada. Não por acaso, durante o Estado Novo, toda uma revisão historiográfica e de inspiração integralista alterou a perspectiva de Herculano e deu fôlego novo ao “eterno retorno” da matriz cristã e sacralizadora da História portuguesa (Carvalho, 1996CARVALHO, Paulo Archer de. Ao princípio era o verbo: o eterno retorno e os mitos da historiografia integralista. Revista de História das Ideias, v. 18, Coimbra, Instituto de História e Teoria das Ideias, p. 231-243, 1996., p. 231-243).

Antero e Sérgio serão aqui entendidos como intelectuais. E, como viveram em tempos distintos, pretendo discutir até que ponto Antero e Sérgio pertenceram, como disse Serge Bernstein, ao mesmo “sistema de representações portadoras de normas e valores que constituem a identidade de grandes famílias políticas” (Bernstein, 1999BENNASSAR PERILLIER, Bartolomé, BERNSTEIN, Serge. Nature et fontion de cultures politiques. In: BENNASSAR PERILLIER, Bartolomé, BERNSTEIN, Serge. Les Cultures politiques en France. Paris: Seuil, 1999. p. 7-31., p. 07-31; 1998BERNSTEIN, Serge. A cultura política. In: RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean-François (dir.). Para uma história cultural. Lisboa: Estampa, 1998. p. 349-363., p. 349-363).

É provável que em Portugal o nascimento desta família política “socialista, republicana e laica” (Pinto, 2010PINTO, Sérgio. “Socialista, republicano e laico”: identidade, programa político e societário. Communio: Revista Internacional Católica, Lisboa, v. 27, n. 1, p. 43-51, jan.-mar. 2010.) tenha nascido com as Conferências do Casino Lisbonense. Iniciadas a 22 de março de 1871, foram, entretanto, interrompidas no dia 26 de junho, ocasião em que seria proferido o discurso “Os historiadores críticos de Jesus”, de Salomão Saraga. Até aquela data haviam sido proferidas as seguintes conferências: “O espírito das Conferências” e “Causas da decadência dos povos peninsulares”, por Antero de Quental; “Literatura portuguesa”, por Augusto Soromenho; “O Realismo como expressão da arte”, por Eça de Queirós; e “A questão do ensino”, por Adolfo Coelho. Além de “Os historiadores críticos de Jesus”, foram também proibidas as seguintes conferências: “O socialismo”, de Jaime Batalha Reis; “A república”, de Antero de Quental; “A instrução primária”, de Adolfo Coelho; e “A dedução positiva da ideia democrática”, de Augusto Fuschini. O número de participantes andava sempre à volta de trezentas pessoas, o que permite avalizar seu impacto e importância em uma Lisboa do século XIX. De acordo com o Jornal da Noite, participaram como ouvintes: “Membros do parlamento, escritores, jornalistas, funcionários superiores e indivíduos pertencentes a diversas classes. Operário e povo propriamente dito não havia naquele recinto ou estavam em minoria”. Não cabe aqui uma análise exaustiva das conferências, mas fica evidente o seu impacto, e não é de se estranhar o incômodo causado em amplas esferas não apenas lisbonenses, mas em todo o país. Segundo Antero, na palestra inaugural, o mundo urge pela “preparação de homens capazes de viver de acordo com os resultados da ciência”. E advertia: Portugal encontrava-se “sequestrado” dos grandes movimentos de mudança existentes na Europa (Mónica, 2001MÓNICA, Maria Filomena. O senhor Ávila e os conferencistas do Casino. Análise Social, v. XXXV, n. 157, p. 1.013-1.030, 2001., p. 1013-1030). E, para ingressar na modernidade europeia, apresentava um diagnóstico e uma proposta, uma “pauta” como se diz hoje, que começava pela defesa da ciência e da razão, caminho adequado para abalar um regime conservador. Mais um aspecto a ressaltar: os conferencistas tinham pouco menos de 30 anos, exceção feita a Soromenho, cerca de uma década mais velho. Pertenciam, pois, a uma geração que, nascida nos anos 1840, não assistiu às batalhas liberais da primeira metade do século, mas que viveu o retorno das radicalizações políticas anticlericais e protorrepublicanas da década de 1860 exatamente no início de suas vidas adultas (Bonifácio, 2007BONIFÁCIO, Maria de Fátima. O século XIX português. 3. ed. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2007., p. 72-83).

Anos depois, na década de 1920, o republicanismo socialista português dava evidências de sua continuidade a partir do grupo organizado em torno da revista Seara Nova, do qual faziam parte, além de António Sérgio, nomes como os de Raul Proença e Jaime Cortesão. Desta revista, assim como no caso do grupo Cenáculo, percebe-se uma evidente intenção de intervir publicamente, pois, na medida em que

[...] a origem da crise nacional residia na aguda degeneração das estruturas mentais da sociedade lusa, [...] o grupo Seara Nova propôs-se, por um lado, a transformar radicalmente a mentalidade da elite portuguesa, de modo a torná-la apta a um “verdadeiro movimento de salvação” e, por outro, a formar uma opinião pública nacional que exigisse e apoiasse as reformas que se fizessem necessárias (Pinho, 2015MARTINS, Guilherme d’Oliveira. António Sérgio, a primeira Seara Nova e a República Moderna. Algumas notas. In: PINHO, Amon; MESQUITA, António Pedro; PINHO, Romana (org.). Proença, Cortesão, Sérgio e o grupo Seara Nova. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2015. p. 283-292., p. 20).

No caso deste periódico, e à diferença da geração do Cenáculo, não ocorreu exatamente um encontro, um ciclo de conferências. A identidade foi construída provavelmente com mais lentidão, mas, ainda assim, com muita eficiência. Não foi por acaso a intensa censura a que a revista foi submetida a partir do golpe de Estado de 1926. Seara Nova foi fundada em 1921, quando seus organizadores tinham à volta de trinta e poucos anos. Nascidos na década de 1880, Cortesão, Proença e Sérgio representavam uma nova geração que, marcada pela intensa politização do final da Monarquia e pela Revolução Republicana de 1910, pretendia, em parte, dar continuidade ao empenho de Eça, Teófilo, Antero e outros.

Falemos, pois, dos assuntos que aproximavam e afastavam uma e outra geração; que aproximavam e afastavam Antero e Sérgio.

Um dos temas tratados pelos diversos autores que beberam da fonte de Herculano foi a expansão marítima. Antero de Quental, por exemplo, reconhece o espírito heroico e guerreiro das Grandes Navegações. Além do conhecido resultado das descobertas e da ocupação dos “novos mundos”, faz referência ao resultado poético, materializado em Os Lusíadas, de Camões. Mas adverte: “A desgraça é que esse espírito guerreiro estava deslocado nos tempos modernos: as nações modernas estão condenadas a não fazerem poesia, mas ciência”. Mais adiante, voltava a se referir a Camões e ao resultado de sua poética para comentar criticamente as navegações: “A tradição, num símbolo terrivelmente expressivo, apresenta-nos Camões, o cantor dessas glórias que nos empobreciam, mendigando para sustentar a velhice triste e desalentada. É uma imagem da nação” (Quental, 2008QUENTAL, Antero. Causas da decadência dos povos peninsulares nos três últimos séculos. Lisboa: Tinta da China, 2008., p. 80-84). Logo Antero, também ele um poeta...

No entanto, ainda que críticos ao ideário camoniano, quando do tricentésimo aniversário da morte de Luís de Camões, em 1880, os republicanos, sob a liderança de seu mais influente teórico positivista, Teófilo Braga, tomaram a iniciativa de propor “três dias de férias públicas”, pois “O Centenário de Camões nesse momento histórico e nessa crise dos espíritos tem a significação de uma revivescência nacional” (Cabral, 1973CABRAL, Alexandre. Notas oitocentistas. Lisboa: Portugália, 1973.). A efeméride camoniana tem, portanto, não apenas um sentido prático e até mesmo pragmático, como também igualmente mítico. Neste aspecto, António Sérgio se distinguiu com firmeza dos primeiros republicanos. A seu juízo, o culto camoniano, como também as comemorações do 1º de Dezembro, data da reconquista portuguesa de 1640, nada mais faziam do que reforçar o pensamento mítico e até mesmo sebastianista em Portugal (Matos, 2015MATOS, Sérgio Campos. António Sérgio e os nacionalismos. In: PINHO, Amon; MESQUITA, António Pedro; PINHO, Romana (org.). Proença, Cortesão, Sérgio e o grupo Seara Nova. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa , 2015. p. 293-307., p. 299-230).

Voltemos a Antero. Para este, a recusa do conhecimento em favor da especulação e da forma em lugar do conteúdo era uma das causas da decadência peninsular: “A uma geração de filósofos, de sábios e de artistas criadores, sucede a tribo vulgar dos eruditos sem crítica, dos académicos, dos imitadores” (Quental, 2008QUENTAL, Antero. Causas da decadência dos povos peninsulares nos três últimos séculos. Lisboa: Tinta da China, 2008., p. 49). Não é mero acaso que esta passagem de Antero é utilizada como epígrafe por Sérgio em “O Reino Cadaveroso”.

Aliás, sobre o papel a ser desempenhado pela ciência, António Sérgio se debruçou com maior afinco, provavelmente devido à sua condição de pedagogo. Refere-se ao século XVII como o século em que triunfou no “espírito crítico e esperimentalista [sic]”. “Pois não tomou Descartes como regra de estudo dar muito mais tempo, nos seus trabalhos, às investigações experimentais que aquelas de pura especulação?” (Sérgio, 1957aSÉRGIO, António. O Reino Cadaveroso ou O problema da cultura em Portugal. In: SÉRGIO, António . Ensaios. 2. ed. Lisboa: Publicações Europa-América, 1957ª. T. 2, p. 41-83., p. 62-64). Recorre, então, à autoridade intelectual de Luis António Verney, um dos “estrangeirados” que antecederam ao Iluminismo em Portugal, e para quem não bastava a citação dos clássicos: era preciso entendê-los e interpretá-los por meio do método crítico. No entanto, “observam os estrangeiros que semelhante método não passara dos Pirinéus para esta parte, principalmente para este reino, no qual ainda não amanheceu neste particular” (Sérgio, 1957aSÉRGIO, António. O Reino Cadaveroso ou O problema da cultura em Portugal. In: SÉRGIO, António . Ensaios. 2. ed. Lisboa: Publicações Europa-América, 1957ª. T. 2, p. 41-83., p. 70). Por este motivo, “no século de Descartes e de Espinosa éramos uns índios Tupinambás” (Sérgio, 1957aSÉRGIO, António. O Reino Cadaveroso ou O problema da cultura em Portugal. In: SÉRGIO, António . Ensaios. 2. ed. Lisboa: Publicações Europa-América, 1957ª. T. 2, p. 41-83., p. 63). Os “estrangeirados”, assim, terão sido um breve alento. De acordo com Francisco Falcon, em seu clássico A época pombalina: política econômica e monarquia ilustrada, a publicação de O verdadeiro método de estudar, de Verney, “sacode a letargia ainda dominante, anima os que vinham tentando mudar as mentalidades, procede, enfim, a um verdadeiro corte decisivo no contexto cultural lusitano” (Falcon, 1982FALCON, Francisco. A época pombalina: política econômica e monarquia ilustrada. São Paulo: Ática, 1982., p. 197). Não é exatamente esta a opinião de Joaquim Romero de Magalhães, para quem os termos “estrangeirado” e “castiço” apresentavam-se como uma espécie de “ideal-tipo” weberiano, no qual, aqueles que estudaram no estrangeiro, “sobre outras realidades pretensamente mais desenvolvidas” (Magalhães, 2004MAGALHÃES, Joaquim Romero. O projecto de D. Luis da Cunha para o império português. In: RIBEIRO, Jorge Martins; SILVA, Francisco Ribeiro da; OSSWALD, Helena. Estudos em homenagem a Luís António de Oliveira Ramos. Faculdade de Letras/Universidade do Porto Edições, 2004. P. 653-659., p. 653), se apresentavam como modernizadores e reformadores do atraso. Os outros, os “castiços” seriam os que se empenhavam para impedir a inovação e a modernidade. Ainda que recusando a dicotomia “estrangeirado” versus “castiço”, Romero de Magalhães via em d. Luis da Cunha, por exemplo, um homem à frente de seu tempo, chegando mesmo a aventar a proposta, em 1735-1736, de translado da corte para o Rio de Janeiro, para onde se poderiam - e deveriam - levar tanto portugueses quato estrangeiros. Similar à tese de Romero de Magalhães é a que apresenta Jorge Borges de Macedo (1979MACEDO, Jorge Borges de. Estrangeirados: um conceito a rever. Lisboa: Edições do Templo, 1979.), para quem a separação entre “nacionais” e “estrangeiros” não passava de uma falsa e arbitrária questão. Vejam que a temática dos estrangeirados é uma obsessão entre os portugueses iniciada na segunda metade do XVII e que permanece, com idas e vindas, nos dias atuais, e quase sempre em torno da tentativa de compreensão de uma suposta “identidade nacional” portuguesa (Sobral, 2012SOBRAL, José Manuel. Portugal, portugueses: uma identidade nacional. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2012.). Tanto para afirmá-la como para refutá-la (Almeida, 2017ALMEIDA, Onésimo Teotónio. A obsessão da portugalidade: identidade, língua, saudade & valores. Lisboa: Quetzal, 2017., p. 29-48). Evitando falsas dicotomias, Onésimo de Almeida trata o conceito como consequência de um conflito de valores entre correntes favoráveis e contrárias ao Iluminismo. E, assim sendo, entre defensores e opositores de uma proximidade maior com a Europa. Sérgio, entre outros, confere ao conceito uma noção positiva por seu pertencimento ao universo iluminista. E o vê como funcional para entender uma forma de pensar que se opunha ao fechamento português diante da Europa já iniciado no “quinhentos” (Almeida, 2017ALMEIDA, Onésimo Teotónio. A obsessão da portugalidade: identidade, língua, saudade & valores. Lisboa: Quetzal, 2017., p. 267-283; Macedo, 1979). Neste sentido, Sérgio era claro em defender a europeização da cultura portuguesa, querendo integrá-la aos debates enfrentados pelo Ocidente em um sentido francamente opositor do isolacionismo que percebia em seu país (Martins, 2015MARTINS, Guilherme d’Oliveira. António Sérgio, a primeira Seara Nova e a República Moderna. Algumas notas. In: PINHO, Amon; MESQUITA, António Pedro; PINHO, Romana (org.). Proença, Cortesão, Sérgio e o grupo Seara Nova. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2015. p. 283-292., p. 286).

Não há dúvidas, portanto, da presença de uma cultura política voltada à renovação por parte de segmentos das elites portuguesas imediatamente prévias à Ilustração, cultura política esta em disputa contra outra cultura presa à tradição e ao distanciamento português com relação à Europa. Sérgio, por exemplo, percebia em Verney uma espécie de porta-voz da disciplina crítica e do experimentalismo. Adepto da experimentação, António Sérgio se apresenta como radical defensor dos estudos matemáticos e experimentais contra o dogma aristotélico. De acordo com suas palavras: “a criação de uma forma de conhecimento segundo a ordem do juízo, da relacionação matemática, da experimentação decisória, e não do conceito ou da percepção” (Sérgio, 1957aSÉRGIO, António. O Reino Cadaveroso ou O problema da cultura em Portugal. In: SÉRGIO, António . Ensaios. 2. ed. Lisboa: Publicações Europa-América, 1957ª. T. 2, p. 41-83., p. 70-72). Mas não apenas a matemática, a física ou o experimento científico mobilizavam António Sérgio. Refere-se, por exemplo, ao papel desempenhado por Alexandre Herculano, o primeiro historiador a analisar criticamente a História de Portugal, assim como, anos depois, Antero de Quental o fará quando da chamada “questão coimbrã” e dos embates entre românticos e realistas (Homem, 2005HOMEM, Amadeu de Carvalho. Do romantismo ao realismo. Temas da cultura portuguesa (século XIX). Porto: Fundação António de Almeida, 2005.), autores que, em larga medida, davam continuidade ao projeto iniciado por Verney. Em outras palavras, para Sérgio, “a experiência é a criação do objecto no conhecimento e pelo conhecimento, [...] graças a um esforço de dessubjectivação do pensar” (Sérgio, 1957aSÉRGIO, António. O Reino Cadaveroso ou O problema da cultura em Portugal. In: SÉRGIO, António . Ensaios. 2. ed. Lisboa: Publicações Europa-América, 1957ª. T. 2, p. 41-83., p.76-83). Ainda que não fale explicitamente, António Sérgio, em sua defesa da experimentação, da dúvida, põe em causa o papel da Igreja como fonte una e absoluta do saber.

Mas, sobre a Igreja, foi Antero quem mais se pronunciou. O autor de Causas da decadência dos povos peninsulares nos três últimos séculos afirma a existência de uma origem democrática do Cristianismo, com relativa margem de autonomia durante o medievo. Não foi por acaso a tolerância a judeus e mouros num tempo em que a “caridade triunfava das repugnâncias e preconceitos de raça e de crença” (Quental, 2008QUENTAL, Antero. Causas da decadência dos povos peninsulares nos três últimos séculos. Lisboa: Tinta da China, 2008., p. 41). Quando das reformas, a tendência predominante seria a do aprofundamento deste modelo “democrático”, fortalecendo as igrejas nacionais em uma espécie de “parlamentarismo religioso pela convocação amiudada dos Concílios, esses Estados Gerais do cristianismo, superiores ao Papa e árbitros supremos do mundo espiritual” (Quental, 2008QUENTAL, Antero. Causas da decadência dos povos peninsulares nos três últimos séculos. Lisboa: Tinta da China, 2008., p. 60). Afirma ainda Antero:

Na Idade Média a Península […] brilha na plenitude do seu génio, das suas qualidades naturais. O instinto político de descentralização e federalismo patenteia-se na multiplicidade de reinos e condados soberanos, em que se divide a Península, como um protesto e uma vitória dos interesses e energias locais, contra a unidade uniforme, esmagadora e artificial. (Quental, 2008QUENTAL, Antero. Causas da decadência dos povos peninsulares nos três últimos séculos. Lisboa: Tinta da China, 2008., p. 38-39)

No entanto, as articulações de Roma, sob a liderança do Papa Paulo III, alteraram as tendência iniciais. Com a mudança do colégio eleitoral do antigo sistema de voto “por nações” para um voto “por cabeças”, o papa conseguiu, com os bispos e cardeais de Roma, a maioria necessária para vencer. “Desde o primeiro dia se pôde ver que a causa da reforma liberal estava perdida. Provocado para essa reforma, o concílio só serviu contra ela, para a sofismar e anular” (Quental, 2008QUENTAL, Antero. Causas da decadência dos povos peninsulares nos três últimos séculos. Lisboa: Tinta da China, 2008., p. 62-63). Quanto à Inquisição, afirmava que aquela instituição “pesava sobre as consciências como a abóbada dum cárcere” (Quental, 2008QUENTAL, Antero. Causas da decadência dos povos peninsulares nos três últimos séculos. Lisboa: Tinta da China, 2008., p. 52). Como resultado, o atraso, ao contrário das nações protestantes, como Alemanha, Holanda, Inglaterra, Estados Unidos e Suíça (Quental, 2008QUENTAL, Antero. Causas da decadência dos povos peninsulares nos três últimos séculos. Lisboa: Tinta da China, 2008., p. 62). Também para afirmar a decadência ibérica, faz referências à arquitetura religiosa do século XV e início do XVI, e a compara com a que veio a seguir. De um lado, a “construção delicada, aérea, proporcional e, por assim dizer, espiritual dos Jerónimos, da Batalha, da Catedral de Burgos”, e, de outro, as decadentes construções do Escorial e de Mafra (Quental, 2008, p. 50). Aqui não deixa de ser curiosa a ode que faz à construção manuelina exemplificada nos Jerónimos e, por extensão, ao rei d. Manuel, exatamente o monarca responsável pela expulsão dos judeus de Portugal como parte dos acordos para o seu casamento com a filha dos reis católicos, Isabel de Aragão e Castela (Herculano, 1980HERCULANO, Alexandre. História de Portugal desde o começo da Monarquia até o fim do reinado de Afonso III. Lisboa: Bertrand: 1980. T. 1., p. 139-145).

Voltando às críticas à Igreja, elas, entretanto, não afastam Antero do elogio ao Cristianismo. Ao contrário, afirma haver uma nítida diferença entre um e outro. “O cristianismo é sobretudo um sentimento; o catolicismo é sobretudo uma instituição (Quental, 2008QUENTAL, Antero. Causas da decadência dos povos peninsulares nos três últimos séculos. Lisboa: Tinta da China, 2008., p. 57). Assim, compara a necessidade da revolução no mundo que lhe é contemporâneo com o advento do Cristianismo. E encerra o seu discurso afirmando que “o Cristianismo foi a Revolução do mundo antigo: a revolução não é mais do que o Cristianismo do mundo moderno” (Quental, 2008QUENTAL, Antero. Causas da decadência dos povos peninsulares nos três últimos séculos. Lisboa: Tinta da China, 2008., p. 95).

No que tange à Igreja Católica, desafortunadamente, ela permanecia como uma espécie de “instituição imaginária”, como diria Castoriadis (1986CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.), ou uma tradição segundo a linha interpretativa de Arno Mayer (1990MAYER, Arno. A força da tradição: a persistência do Antigo Regime (1848-1914). São Paulo: Companhia das Letras , 1990.). Um peso de quase que impossível ruptura. Dizia Antero:

Há em todos nós, por mais modernos que queiramos ser, há lá oculto, dissimulado mas não inteiramente morto, um beato, um fanático ou um jesuíta! Esse moribundo que se ergue dentro de nós é o inimigo, é o passado. É preciso enterrá-lo por uma vez, e com ele o espírito sinistro do catolicismo de Trento. (Quental, 2008QUENTAL, Antero. Causas da decadência dos povos peninsulares nos três últimos séculos. Lisboa: Tinta da China, 2008., p. 74-75)

O avanço do fanatismo católico fez arrefecer, em Portugal, o espírito científico. Como disse Sérgio: “Acabou-se a viagem nos mares do Espírito: pobres das naus das Navegações!, pobres das velas de Portugal! […]. - nos deem o símbolo admonitório dessoutro naufrágio bem funesto: o da nau da Inteligência que buscava a autora, o da mentalidade crítica do Português” (Sérgio, 1957aSÉRGIO, António. O Reino Cadaveroso ou O problema da cultura em Portugal. In: SÉRGIO, António . Ensaios. 2. ed. Lisboa: Publicações Europa-América, 1957ª. T. 2, p. 41-83., p. 60).

O declínio, em Portugal, dos “espíritos críticos” fez com que Antero e Sérgio vissem além dos Pirineus as alternativas necessárias para a recuperação do país. A Europa era, pois, um desiderato.

Ao final do século XVIII, o país assistira a um breve alento após dois séculos de obscurantismo. Afirma Sérgio que em seguida à queda do marquês de Pombal: “Entra-se na época que se caracteriza pelas pensões de estudo no estrangeiro e pelo trabalho metódico da Academia - instituição em que se concretizaram (e bem) as ideias fecundas dos ‘estrangeirados’”. Processo esse parcialmente interrompido e, entretanto retomado com o Constitucionalismo, promotor de uma política de emigração responsável pelo contato de portugueses “no estrangeiro, com o verdadeiro espírito da cultura crítica” (Sérgio, 1957aSÉRGIO, António. O Reino Cadaveroso ou O problema da cultura em Portugal. In: SÉRGIO, António . Ensaios. 2. ed. Lisboa: Publicações Europa-América, 1957ª. T. 2, p. 41-83., p. 76). Mais ainda, para Sérgio, o espírito do Quinhentismo, ao qual Portugal estava integrado, foi promessa que não se cumpriu. “Depois dessa data o facho apaga-se; e o que se vê posteriormente é o estacar (o cair de golpe) desse Portugal do Renascimento” (Sérgio, 1957aSÉRGIO, António. O Reino Cadaveroso ou O problema da cultura em Portugal. In: SÉRGIO, António . Ensaios. 2. ed. Lisboa: Publicações Europa-América, 1957ª. T. 2, p. 41-83., p. 43).

Enquanto o espírito crítico, baseado em métodos experimentais, se difundia pela Europa, em Portugal dominavam as trevas. Sobre o medievo, Sérgio é taxativo: “Eis a coruja de Minerva crucificada num madeiro...” (Sérgio, 1957aSÉRGIO, António. O Reino Cadaveroso ou O problema da cultura em Portugal. In: SÉRGIO, António . Ensaios. 2. ed. Lisboa: Publicações Europa-América, 1957ª. T. 2, p. 41-83., p. 47). No Renascimento, uma revolução material terá gerado uma transformação radical, uma revolução cultural, na Itália e em Portugal:

Dois povos (o italiano e o nosso) se viram à testa da revolução. A faina industrial e o comércio marítimo impeliram à revolução o italiano; e foram as navegações e os descobrimentos (filhos de necessidades comerciais) que iniciaram na nova atitude a mentalidade do Português. (Sérgio, 1957aSÉRGIO, António. O Reino Cadaveroso ou O problema da cultura em Portugal. In: SÉRGIO, António . Ensaios. 2. ed. Lisboa: Publicações Europa-América, 1957ª. T. 2, p. 41-83., p. 47)

Expressa Sérgio, desta forma, aquilo que décadas depois disse Fernand Braudel:

O dinheiro [...] desempenha seu papel de destruidor dos valores e equilíbrios antigos. O camponês assalariado, cujas contas são registradas no livro do empregador, ainda que os adiantamentos em espécies do seu patrão sejam tais que nunca lhe sobra, por assim dizer, dinheiro vivo nas mãos no fim do ano, adquiriu o hábito de contar em termos monetários. Com o tempo, trata-se de uma mudança de mentalidade. (Braudel, 1996BRAUDEL, Fernand. O jogo das trocas. Civilização material, economia e capitalismo: século XV-XVIII. São Paulo: Martins Fontes, 1996., p. 43)

Também para Antero, Portugal se colocara na vanguarda em relação à Europa. Dizia: “Numa coisa, porém, a excedemos, tornando-nos iniciadores: os estudos geográficos e as grandes navegações” (Quental, 2008QUENTAL, Antero. Causas da decadência dos povos peninsulares nos três últimos séculos. Lisboa: Tinta da China, 2008., p. 43). Mais ainda, as descobertas induziram o português a aprofundar o conhecimento científico e a desautorizar os erros das autoridades pretéritas pretéritas (Sérgio, 1957aSÉRGIO, António. O Reino Cadaveroso ou O problema da cultura em Portugal. In: SÉRGIO, António . Ensaios. 2. ed. Lisboa: Publicações Europa-América, 1957ª. T. 2, p. 41-83., p. 51-52). Foi, portanto, da troca material, do desenvolvimento do comércio e da manufatura que se desenvolveu a nova mentalidade europeia. Aliás, não apenas nas trocas comerciais e econômicas, como também nas letras, a vanguarda dos tempos renascentistas se fazia sentir. Mais uma vez, a comparação com a Europa era inevitável:

Erasmo, natureza incapaz de paixões sectárias, e por isso inimiga dos dois fanatismos: o da grei católica e o dos protestantes […]. Erasmo é o primeiro da moderna Europa dos grandes exemplares do humanismo crítico, aplicado às letras e à sociedade, aplicado à religião e à moral. O equivalente dessa sua atitude encontramo-lo em Portugal num Damião de Góis (Sérgio, 1957aSÉRGIO, António. O Reino Cadaveroso ou O problema da cultura em Portugal. In: SÉRGIO, António . Ensaios. 2. ed. Lisboa: Publicações Europa-América, 1957ª. T. 2, p. 41-83., p. 50).

O exemplo de Damião de Góis não é casual. O humanista português, nascido em 1502, durante o reinado de d. Manuel I, foi um dos principais pensadores a defender um projeto no qual Portugal se vinculava mais à Europa do que ao Ultramar. Estava longe de si a ideia de uma Nação mergulhada no Atlântico, como a que afinal veio a predominar (Mendes, 1996MENDES, José M. Amado. Portugal agrícola ou industrial? Contornos de uma polémica e suas repercussões no desenvolvimento. Revista de História das Ideias, v. 18(História - Memória - Nação), Instituto de História e Teoria das Ideias, Faculdade de Letras, Coimbra, 1996., p. 187-230).

Portugal, então pioneiro de todo este processo modernizante, desafortunadamente o abandonou em seguida. Ficara, pois, num quadro desolador, percebido pelos “ilustres” que se formavam no exterior ou pelos estrangeiros que visitavam o país: “Índios americanos, já se deixa ver: paraguaios, botocudos, tupinambás”. Mais uma vez, os tupinambá, ao que se depreende, a eram a antítese da modernidade desejada. Ao mesmo tempo em que Portugal declinava: “Lá fora, pela Europa, vê-se a luminosa e triunfante ofensiva do espírito crítico e experimental”. Mais uma vez citando Verney e seu Verdadeiro método, expõe o atraso português comparativamente à Europa: “Nas Espanhas e mui principalmente em Portugal, vejo desprezar todos os estudos estrangeiros, e com tal empenho como se fossem maus costumes ou coisas mui nocivas”. Sérgio faz também referência ao papel desempenhado pelos “estrangeirados” que, ao final da Guerra de Independência com Castela, em 1668, circularam pela Europa. “As perseguições do Santo Ofício arrojaram de cá os melhores espíritos: e esses emigrados foram compondo, pouco a pouco, a bela falange dos ‘estrangeirados’, quem, como um plenilúnio, iluminou esperançosamente, na segunda metade do XVIII, a nossa noite intelectual” (Sérgio, 1957aSÉRGIO, António. O Reino Cadaveroso ou O problema da cultura em Portugal. In: SÉRGIO, António . Ensaios. 2. ed. Lisboa: Publicações Europa-América, 1957ª. T. 2, p. 41-83., p. 63-67).

Os exemplos de referências à superioridade europeia, em Sérgio, parecem infindáveis. Mas Antero também se refere assim a respeito do papel preponderante da Europa nos anos que em Portugal se vivia a decadência. Segundo suas palavras, anos da morte da inteligência: “A Europa culta engrandeceu-se, nobilitou-se, subiu, sobretudo para a ciência: e foi pela falta de ciência que nós descemos, que nos degredamos, que nos anulamos. A alma moderna morrera dentro de nós completamente” (Quental, 2008QUENTAL, Antero. Causas da decadência dos povos peninsulares nos três últimos séculos. Lisboa: Tinta da China, 2008., p. 51-52). Também Antero faz alusão à proliferação de intelectuais formados no espírito da Renascença e de sua desgraçada perda. Mas é no que diz a respeito do papel da Idade Média que percebemos diferenças de interpretação entre um e outro. Enquanto Antero vê o medievo como um tempo democrático e tendente à descentralização e ao federalismo, pelo menos entre os povos ibéricos, Sérgio o interpreta como um tempo de atraso e obscurantismo.

Muitos autores já superaram a ideia de um medievo exclusivo de trevas. E, naturalmente, o que foi a Idade Média em uma dada região da Europa não foi o mesmo para outra. Johan Huizinga, em estudo sobre a França e os Países Baixos, ao mesmo tempo em que evidencia a riqueza do período, não deixa de afirmar, entretanto, a permanência da hierarquia e do poder da nobreza sobre os demais estamentos. Ainda assim, para o historiador holandês, não parece haver dúvidas de que prevalecia o ideal cavaleiresco, (Huizinga, 2010HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média. Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. São Paulo: Cosac Naif, 2010., p. 85-95) portanto, menos democrático do que aquele imaginado por Antero, mas não necessariamente obscurantista, como quer Sérgio.

Antero se referia também ao papel distinto da nobreza ibérica em comparação com a nobreza do resto da Europa: “Existia, certamente, a nobreza, como uma ordem distinta. Mas o foro nobiliário generalizara-se tanto, e tornara-se de tão fácil acesso, [...] que não é exagerada a expressão daquele poeta que nos chamou […] um povo de nobres” (Quental, 2008QUENTAL, Antero. Causas da decadência dos povos peninsulares nos três últimos séculos. Lisboa: Tinta da China, 2008., p. 39). Sobre esta questão em particular, a proliferação de nobres na península, Rubem Barboza Filho aponta para a peculiaridade da hidalguía espanhola ou fidalguia em Portugal. E cita Weber, que lamentava a inexistência deste segmento nobre na Alemanha. Um segmento capaz, por sua capilaridade, de atenuar a distância entre a nobreza e a plebe (Barboza Filho, 2000BARBOZA FILHO, Rubem. Tradição e artifício: iberismo e barroco na formação americana. Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: Iuperj, 2000. p. 27., p. 27). Afinal de contas, como disse Bartolomé Benassar Perillier, era a fidalguia uma “categoria social chave” exatamente por abrir as possibilidades de acesso ao universo da nobreza de um sem número de homens comuns. De acordo com o historiador espanhol, os fidalgos constituíam a camada inferior da nobreza. Ao mesmo tempo, esta pretensão à fidalguia universal, elogiada por Antero, resultava na diminuição de impostos, no crescimento da casta burocrática, e no arrefecimento da economia (Benassar, 2003BENNASSAR PERILLIER, Bartolomé. Los hidalgos en la España de los siglos XVI y XVII: una categoría social clave. In: RODRIGUEZ SÁNCHEZ, Ángel. Vivir el Siglo de Oro. Poder, cultura y historia en la época moderna. Salamanca: Universidad de Salamanca, 2003. p. 49-60., p. 49-60). Um tema caro ao “profeta” do XIX - como o alcunham seus epígonos -, que, entretanto, ele não chegou a desenvolver. De qualquer forma, fica clara a ausência de crítica de Antero às consequências da “inflação” de fidalgos na Ibéria.

Falemos agora um pouco da expansão, do colonialismo, e de seus impactos materiais e simbólicos em Portugal. Em 1415, os portugueses conquistaram Ceuta, passo importante para a sua expansão marítima rumo ao Oriente. Mais de um século depois, em 1578, o rei d. Sebastião dá azo a sua fértil imaginação de arauto da Cristandade e, no Marrocos, morre sem deixar herdeiro, abrindo margem para a crise sucessória e a consagração do rei como mito (Eliade, 1989ELIADE, Mircea. Aspectos do mito. Lisboa: Edições 70, 1989., p. 120-122): dois acontecimentos distantes e, entretanto, interligados na história da aventura ultramarina portuguesa. Sobre Ceuta, António Sérgio critica a interpretação romântica e pouco afeita à crítica das fontes em Oliveira Martins, para quem a empreitada que levou à conquista desta cidade no estreito de Gibraltar se deveu ao espírito de Cavalaria dos portugueses. Tratar-se-ia, pois, de uma gesta militar de tradição medieval a fim de “brandir um golpe no Islamita”. Ao contrário de Oliveira Martins, Sérgio propõe a explicação de que a ocupação da cidade responderia às necessidades lusitanas de resolver a crise do tráfico ultramarino. E mais: aqueles que defendiam a empreitada pertenciam a uma nova fidalguia originária da revolução burguesa do mestre de Avis. Tinham, portanto, a mentalidade de classe média que, naquele momento, impulsionava a nacionalidade e buscava responder às necessidades da classe burguesa a que pertencia (Sérgio, 1949cSÉRGIO, António. Repercussões duma hipótese: Ceuta, as navegações e a gênese de Portugal. In: SÉRGIO, António. Ensaios. Lisboa: Guimarães Editores, 1959. T. 4, p. 203-217., p. 310-324). Afirma Sérgio que “a revolução do mestre de Avis e os Descobrimentos haviam sido, desde o início, obra dessa burguesia comercial-marítima - de mentalidade europeia, internacional - que assegurou o trato mercantil dos produtos orientais” (Sérgio, 1959SÉRGIO, António. Repercussões duma hipótese: Ceuta, as navegações e a gênese de Portugal. In: SÉRGIO, António. Ensaios. Lisboa: Guimarães Editores, 1959. T. 4, p. 203-217., p. 209). Tratava-se, assim, de uma empreitada de classe para “a façanha mais grandiosa de toda a história da humanidade”. E o trabalho de expansão obedecia a critérios absolutamente racionais e planejados, e, portanto, longe de qualquer aventura militar: “o claríssimo pensamento precedia o nobre feito” (Sérgio, 1949cSÉRGIO, António. Repercussões duma hipótese: Ceuta, as navegações e a gênese de Portugal. In: SÉRGIO, António. Ensaios. Lisboa: Guimarães Editores, 1959. T. 4, p. 203-217., p. 328-329). Em favor de sua tese, fazia Sérgio referência a Jaime Cortesão, que, rejeitando a opção de Oliveira Martins, via no caminho tomado em direção a Ceuta “um plano político cujo fim podia ser a Índia e a decisiva solução dos problemas básicos do alto comércio e da finança europeia”, (Sérgio, 1959SÉRGIO, António. Repercussões duma hipótese: Ceuta, as navegações e a gênese de Portugal. In: SÉRGIO, António. Ensaios. Lisboa: Guimarães Editores, 1959. T. 4, p. 203-217., p. 210-211). problemas esses decorrentes da “asfixia” causada pela ação inibidora da circulação dos produtos orientais executada pelos piratas ao norte da África. Ao mesmo tempo, impedia que Castela precedesse a Portugal no descobrimento do caminho à Índia.

Com relação a d. Sebastião, Sérgio se aproveita do trabalho do historiador Lúcio de Azevedo, A evolução do sebastianismo, de 1918AZEVEDO, J. L. A evolução do sebastianismo. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1918.. Sua análise, mais uma vez, vai de encontro às teses de Oliveira Martins, que, segundo Sérgio “esteve o mais longe que é possível daqueles ideais de objectividade e que [...] viu no sebastianismo ‘uma manifestação do génio natural íntimo da raça’ [...] aquele ‘mistério vedado à razão’ com que Oliveira Martins nos vai brindando [...]”. É, portanto, a partir do paradigma da razão que Sérgio parte para entender a mitificação da figura de d. Sebastião, rei e fenômeno que são assim por ele descritos: “O Sebastianismo! Condensado sobre o vulto de um romântico pedaço de asno - desse inexcedível pedaço de asno que foi o senhor rei D. Sebastião - quanta nubívaga retórica tem ele inspirado à literatura... e à literatice dos nossos dias!”. Sérgio, longe de uma interpretação ambientada na raça, aponta, em concordância com o trabalho de Azevedo, para uma cultura, uma formação decorrente “da educação profetista dos eclesiásticos e de seus factos históricos supervenientes: fenómeno social e intelectual, portanto, independente da raça em que se manifestou” (Sérgio, 1949bSÉRGIO, António. As duas políticas nacionais. In: SÉRGIO, António. Ensaios. 2. ed. Lisboa: Publicações Europa-América , 1957b. T. 2, p. 85-122., 294-296). Distancia-se, pois, do profetismo e milenarismo de Gonçalo Annes Bandarra, autor, em suas Trovas messiânicas (Lima 2009LIMA, Luís Filipe Silvério. O percurso das trovas de Bandarra: percurso letrado de um profeta iletrado. In: MEGIANI, Ana Paula; ALGRANTI, Leila (org.). Império por escrito. São Paulo: Alameda, 2009.), das primeiras letras que serviram como argumento de autoridade ao sebastianismo. Tratar-se-ia, neste caso, de uma tradição de busca do Encoberto, da necessidade de reencontro com o Messias. Literatura que se fez à farta não apenas em Portugal como também em Castela, nos demais reinos da Ibéria, e mesmo em Itália. Assim, refere-se Sérgio a “uma transmissão de ideias, de uma influência intelectual” pretérita e de importante dimensão. O caminho estava, pois, dado. “O trono sem sucessor; o estrangeiro à porta; um rei desaparecido que pode reaparecer... D. Sebastião é o bronze que vem encher [...] o molde do Encoberto e do Prometido, anteriormente preparado”. O acontecimento de Alcácer Quibir terá dado azo a novas narrativas míticas, ancoradas na fé e na “psicologia da raça” que Sérgio tanto combateu. Neste sentido, em 1640 o restaurador d. João IV substituiu Sebastião nesse “antigo molde do Encoberto”. Sérgio aponta, neste capítulo, as diferenças entre um e outro episódio: “o bandarrismo de 1640 não constitui sebastianismo, no sentido estrito desta palavra: pois busca uma interpretação onde D. Sebastião não é chamado, e que em parte se verificou na restauração de Portugal”. Ainda assim, ficara na memória coletiva como tal. No entanto, um sebastianismo não resolvido, que não realizou os desejos do Quinto Império, como igualmente não realizaram seus diversos sucessores. Não tem problema, “o ‘sebastianismo’ adormenta-se ou recrudesce, segundo a calma ou revoltilho da própria existência nacional, incluindo a igrejola pateta dos sebastianistas propriamente ditos”. Assim, reanima-se conforme as circunstâncias e o grau das imensas crises portuguesas. Foi este, por exemplo, o caso das invasões francesas:

D. Sebastião desembarcaria em Lisboa com um exército temerando, para varrer os Franceses, destroçar Bonaparte junto a Évora, e alcandorar-se por aí arriba até o império universal. Disparavam nessa idiotia os dois últimos séculos de decadência, de parasitismo metropolitano, de sistemático retraimento para com o espírito da Europa culta. (Sérgio, 1949bSÉRGIO, António. A conquista de Ceuta. In: SÉRGIO, António. Ensaios. 2. ed. Lisboa: Atlântica-Coimbra , 1949c; T. 1, p. 307-329., p. 303)

Afirma Sérgio, como vimos, que a cultura do sebastianismo tem origem não em uma psicologia de raça, mas em condições concretas em que determinadas crenças se desenvolveram em terreno fértil. Além de Oliveira Martins, aponta Teófilo Braga, o porta-voz do republicanismo positivista, como igualmente responsável pela difusão da cultura messiânica em pleno século XIX. Ao contrário, para o ensaísta: “A esperança num Messias, num desejado, num Redentor, é comum a todas as raças” (Sérgio, 1949aSÉRGIO, António. Espectros. In: SÉRGIO, António. Ensaios. 2. ed. Coimbra: Atlântida, 1949ª. T. 1, p. 203-227., 298-305). E considera que Portugal mantinha todas as condições de permanência desta cultura. A seu ver, “o messianismo terá vida [...] enquanto se impuser a este povo, a contrapor à sua fictícia e tão efêmera grandeza, o espetáculo persistente da sua lúgubre decadência, acrescido à falta de uma boa elite - que lhe dê ensino de racionalismo de método, de clareza mental”. Jacqueline Hermann, estudiosa do sebastianismo, demonstra a força de sua tradição. Afirma a autora, em análise sobre o período das invasões napoleônicas, a existência de uma “memória sebástica”, um campo de disputa entre favoráveis e contrários a d. Sebastião e ao sebastianismo que, digladiando-se por meio da escrita, mantiveram vivo o rei morto ou não mataram o rei vivo (Hermann, 2012HERMANN, Jacqueline. D. Sebastião, sebastianismo e “memória sebástica”: as invasões francesas e os impasses da história portuguesa. In: HERMANN, Jacqueline; AZEVEDO, Francisca; CATROGA, Fernando (org.). Memória, escrita da história e cultura política no mundo luso-brasileiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012. p. 119-168., p. 119-169). Neste sentido, permaneceria aquilo que Sérgio chamou de “tirania do passado”, ou seja, a permanência do “espectro dos mortos” (Sérgio, 1949cSÉRGIO, António. Repercussões duma hipótese: Ceuta, as navegações e a gênese de Portugal. In: SÉRGIO, António. Ensaios. Lisboa: Guimarães Editores, 1959. T. 4, p. 203-217., p. 203-227). Ao contrário da leitura positivista de alguns republicanos, Teófilo Braga à frente, “os mortos não deveriam comandar os vivos” (Matos, 2015MATOS, Sérgio Campos. António Sérgio e os nacionalismos. In: PINHO, Amon; MESQUITA, António Pedro; PINHO, Romana (org.). Proença, Cortesão, Sérgio e o grupo Seara Nova. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa , 2015. p. 293-307., p. 302). E, neste sentido, se distinguia de um dos pilares do pensamento conservador do século XIX, Edmund Burke, para quem somente o passado justifica a existência presente. E o futuro não existe (Burke, 1997BURKE, Edmund. Reflexões sobre a revolução em França. 2. ed. Brasília: Editora UNB, 1997., p. 67).

Outro aspecto explorado por Antero e Sérgio é o problema da colonização e da política econômica perpetradas pelo Estado português. O ensaísta Eduardo Lourenço, em seu livro A Nau de Ícaro, de 2001, faz referência a um quadro de Pieter Brueguel intitulado La chute d’Icare, pertencente ao acervo do Museu Real de Bruxelas. À direita do quadro, vê-se uma imponente carranca, e no alto de seus mastros, suas bandeiras com as armas de Portugal. Pouco importa se o porto desenhado pelo artista flamenco era Antuérpia, Delft ou outro sítio qualquer da Flandres ou da Holanda do século XVII. O que importa para o tema aqui tratado é que a bela pintura de Brueguel é contemporânea de um tempo de auge marítimo e mercantil de Portugal. De um tempo, como diriam nossos dois autores, em que Portugal havia sido moderno. E esta nau, no ensaio de Lourenço, representativa do Século de Ouro português, do Timor ao Brasil, passando pela África e pelas ilhas atlânticas, regressa a partir de meados da década de 1970 ao porto de Lisboa, só que não mais como proprietária de tantas terras nas quais o “sol nunca se punha”, mas perdida em seu projeto e em seu destino. Não regressou porque quis, mas porque as circunstâncias assim se impuseram (Lourenço, 2001LOURENÇO, E. A nau de Ícaro ou o fim da emigração. In: LOURENÇO, E. A nau de Ícaro. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 44-53., p. 44-53). Os portugueses foram ao mar com o desiderato das conquistas. Os lusitanos que viviam no ultramar, em meados dos anos 1970, voltaram a terra por imposição da descolonização e do ocaso de seu ultracolonialismo, para utilizar aqui o conceito desenvolvido por Perry Anderson (Anderson, 1966ANDERSON, Perry. Portugal e o fim do ultracolonialismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.). Em seguida, ou contemporâneas deste regresso forçado, outras partidas, desta feita, para a Europa: mão de obra barata de quem, outrora, considerava-se dono de portos, de mares e de terras. Resta saber, assim, o porquê do fracasso desta política de expansão das gentes portuguesas pelo mundo nas interpretações de Antero e Sérgio, anunciada por eles e confirmada por Lourenço.

Antero de Quental, a despeito do elogio ao povo de nobres, lamentava o caráter aristocrático da monarquia, responsável pelo bloqueio ao desenvolvimento da classe média e, consequentemente, da “burguesia, a classe moderna por excelência, civilizadora e iniciadora, já na indústria, já nas ciências, já no comércio” (Quental, 2008QUENTAL, Antero. Causas da decadência dos povos peninsulares nos três últimos séculos. Lisboa: Tinta da China, 2008.). A facilidade com que as riquezas de outras terras aportavam em Lisboa fez com que a agricultura local se dilapidasse e a indústria sequer fosse pensada. E, desta forma, a riqueza ultramarina se perdia tão facilmente quanto chegava. O português foi aos poucos adquirindo horror ao trabalho: do grande da nobreza ao homem simples (Quental, 2008QUENTAL, Antero. Causas da decadência dos povos peninsulares nos três últimos séculos. Lisboa: Tinta da China, 2008., p. 78-79).

António Sérgio aponta para o empenho industrial, o comércio e o contato entre homens de “costumes diversos” que levaram Atenas às revoluções intelectuais, assim como o desenvolvimento do comércio e da indústria igualmente alteraram as mentalidades na Europa do Renascimento. No caso de Portugal, as grandes navegações resultaram nos estudos acerca dos fenômenos da natureza e da matemática, fundamentais para a melhoria das técnicas de navegação. Como consequência, “novas terras, novos mares, climas novos e estrelas novas” (Sérgio, 1957aSÉRGIO, António. O Reino Cadaveroso ou O problema da cultura em Portugal. In: SÉRGIO, António . Ensaios. 2. ed. Lisboa: Publicações Europa-América, 1957ª. T. 2, p. 41-83., 47-52). Apesar do fantástico acontecimento que foram as descobertas, Sérgio é, delas, absolutamente crítico, não tanto em “O Reino Cadaveroso”, mas principalmente em Breve interpretação da história de Portugal (Sérgio, 1974, p. 39-129) e no ensaio “As duas políticas nacionais”. Neste texto, lamentava a perda do legado da revolução do Mestre de Aviz: “uma classe de fidalguia nova, com mentalidade burguesa e não rural”. E esta perda se devia à escolha da “política de circulação” em detrimento da “política de produção”. Assim, não se trata de negar a colonização, mas de qual colonização se deve seguir. Em outras palavras, a circulação arrefecia o ânimo pelo trabalho e tirava o camponês de sua terra, não para trabalhar na indústria, mas para sair aos mares em busca da riqueza fácil. A Independência do Brasil em 1822 teria sido a última oportunidade de reverter o quadro: de incentivar, enfim, a fixação, a produção em lugar dos transportes e da circulação. No entanto, o que se fez foi reproduzir na África um “novo Brasil”, com o mesmo método aparentemente fácil e consequentemente danoso (Sérgio, 1857bSÉRGIO, António. As duas políticas nacionais. In: SÉRGIO, António. Ensaios. 2. ed. Lisboa: Publicações Europa-América , 1957b. T. 2, p. 85-122., p. 85-122).

Antero de Quental lamenta a gradual perda das colônias para holandeses, ingleses e franceses. Assim, portugueses e espanhóis iam minguando em extensão e importância. Monarquias como a francesa, ainda que sujeitando o povo como quaisquer monarquias absolutas, não deixavam de abrir espaço para o progresso. Ao contrário, em Espanha e Portugal permanecia a mentalidade exclusivamente aristocrática. Mediante o morgadio firmaram-se imensas propriedades, fazendo desaparecer a pequena agricultura. Outro elemento a explicar a decadência ibérica foram as conquistas. Refere-se Antero aos primeiros séculos da Monarquia portuguesa e ao caráter essencialmente agrícola da sociedade, como que a confirmar uma política de fixação, os cognomes dos reis: o povoador (referindo-se a Sancho I, 1185-1211) ou o lavrador (referindo-se a Dinis I, 1279-1325). As conquistas, entretanto, mudam o panorama e fazem uma espécie de revolução ao revés. “Atraída pelas riquezas acumuladas nos grandes centros, a população rural aflui para ali, abandona os campos, e vem aumentar nas capitais o contingente de miséria, da domesticidade ou do vício”. Aliás, não só os trabalhadores agrícolas: “Os nobres deixam os campos [...] aonde viviam em certa comunhão com o povo, e vêm para a corte brilhar, ostentar... e mendigar nobremente”(Quental, 2008QUENTAL, Antero. Causas da decadência dos povos peninsulares nos três últimos séculos. Lisboa: Tinta da China, 2008.). Além de empobrecer Portugal, esta mentalidade terá sido também a responsável pela estagnação do Brasil e das costas africanas. O modelo de nação conquistadora, com todo o seu peso católico e inquisitorial, produziu na península um profundo horror ao trabalho e o desprezo à indústria: “[...] uma fábrica, uma oficina, uma exploração agrícola ou mineira, são coisas impróprias da nossa fidalguia”. Por fim, faz uma comparação entre outras conquistas e as conquistas luso-hispânicas:

As conquistas romanas são hoje justificadas pela filosofia da história, porque criaram uma civilização superior àquela de que viviam os povos conquistados. A conquista da Índia pelos Ingleses é justa, porque é civilizadora. A conquista da Índia pelos Portugueses, da América pelos Espanhóis, foi injusta, porque não civilizou (Quental, 2008QUENTAL, Antero. Causas da decadência dos povos peninsulares nos três últimos séculos. Lisboa: Tinta da China, 2008., p. 47-89).

Antero e Sérgio são dois importantes referenciais de uma cultura racionalista, laica e republicana em Portugal. E procuraram explaná-la, entre outros vetores, por meio de uma intensa atividade pública. Na qualidade de “ideólogos”, mediaram sem as amarras inerentes aos “experts”, para usar aqui as definições de Norberto Bobbio a respeito dos intelectuais (Bobbio, 1997BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade contemporânea. São Paulo: Editora da Unesp, 1997., p. 71-75). Assim, desde cedo as conferências incomodavam. Ecoavam na imprensa com palavras de apoio e de oposição. A justificativa dada para a proibição se devia ao fato de que havia “chegado ao conhecimento de el-rei que ali se expunham doutrinas atacando a religião católica e as instituições políticas do Estado” (Mónica, 2001MÓNICA, Maria Filomena. O senhor Ávila e os conferencistas do Casino. Análise Social, v. XXXV, n. 157, p. 1.013-1.030, 2001., p. 1013). Também Pela Grei e Seara Nova interferiram politicamente em um país às vésperas ou mesmo durante uma dura e longeva ditadura. Na defesa de um projeto universalista para Portugal, eram, como seus conterrâneos do passado, estigmatizados como “estrangeirados”. Mas não tinha problema, era isso mesmo o que pretendiam: integrar o país à Razão da Europa e distanciá-lo do que chamavam “atraso tupinambá”.

Por fim, se a cultura política é, como a conceituou Jean-François Sirinelli, uma “leitura comum do passado, uma projeção no futuro vivida em conjunto” (Sirinelli, 1998SIRINELLI, Jean-François. De la demeure à l’agora. Pour une histoire des cultures politiques. Vingtième Siècle, v. 57, n. 1, p. 121-131, 1998., p. 121-131), então é possível afirmar que Antero e Sérgio compartilharam a mesma cultura. Pertenciam, pois, à mesma família “socialista, republicana e laica”(Pinto, 2010PINTO, Sérgio. “Socialista, republicano e laico”: identidade, programa político e societário. Communio: Revista Internacional Católica, Lisboa, v. 27, n. 1, p. 43-51, jan.-mar. 2010., p. 43). Ambos partilharam, ainda que em tempos distintos, uma linguagem ancorada nas Luzes, no combate ao absolutismo e na defesa do progresso para o Portugal em que viviam, com incoerências e incompletudes naturais ao pensar e ao agir humanos, mas sem negar o fato de que compartilharam entre seus pares, no âmbito de uma pluralidade de culturas políticas, valores que os conduziam a um mesmo projeto mais preocupado com a construção do futuro do que propriamente com o renascer do passado encoberto (Rioux, 1998RIOUX, Jean-Pierre. A cultura política. In: RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean-François (dir.). Para uma história cultural. Lisboa: Estampa , 1998. p. 349-363., p. 351-354).

O presente artigo contou com o apoio do CNPq através do projeto “Conflito, conciliação, império e humanismo: quatro abordagens da questão nacional no mundo contemporâneo”, coordenado pela professora doutora Denise Rollemberg

(Departamento de História da UFF).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jul 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    28 Abr 2018
  • Aceito
    26 Ago 2018
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