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História relacional: uma entrevista com Dale Tomich

Resumo:

Entrevista realizada com o historiador Dale Tomich em 30 de maio de 2019, na cidade de Niterói.

Palavras-chave:
Sistemas-mundo; Ciências sociais; Fernand Braudel Center

Abstract:

Interview with historian Dale Tomich, conducted on May 5, 2019, in the city of Niterói

Keywords:
World-systems; Social sciences; Fernand Braudel Center

Dale Tomich é professor aposentado do departamento de sociologia da Binghamton University (SUNY). Seus escritos são amplamente conhecidos pelo público brasileiro, em especial pelo conceito de “segunda escravidão”, cunhado em um dos artigos que fazem parte de Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial (Edusp, 2011). Tomich também participou ativamente do desenvolvimento do Fernand Braudel Center (FBC), na mesma universidade, cujo encerramento está previsto para 2021. A biblioteca e a rede de contatos do FBC estão em processo de transferência para o recém-fundado Centro Sobre Desigualdades Globais da Universidade Federal Fluminense (UFF).

1. O Fernand Braudel Center (FBC) foi fundado em 1976. Você acredita que ele cumpriu os objetivos e a missão originalmente estabelecidos?

Sim, ele se tornou o que deveria ter se tornado. Originalmente, foi uma ideia de Imannuel Wallerstein, que planejou tanto o programa de pós-graduação em sociologia como a ideia do Centro [em Binghamton]. As origens mais remotas do Centro remetem ao tempo em que Terence Hopkins e Wallerstein eram professores na Columbia University. Houve então o grande movimento estudantil de 1968 e Hopkins e Wallerstein ficaram ao lado dos estudantes, tendo então que deixar Columbia. Hopkins foi para Binghamton, uma instituição de alta qualidade, a joia da coroa de todo o sistema universitário do estado de Nova York, e que seria o campus de ciências sociais e humanidades. Ele conseguiu, então, trazer Wallerstein como professor para fundar o Fernand Braudel Center.

2. Como operava o Fernand Braudel Center?

O Centro era um programa de pesquisa, mas a pesquisa era sempre organizada coletivamente. Os professores formariam equipes, seus alunos seriam parte das equipes e suas dissertações eram realmente produzidas por meio do Centro e não pelos departamentos específicos. Wallerstein às vezes chegava com uma proposta de pesquisa, outras vezes elas eram colaborativas. A ideia era formar um grupo e tentar conseguir o financiamento. Uma vez que se tornava um grupo de pesquisa, eles trabalhavam coletivamente; e os alunos de Binghamton entravam nos grupos de pesquisa, com dissertações que geralmente emergiam dessas experiências. Um dos grandes problemas era que os alunos estavam fazendo um trabalho magnífico nos grupos de pesquisa, mas outros professores, que não queriam mudanças e atuavam segundo uma lógica estritamente departamental, diziam: “eles não estão fazendo nenhum curso, como vamos avaliar o que estão fazendo?”.

Finalmente, nosso projeto de pesquisa acompanhou uma reforma do programa de pós-graduação em sociologia. Hopkins planejou um currículo brilhante. Nós não treinávamos as pessoas para fazer alguma coisa, os alunos eram nossos colegas mais novos e nós os guiávamos. Eles definiam seus próprios projetos e podiam alterar suas bancas a qualquer momento. E o que realmente funcionava era que nós sempre tivemos bancas de quatro: havia um presidente titular, mas todas as quatro pessoas na banca eram iguais. Então o outro lado do Centro era uma pedagogia que Hopkins inventou e que, em termos de formação de pessoas como intelectuais, era genial. Outras pessoas queriam que fosse mais burocrático, com regras etc. Eles não conseguiam lidar com flexibilidade. Era uma comunidade absolutamente livre de intelectuais por meio da qual a geração mais jovem se desenvolveu, mas eles podiam controlar seu próprio desenvolvimento. Foi um tipo de experiência genuinamente coletiva.

3. Os alunos, portanto, tinham um papel realmente ativo no Centro, certo?

Os estudantes eram realmente independentes. A coisa toda era baseada no desenvolvimento de trabalhadores intelectuais, e não treinados de qualquer jeito; e para ser inovador e usar a perspectiva do sistemas-mundo para fazer coisas novas. Como não era exatamente um treinamento, mas um tipo de trabalho mais coletivo, os estudantes tinham grande participação. Eles podiam fazer propostas. Inicialmente, por exemplo, não havia um curso de teoria, mas os alunos vieram e disseram que queriam um. Hopkins concordou e então deram o curso para mim. Essa é uma grande qualidade de Wallerstein que poucos sabem. Ele definitivamente tinha seus próprios interesses, mas era muito aberto à ideia de trabalhar com os estudantes dessa forma. Ele era, de muitas maneiras, tremendamente democrático.

4. E como funcionavam os grupos de pesquisa?

Parte dos grupos de pesquisa era formada para conseguir financiamento. Fazíamos uma chamada aberta a todos os institutos e departamentos com determinada proposta. Os estudantes que estavam interessados vinham para a reunião e gastavam um bom tempo discutindo e formulando o problema, decidindo como o explorariam, quem trabalharia com o que e como iriam juntar tudo aquilo e transformar em um projeto de pesquisa. Cada grupo de trabalho tinha entre sete e oito pessoas. Um com 15 talvez fosse grande demais. E com frequência existiam vários grupos ao mesmo tempo. Nós também tínhamos um secretário administrativo que estava envolvido com todos os projetos.

5. E a publicação dos resultados na Review era o ponto de chegada?

Isso. Se você pesquisar a Review, verá que há, por exemplo, um número sobre cadeias mercantis. Wallerstein publicou um artigo, Arrighi outro, e então você tinha os trabalhos dos estudantes (Review, 1986REVIEW (Fernand Braudel Center), v. 10, n. 1, 1986.).

6. Quantos professores estiveram envolvidos ao mesmo tempo com o Fernand Braudel Center? Como vocês trouxeram pesquisadores de fora?

Se havia oito professores fixos envolvidos com o projeto do sistema-mundo, era muito. Além deles, tínhamos outros, de quatro a seis professores, a depender das flutuações do programa internacional de professores visitantes. Nós tivemos essa criação maravilhosa que foi a contratação de professores internacionais visitantes, com Wallerstein dividindo a bolsa de um ano para professores sêniores em períodos menores, o que nos permitia trazer um número maior de professores para o Centro com os mesmos recursos. Eram professores que vinham por seis semanas todo ano, então podiam participar de bancas. Foi assim que Aníbal Quijano veio, como Catherine Coquery-Vidrovitch veio, Yann Moulier Boutang veio. Perry Anderson também foi nosso professor visitante. Eles não apenas vinham como professores visitantes, mas se sentiam comprometidos com o projeto. Por quê? Não porque tivéssemos muito dinheiro, nós nunca tivemos muito. Mas porque tínhamos uma boa agenda de pesquisa. E acho que para vocês, na UFF, a internacionalização é importante. Se vocês se internacionalizarem, aparecerão no mapa.

7. Um dos legados do Fernand Braudel Center foi a criação de uma linguagem conceitual que as pessoas podem compartilhar na academia e fora dela, o que ajuda cientistas sociais a abordarem problemas mais amplos que seus tópicos de pesquisa específicos. Quão difícil foi criar essa linguagem comum?

O Centro tinha dois eixos. Um era a mudança histórica de longa duração e em larga escala, o sistema mundial de Wallerstein, que era o que nos tornava conhecidos. Mas existiam e ainda existem outras visões. Giovanni Arrighi tinha uma crítica (Arrighi, 1998ARRIGHI, Giovanni. Capitalism and the Modern World-System: Rethinking the Nondebates of the 1970’s. Review (Fernand Braudel Center), v. 21, n. 1, p. 113-129, Jan. 1st, 1998.). Terry [Terence Hopkins] em certo nível apoiava totalmente a perspectiva, mas também me estimulou a escrever o livro sobre Martinica dizendo “essa é a crítica que precisamos” (Tomich, 1990TOMICH, Dale Wayne. Slavery in the Circuit of Sugar: Martinique and the World Economy, 1830-1848. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1990.). Internamente, portanto, era bastante aberto, o que ajudou a criar essa linguagem compartilhada.

Mas o outro eixo era a ideia de uma ciência social histórica unidisciplinar. Essa não era uma metodologia abstrata. Hopkins era realmente brilhante e criativo quando o assunto era metodologia. Ele dizia: não há metodologia, nossos cursos são chamados de “métodos”, eles não são para ensinar metodologia para as pessoas. Metodologia não é interessante, é uma técnica, uma coisa formalizada. Mas métodos são sempre guiados por problemas. Você deve inventar métodos adequados ao seu problema. Wallerstein inventou um método adequado a este novo objeto, a análise do sistema-mundo capitalista, que abriu espaço para a pesquisa em temas particulares com base em uma linguagem analítica compartilhada.

8. De que formas você acha que a perspectiva do sistema-mundo desafia os paradigmas predominantes das ciências sociais?

Todas as ciências sociais e a história são pluralistas ou individualistas em suas abordagens, bem como nacionalistas. Elas têm o pressuposto, consequentemente, de que há muitas sociedades com características semelhantes e que é possível compará-las. A perspectiva de sistemas-mundo inverte isso. Há apenas uma unidade e tudo que você poderia considerar uma sociedade independente na verdade faz parte daquela unidade de uma forma ou de outra. Dito isso, chamaria a atenção para três pontos.

Em primeiro lugar, se você voltar para a comparação formal com isso em mente - por exemplo, com uma comparação entre a colonização do Brasil e dos Estados Unidos e tratando esses processos como fenômenos autônomos, sem conexões entre si, seja diretamente ou por meio de um sistema mundial que abarca ambos - você verá que não tem as condições para comparar porque você não pode isolar os casos. Mesmo que pareçam significativamente distantes, eles todos são parte de um mesmo sistema.

Em segundo lugar, o ponto aqui não é o de extrair o perfil do caso, como se existisse um para a Bolívia, outro para o Peru. A questão é: quais são as relações que, por exemplo, produzem Cuba? Como Cuba, Brasil e os Estados Unidos eram expressões de processos globais que tinham um dinamismo particular? Se você quer fazer trabalho comparado, você deve, de alguma forma, construir os casos de modo comparável. A beleza da abordagem do sistema-mundo é que ela fornece caminhos e pressupostos: que o que é importante é o diferente, não tente criar homogeneidade. Como explicar processos que criam especificidades? Você pode ver, então, o tempo, espaço e especificação de formas que não vê quando pensa em termos de sociedades nacionais independentes tanto no tempo quanto no espaço.

Finalmente, as partes não são epifenômenos do todo. Não é uma questão de decidir se o Brasil é uma semiperiferia ou uma periferia. O problema aqui é que as categorias de semiperiferia e periferia já estão dadas e você tenta encaixar o Brasil nelas. Então eu simplesmente abandonei isso. É uma questão de tentar especificar historicamente relações particulares no tempo e no espaço enquanto parte de um todo em transformação. A ideia de dialética do concreto de Karel Kosík me foi bastante útil nesse sentido (Kosík, 2002).

9. Epistemologicamente, um dos grandes desafios de cientistas sociais e historiadores é entender a noção de que existe um todo espaço-temporal como a economia mundial que é ao mesmo tempo universal (ou autouniversalizante) e não homogêneo. Como lidar com a ideia de um todo que não é idêntico a si mesmo?

À medida que escrevia o livro sobre a Martinica, o momento em que realmente deslanchei foi quando percebi que poderia ter o sistema-mundo como a unidade de análise e a Martinica como o objeto ou unidade de observação. Enquanto mantinha isso em mente e desenvolvia a ideia de segunda escravidão, disse a mim mesmo: na verdade é uma questão de especificar o que é a parte; e ao mostrar que os processos que criam a Martinica são diferentes dos que criam Cuba, você está dizendo algo sobre a natureza da economia-mundo.

Considerar o todo como universal e heterogêneo requer que tenhamos uma distinção clara entre a unidade de análise e a unidade de observação. Você pode ter o sistema-mundo capitalista como a unidade de análise e como objeto de análise, mas os dois não são a mesma coisa. Ao tornar explícita essa simples distinção, que é também uma distinção entre história e teoria, tudo fica mais evidente. Por isso Kosík foi importante para mim. Ele me ajudou a construir a dialética do concreto: como tornar concreto historicamente o que o sistema-mundo foi em determinado momento no tempo ao tornar concreto o que foi a segunda escravidão. Isso abre um todo que é completamente diferente da história ou ciência social convencionais, além de mudar o sistema-mundo, pois você para de tentar enfiar toda mudança histórica em categorias fixas.

10. Como superar as oposições conceituais binárias que as ciências sociais normalmente usam: agência/estruturas, trabalho escravo/trabalho assalariado, permanência/mudança, teoria/história, micro-história/macro-história? Como a perspectiva de sistemas-mundo o ajuda a reformular e redefinir essas oposições em vez de ser aprisionado por elas?

Esta será uma resposta longa (risos). Tanto Braudel quanto o Marx dos Grundrisse são cruciais aqui (Marx, 2016MARX, Karl. Grundrisse: Foundations of the Critique of Political Economy. New York: Vintage Books, 1973.). O grande ponto que Immanuel me permitiu ver foi o seguinte: eu vim da história social dos anos 1960 e Braudel já era visto como o inimigo, o vilão conservador que não via a luta de classes, coisa e tal. Eu tinha, portanto, certo desinteresse e antipatia em relação a Braudel. E então finalmente percebi ao ler o Capital e dizer aos alunos: “Marx tem a famosa passagem ‘a escravidão é o pedestal do trabalho assalariado’. O que ele está efetivamente fazendo é abstrair da escravidão para falar do trabalho assalariado. Ele está abstraindo dos camponeses poloneses para falar do trabalho assalariado. Ele está constantemente abstraindo da complexidade do mundo histórico para isolar seu tema teórico, a forma capitalista”. Então eu gradualmente percebi: “Uau, se você quer escrever uma história marxista você tem que virar o Capital de cabeça para baixo e rastrear todas as coisas a partir das quais ele abstraiu”. Então você começa a perceber como a escravidão formou o trabalho assalariado historicamente. Você enxerga qual era o lugar dos servos poloneses nessa história. Então pensei: “se você fizer isso com todo o Capital, o resultado seria muito parecido com Braudel”. Isso mudou completamente a minha orientação. A despeito de discordâncias que as pessoas têm, eu acho que poucas pessoas têm clareza de qual deve ser a relação entre teoria e história. O Capital não é uma coisa prescritiva, ele apenas lhe dá categorias, como Hopkins sempre disse: o método tem que ser apropriado ao objeto. O Capital lhe dá categorias apropriadas para pensar o capitalismo como um sistema histórico, e não universaliza ou naturaliza aquilo que você está observando.

O que eu gostava do Braudel era que as estruturas são estruturas históricas temporais, elas mudam no tempo, não são estruturas althusserianas. Não é esse tipo de estruturalismo. Você tem que lidar com isso e pensar em tempos múltiplos, diferentes níveis do mundo que têm sido construídos pela agência humana, mas sem uma correspondência direta entre ação e estrutura. Estruturas não negam a agência. Elas ajudam as pessoas a contextualizar a agência e a especificá-la. Para mim, a especificação histórica é o grande objetivo, em termos tanto de categorias quanto de relações espaço-temporais. É isso que precisamos fazer. Isso deriva da forma como a perspectiva do sistema-mundo inverteu a lógica da ciência social convencional. O objetivo não é conseguir características estáticas das coisas e sim especificar no tempo e no espaço por que, por exemplo, a Martinica é diferente de Cuba ainda que por fora elas se pareçam.

11. Braudel, portanto, lhe ajudou a enxergar mudanças nas estruturas. E os Grundrisse ? Como o ajudaram a fugir das dualidades binárias das ciências sociais conven­cionais?

Os Grundrisse me ajudaram a ver a estrutura na agência e na mudança. Aqui o diálogo com Thompson foi importante. Thompson era uma figura poderosa. Em 1966, estudei com Thompson por um semestre em um tutorial, enviado como estudante de graduação de Wisconsin. Eu nem sabia quem era Thompson; então, em 1965, meu orientador em Wisconsin, Harvey Goldberg, disse: você tem que conhecer esse cara. Ele me deu o William Morris de Thompson (1955)THOMPSON, Edward Palmer. William Morris, Romantic to Revolutionary. London: Lawrence & Wishart, 1955.. A Formação da Classe Operária Inglesa havia acabado de sair e era muito difícil de encontrar em Wisconsin (Thompson, 1987THOMPSON, Edward Palmer. The Making of the English Working Class. New York: Pantheon Books, 1964.). E esse foi o primeiro livro de história sério que li de capa a capa. Ele foi tremendamente importante para mim. Thompson sempre me disse quando eu era seu aluno: a história é a disciplina do contexto. Ele olhava para a classe trabalhadora e eu olhava para os escravos. Os dois grupos eram de trabalhadores, eles eram explorados, mas o contexto é diferente, então como entender o contexto?

Quando o Miséria da Teoria foi publicado, você podia ver onde Thompson começou a se perder (Thompson, 1981). Ele joga fora os Grundrisse. É aqui que você perde tudo. Marcus Rediker viu a coisa do jeito certo: Thompson chegou a um limite, e a forma de superar esse limite foi por meio do envolvimento político em movimentos sociais. Foi assim que ele se tornou um ativista antinuclear, como se dissesse: “não sou mais um historiador”. Mas eu posso te mostrar o meio parágrafo [na Miséria da Teoria] em que ele se perde. Ele não compreende como os Grundrisse na verdade abrem o Capital na forma como [Roman] Rosdolsky descreve (Rosdolsky, 2001ROSDOLSKY, Roman. The Making of Marx’s “Capital”. London: Pluto, 1989.). Nesse momento pude me libertar de sua influência excessiva. Eu parei de tentar imitá-lo, seu trabalho não poderia ser o modelo mais.

Se você me comparar a Peter Linebaugh ou [Marcus] Rediker, eles obviamente parecem thompsonianos e eu não (Linebaugh; Rediker, 2008LINEBAUGH, Peter; REDIKER, Marcus. The Many-headed Hydra: Sailors, Slaves, Commoners, and the Hidden History of the Revolutionary Atlantic. Boston: Beacon Press, 2000.). O que resultou de meus estudos com Thompson parece completamente oposto a Thompson na superfície. Minha experiência com Marx e com meus colegas em Binghamton, especialmente com Philip McMichael, me levaria a uma visão diferente sobre coisas básicas. Estruturas e propriedades são pré-condições para a agência. Quando falo das diferenças entre trabalho escravo e assalariado, não estou negando a agência. Estou especificando como eles são diferentes. Se você olhar para todos esses caras, os historiadores sociais da resistência, o que temos é uma “agência prematura” pois eles não analisam as mediações que tornam aquela agência possível. Eles vão direto ao agente quando leem suas fontes e a agência vem do nada. É uma característica inata ao agente. Não há história. Não há análise. “Agência prematura” sempre me pareceu uma boa forma de descrever essa abordagem.

12. Historiadores e cientistas sociais no Brasil, mas também em outros países, geralmente veem a teoria da dependência e a perspectiva do sistema-mundo como uma coisa só...

É verdade, muita gente lê a perspectiva do sistema-mundo como uma versão da teoria da dependência.

13. Por que eles estão errados? Quais são as diferenças, na sua opinião?

Bom, meu livro sobre a Martinica é totalmente distinto da minha tese de doutorado sobre a colônia francesa (Tomich, 1976TOMICH, Dale Wayne. Prelude to Emancipation: Sugar and Slavery in Martinique, 1830-1848. 1976. Ph.D. - The University of Wisconsin. Madison, USA, 1976.). Partes estão na tese. Mas o único modelo para a minha tese era a teoria da dependência. Até eu chegar a Binghamton, tudo o que eu havia lido, e mesmo isso era difícil de acessar, era a teoria da dependência.

E então encontrei a abordagem do sistema-mundo e disse: essa é uma forma polivalente de se pensar sobre isso, e é muito melhor que a teoria da dependência. Para substituir a teoria da dependência pela perspectiva do sistema-mundo em meu livro eu tive que reescrever a minha tese três vezes por meio de uma autocrítica. Não recomendaria isso a ninguém (risos), mas aprendi muito fazendo assim. Foi assim que comecei a ver a diferença entre teoria da dependência e sistemas-mundo. O problema com a teoria da dependência é que ela é sempre bilateral ou bipolar: metrópole/colônia. A perspectiva dos sistemas-mundo tinha acabado de aparecer quando cheguei a Binghamton. Então disse: isso é legal, pois você tem que enxergar a Martinica em relação ao Haiti, em relação à Jamaica, em relação ao império britânico, em relação ao império francês. Tudo se torna relacional, e relacionado de várias dimensões, com a ideia de que tudo também é específico.

Deixe-me dar outro exemplo. Eu tive um aluno, Richard Yidana, que pegou aquele livro do Isaacman, Cotton is the Mother of Poverty, sobre algodão em Moçambique no século XX, e escreveu um ensaio simples, porém brilhante, sobre ele (Isaacman, 1996ISAACMAN, Allen F. Cotton is the Mother of Poverty: Peasants, Work, and Rural Struggle in Colonial Mozambique, 1938-1961. Portsmouth, NH: Heinemann, 1996.). Ele disse: se você ler esse livro, toda a organização é em torno da dependência entre a produção de materiais primários em Moçambique e a indústria têxtil em Portugal. Mas se você avançar e colocar a indústria têxtil portuguesa no contexto da produção têxtil mundial, a coisa toda parece completamente distinta. Não é um poder superimperial sugando sua colônia, é uma economia em declínio que drena tudo da colônia para sobreviver. Não é uma relação bilateral. As relações multilaterais é que importavam e que intensificaram as tensões que levaram à luta de independência. Ele alterou todo o enquadramento em torno da comparação bilateral com a historicização e problematização de Portugal, todo o problema parecia completamente diferente de quando visto com as lentes da relação metrópole-colônia. Para voltar a sua questão anterior: essa é outra oposição conceitual básica das ciências sociais que a perspectiva do sistema-mundo ajuda a reenquadrar e superar. Nesse sentido, é uma perspectiva maravilhosa para se pensar século XXI adentro.

References

  • ARRIGHI, Giovanni. Capitalism and the Modern World-System: Rethinking the Nondebates of the 1970’s. Review (Fernand Braudel Center), v. 21, n. 1, p. 113-129, Jan. 1st, 1998.
  • ISAACMAN, Allen F. Cotton is the Mother of Poverty: Peasants, Work, and Rural Struggle in Colonial Mozambique, 1938-1961. Portsmouth, NH: Heinemann, 1996.
  • KOSÍK, Karel. Dialectics of the Concrete: A Study on Problems of Man and World. Dordrecht, Holland: DReidel PubCo, 1976.
  • LINEBAUGH, Peter; REDIKER, Marcus. The Many-headed Hydra: Sailors, Slaves, Commoners, and the Hidden History of the Revolutionary Atlantic. Boston: Beacon Press, 2000.
  • MARX, Karl. Grundrisse: Foundations of the Critique of Political Economy. New York: Vintage Books, 1973.
  • REVIEW (Fernand Braudel Center), v. 10, n. 1, 1986.
  • ROSDOLSKY, Roman. The Making of Marx’s “Capital” London: Pluto, 1989.
  • THOMPSON, Edward Palmer. The Making of the English Working Class New York: Pantheon Books, 1964.
  • THOMPSON, Edward Palmer. The Poverty of Theory & Other Essays New York: Monthly Review Press, 1978.
  • THOMPSON, Edward Palmer. William Morris, Romantic to Revolutionary London: Lawrence & Wishart, 1955.
  • TOMICH, Dale Wayne. Prelude to Emancipation: Sugar and Slavery in Martinique, 1830-1848. 1976. Ph.D. - The University of Wisconsin. Madison, USA, 1976.
  • TOMICH, Dale Wayne. Slavery in the Circuit of Sugar: Martinique and the World Economy, 1830-1848. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1990.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Out 2019
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    22 Ago 2019
  • Aceito
    26 Ago 2019
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