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O rei como dispensador da graça: autos de livramento crime e cultura jurídica criminal em Curitiba (1777-1800)

A king that grants grace: autos de livramento crime and legal criminal culture in Curitiba (1777-1800)

Resumo:

O objetivo deste artigo é compreender a configuração, em terras coloniais, da cultura jurídica criminal com vinculação à economia da graça em fins do século XVIII. O estudo é realizado a partir dos autos de livramento crime encontrados entre os anos 1777 e 1800 na vila de Curitiba. Este procedimento da tradição jurídica portuguesa mantinha como prática a rediscussão do cerne da investigação de um crime a fim de prover espaço de defesa ao réu e livrá-lo da culpa imputada. A análise dos casos é conectada com o contexto (a partir de doutrina, manuais praxistas e legislação) para a compreensãodos padrões de funcionamento da justiça em uma localidade periférica do Império Ultramarino Português. Em suma, a conclusão defendida é a presença da amálgama da economia da graça no interior das engrenagens da ordem jurídica criminal, embasada no imaginário do rei misericordioso.

Palavras-chave:
Direito Criminal Colonial; Processo Cri­minal Colonial; Cultura Jurídica; Vila de Curitiba

Abstract:

The article’s aim is understand the configuration of legal culture in colonial lands with the economyof grace in the late eighteenth century. The sources are the autos de livramento crime from 1777 to 1800 from the village of Curitiba. This procedure was specific from the Portuguese legal tradition and was a way to re-discuss the gilt of a defendant that was already accused author of a crime. The analysis of the sources is connected with the context (by the doctrine, the praxistas manuals and the legislation) for understand the standards of justice functioning in a peripheral locality of the Portuguese Empire. In short, the conclusion points to the presence of the economy of grace within the criminal legal order, based on the imaginary of the merciful king.

Keywords:
Colonial Criminal Law; Colonial Criminal Procedure; Legal Culture; Village of Curitiba

Introdução

O presente artigo tem por objetivo apresentar uma faceta pouco conhecida da cultura jurídica1 1 No interior deste conceito, o jurídico é tomado como um fenômeno cultural, possuindo padrões de comportamento [vinculados a habitus (Elias, 1990)] que tenham dimensão de regras, práticas, saberes, ritos, crenças e técnicas específicas ao mundo jurídico. No campo da cultura jurídica existiu, nos moldes das pesquisas de Ginzburg (2006, p. 12-20), confluências e trocas recíprocas entre a alta e a baixa culturas — isto é, a circularidade entre dois níveis culturais (Bakhtin, [xref ref-type="bibr" rid="r1"]1987[/xref], p. 2). A primeira corresponde aos padrões e comportamentos hegemônicos, dominantes, reproduzidos em meios cultos e universitários, enquanto a cultura “popular” diz respeito à reproduzida pelos extratos sociais mais “baixos”, camponeses, detendo uma série de práticas compartilhadas por uma mesma comunidade. Importante ressaltar que não se deseja, ao trabalhar com estes conceitos, criar uma dicotomização entre esses dois níveis. Não se deseja estabelecer um corte e delimitar em que ponto estaria finalizada uma cultura e iniciada a outra, mesmo porque compreendidas num mesmo todo social (Ginzburg, 2006, p. 22-23). O objetivo é evidenciar elementos culturais mais ou menos agregados na dependência dos espaços a que se mantenha referência, com atenção à circularidade. Ainda, cabe mencionar que a orientação metodológica deste trabalho, pressupondo os conceitos supracitados, é o paradigma indiciário de Ginzburg (1991, 2006, p. 13, 21). criminal colonial em fins do século XVIII - o período do “iluminismo jurídico-penal” (Cavanna, 2005CAVANNA, Adriano. Storia del diritto moderno in Europa: le fonti e il pensiero giuridico. v.II. Milão: Dott. A. Giuffrè, 2005., p. 81; Grossi, 2008GROSSI, Paolo. Para além do subjetivismo jurídico moderno. In: FONSECA, Ricardo Marcelo; SEELAENDER, Airton Cerqueira Leite (Orgs.). História do direito em perspectiva: do Antigo Regime à modernidade. Curitiba: Juruá, 2008. p. 19-29., p. 24-25; Neder, 2007NEDER, Gizlene. Iluminismo jurídico-penal luso-brasileiro: obediência e submissão. Rio de Janeiro: Revan, 2007.): as formas de livrar, sobretudo os autos de livramento crime. Este modo específico de obter liberdade, como será melhor exposto no avançar dessa discussão, constituía-se em um procedimento judicial que ocorria posteriormente à pronúncia,2 2 Segundo Joaquim José Caetano Pereira e Sousa (1827, p. 403), era a “Sentença do Juiz, que declara o Réu suspeito do delito, que faz o objeto da Devassa, ou da Querela contra ele dada, e o põe no número dos culpados”. havida em sede de devassa3 3 As devassas eram procedimentos existentes somente no “direito pátrio” português, sem correspondentes no direito comum (Leitão, 1745, 2009, p. 369). Configuravam, em suma, procedimentos de inquirição de trinta testemunhas por meio dos quais se concluía pela culpa e, consequentemente, pela suspeição dos sujeitos mencionados nos depoimentos. As devassas gerais investigavam crimes incertos, de modo ex officio e deveriam ser realizadas ao início de cada ano (Portugal, Ordenações filipinas. L. I, 1870, tits. LVIII, §22, §31, LXV, §39-§69). As devassas especiais investigavam crimes certos e eram formadas somente quando eram trazidas ao conhecimento do juiz informações e suspeitas (Ibidem, tit. LXV, §31-§33; Portugal, Ordenações filipinas. L. V, 1870, tit. CXVII; Leitão, 1745, 2009, p. 369-372). ou querela,4 4 Querela, sumariamente, era a forma de processamento de crimes privados (crimes certos), iniciada a partir de uma queixa prestada ao juiz. Era obrigatória a oitiva de quatro testemunhas (Portugal, Ordenações filipinas. L. V, 1870, tit. CXVII, §6; Pereira e Sousa, 1800, cap. III, §26, §29). e mantinha por objetivo fazer com que o condenado fosse livrado da culpa que lhe foi imputada, excluindo-se, portanto, o crime em si e toda e qualquer cominação que pudesse ser dele advinda.

Este objeto é estudado a partir de fontes5 5 A documentação histórica foi coletada no Fundo do Poder Judiciário Estadual mantido no Arquivo Público do Paraná, Fundo BR PRAPPR PB045, anos 1697 a 1980. Neste trabalho foram selecionadas as caixas 65 a 114, compreendendo os anos de 1777 a 1800, consultados os documentos de referências PC2031 a PC3128, totalizando 1.097 processos do juízo ordinário da Vila de Curitiba e da Ouvidoria de Paranaguá (na competência da Ouvidoria incluem-se as Vilas de Iguape, Cananeia, Paranaguá, Antonina, Castro, São Francisco do Sul e Lages). Especificamente quanto às citações diretas da documentação, optou-se pela atualização na grafia das palavras sem alteração da pontuação. O grifo em negrito em todas as citações foi inserido pelos autores. da vila de Curitiba,6 6 A vila de Curitiba, no período de referência da presente pesquisa, era parte da capitania de São Paulo (tendo em vista a criação do governo independente desta em 1765) (Gouvêa; Bicalho, 2013, p. 33) e configurou-se ao longo do século XVIII em roteiro de passagem de expedições destinadas aos limites entre as colônias portuguesa e espanhola. A identificação enquanto uma vila periférica é dada a partir não somente da distância geográfica no interior da América Portuguesa, mas também pelo fato de não representar uma localidade economicamente importante, não ser uma cidade litorânea e, para além, não ser de fácil acesso pela localização no Primeiro Planalto Paranaense. A posição fronteiriça em relação ao Império Ultramarino Português configura-se como zona privilegiada para o decifrar de realidades opacas (Ginzburg, 2014, p. 177). com atenção à contextua­lização no interior da ordem jurídica criminal. A lógica do direito e do processo criminais era composta por diversas camadas, dimensões normativas e regulamentares, e uma das principais amálgamas era a economia da graça.7 7 A economia da graça, que fazia parte das estruturas político-jurídicas-administrativas da monarquia corporativa portuguesa, compreendia os atos régios de concessão de privilégios com a contrapartida de obediência ao reinado por parte dos súditos. Foi responsável pela formação de redes de interdependência entre o rei e vários grupos corporativos existentes na sociedade de Antigo Regime. Na seara criminal, fora posto em prática sobretudo pelos instrumentos do perdão e das cartas de seguro (Hespanha, 1993, p. 298; 2010, p. 103). A ordem configurava-se no próprio imaginário político, aqui compreendido o modelo cristão de virtudes régias (Hespanha, 1993HESPANHA, António Manuel. Como os juristas viam o mundo, 1550-1750: direitos, estados, pessoas, coisas, contratos, ações e crimes.Lisboa: Amazon (impressão sob demanda), 2015., p. 297-298; 2010HESPANHA, António Manuel. A política perdida. Curitiba: Juruá, 2010., p. 103; 2012HESPANHA, António Manuel. Caleidoscópio do Antigo Regime. São Paulo: Alameda, 2012.; 2015HESPANHA, António Manuel. Como os juristas viam o mundo, 1550-1750: direitos, estados, pessoas, coisas, contratos, ações e crimes.Lisboa: Amazon (impressão sob demanda), 2015., p. 672).

O estudo do Direito e dos processos criminais no âmbito colonial, no contexto do Antigo Regime (Vainfas, 2000VAINFAS, Ronaldo (Org.). Dicionário do Brasil colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2000., p. 43-46; Hespanha, 1982HESPANHA, António Manuel. História das instituições: épocas medieval e moderna. Coimbra: Almedina, 1982.), se faz relevante por prestar análises com atenção às vicissitudes próprias das sociedades do período, compreendendo a montagem das relações simbólicas e de poder existentes entre as comunidades políticas, entre a metrópole e as periferias do Império Ultramarino Português.8 8 Esta noção, empregada pela primeira vez por Charles Boxer (2008) como Império Marítimo Português, emerge na tentativa de se compreender o complexo conjunto de relações havidas na dinâmica ultramarina portuguesa. Abarca a lógica das redes imperiais, inter-relações tecidas por meio da circulação de oficiais régios, trocas comerciais e, para além, trocas de aspectos culturais, de forma a conectar as pontas do Império.

É salutar considerar a existência de uma rede de relações interdependentes entre agentes e funções, com a coexistência de interesses locais e metropolitanos - objeto de amplo debate historiográfico. A ambiguidade do Direito praticado possibilitava a autonomia relativa dos organismos locais ao mesmo tempo que efetivava a vontade régia, superando a visão dicotômica entre centro e periferia. O entendimento deste espectro enquanto uma constelação de poderes (Monteiro, 2001, p. 282) traz à tona a evidência da porosidade do “sistema” como um todo, bem como permite conceber os elementos que lhe conferiram equilíbrio (Bicalho, 2009BICALHO, Maria Fernanda Baptista. Crime e castigo em Portugal e seu Império. Topoi (Rio de Janeiro). n.1, p. 224-231, 2000., p. 91).

Os autos de livramento crime em meio à documentação do Juízo Ordinário e da Ouvidoria

A documentação selecionada nesta pesquisa permite a visualização do funcionamento da administração da justiça em uma região periférica do Império Ultramarino Português. Acredita-se, ainda, que abra possibilidades para entrever as formas pelas quais a alta cultura jurídica portuguesa e seu formalismo9 9 É possível afirmar que os oficiais locais da vila de Curitiba tiveram contato com a alta cultura jurídica a partir não somente da legislação régia, mas também de doutrinas do direito comum e régio e dos estilos dos tribunais à época. Cronologicamente: em 1693, a petição de instalação das justiças na vila de Curitiba consta fundamentada nas Ordenações (Negrão, v.I, 1906, p. 4), bem como existem anotações de compra dos livros desta legislação régia em 1704 e de 1706 a 1709 (Ibidem, v.VI, 1906, p. 4). Em 1721, o ouvidor Raphael Pires Pardinho (ouvidor da capitania de São Paulo nomeado em 1717) promoveu correição na vila de Curitiba e deixou Provimentos com especificações quanto às regras cabíveis às câmaras, ao seguimento das Ordenações, dos Regimentos e da legislação régia (Negrão, v.III, 1924, p. 6). Estes foram repetidos em seu conteúdo ao longo de todo o século XVIII (Santos, 2000, p. 1). Ainda, há citações das leis em quase todos os processos jurídicos entre 1777 e 1800 (nas áreas cível e crime da jurisdição da Ouvidoria) por procuradores, magistrados e promotores. Quanto ao contato com os estilos dos tribunais régios, em alguns processos há pedidos de procuradores pelo seguimento destes e citações a doutrinadores e praxistas da tradição jurídica portuguesa, como Jorge de Cabedo e Prospero Farinacci. Acredita-se que isto sugere o interesse por parte dos oficiais camarários pelo respeito à padronização, à burocracia e ao formalismo imperiais desde o início da fundação da vila. circularam na porção sul da colônia americana, recepcionados por uma elite local entendida, à época, como rústica pelos letrados, que demonstra, todavia, uma ampla complexidade no manejo das formas jurídicas.

No recorte criminal, foram encontrados ao total 155 processos e 91 autos de livramento crime, distribuídos entre as competências dos Juízos Ordinários10 10 Os juízes ordinários eram oficiais eleitos pelas elites locais sem que houvesse a necessidade do letramento. A ausência de bacharelado não significava necessariamente a rusticidade: estes oficiais familiarizavam-se com os termos judiciais, aprendiam as técnicas e formalismos próprios dos foros e tentavam ao máximo reproduzir o estilo jurídico havido na metrópole imperial. Administravam a “justiça dos povos” com base no direito costumeiro, nos forais (Portugal, 1870, p. 134, nota 2), nos preceitos do “direito régio” cujo manejo ocorria segundo seu arbítrio e de acordo com elementos casuís­ticos. Por ser um oficial escolhido entre a elite local e detentor de um elevado poder de autonomia no interior do conselho camarário, é visto pela maior parte da historiografia brasilianista como um pivot no que tange às questões da vila (Hespanha, 1994, p. 163; Fragoso; Guedes, 2014, p. 13-14; Bicalho, 2001). Quanto à esfera criminal, sua competência, em suma, englobava processamento de devassas gerais de crimes incertos (Portugal, Ordenações filipinas. L.I, 1870, tit. LXV §39 a §69), devassas especiais, ou particulares, de crimes certos (Idem, ibidem, §31 a §33) e de querelas (Portugal, Ordenações filipinas. L.V, 1870, tit. CXVII). das vilas vinculadas à Ouvidoria da comarca de Paranaguá e de competência originária do ouvidor.11 11 Os ouvidores eram oficiais de carreira, letrados e selecionados pela Coroa (usualmente pelo Desembargo do Paço) para o cargo. No exercício ao longo da América Portuguesa na segunda metade do século XVIII passaram a acumular as funções descritas nas Ordenações para os corregedores (Hespanha, 1994, p. 192-193), cujas atribuições versavam acerca da administração da justiça, do poder de polícia e fiscalização das câmaras (Portugal, Ordenações filipinas. L.I, 1870, tit.LVIII, §31). No âmbito criminal, em suma, eram responsáveis pelo segundo grau de jurisdição (ou seja, conhecimento de agravos), por inspecionar prisões, mover ação nova ou avocar processos dos juízos ordinários sob sua jurisdição sempre que “lhe parecer que os juízes da terra não farão inteiramente a justiça” (Idem, ibidem, §22), abrir devassas para investigação de crimes graves (Ibidem, tit.LXV, §39 a §69) e dar cartas de seguro (Portugal, Ordenações filipinas.L.V, 1870, tít. CXXIX).

Foram selecionados para análise os processos iniciados no Juízo Ordinário do conselho municipal da vila de Curitiba (incluídos os findos no juízo da Ouvidoria de Paranaguá) e os autos processados pela Ouvidoria em correição local. Por meio dessa seleção restaram cinquenta autos da jurisdição de Curitiba e, desses, 24 autos de livramento crime.12 12 No que tange às formas de processamento de crimes, dez referem-se a traslados de autos crimes, cinco a autos de agravo crime, quatro a autos de apelação crime, dois a libelos de injúria, um a devassa, um a auto cível e crime, um a auto de libelo crime, um a carta de inquirição crime e um a auto de justificação. Não foi encontrada nenhuma querela, mas entre o número supracitado de autos de livramento crime, seis foram advindos especificamente em razão de investigação realizada por meio de querelas e as culpas tratadas nos demais autos de livramento foram oriundas de devassas gerais.

Da análise numérica percebe-se que os autos de livramento crime eram procedimentos bastante comuns, aparentemente configurava-se na forma mais efetiva para que o condenado não sofresse as punições em decorrência de um delito a ele imputado, reforçando o caráter de baixa punibilidade da cultura jurídica colonial portuguesa. A ação tinha como objetivo a verificação das culpas dos sujeitos nas circunstâncias dos delitos cometidos, resultando não na simples liberdade do réu quanto à possível punição, mas em fazer com que o condenado fosse livrado da culpa pelo delito cometido. A exclusão da existência da culpa retirava da esfera de imputabilidade do réu qualquer consequência que pudesse ser resultante do cometimento do delito em questão. Isto é, rediscutida e retirada a culpa do réu, estava livrado do crime em si.

As formas processuais da ordem jurídica criminal e a cultura local

Entre as fontes do direito do Antigo Regime português, uma das mais valorizadas são as Ordenações filipinas,13 13 As Ordenações filipinas eram compostas por cinco livros que tinham um maior acúmulo de regras sobre um ramo específico. O Livro I trata mais de aspectos de estruturação das instituições de administração do reino, dos oficiais e procedimentos a serem por eles seguidos; o Livro II trata na maior parte de privilégios eclesiásticos e da nobreza; o Livro III trata de orientações a processos da “burocracia” judiciais e administrativos; o Livro IV traz regulamentações de trocas comerciais e, por fim, o Livro V apresenta crimes e penas (Bicalho, 2000, p. 244-231). compilaçãodas principais normas portuguesas realizada em 1603. No que tange à leitura enquanto documentação histórica, devem ser lidas no contexto da monarquia corporativa com seus fortes limites sacralizados e religiosos, além da presença da figura régia misericordiosa atrelada à moral cristã.

No contexto do pluralismo jurídico próprio do período, as Ordenações eram responsáveis por certa padronização de ritos e formalidades à medida que orientavam procedimentos. É possível perceber a importância destes para a organização dos aparatos político-jurídico-administrativos pela leitura das fontes locais - advindas de uma vila financeiramente pobre que utilizava boa parte de seus recursos na compra de livros para registro dos atos da justiça e da administração - em decorrência do respeito (ou ao menos o esforço ao respeito) a tais aspectos burocráticos. Ao lado desta legislação estavam as leis extravagantes (decretos, alvarás, regimentos e mandos régios), os costumes locais, o direito comum14 14 Neste sentido, é importante ressaltar a permanência da estrutura de administração da justiça realizada pelo direito comum. A partir dele, a compreensão do jurídico era dada num ambiente de pluralidade efetiva, em que coexistiam doutrinas comuns à toda porção ocidental da Europa — formadas, em suma, por comentários e ressignificações ao pandectas do corpus iuris civilis e por encíclicas e regras do direito canônico —, o direito consuetudinário e o direito régio. No período em análise no presente artigo, este direito régio encontrava-se em expansão visto que (no interior de uma lógica de racionalização) a sua crescente valorização em detrimento das demais fontes jurídicas ocorre paulatinamente ao longo da segunda metade do século XVIII. e, em termos gerais, o direito eclesiástico. No interior deste cenário, ainda, a doutrina e os manuais praxistas exaravam uma gama de interpretações e opiniões comuns a respeito de diversas temáticas, orientando a atuação de magistrados e advogados.

Postos pelas Ordenações e delineados por este complexo jurídico, os modos de processar crimes perante os organismos régios de administração da justiça eram as supracitadas devassas gerais ou especiais, as querelas e os ofícios da justiça (Cabral, 1730CABRAL, AntonioVaguerve. Pratica judicial muyto útil, e necessária para os que principião os officios de julgar, & advogar, & para todos os que solicitão causas nos Auditorios de um, & outro foro. Tirada de vários autores práticos, & dos estylos mais praticados nos Auditorios. AuthorAntonioVanguerve Cabral Juris Consulto Ulisboense. Com a nova reformaçam da justiça. novamente impressa, correcta, emendada, e acrecentadohum novo Indice geral alfabético de toda a obra, athequi não impresso. Coimbra: Officina de Antonio Simoes Ferreyra, 1730., parte I, cap. XXXIII, p. 44-45; Pereira e Sousa, 1800PEREIRA E SOUSA, Joaquim José Caetano. Esboço de hum diccionario juridico, theoretico, e practico, remissivo ás leis compiladas, e extravagantes. Por Joaquim José Caetano Pereira e Sousa, advogado na Casa da Supplicaçaõ. Obra posthuma. Tomo segundo. F-Q. Lisboa: Typographia Rollandiana, 1827., cap. II, III e IV).

Durante ou ao final destes modos de processar,15 15 Tendo em vista que existia a possibilidade da expedição da pronúncia quando 15 testemunhas citassem o mesmo nome de suspeito. o juiz ordinário normalmente expedia pronúncia16 16 Como citado em nota de rodapé ao início deste artigo, a pronúncia era uma sentença na qual o magistrado declarava o réu como suspeito (Pereira e Sousa, 1827, p. 403). No direito português, era exarada sob três formatos: pronúncia de captura (admitida por direito comum), pronúncia para que o acusado se libertasse como seguro nos termos de declaração do juiz e pronúncia para libertação do réu por meio do modo ordinário (ambas admitidas somente no direito lusitano) (Leitão, 1745, 2009, p. 541). de captura dos citados pelas testemunhas com a finalidade de prendê-los e evitar a fuga para outras localidades, possibilitando que a parte ofendida oferecesse a acusação aos réus pronunciados.17 17 Não havendo acusação pela parte ofendida pelo crime cometido pelo réu, o promotor do conselho, “por parte da Justiça, achando que a Justiça ha lugar”, poderia oferecer acusação (Portugal, Ordenações filipinas. L.I, 1870, tit. LXV, §37). O promotor, sumariamente, era oficial também eleito pela localidade e não letrado, tendo como atribuição a representação do conselho no acompanhamento dos feitos relativos a rendas e bens camarários, a arrecadação e guarda das terças e desempenho das funções de tesoureiro quando não houvesse um oficial designado para tal cargo (Hespanha, 1994, p. 163). Nas práticas do foro da vila de Curitiba, era comum que o escrivão do juízo acumulasse as funções de promotor da justiça; em todos os processos estudados neste trabalho houve atribuições destas duas funções ao mesmo oficial. Com a acusação iniciava-se o processo judicial por excelência - denominado libelo crime -, que tinha como finalidade a averiguação da existência ou ausência da culpa apontada pelas testemunhas, podendo neste momento o réu apresentar contrariedade de defesa.

Com alta frequência os réus recorriam às formas de rediscussão das circunstâncias do crime com a finalidade de obterem o livramento. Isto poderia ser realizado por agravo18 18 Agravo era o recurso cabível sobre decisões do Juízo Ordinário, fazendo com que o processo fosse remetido para o ouvidor. Nos processos encontrados, a interposição de agravos gerava ações denominadas Agravo de injusta pronúncia e Autos crimes de agravo ou agravo crime (Arquivo Público do Paraná [APPR], “Autos de agravo de injusta pronúncia entre a Justiça por seu procurador e José de Siqueira Camargo”, Curitiba, Cx.89, PC2608, 1786; APPR, ”Autos crimes de agravo entre a Justiça por seu procurador e Anna Maria preta forra”, Curitiba, Cx.102, PC2900, 1789). da decisão ou por meio dos autos de livramento crime. Este era um modo de livrar específico, portanto, diverso dos demais existentes na prática jurídica do “direito pátrio”.19 19 Estas demais formas de soltura e livramento eram, principalmente, as cartas de seguro (Leitão, 1745, 2009, p. 213-368), o perdão régio (Hespanha, 2010, p. 103), os alvarás de fiança (Portugal, Ordenações filipinas. L.V, 1870, tit. CXXXI), as pronúncias de livramento (Leitão, 1745, 2009, p. 555). As cartas de seguro, o perdão régio e os alvarás de fiança eram instrumentos de graça exarados de modo mais explícito, considerando que não requeriam um modo de processamento específico nem razões determinadas para sua concessão. As pronúncias de livramento eram instrumentos jurídicos que pertenciam ao contexto do desenrolar processual, ou seja, eram apresentados no caminhar de um processo crime e não em época posterior.

Na literatura jurídica letrada, o livramento crime foi mencionado pelo praxista AntonioVanguerve Cabralem seu manual de “prática judicial” (1730). Segundo este praxista, era um processo judicial destacado do processo crime principal, representando uma nova demanda perante o juízo ordinário ou a ouvidoria. Era constituído por requisitos e ritos próprios por meio dos quais o condenado tinha a possibilidade de solicitar sua libertação da cadeia e apresentar outros elementos de defesa que o livrassem da culpa, sendo esta a questão-chave sobre a qual se debate.

Sob o viés de Hespanha (2015HESPANHA, António Manuel. Justiça e litigiosidades. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993., p. 621), para a teoria do delito dominante neste período a culpa consistia na imputação objetiva de algum fato delituoso ao réu de acordo com as circunstâncias narradas no caso. Na decisão pela existência ou não da culpa, não era usual que o magistrado considerasse uma dimensão puramente subjetiva no crime a ele narrado, realizando alguma análise de dolo.

O primeiro passo processual era o pedido de abertura do requerimento de livramento. Após a pronúncia,20 20 Sobre os procedimentos, Cabral (1730, parte I, cap. XXXIV, p. 47) expõe que, quando o réu era acusado na ação criminal, o juiz exarava pronúncia de captura e passava em segredo mandado de prisão ao meirinho ou ao alcaide para que então realizasse o encarceramento do acusado. Neste lapso de tempo, porém, era possibilitado ao condenado requerer carta de seguro e tê-la concedida junto à Ouvidoria de comarca — caso não houvesse disposição contrária na dependência do crime pelo qual havia sido condenado. Concedida esta carta, possuía o réu o prazo de dezoito dias para apresentá-la ao juiz que o condenara, “ou em casa do mesmo, ou na audiência”, fazendo com que o escrivão passasse o contramandado para que o sujeito carregasse consigo para não sofrer encarceramento e juntasse a referida carta nos autos de livramento. Dentro dos dezoito dias, ainda, a vítima deveria ser citada para manifestar-se sobre o desejo de acusar o réu. o sujeito poderia requerer o livramento por meio de petição encaminhada ao juízo em que fora condenado - o ordinário, em caso de condenação na câmara, ou o ouvidor, em caso de condenação na ouvidoria - “correr folha para constar as culpas”.21 21 APPR, “Traslado de autos de livramento crime entre as partes A Justiça por seu Promotor contra o réu Francisco Ricardo de Oliveira”, Curitiba, Cx. 78, PC2357, 1782.

Conforme exposto por Cabral (1730CABRAL, AntonioVaguerve. Pratica judicial muyto útil, e necessária para os que principião os officios de julgar, & advogar, & para todos os que solicitão causas nos Auditorios de um, & outro foro. Tirada de vários autores práticos, & dos estylos mais praticados nos Auditorios. AuthorAntonioVanguerve Cabral Juris Consulto Ulisboense. Com a nova reformaçam da justiça. novamente impressa, correcta, emendada, e acrecentadohum novo Indice geral alfabético de toda a obra, athequi não impresso. Coimbra: Officina de Antonio Simoes Ferreyra, 1730., parte I, cap. XXXIV, p. 47), para que o requerimento fosse válido, o acusado deveria ter concedida em seu favor a carta de seguro e acostá-la aos autos. A carta de seguro era um elemento bastante presente na cultura jurídica criminal portuguesa e se configurava em um ato de graça que permitia ao réu acompanhar o processo crime em liberdade. Escrita pelos oficiais explicitamente em nome do rei, constituía-se como um dos principais atos de graça no curso dos processos crime. Em que pese o autor mencione que era obrigatória a apresentação da carta para a validade do requerimento de livramento, entre os 24 autos de livramento crime da vila de Curitiba foram encontradas 11 cartas de seguro juntadas aos procedimentos, todas posteriores a 1786.22 22 Curiosamente, este é o ano em que Pascoal José de Mello Freire trouxe a público seu Código Criminal, a mando da rainha D. Maria I mediante exposição à Junta do Novo Código (Hespanha, 1993, p. 289), no qual sugeriu a exclusão completa do uso das cartas de seguro na ordem jurídica criminal do Reino (Freire, 1823, tit. LVII, §9).

A partir do que a documentação deixa entrever, estas cartas não eram essenciais para o seguimento dos autos de livramento, embora fossem bastante utilizadas e concedidas de forma indiscriminada a homens sem títulos de fidalguia, mulheres, infantes e escravizados. A não exigência deste instrumento para o requerimento inicial do auto de livramento pode refletir a realidade das vilas periféricas, pois era emitida pela Ouvidoria de Paranaguá - daí a grande maioria dos citadinos terem feito pedidos somente em períodos de correição - e mediante pagamento (entre 1400 a 2800 réis).23 23 Havia o custo da carta de seguro acrescido dos valores da razão, do conhecimento e regimento, da chancelaria, da assinatura, do selo e da conta.

Com o recebimento do pedido, o juízo ordinário abria uma verificação dos antecedentes do réu, encaminhando alvarás a todos os escrivães dos juízos crime da vila para que consultassem o rol dos culpados24 24 O rol dos culpados era um livro de registros mantido por todos os juízos no qual eram anotados os nomes de todos os sujeitos que haviam sido considerados culpados (Oliveira, 2014, p. 84). O rol do juízo ordinário da vila de Curitiba e o da Ouvidoria da comarca de Paranaguá não foram encontrados. e encaminhassem ofício informando se o nome do réu ali constava ou não. As culpas a serem informadas deveriam ser todas aquelas que estivessem “em seus poderes e cartórios” e que restassem “findas ou abertas o que assim cumpriram (...) não façam”.25 25 APPR, “Traslado de autos de livramento crime entre as partes A Justiça por seu Promotor contra o réu Francisco Ricardo de Oliveira”, Curitiba, Cx.78, PC2357, 1782. Tudo isso porque havia prejuízos na concessão de livramento do crime atual em razão de condenações anteriores com penas que não tivessem sido cumpridas.26 26 Na vila de Curitiba, quando retornavam as respostas, as certidões compulsadas nos autos registravam as culpas no cartório do próprio juízo ordinário de Curitiba, tendo em vista que, no interior do mesmo termo, era o único juízo existente. Esta atitude leva a crer que, em uma vila pequena, talvez não fosse necessário mandar correr folha em razão da existência de somente um cartório no mesmo termo. Mas a atitude dos oficiais (e dos moradores que requerem) em respeitar este procedimento específico sugere uma função bastante formal para evitar o questionamento da nulidade dos autos, ressaltando a sofisticação das justiças desta localidade e recepção dos formalismos cultivados no foro. Após, o juiz mandava citar a parte ofendida para manifestar-se caso desejasse fazer parte dos autos de livramento de seu ofensor. Dos processos estudados, todos os ofendidos declararam não querer fazer parte do feito e, nestes termos, a competência para apresentação do libelo acusatório era transferida ao promotor de justiça, que, na fórmula de escrita de suas petições, requeria sempre que “o Réu preso deve ser punido e castigado com todas as penas assim cíveis e crime (...)”.27 27 APPR, “Autos de livramento crime entre a Justiça por seu Promotor e Vicente Francisco cabra forro”, Curitiba, Cx.85, PC2535, 1785.

A presença de um promotor de justiça no interior de uma administração local sugere, no imaginário, uma noção de prevenção do crime.28 28 Noções desenvolvidas no momento em que são delineadas teorias sobre as funções e utilidades das penas, sobretudo a partir de Cesare Beccaria. Na maioria dos autos,o promotor afirma que “deve o Réu ser asperamente castigado para sua emenda e satisfação da Justiça Autora e emenda de outros que intentem cometer semelhantes absurdos (...)”.29 29 APPR, “Autos de livramento crime entre a Justiça por seu promotor e Francisco escravo de José del Rio Cardins”, Curitiba, Cx.88, PC2587, 1786. A ameaça de punição no momento da apresentação do libelo acusatório configura-se em um elemento marcante da ordem jurídica criminal portuguesa.

Apresentado o libelo, era citado o réu, por meio de seu procurador, para apresentar sua contrariedade, expondo sua defesa, seus fundamentos e sua narrativa dos fatos. Logo em seguida o juiz concedia a dilação de no máximo vinte dias para a apresentação de provas por parte do réu. O procurador trazia a juízo o rol de três ou quatro testemunhas, cujos depoimentos seriam balizados pelos artigos expostos na contrariedade do réu.30 30 Isto é, os argumentos e as fundamentações da defesa eram lidos para as testemunhas de defesa para que então fizessem suas considerações, afirmando veracidade ou falsidade do que lhes era dito mediante os rituais de juramento que garantiriam que o inquirido só falaria o que sabia ser verdade.

Realizadas as inquirições, era acostado o traslado de culpas do réu,31 31 Portando um termo inicial em que era descrita a ação por meio da qual resultou aquela culpa do réu, cópia dos depoimentos das testemunhas na inquirição daquele processo crime e a pronúncia que declarava ser visível a culpa do réu. Inclusive, caso o réu houvesse cometido mais de um crime, as culpas formadas acumulavam-se. A cópia dos depoimentos aparece em alguns traslados de culpa de modo integral e em outros de modo selecionado, isto é, somente os depoimentos que melhor embasarem a pronúncia no final do processo crime. documento feito pelo escrivão do juízo em que houvera a condenação com a finalidade de declarar a culpa formada resultante daquele feito crime. Após, eram dadas vistas às partes novamente e a possibilidade de apresentarem razões finais. Superadas estas etapas, era exarada a sentença pelo magistrado.

Todos os autos de livramento crime estudados nesta pesquisa foram findados providos ao réu e, consequentemente, resultaram em sua absolvição. Para além, do ponto de vista técnico e jurídico todos mantêm a fidelidade aos procedimentos supra descritos, além da citação aos títulos e parágrafos das Ordenações por parte dos magistrados no momento da exposição do embasamento da motivação das decisões.

As razões de decidir: os casos32 32 No que tange às trajetórias dos personagens, cabe mencionar que o detalhamento de informações dos réus (idade, ocupação, filiação) não é fornecido em todos os processos pesquisados, ausentes nos ora expostos. Não foram encontrados rastros desses mesmos personagens em fontes paroquiais, sobretudo pela falta de maiores informações para a identificação, tendo em vista a diferença dos nomes tais como aparecem nos autos. de graça e as formas de punir

Superada a descrição do funcionamento do procedimento dos autos de livramento crime, podem-se estudar as razões das decisões para tentar delinear os contornos da cultura jurídica criminal local e compreender em que medida se assentam na economia da graça. Nesse sentido, é possível classificá-las em três grupos: 1) livramento em razão de requisitos processuais formais; 2) testemunhas apresentadas pelo réu em sua defesa nos autos de livramento que contrariaram as do processo crime de devassa ou de querela; e 3) perdão da parte ofendida e reparação da culpa pela satisfação da vítima.

Os casos em que os livramentos foram providos em razão de requisitos processuais formais reforçam o caráter formalista da cultura jurídica criminal local, evidenciando o respeito, ou ao menos o esforço de respeitar, aos regramentos do Império Português contidos, sobretudo, na legislação e nas doutrinas. Em um dos casos, o réu seguro33 33 O termo “seguro” indicava que o réu era agraciado com uma carta de seguro, o que significa que não se encontrava aprisionado quando do acompanhamento dos procedimentos judiciais em questão. Francisco, escravo de José del Rio, foi pronunciado em razão de três culpas formadas resultantes de processos crime (uma devassa em 1750 pela morte de um escravo, outra em 1756 por lesões corporais em um escravo de Dom João Francisco Laines e uma última em 1785 pela fuga da prisão através do alçapão). Realizadas as etapas processuais, a sentença final exarou os seguintes termos:

Réu seguro (...). E por que se mostra que o primeiro, e segundo crime, de que é o Réu acusado, foram prescritos antes do mesmo Réu ser capturado pela Justiça no ano de 1785, por se ter passado o intervalo de mais de vinte anos (...) sem que o Réu fosse pela mesma Justiça perseguido (...). E como da mesma sorte se mostra pelas ditas testemunhas da defesa e pelas da culpa apensa que a fuga que o Réu fez da cadeia no dito ano de 1785 (último crime de que é acusado) foi sem haver arrombamento da mesma cadeia, e nem violência alguma, mas sim por se achar o alçapão da enxovia aberto por descuido e culpa do carcereiro.

Portanto absolvo o Réu do pedido no libelo da Justiça e mando que seja riscado do rol dos culpados (...) 30 de abril de 1787

Francisco Leandro de Toledo Rondon.34 34 APPR, “Autos de livramento crime entre a Justiça por seu promotor e Francisco escravo de José del Rio Cardines”, Curitiba, Cx. 88, PC2587, 1786; sem destaques no original. ,35 35 Francisco Leandro de Toledo Rondon era natural da capitania de São Paulo e pertencia a uma família em que existiam oficiais da Coroa (seus avôs, seu pai e seu irmão). Formou-se pela Universidade de Coimbra em 1779, seu processo de leitura de bacharel ocorreu entre 1780 e 1781, em 1783 recebeu a mercê do cargo de ouvidor da comarca de Paranaguá (posse em 21 de julho de 1785) pelo Desembargo do Paço e permaneceu até 1790. Embora Pegoraro (2007, p. 62) tenha identificado esta como a primeira nomeação de Toledo Rondon, não se pode afirmar que tenha sido o primeiro exercício de funções à Coroa, tendo em vista que os ouvidores designados ao Brasil tinham, em sua maioria, experiência no ofício.

Note-se que, em resposta à solicitação da Justiça, registraram-se três culpas. Mesmo assim, o ouvidor, embora fosse confessa a fuga do réu da prisão, decidiu não o punir, considerando que o delito já havia prescrito no momento da prisão. Isto é, a preocupação fora com questões de prazo, puramente formais. Ainda, o magistrado considerou as circunstâncias do crime cometido - fuga sem arrombamento da cadeia, ocorrida em razão do descuido do carcereiro - como fator de atenuação da conduta.

Situação semelhante ocorreu no caso de Quitéria Luiza de Azevedo. Condenada por três culpas (por mandar dar pancadas em seu marido, em 1760, e por fugir da prisão duas vezes em 1774), a ré segura confessou as duas fugas da cadeia, apesar de ressaltar que foram realizadas sem arrombamento ou quebrantamento - elementos que, como no caso supracitado, serviam como atenuante deste crime específico. Entretanto, tendo em vista a falta de provas no primeiro crime (lesões em seu marido), o ouvidor reconheceu que os demais não teriam sido cometidos caso a pronúncia da primeira devassa tivesse sido justa.36 36 “E como se mostra que a Ré está inocente do crime por que foi depois mantida em prisão, e que a fuga, que foi desta, foi sem resistência e só por se defender dela, aproveitando-se do favor do carcereiro. Portanto julgo não ter lugar a acusação da Justiça, e absolvo a Ré do pedido no seu Libelo, e mando que seja riscada do rol dos culpados, (...) Vila de Curitiba, 2 de fevereiro de 1786. Francisco Leandro de Toledo Rondon”. (APPR, “Autos de livramento crime entre A Justiça por seu promotor e Quitéria Luiza de Azevedo”, Curitiba, Cx. 89, PC2627, 1786).

Interessante aqui a intenção do ouvidor em restaurar a situação anterior, por meio da qual não é possível afirmar que o desejo da justiça régia colonial era castigar os apenados a qualquer custo, como imaginam as leituras mais apressadas do Livro V das Ordenações. Outras prescrições foram alegadas em outros processos de livramento, como é o caso de Thomé Ribeiro da Silva, culpado em devassa geral por açoites e morte a um escravo em 1747, e de Francisco Bueno de Oliveira, pronunciado em 1752 pela morte de José Preto Viveiros:

Portanto Julgo não ter lugar a acusação da Justiça pela sua prescrição, e absolvo ao Réu do crime de que é acusado e mando que se risque do Rol dos culpados; Francisco Leandro de Toledo Rondon37 37 APPR, “Autos de livramento crime entre A Justiça por seu promotor e Antonio Rodrigues dos Santos”, Curitiba, Cx. 89, PC2606, 1786.

A atenção a quesitos meramente formais - mas que, todavia, interferem diretamente na questão do que é justo -, como nos casos acima, sugere uma interpretação contrária ao que normalmente é exposto por uma historiografia tradicional acerca da administração da justiça nas vilas coloniais, apontando aos locais certa rusticidade como sinônimo de descuido, de oralidade e de descumprimento dos procedimentos. O que se vê são processos ritualizados e mantidos conforme a padronização apontada pelas Ordenações, com cuidados e formalidades muitas vezes excessivas.

A segunda razão de livrar ocorria quando as testemunhas apresentadas pelo réu em sua defesa em sede de auto de livramento contrariavam as do processo crime de devassa ou de querela, fornecendo ao autor um álibi relativo ao momento da ocorrência do delito. Este é o caso do réu Francisco Ricardo de Oliveira, acusado em devassa geral tirada em janeiro 1781 de roubar uma prima sua da casa de seus pais. Por meio de suas testemunhas de defesa conseguira provar que não cometera o delito por estar há três dias de viagem da casa de sua prima, retirando dele os efeitos das penas impostas pelas leis.

se mostra que o Réu no tempo em que se figura cometido aquele delito estava três dias de viagem distante como depõem as testemunhas a folhas dezoito e de fato próprio a testemunha a folhas vinte, o absolvo das penas impostas pelas leis (...) Antonio Barbosa de Mattos Coutinho38 38 APPR, “Traslado de auto de livramento crime do Juízo Ordinário da Vila de Curitiba a Ouvidoria de Paranaguá entre as partes A Justiça por seu Promotor contra o Réu preso Francisco Ricardo de Oliveira”, Curitiba, Cx. 78, PC2357, 1782. ,39 39 Antonio Barbosa de Mattos Coutinho fora nomeado ao cargo de ouvidor pelo Desembargo do Paço em 1772, desempenhando as funções de 1774 a 1783. Pegoraro (2007, p. 61) menciona que, aparentemente, não exercera funções na estrutura jurídico-política anteriormente, todavia cabe lembrar que a maioria dos oficiais enviados ao exercício das funções na América Portuguesa acumulavam experiência no ofício.

Do mesmo modo, Manoel José, gentio da terra, condenado em devassa geral pelo roubo de uma vaca, conseguiu provar por meio de suas testemunhas de defesa que não cometera tal delito, sendo assim reconhecido tanto pelo juiz ordinário da vila de Curitiba (que o absolve e manda que solto se vá em paz)40 40 “sem embargo ser o Réu da ínfima plebe oriundo do gentio da terra contudo vive com bom procedimento, e que não furtara tal vaca, e que vendera o couro sim mas por que o tinha comprado o Salvador Valente a quem visto e o mais dos autos absolvo ao Réu e mando que solto se vá em paz, (...) Curitiba 4 de julho de 1784 Luis Ribeiro da Silva”; “E como pelo termo f.5 teve a inocência do Réu pela confissão da própria parte que bem se confirma pelas testemunhas da acusação. Portanto absolvo ao Réu e mando que se vá em paz da cadeia em que se acha (...). Vila de Paranaguá 3 de setembro de 1784 Antonio Barbosa de Mattos Coutinho”. (APPR), “Autos de livramento crime entre a Justiça por seu Promotor e Manoel José”, Curitiba, Cx. 83, PC2493, 1784). como pelo ouvidor de comarca.

No mesmo sentido, no caso de Diogo Gonçalves, acusado de dar tiros em Angelo de Chaves de Siqueira, as testemunhas de defesa também contrariaram as testemunhas que embasaram a pronúncia da devassa, sendo que a conclusão de seus autos de livramento foi no sentido de que não teria cometido o delito, absolvendo o réu.41 41 “que não foi o Réu quem atirou mas sim seu filho Francisco Gonçalves e tendo a parte ofendida perdoado (...) Vila de Curitiba 22 de janeiro de 1787 Francisco Leandro Toledo Rondon” (APPR, “Autos de livramento crime e apresentação da primeira carta de seguro entre A Justiça por seu promotor e Diogo Gonçalves”, Curitiba, Cx. 88, PC2595, 1786).

Esta fundamentação para a absolvição coloca em dúvida todas as trinta testemunhas inquiridas para a conclusão das devassas que tinham apontado para a autoria inicial dos pronunciados. Não foi encontrado nenhum auto de livramento crime em que o juiz tenha apreciado o caso a favor dos depoimentos da devassa em detrimento aos da defesa. Essa prática, que revela a baixa punibilidade em uma vila periférica do Império, aproxima-se da lógica da graça régia. Para além, dá a esta lógica vestes institucionalizadas por meio da própria arquitetura da administração da justiça, tendo em vista a existência de mecanismos internos próprios da engrenagem processual que abrem os espaços para sua reprodução.

A terceira razão, o perdão da parte ofendida, é perceptível no caso de Luzia Leite Barbosa, presa em razão de uma querela dada pelo seu marido, Antonio Diaz de Camargo, por adultério contra ela e José de Souza Nunes Carneiro. Nos autos de livramento, este querelante declarou, em termo de perdão, que desejava perdoar e livrar sua esposa, “E logo pelo mesmo Autor foi dito a ele Juiz no que respeitam ao Réu preso José de Souza Nunes Carneiro o entregava às Justiças de Sua Majestade as quais o castigarão conforme o merecimento de suas culpas”.42 42 APPR, “Juízo Ordinário da Vila de Curitiba, Autos de livramento da querela que deu Antonio Diaz de Camargo de Sua mulher Luzia Leite Barboza e José de Souza Nunes”, Curitiba, Cx. 73, PC2253, 1780.

por ele foi dito a ele dito Juiz que (...) perdoava e com efeito perdoou a Sua Mulher Luzia Leite Barboza toda e qualquer ofensa que lhe tivesse e tenha feito, e ele mostrava acusá-la nestes mesmos atos (...).43 43 Ibidem; sem destaques no original.

O perdão era a representação da reparação da ofensa causada e, consequentemente, dava ensejo ao livramento embasado na “reparação da culpa”, conforme o sentenciamento do juiz ordinário José de Andrade. Nesta decisão, o magistrado exarou que “Visto que o Marido da Ré a perdoa do adultério que lhe cometeu seja solta na forma da ordenação do livro 5 título 25 §2 (...) e assim satisfeito e reparada a culpa destes autos venha o escrivão como promotor com o libelo contra o adúltero”,44 44 Ibidem, fl. 6. em citação ao título e ao parágrafo que orientam que, sendo a mulher condenada por adultério simples,45 45 Isto é, adultério não cometido com mouro, judeu, parente ou cunhado de afinidade (Portugal, Ordenações. L. V, tit. XXV, §2). frente ao perdão do marido, deve ser logo solta e não mais perseguida pelas justiças.

Semelhante é o caso de Joaquim Pereira em que o perdão fora dado pelo senhor do escravo, o sargento-mor Francisco Xavier Pinto e, assim, o réu fora livrado do crime de haver feito nele lesões corporais. Destaca-se que o magistrado, na sentença em que concedeu o livramento, mencionou que a acusação da justiça não possuía lugar no caso, ordenando em seguida que fosse riscado o nome do Réu do rol dos culpados.46 46 “cujo senhor por isso lhe deu livramento o perdão (...). Pelo que julgo não ter lugar a acusação da Justiça Autora e absolvo ao Réu do pedido no seu Libelo, e mando que seja riscado do Rol dos Culpados (...) Curitiba 11 de fevereiro de 1788 Francisco Leandro de Toledo Rondon” (APPR, “Autos de livramento crime entre a Justiça por seu promotor e Joaquim Pereira”, Curitiba, Cx. 94, PC2708, 1787).

Esta reparação da parte ofendida pode ser interpretada como uma restauração da ordem natural, como se o perdão da vítima tivesse o condão de, a partir da expressão de reparação da ofensa, fazer com que a situação retornasse ao seu curso natural. Neste ponto as fontes sugerem que, mais que punir ou castigar aqueles que infringem a ordem natural, a pretensão da justiça régia era manter e restaurar a ordem.

Ainda, pode-se especular que os autos de livramento crime que possuem este estilo de resolução, embora as vítimas não fizessem parte do feito, revelem em alguma medida uma dimensão “privada”47 47 O termo está entre aspas para marcar sua historicidade, bem como para fazer a ressalva de que a semântica utilizada não se identifica com a noção moderna de tentativas de separação entre os campos privado e público. da justiça criminal desse período, próxima de uma lógica de justiça penal negocial nos termos de Mario Sbriccoli (2009SBRICCOLI, Mario. Storia del diritto penale e dela giustizia. Tomo I. Milano: Dott. A. Giuffrè, 2009., p. 5-6). Ou seja, a justiça penal estaria condicionada a práticas de negociação, trocas e tentativas de reparação das ofensas entre as partes.Do que a documentação histórica deixa entrever, a sugestão é de que, na prática judicial da localidade, esta faceta negocial possuía espaço no interior das justiças régias, todavia, a sua validade estava condicionada à aprovação e confirmação destas por meio dos oficiais.

A partir da análise dessas fontes locais, percebe-se que certa dimensão da cultura jurídica criminal da vila de Curitiba era orientada por uma prática mais liberatória do que punitiva daqueles condenados pela administração da justiça régia. A presença de um número significativo de autos de livramento denota por si só essa tendência, e o formalismo utilizado em benefício dos réus bem como a manutenção do poder das partes no caso do perdão a intensificam.

Não foram verificadas punições severas, nem imputação das penas capital, de suplícios ou de laceração física, deixando entrever que a suposta crueldade imputada aos castigos praticados pelo Antigo Regime pode não ser tão concreta. Ao que parece, a maior parte dos sujeitos que tivessem culpas formadas recebiam a pronúncia de captura, eram perseguidos pelo oficial competente (o alcaide), levados à cadeia e ali permaneciam até que se conseguissem livrar (independentemente do número de meses ou anos em que conseguiam livrarem-se soltos) ou, nos piores casos, acabavam falecendo em cárcere. Era preferível, conforme Alvará Régio de 5 de março de 1790, que os réus fossem livrados logo, a permanecerem muito tempo em cárcere, visto que desta rapidez dependia a “a boa administração da Justiça” (Portugal, 1828PORTUGAL. Collecção da Legislação Portugueza desde a última compilação das Ordenações, redegida pelo desembargador Antonio Delgado da Silva. Legislação de 1775 a 1790. Lisboa: Typografia Maigrense, 1828., p. 589-592). Em que pese não ser compreendido como uma penalização ao período, as fontes sugerem que o encarceramento acabava representando o castigo aos réus em decorrência das precárias condições das cadeias, constantemente arrombadas, quando não deixadas abertas pelos carcereiros.

Mesmo quando se tentava agir de forma mais rígida, com uma pendência maior a um punitivismo, a prudência mantinha-se como regra. Isto pode ser deduzido a partir da provisão dada pelo ouvidor Manoel Lopes Branco e Silva48 48 Manoel Lopes Branco e Silva foi ouvidor e Provedor das Fazendas dos Defuntos e Ausentes, Capelas e Resíduos da Comarca de Paranaguá de 1790 a 1797 (com nomeação em 31 de outubro de 1789). Assim como em seus antecessores, Pegoraro (2007, p. 62-63) não identificou exercício de funções antes da ouvidoria. Todavia, ressalta-se, novamente, a usual experiência dos oficiais deslocados para o exercício de funções no ultramar. que, em correição realizada no ano de 1796, ao verificar a ocorrência frequente de determinados “crimes graves, e capitais” na vila, destacou que uma das obrigações dos juízes era, para além de condenar os delitos, preveni-los “os quais só se coíbem com o temor do castigo” (Negrão, 1924NEGRÃO, Francisco. Boletim do Archivo Municipal de Curytiba. Documentos para a história do Paraná. v.VIII: Provimentos de Correições (1721 a 1812). Curitiba: Livraria Mundial, 1924., v. VIII, p. 132):

(...) lhe lembra que a Ordenação no livro 5º titulo 49 §§ 10 e 11 permite que os oficiais de Justiça possam matar aos malfeitores de crimes graves em que cabe pena de morte natural quando os malfeitores se não querem dar a prisão, e fugirem (...); porém recomenda o Ouvidor, que em qualquer destes casos se proceda com a maior prudência, e cautela; e que pelos malfeitores que se ausentarem para outros distritos se passem Precatórias dirigidas as justiças das terras em cujos termos existirem para serem presos (Ibidem, p. 133; sem destaques no original).

Assim, a atitude mais corriqueira aplicada àqueles que eram considerados criminosos no interior desta cultura jurídica era a prisão, mesmo que não fosse uma pena neste molde determinada pelas Ordenações. Saliente-se também que estas declarações confirmam, para a realidade da prática criminal local, as teorias de Hespanha (2010HESPANHA, António Manuel. A política perdida. Curitiba: Juruá, 2010., p. 103; 1993HESPANHA, António Manuel. Caleidoscópio do Antigo Regime. São Paulo: Alameda, 2012., p. 298) e de Prosperi (2013PROSPERI, Adriano. Tribunais da consciência: inquisidores, confessores, missionários. São Paulo: Edusp, 2013., p. 190-208), confirmando que o imaginário que fundamentava toda a ordem jurídica criminal era o da ameaça de castigo, e não o da punição em si.

Considerações finais

A análise do processo e do direito criminais no contexto colonial no interior do Antigo Regime português permite concluir a existência efetiva de uma grande plasticidade que perpassava a ordem jurídica ao longo dos espaços do Império Ultramarino Português (Hespanha, 1993HESPANHA, António Manuel. Justiça e litigiosidades. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993., p. 310). Tanto nos aspectos de efetivação da ordem quanto nas estratégias e formas de pensamento, era um elemento central que, ao longo do período estudado, não parece desaparecer.

O modo mais evidente pelo qual a plasticidade se deixa entrever era a não correspondência entre a legislação formal e a prática jurídica penal do período. É fundamental salientar que a compreensão da legislação no Antigo Regime seguia um viés de padronização, mas sempre em respeito à equidade e à justiça. Essas eram pautadas pelas circunstâncias dos casos e poderiam levar as decisões a conclusões que não as escritas em lei. Assim, muitos crimes recebiam punições diferentes ou não eram punidos.

Isso exposto, os autos de livramento crime são significativos para delinear uma cultura jurídica, e o presente artigo se presta a analisar a comunidade da vila de Curitiba em razão da coleta de fontes. Contribuem, também, para a compreensão, num espectro mais amplo, da configuração da ordem jurídica criminal portuguesa não somente pela frequência com que foram reproduzidos, mas também pelos conteúdos que carregavam.

Do ponto de vista procedimental e jurídico, era medida de exclusão das culpas dos acusados após a investigação. Tecnicamente, não fazia parte da economia da graça, era um ato judicial e um elemento processual. Representava um modo de relaxamento de uma ordem normativa, funcionando como um amálgama no interior dos organismos régios que endossava o imaginário do rei como o administrador da justiça e responsável pelas benevolências através das aberturas essencialmente existentes nas dinâmicas do pluralismo jurídico.

Nessa perspectiva, as fontes sugerem que esses autos participam de um “investimento simbólico” (Hespanha, 1994HESPANHA, António Manuel. Às vésperas do Leviathan: instituições e poder político, Portugal - séc. XVII. Coimbra: Almedina, 1994., p. 306-307) dos corpos políticos que funcionava por meio da ameaça sem o cumprimento - uma ordem constituída, pois, muito mais pela ausência do que pela presença -, no sentido da pedagogia do terror (Hespanha, 1993HESPANHA, António Manuel. Justiça e litigiosidades. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.; 2012HESPANHA, António Manuel. Às vésperas do Leviathan: instituições e poder político, Portugal - séc. XVII. Coimbra: Almedina, 1994.; Prosperi, 2013PROSPERI, Adriano. Tribunais da consciência: inquisidores, confessores, missionários. São Paulo: Edusp, 2013.). A cominação no Livro V de várias penas cruéis não corresponde às práticas existentes no conselho local, levando a crer, portanto, que a ameaça sem o objetivo de imposição e cumprimento das penas era, de fato, existente. Assim, a função dessa ameaça aparentava aproximar-se da confirmação da representação régia na figura de juiz supremo aos seus súditos, ao passo que a presença da economia da graça trazia à tona a imagem deste mesmo rei em prol da justiça e da equidade.

O pano de fundo explicativo para tal configuração é o pensamento predominante de como os reis deveriam atuar em sua governança perante seus súditos, elementos apontados pelo gênero literário dos espelhos de príncipe. Distantes dos cânones da ciência política moderna como Nicolau Maquiavel, os tratados político-pedagógicos direcionados à educaçãodos príncipes sobre a pragmática da boa governança eram reflexões de orientação moral e política atreladas ao modelo cristão de virtudes (Soares, 1994SOARES, Nair de Nazaré Castro. O príncipe ideal no século XVI e a obra de D. Jerônimo Osório. Coimbra: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1994.; Le Goff, 1999LE GOFF, Jacques. São Luís: biografia. Rio de Janeiro: Record, 1999.).49 49 Era uma literatura muito reproduzida nos períodos medieval e renascentista (Cassirer, 1976, p. 168). Davam destaque ao exercício da justiça por ser esta a principal virtude régia e enfocavam que o desejo do rei deveria ser pautado pelo amor, e não pelo temor, dos súditos.

Em Portugal, esse modelo de manual era inspirado em Giovanni Botero e Thomaso Campanella. De Botero ([1589BOTERO, Giovanni. La ragion di Stato. Roma: Donzelli, 2009.] 2009BOXER, Charles. O Império Marítimo Português: 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.), há a ideia de que a ética e a política, assim como a religião e o poder, são vinculada sem prol de uma ideia de conservação do Estado, devendo ser a política subordinada à religião.50 50 Ainda: De Mattei, 1979. Salvaguarda a fé e a moral católica, resgata a doutrina estoica das virtudes cardeais e, nesse ponto, choca-se com Maquiavel (1996MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.). Afirma literalmente que “o fundamento principal de cada Estado é a obediência dos súditos ao seu superior, e esta se funda na eminência da virtude do Príncipe”.51 51 Tradução livre de Botero, 2009, p. 17. A influência de Campanella (2001CAMPANELLA, Thomaso. De politica. Napoli: Alfredo Guida, 2001.) se deu no sentido de que expõe o domínio como uma unidade de muitos (comunidade, política e Estado) e elenca os vários níveis de comunidade e de associação naturais, sendo o papado o mais significativo em decorrência do maior poder, dada a capacidade de unir nações diversas nos quatro continentes.

Esses pensamentos aparecem na tratadística portuguesa predominante, como D. Jerônimo Osório.52 52 D. Jerônimo Osório (1514-1580) estudou em Paris (local em que teve contato com santo Inácio de Loyola), foi professor em Coimbra e escreveu cartas contra D. Sebastião. Para ele,“se muito é para desejar que o Príncipe seja querido e amado de todos, muito interessa também que de seu povo se não afaste por sua maneira de viver e que dêle se aproxime e se torne benquisto por idêntica vida seguir”. O príncipe deveria cultivar as virtudes como ser “sensato, não será mole, nem lânguido, nem indolente, nem preguiçoso; mas activo, ardente, ousado, vivo e pronto para arrostar com todos os perigos que lhe pode custar a honra. Será magnânimo e constante” (Osório, 1944OSÓRIO, D. Jerónimo. Da Instituição Real e sua disciplina. Lisboa: Prodomo, 1944., p. 41-42, 197).

Predomina no Antigo Regime português, portanto, o imaginário de príncipe virtuoso, interferindo diretamente na cultura jurídica construída. Na esfera criminal, isso se reflete na imagem do rei agraciador e doador do perdão. Essa perspectiva configura-se a tal ponto que a prática da aplicação do direito desenvolveu instrumentos jurídicos próprios destinados a rediscutir a culpa, eliminá-la na maior parte dos casos e, por derradeiro, evitar a punição.

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  • 1
    No interior deste conceito, o jurídico é tomado como um fenômeno cultural, possuindo padrões de comportamento [vinculados a habitus (Elias, 1990ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.)] que tenham dimensão de regras, práticas, saberes, ritos, crenças e técnicas específicas ao mundo jurídico. No campo da cultura jurídica existiu, nos moldes das pesquisas de Ginzburg (2006, p. 12-20), confluências e trocas recíprocas entre a alta e a baixa culturas — isto é, a circularidade entre dois níveis culturais (Bakhtin, [xref ref-type="bibr" rid="r1"]1987BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimeto: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1987.[/xref], p. 2). A primeira corresponde aos padrões e comportamentos hegemônicos, dominantes, reproduzidos em meios cultos e universitários, enquanto a cultura “popular” diz respeito à reproduzida pelos extratos sociais mais “baixos”, camponeses, detendo uma série de práticas compartilhadas por uma mesma comunidade. Importante ressaltar que não se deseja, ao trabalhar com estes conceitos, criar uma dicotomização entre esses dois níveis. Não se deseja estabelecer um corte e delimitar em que ponto estaria finalizada uma cultura e iniciada a outra, mesmo porque compreendidas num mesmo todo social (Ginzburg, 2006GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras , 2006., p. 22-23). O objetivo é evidenciar elementos culturais mais ou menos agregados na dependência dos espaços a que se mantenha referência, com atenção à circularidade. Ainda, cabe mencionar que a orientação metodológica deste trabalho, pressupondo os conceitos supracitados, é o paradigma indiciário de Ginzburg (1991GINZBURG, Carlo. A micro-história e outros ensaios.Lisboa: Difel, 1991., 2006, p. 13, 21).
  • 2
    Segundo Joaquim José Caetano Pereira e Sousa (1827, p. 403), era a “Sentença do Juiz, que declara o Réu suspeito do delito, que faz o objeto da Devassa, ou da Querela contra ele dada, e o põe no número dos culpados”.
  • 3
    As devassas eram procedimentos existentes somente no “direito pátrio” português, sem correspondentes no direito comum (Leitão, 1745, 2009, p. 369). Configuravam, em suma, procedimentos de inquirição de trinta testemunhas por meio dos quais se concluía pela culpa e, consequentemente, pela suspeição dos sujeitos mencionados nos depoimentos. As devassas gerais investigavam crimes incertos, de modo ex officio e deveriam ser realizadas ao início de cada ano (Portugal, Ordenações filipinas. L. I, 1870, tits. LVIII, §22, §31, LXV, §39-§69). As devassas especiais investigavam crimes certos e eram formadas somente quando eram trazidas ao conhecimento do juiz informações e suspeitas (Ibidem, tit. LXV, §31-§33; Portugal, Ordenações filipinas. L. V, 1870, tit. CXVII; Leitão, 1745, 2009, p. 369-372).
  • 4
    Querela, sumariamente, era a forma de processamento de crimes privados (crimes certos), iniciada a partir de uma queixa prestada ao juiz. Era obrigatória a oitiva de quatro testemunhas (Portugal, Ordenações filipinas. L. V, 1870, tit. CXVII, §6; Pereira e Sousa, 1800, cap. III, §26, §29).
  • 5
    A documentação histórica foi coletada no Fundo do Poder Judiciário Estadual mantido no Arquivo Público do Paraná, Fundo BR PRAPPR PB045, anos 1697 a 1980. Neste trabalho foram selecionadas as caixas 65 a 114, compreendendo os anos de 1777 a 1800, consultados os documentos de referências PC2031 a PC3128, totalizando 1.097 processos do juízo ordinário da Vila de Curitiba e da Ouvidoria de Paranaguá (na competência da Ouvidoria incluem-se as Vilas de Iguape, Cananeia, Paranaguá, Antonina, Castro, São Francisco do Sul e Lages). Especificamente quanto às citações diretas da documentação, optou-se pela atualização na grafia das palavras sem alteração da pontuação. O grifo em negrito em todas as citações foi inserido pelos autores.
  • 6
    A vila de Curitiba, no período de referência da presente pesquisa, era parte da capitania de São Paulo (tendo em vista a criação do governo independente desta em 1765) (Gouvêa; Bicalho, 2013BICALHO, Maria Fernanda Baptista. Da colônia ao império: um percurso historiográfico. In: BICALHO, Maria Fernanda Baptista; FURTADO, Júnia Ferreira; SOUZA, Laura de Mello e (Orgs.). O governo dos povos. São Paulo: Alameda, 2009, p. 91-105., p. 33) e configurou-se ao longo do século XVIII em roteiro de passagem de expedições destinadas aos limites entre as colônias portuguesa e espanhola. A identificação enquanto uma vila periférica é dada a partir não somente da distância geográfica no interior da América Portuguesa, mas também pelo fato de não representar uma localidade economicamente importante, não ser uma cidade litorânea e, para além, não ser de fácil acesso pela localização no Primeiro Planalto Paranaense. A posição fronteiriça em relação ao Império Ultramarino Português configura-se como zona privilegiada para o decifrar de realidades opacas (Ginzburg, 2014GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014., p. 177).
  • 7
    A economia da graça, que fazia parte das estruturas político-jurídicas-administrativas da monarquia corporativa portuguesa, compreendia os atos régios de concessão de privilégios com a contrapartida de obediência ao reinado por parte dos súditos. Foi responsável pela formação de redes de interdependência entre o rei e vários grupos corporativos existentes na sociedade de Antigo Regime. Na seara criminal, fora posto em prática sobretudo pelos instrumentos do perdão e das cartas de seguro (Hespanha, 1993, p. 298; 2010, p. 103).
  • 8
    Esta noção, empregada pela primeira vez por Charles Boxer (2008BOXER, Charles. O Império Marítimo Português: 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.) como Império Marítimo Português, emerge na tentativa de se compreender o complexo conjunto de relações havidas na dinâmica ultramarina portuguesa. Abarca a lógica das redes imperiais, inter-relações tecidas por meio da circulação de oficiais régios, trocas comerciais e, para além, trocas de aspectos culturais, de forma a conectar as pontas do Império.
  • 9
    É possível afirmar que os oficiais locais da vila de Curitiba tiveram contato com a alta cultura jurídica a partir não somente da legislação régia, mas também de doutrinas do direito comum e régio e dos estilos dos tribunais à época. Cronologicamente: em 1693, a petição de instalação das justiças na vila de Curitiba consta fundamentada nas Ordenações (Negrão, v.I, 1906, p. 4), bem como existem anotações de compra dos livros desta legislação régia em 1704 e de 1706 a 1709 (Ibidem, v.VI, 1906, p. 4). Em 1721, o ouvidor Raphael Pires Pardinho (ouvidor da capitania de São Paulo nomeado em 1717) promoveu correição na vila de Curitiba e deixou Provimentos com especificações quanto às regras cabíveis às câmaras, ao seguimento das Ordenações, dos Regimentos e da legislação régia (Negrão, v.III, 1924, p. 6). Estes foram repetidos em seu conteúdo ao longo de todo o século XVIII (Santos, 2000SANTOS, Antonio Cesar de Almeida (org.). Provimentos do ouvidor Pardinho para Curitiba e Paranaguá (1721). v. 3, n. 10. Curitiba: Monumenta, 2000., p. 1). Ainda, há citações das leis em quase todos os processos jurídicos entre 1777 e 1800 (nas áreas cível e crime da jurisdição da Ouvidoria) por procuradores, magistrados e promotores. Quanto ao contato com os estilos dos tribunais régios, em alguns processos há pedidos de procuradores pelo seguimento destes e citações a doutrinadores e praxistas da tradição jurídica portuguesa, como Jorge de Cabedo e Prospero Farinacci. Acredita-se que isto sugere o interesse por parte dos oficiais camarários pelo respeito à padronização, à burocracia e ao formalismo imperiais desde o início da fundação da vila.
  • 10
    Os juízes ordinários eram oficiais eleitos pelas elites locais sem que houvesse a necessidade do letramento. A ausência de bacharelado não significava necessariamente a rusticidade: estes oficiais familiarizavam-se com os termos judiciais, aprendiam as técnicas e formalismos próprios dos foros e tentavam ao máximo reproduzir o estilo jurídico havido na metrópole imperial. Administravam a “justiça dos povos” com base no direito costumeiro, nos forais (Portugal, 1870, p. 134, nota 2), nos preceitos do “direito régio” cujo manejo ocorria segundo seu arbítrio e de acordo com elementos casuís­ticos. Por ser um oficial escolhido entre a elite local e detentor de um elevado poder de autonomia no interior do conselho camarário, é visto pela maior parte da historiografia brasilianista como um pivot no que tange às questões da vila (Hespanha, 1994, p. 163; Fragoso; Guedes, 2014FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima. O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2001., p. 13-14; Bicalho, 2001BICALHO, Maria Fernanda Baptista. As câmaras ultramarinas e o governo do Império. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima. O Antigo Regime nos trópicos. A dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.). Quanto à esfera criminal, sua competência, em suma, englobava processamento de devassas gerais de crimes incertos (Portugal, Ordenações filipinas. L.I, 1870, tit. LXV §39 a §69), devassas especiais, ou particulares, de crimes certos (Idem, ibidem, §31 a §33) e de querelas (Portugal, Ordenações filipinas. L.V, 1870, tit. CXVII).
  • 11
    Os ouvidores eram oficiais de carreira, letrados e selecionados pela Coroa (usualmente pelo Desembargo do Paço) para o cargo. No exercício ao longo da América Portuguesa na segunda metade do século XVIII passaram a acumular as funções descritas nas Ordenações para os corregedores (Hespanha, 1994, p. 192-193), cujas atribuições versavam acerca da administração da justiça, do poder de polícia e fiscalização das câmaras (Portugal, Ordenações filipinas. L.I, 1870, tit.LVIII, §31). No âmbito criminal, em suma, eram responsáveis pelo segundo grau de jurisdição (ou seja, conhecimento de agravos), por inspecionar prisões, mover ação nova ou avocar processos dos juízos ordinários sob sua jurisdição sempre que “lhe parecer que os juízes da terra não farão inteiramente a justiça” (Idem, ibidem, §22), abrir devassas para investigação de crimes graves (Ibidem, tit.LXV, §39 a §69) e dar cartas de seguro (Portugal, Ordenações filipinas.L.V, 1870, tít. CXXIX).
  • 12
    No que tange às formas de processamento de crimes, dez referem-se a traslados de autos crimes, cinco a autos de agravo crime, quatro a autos de apelação crime, dois a libelos de injúria, um a devassa, um a auto cível e crime, um a auto de libelo crime, um a carta de inquirição crime e um a auto de justificação. Não foi encontrada nenhuma querela, mas entre o número supracitado de autos de livramento crime, seis foram advindos especificamente em razão de investigação realizada por meio de querelas e as culpas tratadas nos demais autos de livramento foram oriundas de devassas gerais.
  • 13
    As Ordenações filipinas eram compostas por cinco livros que tinham um maior acúmulo de regras sobre um ramo específico. O Livro I trata mais de aspectos de estruturação das instituições de administração do reino, dos oficiais e procedimentos a serem por eles seguidos; o Livro II trata na maior parte de privilégios eclesiásticos e da nobreza; o Livro III trata de orientações a processos da “burocracia” judiciais e administrativos; o Livro IV traz regulamentações de trocas comerciais e, por fim, o Livro V apresenta crimes e penas (Bicalho, 2000, p. 244-231).
  • 14
    Neste sentido, é importante ressaltar a permanência da estrutura de administração da justiça realizada pelo direito comum. A partir dele, a compreensão do jurídico era dada num ambiente de pluralidade efetiva, em que coexistiam doutrinas comuns à toda porção ocidental da Europa — formadas, em suma, por comentários e ressignificações ao pandectas do corpus iuris civilis e por encíclicas e regras do direito canônico —, o direito consuetudinário e o direito régio. No período em análise no presente artigo, este direito régio encontrava-se em expansão visto que (no interior de uma lógica de racionalização) a sua crescente valorização em detrimento das demais fontes jurídicas ocorre paulatinamente ao longo da segunda metade do século XVIII.
  • 15
    Tendo em vista que existia a possibilidade da expedição da pronúncia quando 15 testemunhas citassem o mesmo nome de suspeito.
  • 16
    Como citado em nota de rodapé ao início deste artigo, a pronúncia era uma sentença na qual o magistrado declarava o réu como suspeito (Pereira e Sousa, 1827, p. 403). No direito português, era exarada sob três formatos: pronúncia de captura (admitida por direito comum), pronúncia para que o acusado se libertasse como seguro nos termos de declaração do juiz e pronúncia para libertação do réu por meio do modo ordinário (ambas admitidas somente no direito lusitano) (Leitão, 1745, 2009, p. 541).
  • 17
    Não havendo acusação pela parte ofendida pelo crime cometido pelo réu, o promotor do conselho, “por parte da Justiça, achando que a Justiça ha lugar”, poderia oferecer acusação (Portugal, Ordenações filipinas. L.I, 1870, tit. LXV, §37). O promotor, sumariamente, era oficial também eleito pela localidade e não letrado, tendo como atribuição a representação do conselho no acompanhamento dos feitos relativos a rendas e bens camarários, a arrecadação e guarda das terças e desempenho das funções de tesoureiro quando não houvesse um oficial designado para tal cargo (Hespanha, 1994, p. 163). Nas práticas do foro da vila de Curitiba, era comum que o escrivão do juízo acumulasse as funções de promotor da justiça; em todos os processos estudados neste trabalho houve atribuições destas duas funções ao mesmo oficial.
  • 18
    Agravo era o recurso cabível sobre decisões do Juízo Ordinário, fazendo com que o processo fosse remetido para o ouvidor. Nos processos encontrados, a interposição de agravos gerava ações denominadas Agravo de injusta pronúncia e Autos crimes de agravo ou agravo crime (Arquivo Público do Paraná [APPR], “Autos de agravo de injusta pronúncia entre a Justiça por seu procurador e José de Siqueira Camargo”, Curitiba, Cx.89, PC2608, 1786; APPR, ”Autos crimes de agravo entre a Justiça por seu procurador e Anna Maria preta forra”, Curitiba, Cx.102, PC2900, 1789).
  • 19
    Estas demais formas de soltura e livramento eram, principalmente, as cartas de seguro (Leitão, 1745, 2009, p. 213-368), o perdão régio (Hespanha, 2010, p. 103), os alvarás de fiança (Portugal, Ordenações filipinas. L.V, 1870, tit. CXXXI), as pronúncias de livramento (Leitão, 1745, 2009, p. 555). As cartas de seguro, o perdão régio e os alvarás de fiança eram instrumentos de graça exarados de modo mais explícito, considerando que não requeriam um modo de processamento específico nem razões determinadas para sua concessão. As pronúncias de livramento eram instrumentos jurídicos que pertenciam ao contexto do desenrolar processual, ou seja, eram apresentados no caminhar de um processo crime e não em época posterior.
  • 20
    Sobre os procedimentos, Cabral (1730, parte I, cap. XXXIV, p. 47) expõe que, quando o réu era acusado na ação criminal, o juiz exarava pronúncia de captura e passava em segredo mandado de prisão ao meirinho ou ao alcaide para que então realizasse o encarceramento do acusado. Neste lapso de tempo, porém, era possibilitado ao condenado requerer carta de seguro e tê-la concedida junto à Ouvidoria de comarca — caso não houvesse disposição contrária na dependência do crime pelo qual havia sido condenado. Concedida esta carta, possuía o réu o prazo de dezoito dias para apresentá-la ao juiz que o condenara, “ou em casa do mesmo, ou na audiência”, fazendo com que o escrivão passasse o contramandado para que o sujeito carregasse consigo para não sofrer encarceramento e juntasse a referida carta nos autos de livramento. Dentro dos dezoito dias, ainda, a vítima deveria ser citada para manifestar-se sobre o desejo de acusar o réu.
  • 21
    APPR, “Traslado de autos de livramento crime entre as partes A Justiça por seu Promotor contra o réu Francisco Ricardo de Oliveira”, Curitiba, Cx. 78, PC2357, 1782.
  • 22
    Curiosamente, este é o ano em que Pascoal José de Mello Freire trouxe a público seu Código Criminal, a mando da rainha D. Maria I mediante exposição à Junta do Novo Código (Hespanha, 1993, p. 289), no qual sugeriu a exclusão completa do uso das cartas de seguro na ordem jurídica criminal do Reino (Freire, 1823FREIRE, Pascoal José de Mello. Codigo criminal intentado pela Rainha D. Maria I autor Pascoal José de Mello Freire. Segunda edição castigada dos erros. Corrector o licenciado Francisco Freire de Melo, sobrinho do autor. Lisboa: Typographo Simão Thaddeo Ferreira, 1823., tit. LVII, §9).
  • 23
    Havia o custo da carta de seguro acrescido dos valores da razão, do conhecimento e regimento, da chancelaria, da assinatura, do selo e da conta.
  • 24
    O rol dos culpados era um livro de registros mantido por todos os juízos no qual eram anotados os nomes de todos os sujeitos que haviam sido considerados culpados (Oliveira, 2014, p. 84). O rol do juízo ordinário da vila de Curitiba e o da Ouvidoria da comarca de Paranaguá não foram encontrados.
  • 25
    APPR, “Traslado de autos de livramento crime entre as partes A Justiça por seu Promotor contra o réu Francisco Ricardo de Oliveira”, Curitiba, Cx.78, PC2357, 1782.
  • 26
    Na vila de Curitiba, quando retornavam as respostas, as certidões compulsadas nos autos registravam as culpas no cartório do próprio juízo ordinário de Curitiba, tendo em vista que, no interior do mesmo termo, era o único juízo existente. Esta atitude leva a crer que, em uma vila pequena, talvez não fosse necessário mandar correr folha em razão da existência de somente um cartório no mesmo termo. Mas a atitude dos oficiais (e dos moradores que requerem) em respeitar este procedimento específico sugere uma função bastante formal para evitar o questionamento da nulidade dos autos, ressaltando a sofisticação das justiças desta localidade e recepção dos formalismos cultivados no foro.
  • 27
    APPR, “Autos de livramento crime entre a Justiça por seu Promotor e Vicente Francisco cabra forro”, Curitiba, Cx.85, PC2535, 1785.
  • 28
    Noções desenvolvidas no momento em que são delineadas teorias sobre as funções e utilidades das penas, sobretudo a partir de Cesare Beccaria.
  • 29
    APPR, “Autos de livramento crime entre a Justiça por seu promotor e Francisco escravo de José del Rio Cardins”, Curitiba, Cx.88, PC2587, 1786.
  • 30
    Isto é, os argumentos e as fundamentações da defesa eram lidos para as testemunhas de defesa para que então fizessem suas considerações, afirmando veracidade ou falsidade do que lhes era dito mediante os rituais de juramento que garantiriam que o inquirido só falaria o que sabia ser verdade.
  • 31
    Portando um termo inicial em que era descrita a ação por meio da qual resultou aquela culpa do réu, cópia dos depoimentos das testemunhas na inquirição daquele processo crime e a pronúncia que declarava ser visível a culpa do réu. Inclusive, caso o réu houvesse cometido mais de um crime, as culpas formadas acumulavam-se. A cópia dos depoimentos aparece em alguns traslados de culpa de modo integral e em outros de modo selecionado, isto é, somente os depoimentos que melhor embasarem a pronúncia no final do processo crime.
  • 32
    No que tange às trajetórias dos personagens, cabe mencionar que o detalhamento de informações dos réus (idade, ocupação, filiação) não é fornecido em todos os processos pesquisados, ausentes nos ora expostos. Não foram encontrados rastros desses mesmos personagens em fontes paroquiais, sobretudo pela falta de maiores informações para a identificação, tendo em vista a diferença dos nomes tais como aparecem nos autos.
  • 33
    O termo “seguro” indicava que o réu era agraciado com uma carta de seguro, o que significa que não se encontrava aprisionado quando do acompanhamento dos procedimentos judiciais em questão.
  • 34
    APPR, “Autos de livramento crime entre a Justiça por seu promotor e Francisco escravo de José del Rio Cardines”, Curitiba, Cx. 88, PC2587, 1786; sem destaques no original.
  • 35
    Francisco Leandro de Toledo Rondon era natural da capitania de São Paulo e pertencia a uma família em que existiam oficiais da Coroa (seus avôs, seu pai e seu irmão). Formou-se pela Universidade de Coimbra em 1779, seu processo de leitura de bacharel ocorreu entre 1780 e 1781, em 1783 recebeu a mercê do cargo de ouvidor da comarca de Paranaguá (posse em 21 de julho de 1785) pelo Desembargo do Paço e permaneceu até 1790. Embora Pegoraro (2007, p. 62) tenha identificado esta como a primeira nomeação de Toledo Rondon, não se pode afirmar que tenha sido o primeiro exercício de funções à Coroa, tendo em vista que os ouvidores designados ao Brasil tinham, em sua maioria, experiência no ofício.
  • 36
    “E como se mostra que a Ré está inocente do crime por que foi depois mantida em prisão, e que a fuga, que foi desta, foi sem resistência e só por se defender dela, aproveitando-se do favor do carcereiro. Portanto julgo não ter lugar a acusação da Justiça, e absolvo a Ré do pedido no seu Libelo, e mando que seja riscada do rol dos culpados, (...) Vila de Curitiba, 2 de fevereiro de 1786. Francisco Leandro de Toledo Rondon”. (APPR, “Autos de livramento crime entre A Justiça por seu promotor e Quitéria Luiza de Azevedo”, Curitiba, Cx. 89, PC2627, 1786).
  • 37
    APPR, “Autos de livramento crime entre A Justiça por seu promotor e Antonio Rodrigues dos Santos”, Curitiba, Cx. 89, PC2606, 1786.
  • 38
    APPR, “Traslado de auto de livramento crime do Juízo Ordinário da Vila de Curitiba a Ouvidoria de Paranaguá entre as partes A Justiça por seu Promotor contra o Réu preso Francisco Ricardo de Oliveira”, Curitiba, Cx. 78, PC2357, 1782.
  • 39
    Antonio Barbosa de Mattos Coutinho fora nomeado ao cargo de ouvidor pelo Desembargo do Paço em 1772, desempenhando as funções de 1774 a 1783. Pegoraro (2007, p. 61) menciona que, aparentemente, não exercera funções na estrutura jurídico-política anteriormente, todavia cabe lembrar que a maioria dos oficiais enviados ao exercício das funções na América Portuguesa acumulavam experiência no ofício.
  • 40
    “sem embargo ser o Réu da ínfima plebe oriundo do gentio da terra contudo vive com bom procedimento, e que não furtara tal vaca, e que vendera o couro sim mas por que o tinha comprado o Salvador Valente a quem visto e o mais dos autos absolvo ao Réu e mando que solto se vá em paz, (...) Curitiba 4 de julho de 1784 Luis Ribeiro da Silva”; “E como pelo termo f.5 teve a inocência do Réu pela confissão da própria parte que bem se confirma pelas testemunhas da acusação. Portanto absolvo ao Réu e mando que se vá em paz da cadeia em que se acha (...). Vila de Paranaguá 3 de setembro de 1784 Antonio Barbosa de Mattos Coutinho”. (APPR), “Autos de livramento crime entre a Justiça por seu Promotor e Manoel José”, Curitiba, Cx. 83, PC2493, 1784).
  • 41
    “que não foi o Réu quem atirou mas sim seu filho Francisco Gonçalves e tendo a parte ofendida perdoado (...) Vila de Curitiba 22 de janeiro de 1787 Francisco Leandro Toledo Rondon” (APPR, “Autos de livramento crime e apresentação da primeira carta de seguro entre A Justiça por seu promotor e Diogo Gonçalves”, Curitiba, Cx. 88, PC2595, 1786).
  • 42
    APPR, “Juízo Ordinário da Vila de Curitiba, Autos de livramento da querela que deu Antonio Diaz de Camargo de Sua mulher Luzia Leite Barboza e José de Souza Nunes”, Curitiba, Cx. 73, PC2253, 1780.
  • 43
    Ibidem; sem destaques no original.
  • 44
    Ibidem, fl. 6.
  • 45
    Isto é, adultério não cometido com mouro, judeu, parente ou cunhado de afinidade (Portugal, Ordenações. L. V, tit. XXV, §2).
  • 46
    “cujo senhor por isso lhe deu livramento o perdão (...). Pelo que julgo não ter lugar a acusação da Justiça Autora e absolvo ao Réu do pedido no seu Libelo, e mando que seja riscado do Rol dos Culpados (...) Curitiba 11 de fevereiro de 1788 Francisco Leandro de Toledo Rondon” (APPR, “Autos de livramento crime entre a Justiça por seu promotor e Joaquim Pereira”, Curitiba, Cx. 94, PC2708, 1787).
  • 47
    O termo está entre aspas para marcar sua historicidade, bem como para fazer a ressalva de que a semântica utilizada não se identifica com a noção moderna de tentativas de separação entre os campos privado e público.
  • 48
    Manoel Lopes Branco e Silva foi ouvidor e Provedor das Fazendas dos Defuntos e Ausentes, Capelas e Resíduos da Comarca de Paranaguá de 1790 a 1797 (com nomeação em 31 de outubro de 1789). Assim como em seus antecessores, Pegoraro (2007, p. 62-63) não identificou exercício de funções antes da ouvidoria. Todavia, ressalta-se, novamente, a usual experiência dos oficiais deslocados para o exercício de funções no ultramar.
  • 49
    Era uma literatura muito reproduzida nos períodos medieval e renascentista (Cassirer, 1976CASSIRER, Ernst. O mito do Estado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1976., p. 168).
  • 50
    Ainda: De Mattei, 1979DE MATTEI, Rodolfo. Il problema della ‘ragion distato’ il pensiero politico italiano nell’età della Controriforma. Milano/Napoli: Ricciardi, 1979..
  • 51
    Tradução livre de Botero, 2009, p. 17.
  • 52
    D. Jerônimo Osório (1514-1580) estudou em Paris (local em que teve contato com santo Inácio de Loyola), foi professor em Coimbra e escreveu cartas contra D. Sebastião.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    10 Ago 2018
  • Aceito
    28 Mar 2019
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