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O meio militar como arena política: conflitos e disputas por direitos no Regimento de Homens Pardos do Rio de Janeiro, 1805

The military world as a political arena: conflicts and disputes for rights in the Regiment of Pardos Men of Rio de Janeiro, 1805 1 1 Este artigo baseia-se em pesquisa financiada pelo Programa PQ/CNPq. As linhas gerais do texto foram discutidas pela primeira vez no Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, da Universidade Estadual de Campinas (Cecult/Unicamp), onde realizei estágio pós-doutoral. Agradeço em especial a Silvia Hunold Lara a oportunidade de um diálogo tão vivo, renovador. Agradeço as críticas de Cristiana Schettini e Fabiane Popinigis, que também abriram as portas para que uma segunda versão deste texto fosse discutida no grupo La Historia Social en Perspectiva Latinoamericana. Contei ainda com as preciosas leituras de Hendrik Kraay, Roquinaldo Ferreira e de um dos pareceristas anônimos.

Resumo:

O objetivo deste artigo é examinar um episódio pontual - um ato de insubordinação de dois capitães do Regi­mento de Homens Pardos do Rio de Janeiro - como expressão de uma grande tensão, cotidiana, de disputas e redefinições de hierarquias sociais na virada para o século XIX. Tensão esta produzida pelo crescimento da população negra da cidade, fosse ela de escravos ou de livres e libertos, o que impôs uma discussão sobre os possíveis mecanismos - políticos e institucionais - para inseri-la na sociedade.

Palavras-chave:
Direito; Justiça; Conflitos sociais; Milícia; Pardos

Abstract:

The purpose of this article is to examine a specific episode - an act of insubordination of two captains of the Rio de Janeiro Regiment of Pardos (mixed blood) Men - as an expression of a great daily tension of disputes and redefinitions of social hierarchies at the turn of the nineteenth century. This tension is produced by the growth of the black population of the city, whether it be slaves or free and freed, which imposed a discussion on possible mechanisms - political and institutional - to insert it into society.

Keywords:
Law; Justice; Social conflicts; Militias; Pardos

O ato de insubordinação

Era a tarde do dia 27 de outubro de 1805, por volta das 16 horas, na região central do Rio de Janeiro. As companhias do 4º Regimento de Milícias da cidade, conhecido à época como Regimento de Homens Pardos do Rio de Janeiro, começavam a se reunir no campo dos Ciganos (atual praça Tiradentes) para executar seus exercícios. Os capitães de cada companhia, como era de costume, já tinham passado as tropas em revista nos quartéis. No campo, davam-se apenas os exercícios e - ao que parece - era nesse momento que o ajudante do regimento recolhia o registro das faltas.

Francisco Dezidério da Silva, ajudante do Regimento de Homens Pardos, deveria cumprir assim sua função. Chegando ao campo dos Ciganos naquela tarde, como algumas companhias já estavam em forma, começou a “tomar as faltas”. Todavia, ao passar à frente da 8ª Companhia, recebendo a parte assinada pelo capitão com o registro das faltas, que eram poucas, apenas três, Francisco Dezidério não se deu por satisfeito e decidiu conferi-las pessoalmente, começando a contar os soldados. Indignado com a atitude do ajudante, o capitão da companhia, Antônio de Novaes Campos, imediatamente deu ordens de destroçar a tropa (ou seja, ordenou que a tropa saísse de forma). Estava detonado o conflito.2 2 A narrativa desse episódio se baseia em um conjunto documental integrado por vários ofícios, dois processos e seus anexos. Toda essa documentação está identificada apenas como um documento: Arquivo Nacional (AN), Fundo Vice-Reinado, Cx. 483, Pac. 3, Doc. 45.

A partir deste ponto, há duas versões sobre os fatos. A primeira delas - favorável ao capitão - é toda ela fundamentada no relato das testemunhas chamadas a depor no processo de justificação aberto na Ouvidoria da cidade. Logo após ter dado ordens de “destroçar” a tropa, impedindo que o ajudante do Regimento a passasse em revista, Antônio de Novaes Campos e outro capitão do mesmo regimento, que tomou seu partido no episódio, Manoel de Jesus Neves, foram presos na fortaleza do Castelo sendo, em seguida, transferidos para o forte da Lage. De lá, abriram um processo de justificação na Ouvidoria por meio do qual reclamavam do arbítrio da prisão e exigiam instauração de Conselho de Guerra. Em seus depoimentos, as testemunhas - 16 no total, sendo 14 delas oficiais e soldados do Regimento de Pardos - são unânimes na história que contam. Por esta versão, ao ver a tropa se dispersar, o ajudante se descontrolou e começou a insultar o capitão Novaes com “palavras injuriosas”, como bode. Diante da cena, o capitão Manoel Neves, que pertencia a outra companhia do Regimento de Pardos, decidiu interferir. Perguntou ao ajudante Dezidério como podia “ultrajar um capitão na frente de sua companhia e na presença do senhor tenente-coronel”, comandante das tropas. Disse mais: que não era a ele, ajudante, que o capitão Novaes devia dar contas, “por ser inferior na patente”, um “simples sargento de artilharia”. O capitão Novaes - por esta versão - só deveria prestar contas das faltas ao tenente-coronel do Regimento, Manoel Luís Ferreira.

Presente no campo dos Ciganos, o tenente-coronel Ferreira, que até então apenas assistia as disputas, tomou partido: acompanhando os “vários ditérios” do ajudante, deu ordem de prisão ao capitão Manoel Neves, mandando-lhe recolher à Fortaleza do Castelo. Julgando a atitude “escandalosa”, o capitão deu-lhe as costas e, em alto e bom som, exigiu o pagamento das “seis doblas e dez patacas” que o tenente-coronel lhe devia. Pelos depoimentos, não há como descobrir que empréstimo foi esse. Entretanto, a cobrança em público elevou a temperatura das discussões. O tenente-coronel negou a dívida e, aos gritos, xingou o capitão Manoel Neves de “caloteiro, tratante e ladrão”. Dizia ainda, devolvendo a acusação, que o capitão é quem “lhe havia furtado cal e tijolos”. Para piorar, ao final, perdendo inteiramente o controle, olhou para a tropa presente no campo dos Ciganos e chamou “a todos de corja de bodes”.3 3 Arquivo Nacional (AN), Fundo Vice-Reinado. Processo aberto na Ouvidoria pelos capitães Antônio de Novaes Campos e Manoel de Jesus Neves. Cx. 483, Pac. 3, Doc. 45.

Há nesses relatos dois pontos importantes: as injúrias acionadas no calor dos acontecimentos pelo tenente-coronel Ferreira e seu ajudante e a patente militar do dito ajudante, identificado como um “simples sargento de artilharia”. Voltaremos a eles mais adiante. Por ora, vale destacar que - nos depoimentos - oficiais e soldados mostravam-se indignados porque - como afirmam - os capitães Antônio de Novaes e Manoel Neves “sempre se trataram nesta cidade com lisura, verdade e limpeza de mão”, cumprindo as “obrigações e respeitando em tudo as leis e ordens de seus superiores”.

A versão favorável ao tenente-coronel Ferreira e seu ajudante só é acessível a partir de outro conjunto documental. Da prisão do forte da Lage, os capitães Antônio de Novaes e Manoel Neves não se limitaram a abrir um processo de justificação, também acionaram, por meio de requerimento de soltura, o tenente-general comandante das tropas do Rio de Janeiro, José Narciso de Magalhães e Menezes.4 4 Arquivo Nacional (AN), Fundo Vice-Reinado. Ofícios trocados entre o general José Narcizo de Magalhães e Menezes e o sargento-mor Albino dos Santos Pereira. Cx. 483, Pac. 3, Doc. 45.

Os documentos são de natureza distinta. O processo de justificação tem a intenção de “anular qualquer imputação feita a alguém”. Ao final, é “meramente homologado. Nele não há sentença pela qual se possam declarar ou atribuir direitos” (Silva, 2012SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 29ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2012., p. 811). Ou seja, a intenção dos capitães do Regimento de Pardos, ao abrirem um processo de justificação, era criar um instrumento de defesa, produzindo uma interpretação dos fatos que poderia, em outras circunstâncias, funcionar como prova.

Paralelamente, porém, entraram com um requerimento de soltura. Este, sim, é um instrumento jurídico acionado para questionar a prisão. A soltura é medida que deve ser “determinada por autoridade competente” por reconhecer que não foi apurado “contra a pessoa presa qualquer responsabilidade criminal” (Silva, 2012SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 29ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2012., p. 1320). Daí os capitães Antônio de Novaes e Manuel Neves terem encaminhado o requerimento para o general comandante das tropas do Rio de Janeiro. Nele, reclamavam do arbítrio da prisão, exigindo a instauração de um Conselho de Guerra para que tivessem a chance de se defender. Diante do requerimento, o general Magalhães e Menezes decidiu abrir investigação. Por ofício, datado de 31 de outubro, convocou o tenente-coronel Ferreira a esclarecer os fatos e ordenou que se procedesse à inquirição “não só das testemunhas contempladas na resposta” encaminhada a ele, general, pelo tenente-coronel, “mas de todas aquelas (...) que hajam presenciado o fato de que se trata”.5 5 Arquivo Nacional (AN), Fundo Vice-Reinado. Ofício do tenente-general José Narcizo de Magalhães de Menezes para o tenente-coronel Manoel Luís Ferreira. Cx. 483, Pac. 3, Doc. 45.

É por meio dessa documentação que podemos acessar a versão do tenente-coronel Manoel Luís Ferreira e do ajudante Francisco Dezidério da Silva. Ambos contavam uma história diferente. Negavam que os capitães do Regimento de Pardos fossem tão ordeiros: que tivessem por hábito passar as tropas em revista, chegando ao campo com o registro de faltas em mãos. Contaram também que “recentemente”, durante uma revista, foi identificado “na companhia do capitão Manoel Neves oito homens fardados, que faziam o serviço do Regimento sem estarem matriculados”. A prática - ainda segundo o tenente-coronel - tinha por objetivo proteger esses homens do recrutamento para o Exército.

Tudo isso - prossegue o tenente-coronel - vinha produzindo indisposição contra o ajudante e contra ele próprio, como comandante do Regimento. O episódio era expressão dessa indisposição. Negou, com especial veemência, que o ajudante tivesse reagido com “excesso de palavras”. Na avaliação do tenente-coronel, o ajudante Francisco Dezidério agiu em “conformidade com a prática militar”. Quando reunidas em campo, as companhias de Milícias ficavam sujeitas - explicou o tenente-coronel - ao comandante do Regimento. E ele, ocupando tal posição, havia ordenado ao ajudante que fiscalizasse as faltas. Se o capitão Novaes se sentiu “atacado em suas regalias” deveria ter-lhe requerido - prosseguia - providências, já que ele se encontrava no campo dos Ciganos. E, se não concordasse com sua deliberação, deveria ter se dirigido ao general Magalhães e Menezes. Mas, não. Preferiu - avançava o tenente-coronel - insultar o ajudante e a ele, comandante.6 6 Arquivo Nacional (AN), Fundo Vice-Reinado. Autos do ofício expedido pelo tenente-general comandante geral das Tropas desta capitania José Narcizo de Magalhães e Menezes. Cx. 483, Pac. 3, Doc. 45.

A avaliação tinha um propósito: o tenente-coronel Ferreira pretendia caracterizar o episódio de 27 de outubro como “altiva insubordinação” e convencer o general da disposição dos capitães do Regimento de Pardos para a rebelião. Também pretendia, a partir deles, atacar o grupo, destacando a “má vontade de todos os oficiais do Regimento”, o que se manifestava no “atentado cometido pelo capitão Manoel Neves”. Bem se conhece - prosseguia - “como ele e o capitão Novaes vinham de mãos dadas semear a desordem, a insubordinação e a sublevação em todo o Regimento”. A prisão dos oficiais, concluiu, era positiva: tinha concorrido para “inabilitar funestas consequências”.

Nesse embate pela versão dos fatos, não é possível saber o que de fato se passou no campo dos Ciganos naquela tarde do dia 27 de outubro de 1805. No entanto, há nesses relatos uma clara disputa política. De um lado, estão os capitães e alguns oficiais e soldados do 4º Regimento de Milícias de Homens Pardos da cidade do Rio de Janeiro, do outro, o tenente-coronel e o ajudante do Regimento. O general Magalhães e Menezes é o fiel da balança. Obviamente, isso se dá por sua posição hierárquica, ele era o comandante-geral das tropas do Rio de Janeiro. Mas, ainda assim, é importante perceber como ele foi acionado. O tenente-coronel Manoel Luís Ferreira, por ser oficial do Exército, de patente superior e branco, em geral, nesse tipo de circunstâncias, teria sua palavra dada por certa. Informaria apenas, como o fez, o que se passou. De resto, tudo estaria encaminhado: os capitães presos e o Regimento controlado. Todavia, não foi isso o que se viu. O general Magalhães e Menezes preferiu abrir investigação e ouvir trinta testemunhas. Já os capitães, tanto ao reagir na tarde do dia 27 de outubro, quanto depois, na prisão, pareciam acreditar que poderiam ser ouvidos. Mesmo sendo oficiais inferiores, de milícias e de um Regimento “de cor”, buscaram se movimentar e organizar argumentos que legitimassem suas ações. Esse, inclusive, é um ponto que merece destaque. O episódio do campo dos Ciganos foi algo muito pontual, rapidamente controlado. A proporção que ganhou, agitando a cidade por dois meses, quando as testemunhas foram ouvidas, tanto pelo ouvidor quanto pelo general, deveu-se à iniciativa dos capitães pardos. Eles produziram o fato.

Cabe, portanto, perguntar o que estava em disputa. O objetivo deste artigo é explorar essa disputa como brecha de acesso a um espaço/contexto específico: o de um meio militar plural - integrado por instituições com tradições, funções e formas de atuação inteiramente distintas - e hierarquizado nas relações que essas forças militares mantinham entre si e internamente, na estruturação de seus vários postos. Hierarquias organizadas pelo vínculo (mais ou menos estreito) que possuíam com a Coroa, pela necessidade local de seus serviços, mas também pela “cor” de seus integrantes. Tudo isso em um momento bem delicado. Como já foi largamente demonstrado pela historiografia, na virada do século XVIII para o XIX, houve um crescimento exponencial da população de negros na cidade do Rio de Janeiro, fosse de negros escravos, pela intensificação do tráfico que começava a abastecer o norte fluminense, fosse de livres e libertos (Alden, 1998ALDEN, Dauril. O período final do Brasil colônia: 1750-1808. In: BETHELL, Leslie (Org.). América Latina Colonial. Vol. II. São Paulo: Editora da Uni­versidade de São Paulo; Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 1998, p. 527-592.; Fragoso, Florentino, 1993FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto. Mercado Atlântico, sociedade agrária e elite mercantil no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Diadorim, 1993.; Russell-Wood, 2005RUSSELL-WOOD, A.J.R. Escravos e libertos no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.; Lara, 2007LARA, Silvia Hunold. Fragmentos setecentistas: escravidão, cultura e poder na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras , 2007.). A pressão social exercida por estes últimos, interessados em se distinguir dos escravos, impôs uma discussão sobre os possíveis mecanismos - políticos e institucionais - para inseri-los na sociedade (Lara, 2007; Viana, 2007VIANA, Larissa. O idioma da mestiçagem: as irmandades de pardos na América portuguesa. Campinas: Editora Unicamp, 2007.). O episódio do campo dos Ciganos é tomado como expressão dessa grande tensão, cotidiana, de disputa e redefinição de hierarquias sociais em um ambiente preciso: o mundo militar do Rio de Janeiro na virada para o século XIX.

O general, a carreira militar e as milícias de homens de cor

O general José Narcizo de Magalhães e Menezes desembarcou no Rio de Janeiro no dia 21 de novembro de 1799. Antes disso, tinha passado 12 dias na Bahia, onde a fragata que o trouxe de Portugal fez escala. Essa estada em Salvador deixou o general Magalhães e Menezes bem impressionado. Em seu primeiro ofício ao secretário do Estado da Marinha e Ultramar, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, informou que encontrou na cidade regimentos de milícias com “pequeno número de praças”, mas que “portam-se muito bem debaixo das armas (...) e marcham perfeitamente bem”.7 7 Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Ofício do tenente general do exército e comandante das tropas do Rio de Janeiro, José Narciso de Magalhães de Meneses, ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar], D. Rodrigo de Sousa Coutinho. Rio de Janeiro, Cx. 180, Doc. 33.

Chegando ao Rio de Janeiro, a impressão do general - ainda que superficial, como fez questão de destacar - foi outra. Parecia haver em tudo “demasiado enfeite”, afirmou. Os regimentos de Infantaria e Artilharia mais o Esquadrão de Cavalaria, juntos - em sua avaliação - “apenas faziam frente a um de nossos batalhões de linha”.8 8 Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Ofício do tenente general do exército e comandante das tropas do Rio de Janeiro, José Narciso de Magalhães de Meneses, ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar], D. Rodrigo de Sousa Coutinho. Rio de Janeiro. Cx. 180, Doc. 33. O termo de comparação aqui são as tropas de Portugal.

José Narcizo de Magalhães e Menezes era um oficial português, nascido em Braga e que assentou praça no Exército em 1763, tendo servido sob as ordens do conde de Lippe. Conhecia bem o complexo sistema militar português, integrando a geração cujas primeiras experiências militares se fizeram em meio às reformas pombalinas no campo militar (Costa, 2010COSTA, Fernando Dores. Insubmissão. Aversão ao serviço militar no Portugal do século XVIII. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2010.).

Desde as primeiras décadas da expansão ultramarina, Portugal ergueu seu sistema militar a partir de “experimentos” que incorporavam gentes, técnicas e táticas nativas, o que produziu arranjos institucionais variados (Alencastro, 2000ALENCASTRO, Luís Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.). De modo geral, após a Restauração, em 1641, as forças militares do Império português foram organizadas em duas frentes: um Exército permanente, com tropa paga, integrado em suas patentes mais altas (de coronel para cima) por portugueses, nascidos no Reino, nomeados pelo rei e, em sua maioria, oriundos da nobreza; e as milícias, mais conhecidas como terços auxiliares. Uma tropa não remunerada, comandada por potentados locais, que eram responsáveis por sua organização e manutenção. Esta tropa - largamente utilizada nas conquistas, onde a presença do Exército era muito rarefeita - recebia treinamento e o recrutamento era de base territorial, realizado entre a população local (Selvagem, 1999SELVAGEM, Carlos. Portugal militar: compêndio de história militar e naval de Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional, 1999.). Assim, ainda que de forma segregada, as milícias incorporavam indígenas, pretos e pardos livres (Morton, 1975MORTON, F.W.O. The Military and Society in Bahia, 1800-1821. Journal of Latin American Studies, Cambridge University Press (New York), vol. 7, nº 2, p. 249-269, 1975.; Puntoni, 2002PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão no nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: Hucitec , 2002.; Cotta, 2010COTTA, Francis Albert. Negros e mestiços nas milícias da América Portuguesa. Belo Horizonte: Crisálida, 2010.; Kraay, 2003KRAAY, Hendrik. Identidade Racial na Bahia, 1790-1840. In: JANCSÓ, István. Brasil: formação do Estado e da nação. São Paulo: Hucitec, 2003., 2011; Silva, 2003SILVA, Luiz Geraldo. Negros patriotas. Raça e identidade social. In: JANCSÓ, István. Brasil: formação do estado e da nação. São Paulo: Hucitec, 2003., 2013SILVA, Luiz Geraldo. Gênese das milícias de pardos e pretos na América Portuguesa: Pernambuco e Minas Gerais, séculos XVII e XVIII. Revista de História, São Paulo, n. 169, p. 111-144, 2013.). As patentes eram passadas pelos governadores. Por fim, como tropa de reserva, havia as ordenanças. Seus integrantes não eram treinados nem recebiam soldo. Eram todos os moradores não incorporados pelo Exército e pelas milícias, constituindo um “depósito de recrutamento” para essas forças militares.

Na década de 1760, sob impacto das reformas pombalinas, potencializadas com a chegada do conde de Lippe a Portugal, as milícias - já difundidas nas capitanias de Bahia e Pernambuco - ganharam mais visibilidade em termos formais, especialmente as milícias de pardos e pretos livres. Por carta régia de 22 de março de 1766, a Coroa determinava, enviando cópia da carta individualmente para os capitães generais de Pernambuco, São Paulo e Bahia, e para o próprio vice-rei, o conde da Cunha, que se alistassem “todos os moradores das terras (...) sem exceção de nobres, plebeus, brancos, mestiços, pretos, ingênuos e libertos”. Por essa carta, os terços então criados deveriam ser disciplinados por um sargento-mor da tropa paga. Todavia, pouco mais de um ano depois, por meio de um aviso régio de 30 de maio, determinava que os sargentos-mores e ajudantes fossem recrutados entre os oficiais dos próprios regimentos e que recebessem “o mesmo soldo, graduação e honras que tinham os dos outros regimentos”. Uma política que afirmava certa igualdade entre pretos, pardos e brancos (Kraay, 2011KRAAY, Hendrik. Política racial, Estado e Forças Armadas na época da independência: Bahia, 1790-1850. São Paulo: Hucitec, 2011., p. 154).

Obviamente, essa política estava associada a um contexto específico, marcado pela ameaça crescente de uma investida espanhola na fronteira sul das possessões portuguesas na América. Além disso, não é possível imaginar que essa política da Coroa portuguesa, estimulando a organização das milícias de homens de cor, se desenvolveria de forma linear, sem crítica e reações. No Rio de Janeiro mesmo, quando da chegada do general Magalhães e Menezes em 1799, como vimos, as forças militares da cidade não estavam bem organizadas. Considerando dados de 1801, essas forças eram integradas por quatro regimentos de tropa de linha, três regimentos de milícias de homens brancos, um regimento de milícias de homens pardos, além do batalhão de Henriques.9 9 Biblioteca Nacional, setor de Manuscritos (BN-Manuscritos), mapa das milícias do Rio de Janeiro em 1801 e mapa das tropas de linha do Rio de Janeiro em 1801. Cota: I-17, 12, 00, n. 5 e 6.

O desolador quadro descrito pelo general Magalhães e Menezes atingia todas as forças militares, tanto as de linha (tropa paga) quanto as milícias. Dizendo-se perplexo diante de tantos abusos, tão logo se estabeleceu na cidade, o general decidiu sair em defesa da “profissão militar” e, para isso, passou a agir em duas frentes distintas. A primeira delas voltava-se para conter as “medidas mais sórdidas” que - em sua avaliação - grassavam nas tropas de linha. Proclamando o princípio de que apenas “o príncipe regente é o supremo árbitro das leis” e que, portanto, só “ele pode ampliá-las, restringi-las e revogá-las”, o general exigia, em seus ofícios, o cumprimento da legislação e o bom funcionamento da justiça militar.10 10 Arquivo Nacional (AN), Fundo Vice-Reinado, ofício do tenente-general José Narcizo de Magalhães de Menezes ao visconde de Anadia. Cx. 483, Pac.1, Doc. 26.

A leitura desses ofícios, em sequência, impressiona. Há neles casos os mais variados: dos tradicionais crimes de deserção a brigas entre soldados, passando por fugas noturnas com desvio de armas. Examinando de forma minuciosa cada um deles, o general Magalhães e Menezes encaminhava ao vice-rei várias denúncias, sempre legalmente bem fundamentadas. Além de explicitar falhas nos procedimentos adotados nos conselhos de Guerra, leituras parciais de depoimentos e o inteiro desconhecimento da legislação militar por oficiais, o general costumava inserir em seus ofícios parágrafos em que fazia acusações e, logo em seguida, verdadeiras defesas de princípios. Em maio de 1802, por exemplo, após analisar um processo de deserção, não só denunciou as ilegalidades nele constantes, como afirmou ao vice-rei que “uma tal torcedura da lei e abafo das circunstâncias” devia-se “menos à ignorância que a uma premeditação”. Lembrou que “os atos de piedade são só reservados ao soberano, e a V. Exa. [o vice-rei], naquela parte que o representa como seu delegado”. “Outros não devem” - prosseguia - “franquear os limites de sua administração”. Aliás, a ideia do oficial militar como administrador permeia todos seus ofícios. Só a administração poderia assegurar - afirmava o general - a “boa ordem”.11 11 Arquivo Nacional (AN), Fundo Vice-Reinado, ofício do tenente-general José Narcizo de Magalhães de Menezes ao vice-rei D. Fernando José de Portugal. Cx. 483, Pac. 1, Doc. 3.

O empenho do general Magalhães e Menezes em fazer funcionar os Conselhos de Guerra Regimentais - uma instituição nova no mundo português, criada em 1763, como parte das reformas pombalinas no campo militar (Souza, 2015SOUZA, Adriana Barreto de. A governança da justiça militar entre Lisboa e Rio de Janeiro (1750-1820), Almanack, Guarulhos, n. 10, p. 368-408, 2015.) - era proporcional a sua perplexidade diante das práticas que regiam o cotidiano das forças militares. Eles eram - como defendia em seus ofícios - o meio legal de se combater procedimentos equivocados, “seja por frouxidão ou por ignorância”, que alimentavam “um sistema de relaxação e uma autorizada ruína da disciplina”, especialmente quando “se deixam de punir ou ao menos julgar os delitos”. Os conselhos de Guerra - reafirmava na primeira oportunidade - eram uma ferramenta-chave para “desterrar” do cotidiano militar as “considerações particulares que lhe não pertencem e rasgos de piedade mal-entendidos”.12 12 Arquivo Nacional (AN), Fundo Vice-Reinado, ofício do tenente-general José Narcizo de Magalhães de Menezes ao vice-rei D. Fernando José de Portugal. Cx. 483, Pac. 2, Doc. 4.

Paralelamente a esse investimento nos conselhos de Guerra e na mobilização do vice-rei, o general José Narcizo de Magalhães e Menezes vinha realizando outro, bem distinto: investia no Regimento de Pretos da cidade, também conhecido como Henriques. Em 27 de abril de 1802, apenas dez dias após denunciar ao vice-rei os vários abusos identificados nas tropas de linha, o general lhe escrevia para submeter um “Plano de regularização para o Corpo de Henriques ou de Pretos Libertos” do Rio de Janeiro.

O general Magalhães e Menezes vinha trabalhando nesse plano há, pelo menos, um ano. O fazia - afirmou ao vice-rei - impulsionado pela conjuntura e por “um punhado de ideias que se me propuseram”. O plano era ousado. Assim como os três regimentos de Infantaria de linha da cidade contavam, juntos, com um Regimento de Artilharia, o general planejava criar um Corpo de Artilharia exclusivo para os quatro regimentos de Infantaria de Milícias. Até aí, nada demais. O surpreendente foi a escolha recair sobre o Corpo de Henriques. Além de reestruturar o Regimento de Pretos, o general pretendia transformá-lo em Corpo de Artilharia. A artilharia era, à época, a arma militar mais técnica, que exigia de seus oficiais conhecimento específico, disciplina e muito treino. Além disso, é claro, havia uma questão política. A implantação do plano não só treinaria o grupo no manuseio de grossas peças de artilharia, como lhes daria uma artilharia própria e acesso ao Arsenal do Trem da cidade, capital do vice-reino.13 13 Arquivo Nacional (AN), Fundo Vice-Reinado, ofício do tenente-general José Narcizo de Magalhães de Menezes ao vice-rei D. Fernando José de Portugal. Cx. 483, Pac. 2, Doc. 28.

A escolha é prova do entusiasmo e confiança do general Magalhães e Menezes nesses homens. Exaltava, sem economia de palavras, “as qualidades próprias que esta casta de gente tem para um trabalho e um exercício desta natureza”. Tinham boa vontade, eram aplicados, ágeis e caprichosos. “Têm merecido” - afirmava convicto o general - os “aplausos públicos” e seus “louvores particulares”. Esse estreitamento de vínculos do general com os Henriques foi mediado pelo capitão José dos Santos Teixeira, “homem incomparável daquele gênero e debaixo daquela cor” (Marta, 2013MARTA, Michel Mendes. Em busca de honras, isenções e liberdade: as milícias de homens pretos forros na cidade do Rio de Janeiro. Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2013.). A identificação foi de tal ordem que, ao final, o general solicitava ao vice-rei que os altos postos daquele corpo fossem integrados por homens do próprio corpo - ou seja, por libertos - e que seu capitão fosse agraciado com a patente de sargento-mor.14 14 Arquivo Nacional (AN), Fundo Vice-Reinado, ofício do tenente-general José Narcizo de Magalhães de Menezes ao vice-rei D. Fernando José de Portugal. Cx. 483, Pac. 2, Doc. 28.

O texto do ofício, ao se referir aos “aplausos públicos”, deixa claro que o Corpo de Henriques já vinha recebendo instruções e treinamento, mesmo sem que o vice-rei tivesse aprovado o plano. Aliás, se o vice-rei D. Fernando José de Portugal ainda não tinha tido acesso ao documento é porque havia sido nomeado há pouco. O vice-rei anterior, conde de Resende, estava a par das reformas empreendidas pelo general. Desde que chegara ao Rio de Janeiro, inconformado com o estado das tropas de linha e indignado com as práticas abusivas que pautavam o cotidiano desses regimentos, o general vinha se dedicando a organizar os regimentos de milícias. No primeiro relatório que elaborou, dando conta do estado geral das tropas, manifestou particular confiança e respeito pelas milícias de homens de cor. Ainda que não mantivesse com o Regimento de Pardos o mesmo vínculo que tinha com os Henriques, o general Magalhães e Menezes, nesse relatório, mostra-se satisfeito. Sobre aquele regimento, diz que era “um dos que se move com mais regularidade, e um ar militar”. O bom estado da tropa, em sua avaliação, era assegurado pela “natural viveza e atividade dos mestiços”. Na verdade, o general parecia não só aceitar, mas ser entusiasta do sistema de milícias organizado “por cor e classe”. A “emulação com os brancos” - prosseguia o general em seu raciocínio - era o segredo de tanto empenho e préstimo.15 15 Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Carta régia (minuta) da rainha D. Maria I ao vice-rei do Estado do Brasil, conde de Resende, D. José Luís de Castro. Cx. 191, Doc. 85.

A elaboração de um plano de regularização do Corpo de Henriques, transformando-o em uma Brigada de Artilharia de Milícias, juntamente com a solicitação da patente de sargento-mor para seu capitão comandante, seguida ainda por elogios ao Regimento de Homens Pardos da cidade era uma política delicada nesses primeiros anos do século XIX. Não por acaso, ao avaliar em seu relatório o coronel do Regimento de Pardos, o general Magalhães e Menezes foi esquivo. O coronel em questão era José Bento da Silva, oficial branco, capitão do 2º Regimento de Linha da cidade, que só se tornou coronel porque aceitou servir no Regimento de Homens Pardos. Essa transferência de oficiais brancos da tropa paga para comandar as milícias de pretos e pardos era questionada pelo general. Em uma primeira avaliação do coronel Bento da Silva, o general afirmou que se tratava de um oficial desinteressado que, “numa profissão em que deveria estar instruído por princípios”, ele sempre tinha “alguém para cumprir os seus deveres”. Porém, como em seguida destacava a “viveza e atividade dos mestiços”, e sabia que o tema era polêmico, logo emendou-se, escrevendo que o coronel tinha “vigilância” sobre o regimento, e vinha se dedicando para “conservar tudo na melhor ordem”.16 16 Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Carta régia (minuta) da rainha D. Maria I ao vice-rei do Estado do Brasil, conde de Resende, D. José Luís de Castro. Cx. 191, Doc. 85.

Vista como um todo, tratava-se, de fato, de uma política de alto risco. De um lado, o general confrontava práticas naturalizadas entre a oficialidade do Exército, mobilizando um aparato legal relativamente novo nesse mundo luso. De outro, interferia no equilíbrio instável de milícias segregadas “por cor e classe”. O serviço nas milícias era, em geral, uma carga mal recebida pelos oficiais brancos. Talvez a vantagem mais cobiçada por esses homens, no caso da oficialidade, fosse a chance de atualizar e ampliar redes clientelares. Já para pardos e pretos libertos, o serviço militar, com seus uniformes e patentes, não só era uma forma eficiente de se distinguir dos escravos, como também proporcionava acesso a uma das poucas instituições abertas à ascensão social. Daí o empenho, atividade e viveza identificados pelo general. Mas aí está também o ponto nodal dos debates dessa virada para o século XIX. Tradicionalmente, até 1796, seguindo uma lógica tipicamente corporativa, em seus regimentos, pretos e pardos podiam alcançar os postos de comando e, assim, se integrarem às redes hierárquicas de poder que ordenavam o Império português.

O crescimento da população de negros na cidade do Rio de Janeiro e sua periferia ao longo do século XVIII, fosse de negros escravos, pela intensificação do tráfico, fosse de livres e libertos, é que veio a alterar essa “natural desigualdade entre os homens” - como se considerava no Antigo Regime. O fato era notado por viajantes, autoridades portuguesas recém-chegadas e pela administração colonial que, de forma mais sistemática, passaram a registrar uma inquietação com o “caráter dessas gentes”. Referiam-se ao fenômeno da mestiçagem, que incluía a noção de impureza do “sangue mulato”, de “mulatice”. Fenômeno que, organizando formas de socialização, das irmandades às milícias, desenvolvia-se, fundamentando concepções jurídicas próprias e aparecendo como uma identidade reivindicada - a de pardo (Viana, 2007VIANA, Larissa. O idioma da mestiçagem: as irmandades de pardos na América portuguesa. Campinas: Editora Unicamp, 2007.; Lara, 2007LARA, Silvia Hunold. Fragmentos setecentistas: escravidão, cultura e poder na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras , 2007.).

Era no núcleo dessas disputas, articuladas em torno do controverso tema da mestiçagem, que a política do general Magalhães e Menezes interferia. Se, de um lado, esse fenômeno expressava uma positividade - o desejo de determinados homens de se diferenciarem do mundo da escravidão, de cobrarem privilégios e direitos -, por outro, produzia uma forte reação nas elites coloniais, que procuravam criar mecanismos de controle mais efetivos, capazes de conter essas aspirações de ascensão social (Lara, 2007LARA, Silvia Hunold. Fragmentos setecentistas: escravidão, cultura e poder na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras , 2007., p. 142). Eram em geral descritos como “soberbos” e “ociosos”. E, nesse esforço para isolá-los e a suas ambições, também eram frequentemente definidos, na documentação oficial, como inimigos dos pretos e cultores de uma identidade própria (Viana, 2007VIANA, Larissa. O idioma da mestiçagem: as irmandades de pardos na América portuguesa. Campinas: Editora Unicamp, 2007., p. 224).

A ideia de submeter os regimentos de homens pardos ao comando de oficiais do Exército, inclusive promovendo os oficiais que aceitassem a transferência, como foi o caso do capitão José Bento da Silva, que se tornou coronel do Regimento de Milícias de Pardos da cidade, constitui um desses mecanismos de controle. Ainda que o dispositivo não tenha sido criado com a intenção de conter a ascensão social dos oficiais pardos - legalmente, se dirigia também as milícias do Reino -, nas conquistas, ele assumiu esse caráter.17 17 Ver alvará de 7 de agosto de 1796, disponível em: <http://legislacaoregia.parlamento.pt/V/1/2/97/p325>. Acesso em: 2 maio 2018. Quem se engajou na sua defesa, trabalhando para alterar uma tradição já estabelecida nas principais capitanias, foi D. Fernando José de Portugal, quando esteve à frente do governo da Bahia, em 1796. A medida gerou muitos descontentamentos (Mota, 2010MOTA, Celio de Souza. A face parda da Conspiração dos Alfaiates: homens de cor, corporações militares e ascensão social em Salvador no final do século XVIII. Dissertação (Mestrado em História), Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana, 2010.). Porém, como veremos, ainda que de modo incerto, com avanços e recuos, essa política contou com a aprovação da Coroa que, em seguida, nomeou D. Fernando de Portugal vice-rei do Estado do Brasil.

O general, os capitães pardos e a política da Coroa

A ordem de destroçar a tropa, dada pelo capitão pardo Antônio de Novaes para impedir que o ajudante Francisco Dezidério verificasse as faltas de sua companhia, no que foi apoiado pelo - também pardo - capitão Manoel Neves, não foi uma ação intempestiva nem infundada. Na verdade, o que se passou naquela tarde de outubro de 1805 no campo dos Ciganos foi mais um episódio de uma série de disputas que visava definir como seriam providos os postos superiores (ver quadro hierárquico abaixo) dos regimentos de pardos, o que mantinha, inclusive, estreita conexão com o que se passou na Bahia.

Pelo regulamento militar, não havia dúvidas: a ordem do capitão Novaes era um ato de insubordinação. Ele obstruiu o trabalho de inspeção de um superior. E aqui reside a delicadeza da questão. Não por acaso, praticamente todas as testemunhas do processo de justificação, uma esmagadora maioria de militares pardos, insistiam que o capitão não deveria “dar contas” ao ajudante. Este - como destacavam - era “inferior na patente”. O capitão só reagiu porque não reconhecia a autoridade do ajudante, não o reconhecia como superior. A chegada de D. Fernando de Portugal ao Rio de Janeiro quatro anos antes, em 1801, como vice-rei, justamente quando o general Magalhães e Menezes defendia com entusiasmo as milícias de pretos e pardos, instaurou a polêmica e elevou a temperatura política da cidade. Francisco Dezidério era um oficial branco, da tropa de linha. Até abril de 1802, servia no Regimento de Artilharia do Rio de Janeiro como segundo sargento, tornando-se, com a transferência para o Regimento de Milícia de Homens Pardos, ajudante.18 18 Biblioteca Nacional, setor de Manuscritos (BN-Manuscritos), documentos biográficos, Francisco Dezidério da Silva. Cota: C, 0141, 019, n. 001. Para termos uma ideia do que essas transferências representavam na carreira dos oficiais - e, portanto, daquilo que estava em disputa - vale reproduzir o quadro hierárquico dos regimentos de milícias definido pelo alvará de 7 de agosto de 1796:19 19 Disponível em: <http://legislacaoregia.parlamento.pt/V/1/2/97/p325>. Acesso em: 2 maio 2018.

Quadro 1:
Quadro hierárquico dos regimentos de milícia

Apesar de não haver uma correspondência direta entre as patentes do Exército e as de Milícia, desde 1796, quando pelo referido alvará a Coroa regulou os corpos de milícia, dando-lhes nova formação, era possível estabelecer uma correspondência aproximada entre seus quadros hierárquicos. Um Estado-maior - do Exército ou da Milícia - comandava várias companhias, número que variava de acordo com a época e a região. Quartel-mestre e tambor eram postos, mas não eram patentes militares. O posto de segundo-sargento (posto de Francisco Dezidério quando estava no Exército) não existia nas milícias. Havia apenas sargento. No entanto, é fácil observar o ganho formidável do oficial com a transferência para o Regimento de Pardos. Ele saltou nada menos que quatro níveis hierárquicos.

Do mesmo modo, observando o quadro hierárquico, fica fácil entender a queixa dos oficiais pardos. A política do agora vice-rei D. Francisco José de Portugal vetava a esses homens o acesso aos postos de Estado-Maior dos regimentos. Daí também a reação do capitão Antônio Novaes no campo dos Ciganos. Ainda que, formalmente, nem ele nem o capitão Manoel Neves tenham questionado a autoridade de Francisco Dezidério, este é o ponto em debate. Por isso, diziam ser o ajudante “um simples sargento de artilharia”. Sua promoção era contestada, tomada como um insulto aos oficiais pardos. Para eles, Dezidério seguia sendo um oficial inferior, e inferiores não dão ordens, muito menos inspecionam seus superiores. Um princípio militar simples, que os capitães queriam ver respeitado. Até porque, pela letra da lei, até 1796, era ele, Antônio de Novaes, um dos oficiais que poderia estar ocupando aquele posto. Sentia-se, assim, triplamente “ludibriado”: era submetido a um oficial inferior em função de sua cor, roubavam-lhe a oportunidade de progressão na carreira e, com esta, a chance de ter pela primeira vez seus serviços remunerados com um soldo (o serviço nas companhias não era pago), que acompanhava o posto de ajudante.

Vista por esse ângulo, é provável que a demanda dos oficiais pardos - que era a dos capitães do Regimento de Homens Pardos - tenha mobilizado o general Magalhães e Menezes. Se havia uma coisa que parecia incomodá-lo era a promoção de oficiais pouco dedicados, e a política de D. Fernando de Portugal, de certo modo, premiava tal comportamento entre os oficiais de linha. Em seu ofício-relatório de abril de 1801, o general já sugeria que o oficial do Exército que aceitava a transferência para o Regimento de Pardos era “suposto não ter feito progressos na profissão”.20 20 Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Carta régia (minuta) da rainha D. Maria I ao vice-rei do Estado do Brasil, conde de Resende, D. José Luís de Castro. Cx. 191, Doc. 85.

O comentário foi sutil, porém, a ideia está difusa na documentação. Luiz dos Santos Vilhena também chama atenção para esses oficiais, afirmando que, em geral, careciam das qualidades necessárias para um bom comandante, quando, entre seus subordinados, havia “bastantes mulatos de probidade” (Vilhena, 1802VILHENA, Luiz dos Santos. Recopilação de notícias soteropolitanas e brasílicas contidas em 20 cartas. Salvador, 1802 [manuscrito]. Disponível em: <Disponível em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_manuscritos/mss_50_4_018.pdf >. Acesso em: 27 abr. 2018.
http://objdigital.bn.br/acervo_digital/d...
, tomo I, p.143). Assim, considerando-se os fatos por seu aspecto formal (o princípio hierárquico que regula as patentes) ou por merecimento (princípio caro ao general), a lógica instituída pela política de D. Fernando de Portugal “menosprezava a autoridade legítima” e - como o general chegou a afirmar em seus desentendimentos com o vice-rei - “desacreditava” a carreira militar nas regiões coloniais, submetendo sua hierarquia às hierarquias sociais.21 21 Arquivo Nacional (AN), Fundo Vice-Reinado, ofícios de José Narcizo de Magalhães de Menezes ao vice-rei D. Fernando José de Portugal. Cx. 483, Pac. 2, Docs. 35 e 36.

Outro aspecto dessa política de provimento dos postos militares, voltada para as milícias de homens pardos, é que ela contradizia um conjunto de leis já estabelecido. Como vimos, na década de 1760, com as mudanças promovidas pelo marquês de Pombal, a Coroa lançou alguns decretos que afirmavam a igualdade entre os oficiais pretos, pardos e brancos. E foi a essa legislação que oficiais pardos de várias capitanias, em diferentes momentos, recorreram para tentar fazer valer seus direitos.

Os capitães Antônio de Novaes Campos e Manoel de Jesus Neves não decidiram abrir em 1805 um processo de justificação na Ouvidoria da Comarca à toa, nem foi esta a primeira vez que acionaram a justiça. Em fins de 1802, juntamente com seis outros oficiais do Regimento de Milícias de Homens Pardos da cidade, requereram ao vice-rei “direito de serem encartados em todos os postos militares” do regimento. A ação aponta para uma possível conexão entre eles, oficiais pardos do Rio de Janeiro, e os oficiais do Regimento de Homens Pardos da Bahia. Escreviam para requerer a aplicação no Rio de Janeiro de uma resolução real de 23 de julho daquele mesmo ano, por meio da qual o príncipe regente autorizou a realização de “concurso” para se ocupar os postos de sargento-mor e ajudante de milícias.22 22 Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Requerimento dos capitães e mais oficiais subalternos do Regimento de Infantaria de Milícias dos Homens Pardos do Rio de Janeiro, por seu procurador Pascoal Luís Gabriel, ao príncipe regente D. João. Cx. 215, Doc. 17; Cx. 214, Doc. 69; Cx. 215, Doc. 49.

Esse requerimento é apenas uma peça de um conjunto documental maior que instruiria um segundo requerimento dos mesmos oficiais pardos para o príncipe regente. Eles resistiam à política de provimento dos postos. O primeiro requerimento, dirigido ao vice-rei em 1802, havia sido indeferido em janeiro de 1803. E, ao receberem a resposta, os oficiais recorreram, por meio de um procurador, diretamente ao príncipe. Nesse segundo requerimento, anexaram, além do requerimento dirigido ao vice-rei, uma cópia da resolução real, passada por certidão legal, “da consulta que baixou sobre a representação que fez o coronel e mais oficiais do Regimento Quarto de Milícias de Homens Pardos da Cidade da Bahia de todos os Santos”. Ou seja, pareciam estar bem informados sobre o que se passou na Bahia e, organizando toda a documentação, acionavam o príncipe.

O mais surpreendente, porém, é o que esta resolução real informa sobre a política de D. Fernando de Portugal. Ela não se limitava a vetar o acesso dos oficiais pardos aos postos do que, posteriormente, seria denominado Estado-Maior. A proposta do então governador da Bahia, encaminhada ao príncipe regente em 25 maio de 1796, suprimia as patentes de coronel e tenente-coronel dos corpos de milícias de homens pardos, limitando seus postos superiores a um sargento-mor e dois ajudantes, e definindo que os três deveriam ser ocupados por oficiais brancos. Nesse momento, mesmo com a legislação mais recente afirmando a igualdade entre súditos de “diferentes cores”, a Coroa aprovou a proposta. Todavia, mantinha sua linha política para as milícias em geral, baixando em 7 de agosto desse mesmo ano o alvará que regulava os corpos de milícias, organizando-os em regimentos, dando-lhes um Estado-Maior e formalizando justamente a criação dos postos de coronel e tenente-coronel, tal como havia no Exército.23 23 Sobre a política de D. Fernando José de Portugal para as milícias de pretos e pardos da Bahia, consultar: Russell-Wood (1982, p. 138-142); Kraay (2011, p. 154-164); Souza, F. (2017, p. 333-346).

Esse tipo de funcionamento do Estado, que legislava a partir de demandas locais, a fim de dirimir os conflitos entre esferas distintas de interesse, quando se deparava com um tema tão delicado quanto o das milícias de homens de cor, produzia brechas legais que, sendo bem exploradas, poderiam levar a novas decisões. E foi por uma dessas brechas que o procurador dos capitães do Regimento de Milícias de Homens Pardos do Rio de Janeiro tentou se movimentar. Em agosto de 1802, o príncipe regente deferiu o requerimento dos oficiais pardos da Bahia, tendo publicado duas resoluções sobre o tema - uma de 23 de julho, outra de 26 de agosto, tudo no ano de 1802. A partir dessas resoluções, os oficiais do Rio de Janeiro estruturaram seu primeiro requerimento, e a elas voltaram para fundamentar o segundo requerimento.24 24 Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Requerimento dos capitães e mais oficiais subalternos do Regimento de Infantaria de Milícias dos Homens Pardos do Rio de Janeiro, por seu procurador Pascoal Luís Gabriel, ao príncipe regente D. João. Cx. 215, Doc. 17; Cx. 214, Doc. 69; Cx. 215, Doc. 49.

Nesse meio-tempo, porém, a Coroa se expressaria novamente sobre o tema, agora por meio de um alvará que se tornou bastante conhecido, tanto dos coetâneos quanto da historiografia - o alvará de 17 de dezembro de 1802. De acordo com o alvará, sendo:25 25 Disponível em: <http://legislacaoregia.parlamento.pt/V/1/11/24/p156>. Aceso em: 4 maio 2018.

muito conveniente ao Meu Real Serviço, e inteiramente conforme aos princípios da Razão, e Direito natural, que eu procure como pai comum de todos os meus vassalos desterrar de seus ânimos a odiosa preocupação, com que muitos ainda consideram a diferença das cores como um princípio, de que devem resultar diversos direitos entre aqueles, em que se não dá a uniformidade deste acidente; e querendo por outra parte dar a todos os meus vassalos Pretos e Pardos uma prova irrefragável de que os considero habilitados para todas as Honras, e Empregos Militares, a que serão efetivamente elevados, segundo o seu pessoal merecimento: sou servido ordenar, que para os Postos de Coronéis, Tenentes Coronéis, Majores, e Ajudantes dos Regimentos Milicianos de homens pretos, denominados de Henriques, e igualmente para os de homens pardos, que atualmente existem, ou para o futuro existirem em qualquer Capitania do Brasil, sejam sempre atendidos de preferência os Oficiais de suas próprias cores, quando neles concorram as precisas circunstâncias para o desempenho dos mesmos Postos

Seis anos após ter autorizado as mudanças propostas por D. Fernando de Portugal na Bahia, retirando dos oficiais pardos o direito de serem providos nos postos superiores das milícias e extinguindo seus dois postos mais elevados, o de coronel e tenente-coronel, o príncipe regente recorria à imagem modelar de pai para negar que a “diferença das cores” fosse o princípio gerador de direitos em seu Império. Dirigindo-se a seus “vassalos pretos e pardos”, a fim de “dar provas” do quanto os julgava habilitados para “todas as honras e empregos militares”, determinou que, concorrendo neles as “precisas circunstâncias”, teriam sempre preferência no provimento dos postos de Estado-Maior de seus regimentos.

Lendo esse alvará, os oficiais do Regimento de Milícias de Homens Pardos do Rio de Janeiro tinham boas razões para acreditar que, mesmo após o indeferimento do primeiro requerimento pelo vice-rei, deveriam prosseguir, recorrendo, agora, tal como seus colegas da Bahia, ao príncipe. Daí o segundo requerimento. Nele, de forma bem fundamentada, os oficiais descreveram as condições do regimento e informaram ao príncipe que ele ainda não estava organizado de acordo com o “Plano Geral” fixado pelo decreto de agosto de 1796 e “à vista das ordens de Vossa Majestade”. Mostravam-se bem informados, evocando as últimas decisões da Coroa e citando, de forma direta, o requerimento dos oficiais pardos da Bahia. Anexaram ainda ao requerimento - como vimos anteriormente - uma cópia da resolução real. Tudo devidamente registrado, com selos e rubricas.26 26 Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Requerimento dos capitães e mais oficiais subalternos do Regimento de Infantaria de Milícias dos Homens Pardos do Rio de Janeiro, por seu procurador Pascoal Luís Gabriel, ao príncipe regente D. João. Cx. 215, Doc. 17; Cx. 214, Doc. 69; Cx. 215, Doc. 49.

Estavam convictos de seus direitos. Aliás, esta é a palavra empregada no requerimento. Requeriam à Coroa a graça de lhes “restituir o direito” de serem “encartados em todos os postos militares” de que fossem merecedores por suas “boas aplicações e honra”. Conheciam - afirmam referindo-se às últimas resoluções régias - as “intenções de Vossa Alteza Real” de que, “sobre este objeto”, haja “inteligência e valor, sem atender a diferenças especiais e condições que há entre as classes dos Povos de Sua Monarquia”. Depois, explicaram que tinham requerido o dito “direito” ao vice-rei, mas que não foram atendidos. Por fim, prosseguiram, numa referência clara ao deferimento do pedido dos oficiais da Bahia: “é inegável que ele, vice-rei, prestaria toda observância se à capital do Rio de Janeiro também fosse dirigida a mesma ordem”.27 27 Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Requerimento dos capitães e mais oficiais subalternos do Regimento de Infantaria de Milícias dos Homens Pardos do Rio de Janeiro, por seu procurador Pascoal Luís Gabriel, ao príncipe regente D. João. Cx. 215, Doc. 17; Cx. 214, Doc. 69; Cx. 215, Doc. 49.

Nesse caso, porém, o desfecho da história foi diferente. Por meio de consulta ao Conselho Ultramarino, realizada mais de um ano depois, em 31 de julho de 1804, o príncipe regente resolveu considerar que o caso já havia sido decidido e que reconsiderá-lo poderia - por “sua gravidade” - fazer nascer razões que, “se apondo à exata observância do que precedentemente” foi resolvido, teria “consequências novas”.

O meio militar como arena política

A complexidade da legislação referente ao provimento dos postos superiores dos Regimentos de Milícias de Homens Pardos e a ambivalência da atuação da Coroa, marcada especialmente durante a regência do príncipe D. João por avanços e recuos nas tentativas de garantir sua implementação, já foram bem mapeadas pela historiografia. É verdade que o caso mais estudado ainda é o do Regimento de Pardos da Bahia. Para o Regimento do Rio de Janeiro, não há pesquisas. Só foi possível encontrar uma dissertação de mestrado sobre o Batalhão dos Henriques - ou seja, sobre o Batalhão de Pretos da cidade (Marta, 2013MARTA, Michel Mendes. Em busca de honras, isenções e liberdade: as milícias de homens pretos forros na cidade do Rio de Janeiro. Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2013.). O que se afirma em pesquisas com cortes analíticos mais amplos, que abordam as milícias de homens de cor, ou nos capítulos mais gerais daquelas dedicadas a capitanias específicas, é que no Rio de Janeiro, por ação do marquês do Lavradio, nem mesmo a legislação pombalina teve execução, o que impediu a criação na cidade de uma tradição de oficiais pardos comandando seus próprios terços (após 1796, regimentos), tal como ocorreu em outras capitanias (Russell-Wood, 1982; Kraay, 2011KRAAY, Hendrik. Política racial, Estado e Forças Armadas na época da independência: Bahia, 1790-1850. São Paulo: Hucitec, 2011.; Souza, F., 2017SOUZA, Priscila de Lima. “Sem que lhes obste a diferença de cor”: a habilitação dos pardos livres na América portuguesa e no Caribe espanhol (c.1750-1808). Tese (Doutorado em História), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.; Souza, P., 2017SOUZA, Fernando Prestes de. Pardos livres em um campo de tensões: milícia, trabalho e poder (São Paulo, 1797-1831). Tese (Doutorado em História), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.).

Não por acaso, o requerimento de 1804 dos capitães pardos do Rio de Janeiro, que solicitava ao príncipe-regente o direito de serem encartados nos postos mais elevados de seu regimento, foi indeferido, enquanto o de seus colegas de farda da Bahia foi acatado. Certamente, a tradição militar constituída entre estes dificultou a ação D. Fernando de Portugal. Por isso, melhor que reafirmar a ambiguidade (ou ambivalência) da atuação da Coroa, o que já foi demarcado pela historiografia, talvez seja investir na compreensão do meio militar dessa virada para o século XIX como arena política, um campo onde se travavam disputas e conflitos por diferentes formas de estruturação das forças militares.

Adotando essa perspectiva, o que observamos é um estado de completa ebulição onde tudo aparentemente transcorria de forma rotineira. Associando a atuação do general Magalhães e Menezes à legislação produzida nas últimas décadas do século XVIII sobre o provimento dos postos dos regimentos de milícias de homens pretos e pardos, é difícil acreditar que essa legislação expressava apenas um interesse conjuntural da Coroa em arregimentar homens para as guerras que se avizinhavam. Isso, sem dúvida, era importante, todavia, não explica integralmente o avanço dos planos do general na cidade, e menos ainda o teor de um alvará como o de dezembro de 1802. Há que se considerar também a pressão exercida, cotidianamente, por esses oficiais pardos. Além de grandes movimentos contestatórios, sempre mais visíveis, agiam de forma pontual, como no episódio do campo dos Ciganos, procurando, em seguida, a justiça e acionando diretamente o príncipe regente com seus requerimentos. Aliás, tudo isso só era possível porque antes mesmo desses atos - ruidosos ou discretos, de resistência - havia um outro, ainda mais cotidiano: o modo como se empenhavam no exercício de suas funções a fim de reclamarem seu “merecimento”. Foi assim que arrancaram elogios de coetâneos, como foi com o professor e cronista Luiz dos Santos Vilhena, e de autoridades coloniais, de quem ganharam, além de elogios, também a confiança, como no caso do general José Narcizo de Magalhães e Menezes.

Essas atitudes incomodavam, desestabilizavam a ordem das cidades. Em 1799, escrevendo ao ministro D. Rodrigo de Souza Coutinho sobre o envolvimento de oficiais pardos na Revolta dos Alfaiates, D. Fernando de Portugal reclamava que “os homens pardos” vinham conseguindo “demasiado favor da Corte”, “obtendo mercês de hábitos e outras distinções”, o que contribuía “para aumentar a vaidade (...) fazê-los mais atrevidos e dispô-los a resolverem-se a por na presença de S.M. requerimentos cheios de pretensões”. Bastante incomodado com a situação, D. Fernando alertava ainda que, “em um país de conquista em que essa gente compõe uma grande parte da população”, eles não deveriam ser “igualados à classe dos homens brancos” (Souza, P., 2017SOUZA, Fernando Prestes de. Pardos livres em um campo de tensões: milícia, trabalho e poder (São Paulo, 1797-1831). Tese (Doutorado em História), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017., p. 255).

Os capitães Antônio de Novaes e Manoel Neves, assim como parte significativa dos oficiais do Regimento de Homens Pardos do Rio de Janeiro, não estavam alheios ao debate que informava essas disputas e pressionavam, acionando termos do próprio debate. Não à toa, mesmo após verem seu requerimento indeferido pelo príncipe regente, continuaram se mobilizando. É bem possível que o ato de insubordinação do campo dos Ciganos tenha sido considerado pelos capitães uma última cartada, para forçarem um posicionamento do general Magalhães e Menezes, que já havia sido nomeado para assumir a capitania do Pará, e estava de partida da cidade. Reclamavam, junto a este, direito a julgamento, a Conselho de Guerra - acionando, como dito acima, uma instituição relativamente nova - e, também não à toa, durante os depoimentos, suas testemunhas, uma maioria de oficiais e soldados pardos, se fixaram em dois pontos: o merecimento e as injúrias de que foram alvo.

Sobre o merecimento, já tratamos antes. Insistiam na “lisura” e no valor militar dos capitães, que cumpriam suas obrigações e respeitavam as leis de seus superiores. Resta destacar o diálogo mantido, indiretamente, com o príncipe e a legislação, ao reafirmarem, a cada depoimento, a injúria sofrida. Bode - a injúria supostamente movida pelo tenente-coronel e seu ajudante - era um termo que, no imaginário social da época, remetia à figura do diabo e, ao ser lançado contra homens pardos, deixava entrever o temor gerado pelo fenômeno da miscigenação que, em finais do XIX, já seria apontado como o responsável pela criação de uma “raça diabólica” (Santos, 2015SANTOS, Eduardo Antônio Estevam. Luiz Gama e a sátira racial como poesia da transgressão: poéticas diaspóricas como contranarrativa à ideia de raça. Almanack, Guarulhos, n. 11, p. 77-748, 2015., p. 741; Azevedo, 1999AZEVEDO, Elciene. Orfeu de carapinha. A trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São Paulo. São Paulo: Editora Unicamp, 1999., p. 48).

A referência, a cada novo depoimento, de forma repetida, à injúria sofrida pode ser entendida, assim, não apenas como um meio de mostrar que sabiam exatamente o que os impedia de assumir os postos superiores de seu regimento e, por conseguinte, o que levou os capitães à prisão, como também de denunciar a ilegalidade desses fatos. Afinal, pela legislação, o príncipe-regente tinha se comprometido a “desterrar dos ânimos” de seus vassalos essa “odiosa preocupação” com a “diferença de cores” e assegurado que não faria dela um princípio gerador de direitos. Garantiu ainda que, para os postos superiores dos regimentos de homens pretos e pardos, sempre teriam preferência “os oficiais de suas próprias cores”, dotando as milícias de legitimidade institucional e as transformando em um espaço-chave, e cada vez mais ativo, de politização desses homens pardos.

Ao que tudo indica, os capitães Antônio de Novaes e Manoel Neves permaneceram presos. É possível, no entanto, encontrá-los de volta em seu regimento em 1811. O mesmo não ocorreu com o tenente-coronel Manoel Luís Ferreira e o ajudante Francisco Dezidério, cujos nomes não aparecem entre os oficiais das forças militares - milicianas ou de linha - do Rio de Janeiro. A chegada da corte portuguesa na cidade, em 1808, certamente inseriu novos elementos e redefiniu os termos dessas disputas. O fato, porém, é que, em 1831, com a criação da Guarda Nacional, esse modelo de estruturação das forças militares, segregado pela cor de seus homens, foi extinto, produzindo uma exclusão ou enraizando a segregação - como denunciariam vários oficiais pardos - no interior das forças militares.

Referências

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    » http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_manuscritos/mss_50_4_018.pdf
  • 1
    Este artigo baseia-se em pesquisa financiada pelo Programa PQ/CNPq. As linhas gerais do texto foram discutidas pela primeira vez no Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, da Universidade Estadual de Campinas (Cecult/Unicamp), onde realizei estágio pós-doutoral. Agradeço em especial a Silvia Hunold Lara a oportunidade de um diálogo tão vivo, renovador. Agradeço as críticas de Cristiana Schettini e Fabiane Popinigis, que também abriram as portas para que uma segunda versão deste texto fosse discutida no grupo La Historia Social en Perspectiva Latinoamericana. Contei ainda com as preciosas leituras de Hendrik Kraay, Roquinaldo Ferreira e de um dos pareceristas anônimos.
  • 2
    A narrativa desse episódio se baseia em um conjunto documental integrado por vários ofícios, dois processos e seus anexos. Toda essa documentação está identificada apenas como um documento: Arquivo Nacional (AN), Fundo Vice-Reinado, Cx. 483, Pac. 3, Doc. 45.
  • 3
    Arquivo Nacional (AN), Fundo Vice-Reinado. Processo aberto na Ouvidoria pelos capitães Antônio de Novaes Campos e Manoel de Jesus Neves. Cx. 483, Pac. 3, Doc. 45.
  • 4
    Arquivo Nacional (AN), Fundo Vice-Reinado. Ofícios trocados entre o general José Narcizo de Magalhães e Menezes e o sargento-mor Albino dos Santos Pereira. Cx. 483, Pac. 3, Doc. 45.
  • 5
    Arquivo Nacional (AN), Fundo Vice-Reinado. Ofício do tenente-general José Narcizo de Magalhães de Menezes para o tenente-coronel Manoel Luís Ferreira. Cx. 483, Pac. 3, Doc. 45.
  • 6
    Arquivo Nacional (AN), Fundo Vice-Reinado. Autos do ofício expedido pelo tenente-general comandante geral das Tropas desta capitania José Narcizo de Magalhães e Menezes. Cx. 483, Pac. 3, Doc. 45.
  • 7
    Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Ofício do tenente general do exército e comandante das tropas do Rio de Janeiro, José Narciso de Magalhães de Meneses, ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar], D. Rodrigo de Sousa Coutinho. Rio de Janeiro, Cx. 180, Doc. 33.
  • 8
    Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Ofício do tenente general do exército e comandante das tropas do Rio de Janeiro, José Narciso de Magalhães de Meneses, ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar], D. Rodrigo de Sousa Coutinho. Rio de Janeiro. Cx. 180, Doc. 33.
  • 9
    Biblioteca Nacional, setor de Manuscritos (BN-Manuscritos), mapa das milícias do Rio de Janeiro em 1801 e mapa das tropas de linha do Rio de Janeiro em 1801. Cota: I-17, 12, 00, n. 5 e 6.
  • 10
    Arquivo Nacional (AN), Fundo Vice-Reinado, ofício do tenente-general José Narcizo de Magalhães de Menezes ao visconde de Anadia. Cx. 483, Pac.1, Doc. 26.
  • 11
    Arquivo Nacional (AN), Fundo Vice-Reinado, ofício do tenente-general José Narcizo de Magalhães de Menezes ao vice-rei D. Fernando José de Portugal. Cx. 483, Pac. 1, Doc. 3.
  • 12
    Arquivo Nacional (AN), Fundo Vice-Reinado, ofício do tenente-general José Narcizo de Magalhães de Menezes ao vice-rei D. Fernando José de Portugal. Cx. 483, Pac. 2, Doc. 4.
  • 13
    Arquivo Nacional (AN), Fundo Vice-Reinado, ofício do tenente-general José Narcizo de Magalhães de Menezes ao vice-rei D. Fernando José de Portugal. Cx. 483, Pac. 2, Doc. 28.
  • 14
    Arquivo Nacional (AN), Fundo Vice-Reinado, ofício do tenente-general José Narcizo de Magalhães de Menezes ao vice-rei D. Fernando José de Portugal. Cx. 483, Pac. 2, Doc. 28.
  • 15
    Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Carta régia (minuta) da rainha D. Maria I ao vice-rei do Estado do Brasil, conde de Resende, D. José Luís de Castro. Cx. 191, Doc. 85.
  • 16
    Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Carta régia (minuta) da rainha D. Maria I ao vice-rei do Estado do Brasil, conde de Resende, D. José Luís de Castro. Cx. 191, Doc. 85.
  • 17
    Ver alvará de 7 de agosto de 1796, disponível em: <http://legislacaoregia.parlamento.pt/V/1/2/97/p325>. Acesso em: 2 maio 2018.
  • 18
    Biblioteca Nacional, setor de Manuscritos (BN-Manuscritos), documentos biográficos, Francisco Dezidério da Silva. Cota: C, 0141, 019, n. 001.
  • 19
    Disponível em: <http://legislacaoregia.parlamento.pt/V/1/2/97/p325>. Acesso em: 2 maio 2018.
  • 20
    Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Carta régia (minuta) da rainha D. Maria I ao vice-rei do Estado do Brasil, conde de Resende, D. José Luís de Castro. Cx. 191, Doc. 85.
  • 21
    Arquivo Nacional (AN), Fundo Vice-Reinado, ofícios de José Narcizo de Magalhães de Menezes ao vice-rei D. Fernando José de Portugal. Cx. 483, Pac. 2, Docs. 35 e 36.
  • 22
    Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Requerimento dos capitães e mais oficiais subalternos do Regimento de Infantaria de Milícias dos Homens Pardos do Rio de Janeiro, por seu procurador Pascoal Luís Gabriel, ao príncipe regente D. João. Cx. 215, Doc. 17; Cx. 214, Doc. 69; Cx. 215, Doc. 49.
  • 23
    Sobre a política de D. Fernando José de Portugal para as milícias de pretos e pardos da Bahia, consultar: Russell-Wood (1982, p. 138-142); Kraay (2011, p. 154-164); Souza, F. (2017, p. 333-346).
  • 24
    Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Requerimento dos capitães e mais oficiais subalternos do Regimento de Infantaria de Milícias dos Homens Pardos do Rio de Janeiro, por seu procurador Pascoal Luís Gabriel, ao príncipe regente D. João. Cx. 215, Doc. 17; Cx. 214, Doc. 69; Cx. 215, Doc. 49.
  • 25
    Disponível em: <http://legislacaoregia.parlamento.pt/V/1/11/24/p156>. Aceso em: 4 maio 2018.
  • 26
    Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Requerimento dos capitães e mais oficiais subalternos do Regimento de Infantaria de Milícias dos Homens Pardos do Rio de Janeiro, por seu procurador Pascoal Luís Gabriel, ao príncipe regente D. João. Cx. 215, Doc. 17; Cx. 214, Doc. 69; Cx. 215, Doc. 49.
  • 27
    Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Requerimento dos capitães e mais oficiais subalternos do Regimento de Infantaria de Milícias dos Homens Pardos do Rio de Janeiro, por seu procurador Pascoal Luís Gabriel, ao príncipe regente D. João. Cx. 215, Doc. 17; Cx. 214, Doc. 69; Cx. 215, Doc. 49.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    30 Out 2018
  • Aceito
    22 Abr 2019
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