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Tempo e eternidade: a dinâmica entre o temporal e o atemporal na Geisteswissenschaft de Herbert Cysarz 1 1 Agradeço ao Prof. Estevão de Rezende Martins pela leitura prévia.

Time and eternity: the dynamics between temporal and timeless in Herbert Cysarz’s Geisteswissenschaft

Resumo:

Literaturgeschichte als Geisteswissenschaft [História da literatura como ciência do espírito] foi publicado em 1926. A obra evidencia o esforço cognitivo de seu autor, o germanista Herbert Cysarz (1896-1985), para refletir sobre o conhecimento histórico e sua relação com a experiência do tempo. Cysarz cunhou um novo conceito de Geisteswissenschaft no qual a dialética entre o tempo e a eternidade era fundamental para a construção de um conhecimento histórico pragmático. Este artigo busca apresentar o conceito de Geisteswissenschaft de Cysarz e compreender como ele se relaciona com a dinâmica entre a experiência do tempo e a eternidade. Por fim, explora-se de que maneira esta dinâmica do tempo é fundamental para o desempenho de uma morfologia histórica.

Palavras-chave:
Tempo; Historicismo; História intelectual

Abstract:

Literaturgeschichte als Geisteswissenschaft [History of literature as Geisteswissenschaft] was published in 1926. The work highlights the cognitive effort of its author, the Germanist Herbert Cysarz (1896-1985), to reflect on historical knowledge and its relation to the experience of time. Cysarz coined a new concept of Geisteswissenschaft in which the dialetic between time and eternity was fundamental for the construction of a pragmatic historical knowledge. This article aims to presents Cysarz’s concept of Geisteswissenschaft and to understand how it relates to the dynamics between the experience of time and eternity. Finally, this article discusses how the dynamics between time and eternity is indispensable for the fulfillment of a historical morphology.

Keywords:
Time; Historicism; Intellectual history

Encantava-nos a doutrina aristotélica de matéria e forma: a matéria como potencial, como possibilidade, que aspira à forma para se realizar; e a forma como motor imóvel, que é espírito e alma, a alma do ente, ao qual induz a se concretizar, a se completar no fenômeno.

Thomas Mann - Doutor Fausto

A escolha de Herbert Cysarz pelas ciências humanas, principalmente pela germanística, confunde-se com a turbulenta história da Europa nas primeiras décadas do século XX. Quando serviu na Primeira Guerra Mundial, em um front no sul da Itália, Cysarz foi ferido, o que lhe causou uma lesão na mão direita que ficou quase paralisada. Diante da impossibilidade de desenvolver experimentos em laboratórios, Cysarz optou pelos estudos nas ciências humanas e abandonou o curso de física que começara na Universidade de Viena, em 1914.

Cysarz nasceu na última década do século XIX, em 1896, na região da Silésia, à época, parte do Império Austro-Húngaro. A Silésia, região fronteiriça entre a atual Polônia, Alemanha e República Tcheca, era uma região plural e passava por constantes conflitos entre poloneses católicos e alemães protestantes. Com a unificação do império alemão, em 1871, a região foi a ele anexada oficialmente. A alta Silésia passou por um profundo processo de industrialização, resultado das políticas de Bismarck para a industrialização do império alemão. A Kulturkampf fortaleceu a oposição entre os católicos e protestantes, contribuindo para um renascimento polonês na alta Silésia, onde a população era majoritariamente de origem polonesa e católica. A baixa Silésia, região onde Cysarz nasceu e viveu até se mudar para Viena em razão dos estudos, era dominada por uma população descendente de alemães e protestantes.2 2 A história da Silésia é dominada por divisões territoriais e invasões. Por volta do ano 900, a região foi conquistada pelos boêmios e, após 950, por poloneses que a cristianizaram. Sob domínio do imperador Frederico I do Sacro Império Romano Germânico, a Silésia conquistou relativa autonomia política. No século XIII, com a queda da dinastia polonesa dos Piasten, recebeu um contingente populacional da Saxônia e da Turíngia. Depois de 1250, a região se dividiu em inúmeros principados. Foi incorporada novamente à Boêmia, em 1348, durante o reinado de Carlos IV, futuro Kaiser do império. No século XV, a alta Silésia caiu sob domínio polonês. No século XVI, passou ao domínio dos Habsburgos, que levaram a cabo a contrarreforma na região, pois o protestantismo alcançara a Silésia no século XVI. Em 1740, Frederico II ocupou a Silésia, e a Paz de Berlim (1742)estabeleceu que a maior parte do território deveria ficar com a Prússia. No século XIX seguiu a industrialização e fortalecimento polonês. Com o Tratado de Versalhes, o império alemão cedeu parte do território à Tchecoslováquia e parte da fronteira leste à Polônia (Taddey, 1998, p. 1123-1125)

Após cursar filosofia e psicologia na Universidade de Viena, Cysarz doutorou-se na mesma universidade, em 1919, com o trabalho Erfahrung und Idee: Probleme und Lebensform der deutschen Literatur von Hamman bis Hegel [Experiência e ideia: problemas das formas de vida da literatura alemã de Hamman até Hegel].3 3 Todas as traduções do alemão foram realizadas por mim. Devido à excelência, seu trabalho foi premiado, em 1923, com o Wilhelm-Scherer-Preis concedido pela Academia Prussiana de Ciência. Deutsche Barockdichtung [Poesia barroca alemã], sua tese de livre-docência, foi defendida em Viena em 1924. Dois anos depois, Cysarz foi nomeado professor na mesma universidade. No ano seguinte, ocupou a cátedra do germanista e historiador da literatura August Sauers, na Universidade de Praga.

Cysarz transferiu-se, em 1938, para a Universidade de Munique, onde foi professor ordinário da disciplina de história da literatura moderna alemã até 1945. A mudança de Cysarz ocorreu antes do Acordo de Munique, assinado no mesmo ano. Essa questão é relevante dado o local de nascimento de Cysarz e seu entusiasmo pelos sudetos alemães. Cysarz viu com bons olhos a ocupação nazista da Tchecoslováquia. A invasão desrespeitou a decisão do Acordo de Munique firmado entre França, Inglaterra, Itália e Alemanha, adiantando a invasão não somente da região dos sudetos alemães, mas do restante do território da Tchecoslováquia.

A entrada de Herbert Cysarz para o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães ocorreu em 1940, no entanto, sua filiação foi antecedida nos documentos oficiais do partido para 1938. Um ano antes da derrota dos alemães na Segunda Guerra Mundial, o apartamento de Cysarz foi completamente destruído durante um bombardeio em Munique. Cysarz, na ocasião do bombardeio, encontrava-se em uma viagem de férias na Áustria. Com a derrocada do regime nazista e suas consequências, não somente políticas e econômicas, mas, sobretudo, o enfrentamento do terror e da desumanização causados pelo nazismo, muitos intelectuais foram retirados de suas funções nas universidades em um processo de desnazificação. Assim, a carreira universitária de Cysarz se encerrou oficialmente em 1945.

Não há muitas informações biográficas disponíveis sobre Cysarz, e encontrá-las não é tarefa fácil. O que se pode afirmar é que, nas primeiras décadas do século XX, Cysarz era um intelectual cuja carreira firmava-se no espaço de discussão germânico acerca da história da literatura alemã.4 4 O conhecimento da obra de Herbert Cysarz deu-se durante meu estágio de doutoramento no exterior. Ao pesquisar a correspondência do germanista Friedrich Gundolf (1880-1931), cuja obra foi o foco da tese, notei uma troca epistolar significativa entre Gundolf e Cysarz. Gundolf era um dos mais importantes germanistas alemães, principalmente após a publicação de seu Goethe, de 1916. Ao analisar a correspondência, percebi que parte dela era dedicada à obra de Cysarz analisada neste artigo. Era perceptível a relevância intelectual de Cysarz para Gundolf, o que indicava que Cysarz era uma figura importante no cenário acadêmico do período. Em outro artigo, pretendo analisar a troca de correspondências entre Gundolf e Cysarz. Cabe sublinhar, porém não esmiuçar neste artigo, que Cysarz cita Gundolf — e por extensão o poeta Stefan George, de cujo círculo Gundolf foi o mais destacado membro — em vários momentos da sua obra. Cysarz produziu um número significativo de obras e, em 1976, publicou uma autobiografia, Vielfelderwirtschaft. Ein Werk und Lebensbericht [Campos mutidisciplinares: um relato de vida e obra]. Publicou cerca de 23 livros, excetuando-se sua autobiografia e incluindo dois romances. Durante sua carreira acadêmica, Cysarz se empenhou nos estudos sobre a poesia barroca alemã e a filosofia, sobretudo de Schiller, Herder e Nietzsche.5 5 Algumas obras de Cysarz valem ser lembradas: Em 1928, publicou Von Schiller zu Nietzsche [De Schiller a Nietzsche] e, em 1934, Schiller. Em 1940, veio a lume uma obra que indica ser uma reflexão do autor sobre o tema da eternidade: Das Unsterbliche. Die Gesetzlichkeiten und das Gesetz der Geschichte [A imortalidade: a legitimidade e a lei da história]. Reflexões sobre o impacto da Primeira Guerra Mundial nas ciências humanas parecem estar presentes em Zur Geistesgeschichte des Weltkriegs. Die dichterischen Wandlungen des deutschen Kriegsbildes 1910-1930 [Sobre a ciência do espírito da guerra. As transformações poéticas das imagens alemãs da guerra 1910-1930?.

Literaturgeschichte als Geisteswissenschaft [História da literatura como ciência do espírito] veio a lume em 1926, quando Cysarz ainda se encontrava em Viena. A importância de seu livro reside no esforço cognitivo de Cysarz para sistematizar uma concepção de história da literatura que funcionaria como um norteador teórico e epistemológico para todas as outras ciências humanas. Cysarz denominou Geisteswissenschaft esse referencial teórico para as ciências humanas que parecia ter suas raízes na história da literatura. Note-se que Cysarz utiliza o termo Geistwissenschaft no singular e não no plural, Geisteswissenschaften. O uso do singular deixa evidente, desde o título da obra, que o termo não se referia, como usualmente, ao conjunto disciplinar das ciências humanas, designado no alemão por Geisteswissenschaften. Sua obra se encontra organizada em seis capítulos interconectados que abordam categorias fundamentais do que Cysarz entendeu por Geisteswissenschaft. Cysarz procurou examinar as questões relativas às categorias fundamentais do conhecimento histórico como tempo, espaço, individualidade e desenvolvimento.

A obra de Cysarz indica uma tentativa de sistematização do que parece se constituir enquanto uma tendência no espaço intelectual alemão das primeiras décadas do século XX: o entendimento de que todo conhecimento deveria estar necessariamente ligado à vida, e, nesse sentido, desempenhar uma função pragmática para o presente, ideia norteadora para muitos intelectuais do período. A partir desse pressuposto, os estudos sobre a literatura alemã vinculados especialmente à germanística trouxeram, em parte, novas propostas teóricas e metodológicas para o conhecimento histórico.6 6 Na virada do século XIX para o XX, o campo da germanística foi influenciado por outras áreas de estudo. A escola da filologia histórica fundada por Wilhelm Scherer, que realizou um trabalho de reunião e crítica das fontes, sofreu influxo da psicologia e da filosofia da vida. As obras que eram, de maneira geral, analisadas com apoio na vida dos autores, começaram a ser entendidas mediante outras questões que ultrapassavam as condições históricas materiais. A influência do pensamento de Bergson e Dilthey contribuiu para firmar o consenso de que havia outras circunstâncias espirituais a ser consideradas. Prevaleceu a ideia da existência de um princípio original, Ursprung, para além da condicionalidade histórica e atrelada a uma origem espiritual (Schmitz, 1965, p. 24-25). Permanece, entre uma parcela dos estudiosos da literatura, a defesa de que os parâmetros metódicos e epistemológicos por eles utilizados deveriam ser estendidos às ciências humanas de modo geral. Observam-se diversas passagens na obra de Cysarz que evocam o ofício do historiador como lições de história. O conhecimento histórico constituía parte fundamental e indispensável para os intelectuais voltados para a literatura alemã, o que explica a importância dada à história em suas reflexões. A obra de Cysarz tece uma sistematização epistemológica dessa tendência da germanística mediante um olhar retrospectivo que remonta ao final do século XIX.

Sobre a Geisteswissenchaft

Usualmente, o termo Geisteswissenchaften, no plural, diz respeito ao conjunto disciplinar das ciências humanas. Traduzido por “ciências do espírito”, o termo abarca a totalidade das disciplinas denominadas “ciências humanas”, ou seja, disciplinas cujo foco é a análise das relações sociais, culturais, econômicas e históricas de uma sociedade mediante respectivos arcabouços teóricos epistemológicos. Neste grupo encontram-se a história, a geografia, a sociologia, a economia, a literatura, entre outras disciplinas. No início do século XX, as barreiras disciplinares não se encontravam completamente fixadas e, assim, o diálogo interdisciplinar apresentava-se com facilidade, embora não sem embates. Não causa espanto, portanto, que diversos intelectuais que se dedicaram com notável esforço a refletir acerca da fundamentação do conhecimento histórico não possuíssem uma formação formal no campo disciplinar da história. Esse é o caso do filósofo Wilhelm Dilthey, de representantes da jovem sociologia, Max Weber e Georg Simmel, para citar alguns nomes. Este é também o caso de Herbert Cysarz, que procurou indicar as bases sobre as quais o conhecimento histórico devia se fundamentar.

O estilo narrativo de Cysarz se caracteriza pela excessiva negação. Suas definições são construídas por aquilo que não as constitui. Ao explicar e delimitar um conceito ou ideia, Cysarz o faz a partir daquilo que não lhes pode ser atribuído. No que se define a Geisteswissenchaft, no singular, uma vez que ela não corresponde ao conjunto disciplinar das ciências humanas? Um elemento é certo de antemão: a história da literatura de Cysarz se insere no âmbito de sua concepção de Geisteswissenschaft, e essa questão ocupou lugar proeminente no centro do debate a partir de 1916,7 7 1916 é o ano da publicação de Goethe por Gundolf, como já mencionado. Sua obra, desde a publicação de sua tese de doutorado, Shakespeare und der deutsche Geist [Shakespeare e o espírito alemão], em 1912, marca uma virada metodológica nos estudos em história da literatura alemã. Cysarz não aponta a obra de Gundolf como um marco fundador, no entanto, é notável a referência ao ano de 1916 especificamente. 1916 é também o ano da batalha de Verdun, definitiva para as transformações dos padrões de guerra. Pode-se dizer que tal acontecimento influenciou as reflexões acerca das funções do conhecimento para a vida, reforçando-as. uma década antes da publicação do livro de Cyzarz (1926CYSARZ, Herbert. Literaturgeschichte als Geisteswissenschaft. Halle an der Saale: Verlag von Max Niemeyer, 1926., p. 1). Neste sentido, Cysarz indica sua tentativa de sistematizar um debate que se fortalecia desde então, embora suas raízes remontassem ao século XIX.

O termo Geisteswissenschaft, no singular, não dizia respeito a um “ideal de ciência”, não constituía um “programa” a ser desempenhado pelas ciências humanas em geral, ou mesmo pela história da literatura em particular. Geisteswissenschaft não era uma “disciplina específica”, muito menos “um conjunto de disciplinas isoladas” (Cysarz, 1926CYSARZ, Herbert. Literaturgeschichte als Geisteswissenschaft. Halle an der Saale: Verlag von Max Niemeyer, 1926., p. 2), como o correspondente da palavra quando grafada no plural. A Geisteswissenschaft era uma perspectiva, uma atitude cujo mandamento era estar baseada na vivência, Erlebnis. Por isso, a história da literatura, quando Geisteswissenschaft, não se confundia com o seu aspecto acadêmico disciplinar [Fachwissenschaft].

Cysarz fez de sua obra uma referência para os que se interessassem em entender sua Geisteswissenschaft como um modelo, uma vez que havia sido pensada a partir do que o próprio autor propunha teoricamente. Apesar da insistência do germanista em afirmar que sua Geisteswissenschaft não constituía um programa a ser seguido, sua obra cumpre tal função. Seu livro não refletia seu esforço em expor um conhecimento vazio acerca da história da literatura, mas objetivava ser uma arma poderosa para influenciar a realidade (Cysarz, 1926CYSARZ, Herbert. Literaturgeschichte als Geisteswissenschaft. Halle an der Saale: Verlag von Max Niemeyer, 1926., p. 1) e determinar quais os caminhos a ser trilhados por aqueles que se propunham a compor suas análises mediante a Geisteswissenschaft. Fica evidente que a Geisteswissenschaft, mais que uma perspectiva, apresenta-se ao leitor como um aporte teórico metodológico para o desempenho de sua atividade de pesquisa.

A função pragmática acompanha a Geisteswissenschaft de Cysarz, e, por isso, seu mandamento - estar centrado na questão da vivência, conceito totalmente interconectado à ideia de vida - não causa espanto. A convergência para a ideia de vida deixa clara a carga humanista das ideias de Cysarz que se contrapõe a qualquer tipo de análise de caráter coletivo. O homem é aquele que ordena o mundo, “o mundo humano do sofrer e do agir” (Cysarz, 1926, p. 264). Ao referir-se ao filósofo Wilhelm Dilthey, pensador fundamental para o estabelecimento das ideias de vida e vivência entre os intelectuais alemães, Cysarz o classifica dentro de uma “velha filosofia da vida” (Cysarz, 1926, p. 27). Para esta, as questões sobre o tempo e o espaço não eram fundamentais e, a despeito de sua relevância para as ciências humanas, fazia-se imprescindível uma reflexão que aliasse as ideias de vida e vivência ao espaço e, principalmente, ao tempo. Todavia, era certo para Cysarz que a conexão estabelecida por Dilthey entre vivência e compreensão era basilar para a sua proposta metodológica (Cysarz, 1926CYSARZ, Herbert. Literaturgeschichte als Geisteswissenschaft. Halle an der Saale: Verlag von Max Niemeyer, 1926., p. 59).

O objeto de todo conhecimento produzido mediante a perspectiva da Geisteswissenschaft era o vivenciado em amplo sentido. A aproximação com Dilthey não é aleatória, tendo em vista sua valorização do âmbito subjetivo interior para a reconstrução do mundo histórico. Vivenciar diz respeito não somente àquilo que é vivenciado em um determinado momento, mas o que dele permanece. Foi Dilthey quem tratou de emprestar à vivência uma função conceitual explicativa que a sedimentou na linguagem (Gadamer, 1997GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I. Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Editora Vozes, 1997., p. 105). De maneira geral, ao propor o retorno à vida mediante o conceito de vivência, Dilthey se opôs ao racionalismo e ao positivismo, bem como à aproximação das ciências humanas da metodologia universalista das ciências naturais. Ao empregar para as ciências humanas o conceito de vivência, Dilthey reforçou o mundo interior espiritual como centro do conhecimento histórico (Scholtz, 2013SCHOLTZ, Gunter. Diltheys Geschichtstheorie. In: SCHOLTZ, Gunter (Hg.). Diltheys Werk und die Wissenschaften. Neue Aspekte. Göttingen: V&R Unipress, 2013., p. 134).

Em Dilthey está clara a importância daquilo que permanece de uma vivência ocorrida em um mundo histórico do passado e daquilo que dela sobrevive para o presente, manifestando-se em produtos culturais. Esse resquício do passado no presente pode ser compreendido mediante um diálogo intersubjetivo fundamental empreendido pelo pesquisador. A intersubjetividade garante a intepretação que revivencia e insere o conteúdo a ser interpretado em um conjunto de vivências totalizantes que existe na consciência do agente interpretante (Röd, 2008RÖD, Wolfgang O caminho da filosofia. Dos primórdios até o século XX. v. 2: Do século XVII ao século XX. Brasília: Editora UnB, 2008., p. 555). Quando Dilthey publicou Der Aufbau der geschichtlichen Welt in den Geisteswissenschaften [A construção do mundo histórico nas ciências humanas], em 1910, enfatizou que a história desempenhava um papel elementar em seu pensamento. Assim, pode-se afirmar que Cysarz vinculou o elemento eterno à vivência, considerando que sua compreensão dependia do mundo histórico e do diálogo intersubjetivo desempenhado por aquele que buscava compreendê-lo. Dilthey emprestou ao conceito de vivência uma dimensão histórica incontornável, reafirmando a condicionalidade histórica da mudança permanente como característica fundamental da existência humana.

A experiência do tempo da Geisteswissenschaft

A crise do pensamento racionalista, que na história se apresentou como uma crise do paradigma historicista, mostrou-se, para parcela dos intelectuais, como uma crise da experiência do tempo. A percepção de uma crise na cultura moderna é acompanhada pela crítica à capacidade formativa do conhecimento histórico, e a essa crise formativa é acoplada a reflexão acerca de uma nova relação com o tempo a fim de articulá-lo à reflexão acerca das experiências históricas. Na sua Segunda consideração intempestiva, considerada um marco inicial para a chamada crise do historicismo, Friedrich Nietzsche apontou que essa crise se constituía primeiro como uma crise formativa, pois o conhecimento histórico se desatrelara da vida. Mais que isso, Nietzsche indicava a necessidade de uma nova experiência do tempo no sentido de destacar a perenidade.

Ao se tornar uma disciplina científica no decorrer do século XIX, a história abandonara sua função pragmática para a vida humana prática cotidiana. A necessidade de desenvolver o campo teórico metodológico da ciência histórica conduziu a um afastamento das suas funções para os homens diante de suas escolhas de ação perante as quais situar-se no tempo é imprescindível a fim de agir no mundo. Para muitos intelectuais, a cientificização do conhecimento histórico trazia consigo uma aproximação com a metodologia das ciências naturais. Disso resultava a produção nefasta de um conhecimento frio e sem sentido, pois apartado da vida.

A guinada do conhecimento histórico para a ideia de vida, como recurso último ao qual se podia apelar para ressignificar a pragmática do conhecimento histórico, é marcada por uma reflexão sobre o tempo cujo objetivo era distinguir a experiência do tempo do espírito, ou a experiência individual do tempo, do tempo cronológico, exterior e homogêneo. Havia na Geisteswissenschaft um problema inescapável que concernia à reflexão sobre uma possível dialética entre o temporal e o atemporal. Aquilo que se “apresenta à nossa observação é, antes de tudo, único e dependente do tempo” (Cysarz, 1926CYSARZ, Herbert. Literaturgeschichte als Geisteswissenschaft. Halle an der Saale: Verlag von Max Niemeyer, 1926., p. 3), e, mediante essa constatação, um problema fundamental se colocava: como seria possível entender o temporal em uma forma atemporal [zeithafte in zeitlose Form], criando, por conseguinte, um elo que não destituísse a Geisteswissenschaft de seu crivo científico?

Existe um condicionante temporal intransponível, pois “qualquer vivência humana se desenrola no tempo” (Cysarz, 1926CYSARZ, Herbert. Literaturgeschichte als Geisteswissenschaft. Halle an der Saale: Verlag von Max Niemeyer, 1926., p. 12) e não é passível de repetição. Ter de se haver com a experiência temporal mediante uma desnaturalização do tempo marca a especificidade de um conhecimento construído mediante a Geisteswissenchaft e a distingue das ciências naturais. Essa peculiaridade deve ser considerada quando se trata de construir conceitos que lhe sirvam de aparato analítico (Cysarz, 1926CYSARZ, Herbert. Literaturgeschichte als Geisteswissenschaft. Halle an der Saale: Verlag von Max Niemeyer, 1926., p. 12) e, nesse caminho, a “verdadeira história” tem por pressuposto a “vitalidade e [o] conceito”, ou seja, a harmonia entre a vida e a capacidade analítica conceitual (Cysarz, 1926CYSARZ, Herbert. Literaturgeschichte als Geisteswissenschaft. Halle an der Saale: Verlag von Max Niemeyer, 1926., p. 167). Com o objetivo de entender a comunhão entre o temporal e o atemporal que considerasse a dessemelhança, apesar da interdependência entre ambas, da experiência do tempo exterior e homogênea com aquela interior e heterogênea, Cysarz aproximou-se da filosofia de Henri Bergson e sua problemática da duração, le durée.8 8 A filosofia da vida de Bergson não foi discutida largamente entre os historiadores alemães, que, por sua vez, não estavam completamente distanciados das propostas filosóficas que tinham a vida como referência. É viável lembrar que as primeiras décadas do século XX são marcadas pela fenomenologia de Edmund Husserl e, posteriormente, Martin Heidegger publicaria, em 1927, uma das obras fundamentais da filosofia ocidental contemporânea, Ser e tempo. Não menos importante, é o surgimento da psicanálise freudiana e sua ênfase no inconsciente e no reprimido. De toda forma, a filosofia de Bergson figura como uma referência significativa para alguns germanistas, como o próprio Cysarz e Friedrich Gundolf. Outros intelectuais que estiveram ligados ao Círculo de Stefan George se apoiaram na filosofia bergsoniana em seus artigos e livros. É o caso, por exemplo, de dois historiadores, Friedrich Wolters e Ernst Bertram.

Bergson apresentava-se como um precursor da Geisteswissenschaft de Cysarz, pois o filósofo francês pavimentara o caminho para o alcance da vida para além de seu aspecto fenomênico e, por isso, compartilhava do mesmo “dever” da sua Geisteswissenschaft. Mediante a filosofia de Bergson, Cysarz propôs um entrelaçamento entre a vivência - princípio metódico que lhe é fundamental -, o tempo - ou seja, a duração -, e a individualidade histórica - categoria que era imprescindível para sua Geisteswissenschaft. Na apreensão de Cysarz, quando comparado à França, o vitalismo apresentava especificidades nacionais na Alemanha. O vitalismo proposto por Bergson priorizava o retorno à vida interior privada, enquanto o vitalismo na Alemanha se voltava para uma associação direta com uma força [Willenskraft] que se vinculava diretamente com a realidade social e política. Na tendência francesa, o conceito de vida conduzia a um retorno ao interior com peso emocional. Na Alemanha, por sua vez, o conceito ganhava uma importância social. Assim, “o conceito emocional de vida parece a alguns alemães decadente, o conceito ativo de vida alemão parece a alguns franceses brutal” (Cysarz, 1926CYSARZ, Herbert. Literaturgeschichte als Geisteswissenschaft. Halle an der Saale: Verlag von Max Niemeyer, 1926., p. 217).

Aquilo que é vivenciado no âmbito individual ocorre na duração, o “tempo da alma” (Cysarz, 1926CYSARZ, Herbert. Literaturgeschichte als Geisteswissenschaft. Halle an der Saale: Verlag von Max Niemeyer, 1926., p. 170). Cysarz apropria-se da distinção proposta por Bergson entre o tempo intenso experienciado pelo indivíduo em seu interior, a duração, e o tempo cronológico que se mostra como um ponto numa linha temporal, e assim é percebido como uma medida extensiva e não intensiva (Cysarz, 1926CYSARZ, Herbert. Literaturgeschichte als Geisteswissenschaft. Halle an der Saale: Verlag von Max Niemeyer, 1926., p.14). Com base nessa disjunção entre tempo extensivo e intensivo, Cysarz considerou o tempo sob dois aspectos. O primeiro como dilatação, que Cysarz denominou de Zeitraum, o tempo intensivo, o tempo que dura.9 9 O termo utilizado por Cysarz, Zeitraum, tempo espacializado, pode levar a um mal-entendido com relação à obra de Bergson. Cysarz não esclarece se, ao contrário do filósofo francês, considerou de forma positiva o espaço. Contudo, é o que sua obra deixa transparecer. Cysarz segue Bergson ao entender o espaço como um agregado de dados, acumulação e, como Bergson, considera o espaço como fundamental à análise científica (Cysarz, 1926, p. 75). O Zeitpunkt diz respeito ao tempo que é percebido como um ponto ou como transição em uma sucessão linear ininterrupta. Por um lado, o fio, o tempo científico e homogêneo. Por outro, a trama, o tempo da duração que flui de forma heterogênea mediante cada vivência individual. Todavia, o tempo da duração não se encontra desemparelhado do tempo cronológico, uma vez que toda vivência intersubjetiva é condicionada no mundo histórico. O fio é parte constituinte da trama.10 10 Faço clara alusão à obra de Ivan Domingues, O fio e a trama (1996).

Essas reflexões são fundamentais para que o germanista solucione a questão do caminho cognitivo a ser perseguido a fim de conciliar o fio e a trama. A eternidade, entendida como o elemento atemporal, transcorre na trama mediante a vivência individual. Todavia, sua realização fenomênica no mundo depende do condicionante histórico. Para que o elemento atemporal ganhe função pragmática no mundo histórico, é necessário dar-lhe sentido, e esta atividade depende de uma apreensão dos processos históricos expressivos que são também dispostos cronologicamente. Não se trata de uma negação completa da cronologia e de sua lógica que interliga os processos e fatos históricos, dissolvendo-os completamente em uma apreensão irracional da história. Para Cysarz, a “história não era apenas exclusivamente o ocorrido, o modificável, a sucessão, mas o contrajogo desses movimentos, como algo que neles em si permanece” (Cysarz, 1926CYSARZ, Herbert. Literaturgeschichte als Geisteswissenschaft. Halle an der Saale: Verlag von Max Niemeyer, 1926., p. 166-167).

O tempo intensivo abria a possibilidade para o alcance da vida, pois ela estava ligada necessariamente a um curso temporal que a ciência insistia em compreender extensivamente. A cronologia tradicional constituía uma apreensão homogênea do tempo que destituía a importância da vida (Cysarz, 1926CYSARZ, Herbert. Literaturgeschichte als Geisteswissenschaft. Halle an der Saale: Verlag von Max Niemeyer, 1926., p. 18). Bergson afirmou que o tempo vivenciado não poderia ser matematicamente calculado, pois era um tempo heterogêneo no qual havia uma multiplicidade temporal que lhe era intrínseca. Na duração, as ocorrências do passado se manifestavam no presente e atuavam nas vivências individuais. No desenrolar da duração, passado e presente se intercambiam mediante a sucessão múltipla de estados de consciência (Bergson, 1988BERGSON, Henri. Ensaios sobre os dados imediatos da consciência. Lisboa: Edições 70, 1988., p. 72).

Mediante a síntese construída com os conceitos de duração de Bergson e de vivência de Dilthey, Cysarz teceu uma crítica à historiografia do século XIX que, influenciada pelo ideal de uma investigação que buscasse as leis racionais do desenvolvimento histórico, transpôs o conteúdo vivo do tempo [Zeithaft-Lebendig] em leis abstratas nas quais o tempo era homogêneo e extensivo (Cysarz, 1926CYSARZ, Herbert. Literaturgeschichte als Geisteswissenschaft. Halle an der Saale: Verlag von Max Niemeyer, 1926., p. 24). A intelectualidade do século XIX transformou o tempo em uma variante externa sem considerá-lo como um elemento interno, dispensando a análise da vivência que se desenrola na duração real (Cysarz, 1926CYSARZ, Herbert. Literaturgeschichte als Geisteswissenschaft. Halle an der Saale: Verlag von Max Niemeyer, 1926., p. 163).

Por toda parte, onde o material histórico vem a ser trabalhado de acordo com regras racionalistas - e, por sorte, na realidade, esse é cada dia menos o caso, menos do que esperava o programa - isto é, não é retirado para os vivos uma esfera atemporal, mas ao contrário, contrapõe-se a ela. Os acontecimentos são codificados e catalogados, e como tais não são superados (Cysarz, 1926CYSARZ, Herbert. Literaturgeschichte als Geisteswissenschaft. Halle an der Saale: Verlag von Max Niemeyer, 1926., p. 26).

A fim de explicar como o conteúdo eterno pode apresentar-se temporalmente no mundo, Cysarz opera um construto conceitual heurístico entre “imortalidade” [Unsterblichkeit] e “atemporalidade” [Zeitlosigkeit] mediante a função pragmática do conhecimento produzido com base na perspectiva da Geisteswissenschaft. A atemporalidade seria característica do pensamento racional desenvolvido a partir de regras metódicas universais, constituía uma “utopia por parte dos materialistas” (Cysarz, 1926CYSARZ, Herbert. Literaturgeschichte als Geisteswissenschaft. Halle an der Saale: Verlag von Max Niemeyer, 1926., p. 43) e estava ligada à cronologia tradicional. A imortalidade, por sua vez, constituía característica daquilo que permanecia vivo, era, portanto, eternidade, infinitude. A eternidade se apresentaria em formas mais desenvolvidas de vida e continuaria a se alastrar no presente.

Imortalidade é infinito vivo e totalmente diferente de atemporalidade. Atemporal é válido para as verdades dos arquivos e dos laboratórios, o julgamento analítico correto e isso é provado pela receita técnica: que tudo é, para afirmá-lo com Hegel, “má infinitude”. Imortal, portanto, não é aquilo que é sempre válido, aquilo que nunca vive e nunca viveu; imortalidade é o que uma vez foi a vida em sua forma mais desenvolvida e sempre irradiará essa vida, tal como a Vita Nuova de Dante. Imortal é eterno, é isso (Cysarz, 1926CYSARZ, Herbert. Literaturgeschichte als Geisteswissenschaft. Halle an der Saale: Verlag von Max Niemeyer, 1926., p. 37).

A partir desta bipartição, Cysarz cogitou a respeito do conhecimento histórico, não restrito à história da literatura alemã. Aqueles que se dedicavam aos estudos históricos enquanto Geisteswissenschaft deviam tecer uma interconexão entre a eternidade que poderia apresentar-se temporalmente no mundo histórico e o mundo temporal que lhe era condicionante. Pode-se usar aqui a terminologia conceitual de Cysarz que, mais que facilitar, complica a questão, deixando-a ambígua em muitos trechos da obra. O termo atemporal, como foi utilizado até aqui, foi mencionado pelo autor inúmeras vezes para designar o elemento eterno temporalizado no mundo, enquanto, em outros momentos, abarcou a universalidade das regras metódicas de pesquisa e análise de dados.

Por um lado, o conhecimento histórico não pode destituir-se de seu aparato metodológico naquilo que diz respeito à crítica das fontes, caminho incontornável para a reconstrução do passado. A controlabilidade metódica que acompanha o produto da pesquisa histórica não é questionada, não se trata de falsear o passado. Ou seja, a história necessita da verdade do arquivo, dos dados coletados, como sugeriu Cysarz, e isso possuiria uma validade universal - por isso a chama de atemporal. Contudo, o produto da pesquisa histórica - a narrativa - não pode prescindir da incorporação da dinâmica entre o atemporal - as regras da pesquisa metódica das fontes - e o eterno, presente no mundo histórico - que não deixava de possuir um elemento imortal dependente da narrativa para ser temporalizado. O diálogo intersubjetivo que cruzava as vivências do passado e do presente na duração era fundamental para garantir a compreensão do elemento eterno na dinâmica temporal. Mas era na narrativa, produto desse diálogo intersubjetivo - e metodicamente controlado, apesar da forte carga intuitiva - que o elemento atemporal se apresentava a fim de desempenhar uma função pragmática para o presente. A narrativa cumpria o papel de dar um sentido ao passado diante das carências do presente.11 11 Em 1930, o historiador Ernst Kantorowicz proferiu uma conferência no Historikertag na Universidade de Halle sobre os limites e possibilidades da apresentação da história medieval. Para Kantorowicz, o conhecimento histórico dependia de regras metódicas atemporais. Contudo, a historiografia fazia parte da literatura nacional e ao dar sentido ao passado garantia a função pragmática da história para a vida (Silva, 2017).

As individualidades, categoria dos estudos históricos, incorporam essa dinâmica entre as regras metódicas de validade universal-atemporal e a existência de um elemento eterno, vivenciado e apreendido via vivência. A individualidade constituía, para Cysarz, não “a soma das partes”, mas uma “unidade na totalidade [e] totalidade na unidade” (Cysarz, 1926CYSARZ, Herbert. Literaturgeschichte als Geisteswissenschaft. Halle an der Saale: Verlag von Max Niemeyer, 1926., p. 57), e essa relação caracterizava o cosmos da Geisteswissenschaft (p. 94). Do ponto de vista metódico, a individualidade tornava-se compreensível quando analisada em partes, a despeito de sua relação intrínseca com o ser e a totalidade (p. 95). Toda individualidade comporta uma tensão que lhe é característica, uma “tensão entre unidade e totalidade, nunca uma unidade absoluta ou uma totalidade completa” (p. 123).

A individualidade não é restrita a um indivíduo, pode abarcar unidades complexas, unidades cosmológicas conjugadas à totalidade. Nesse sentido, o humanismo, o impressionismo e o espírito alemão se apresentavam como individualidades. Grandes complexos culturais constituíam uma totalidade e, por essa razão, a incorporavam (Cysarz, 1926CYSARZ, Herbert. Literaturgeschichte als Geisteswissenschaft. Halle an der Saale: Verlag von Max Niemeyer, 1926., p. 121). Cysarz definiu essas unidades cosmológicas como Gestalt.12 12 Cysarz (1926, p. 115) cita o trabalho do historiador Friedrich Wolters como base para o seu conceito de Gestalt. No segundo Jahrbuch für die geistige Bewegung [Anuário para o movimento espiritual], publicação oficial do Círculo de Stefan George, Wolters escreveu um artigo, Gestalt. A Gestalt de Wolters, em oposição ao racionalismo, trata a individualidade como a instância portadora da força eterna em comunhão com a comunidade, e junção entre corpo e espírito, cuja separação seria característica da modernidade. A individualidade não deixa de pertencer ao mundo histórico, pois é a experiência do divino no mundo. A Gestalt manifesta a síntese entre o limitado e o infinito. É uma síntese entre o temporal e o eterno, e mediante sua análise intersubjetiva era possível detectar as forças nela manifestas e trazê-las para a experiência do presente e de suas respectivas necessidades históricas (Wolters, 1911, p. 145-148). O “individualismo coletivo ou coletivismo individual” (p. 112) opunha-se ao atomismo13 13 O atomismo trata de uma análise extensiva, no espaço, e não intensiva, na duração (Cysarz, 1926, p. 112). Cysarz elenca uma série de autores cujas análises de caráter individualista e coletivista se opunham ao atomismo: os neokantianos, Heinrich Rickert e Max Weber. O teólogo Ernst Troeltsch; os historiadores Friedrich Wolters (1876-1930) e Oswald Spengler (1880-1936) e o sociólogo Ferdinand Tönnies. Para Cysarz, a importância de Weber e Troeltsch reside nos seus estudos sobre o protestantismo em conexão com o seu próprio presente, superando uma análise morta do passado. Cysarz detém-se um pouco mais em Tönnies e Spengler. Gemeinschaft und Gesellschaft, clássica obra de Tönnies, publicada em 1887, opera uma distinção sociológica entre a comunidade e a sociedade que Cysarz interpreta a partir da filosofia de Bergson. A sociedade constitui um conglomerado espacial e a comunidade possui um destino comum e uma ligação orgânica entre o indivíduo e o coletivo (Cysarz, 1926, p.117). e não correspondia ao domínio das massas na história (p. 112). Essa unidade complexa mantinha conexão direta com as formas de comunidade que eram de sua propriedade. Toda individualidade traz consigo uma característica fundamental que é própria da modernidade: a incontornabilidade de sua condicionalidade histórica, pois “todo individual é histórico; somente o que tem história pode ser individual” (p. 152). O historiador não podia se esquecer da continuidade temporal que, conectada a uma totalidade, não se restringia à sucessão linear, pois “onde o historiador somente isola ao invés de construir continuidade, fede a cadáveres” (p. 55). O passado é, portanto, vida e não morte, é vivo para o presente e não pode constituir uma crônica de fatos isolados.

A totalidade em relação mútua com a unidade, não é algo dado. A totalidade é construída, é dinâmica em relação constante com o presente, o passado e o futuro e nela se encontra a “tensão entre o temporal e o atemporal” (Cysarz, 1926CYSARZ, Herbert. Literaturgeschichte als Geisteswissenschaft. Halle an der Saale: Verlag von Max Niemeyer, 1926., p. 66) que ocorria na duração. Aquele que se voltava para a observação dessa relação devia ter em mente que, mediante a análise do microcosmo, as estruturas [Gebilde] do todo se organizavam (p. 67). Essa aptidão para construir a totalidade fundamental para os estudos históricos dependia de uma força especial, uma aptidão que não poderia ser aprendida ou ensinada. Era uma vocação nata com conteúdo romântico, que unia paixão e razão, embora não pudesse ser confundida com uma predominância absoluta da subjetividade não subjugada a um crivo metódico racional. A aproximação com o objeto de pesquisa se dava por interesse pessoal, mas o caminho de seu desenvolvimento era metódico, “paixão no começo, crítica no fim” (p. 176).

Cysarz, portanto, acompanha o pensamento de Wilhelm von Humboldt (2010HUMBOLDT, Wilhelm von. Sobre a tarefa do historiador. In: MARTINS, Estevão C. de Rezende. A história pensada. Teoria e método na historiografia europeia do século XIX. São Paulo: Contexto, 2010.) que, em seu ensaio sobre o ofício do historiador, sustentou que haveria entre o historiador e seu objeto uma relação intersubjetiva crucial. Somente é possível conhecer aquilo que, de alguma forma, já está presente na subjetividade. Neste caminho, Cysarz acredita que aquilo que vive em um poderia viver no outro, estabelecendo assim um diálogo intersubjetivo que vai ao encontro do seu conceito de individualidade unida a um cosmos, uma totalidade. Mediante esse diálogo, o historiador entra em contato com seu objeto, abrindo a possibilidade de influenciar o tempo vindouro (Cysarz, 1926, p. 30). Cysarz atrela a esse pensamento a dinâmica entre o eterno e o temporal que somente pode ser compreendida mediante a vivência intersubjetiva com o passado, pois “o imperecível é dado a nós somente no passado” (p. 91).

Na história, onde os elos são temporais e o todo existe dinamicamente, onde a totalidade viva não é apenas observada, mas deve ser construída, ela requer, além disso, forças de devoção amorosa que dá vida, e uma forma especial, que na divisão temporal encarna a unidade extra temporal e deste modo cada totalidade temporal e atemporal, que é o nervo da individualidade; estas forças ou se possui ou não. [...] Além disso, individualização significa relação de unidade da totalidade, não a relação com uma única unidade; cada individual é, ao mesmo tempo, membro de uma série de corpos coletivos [...] O observador [geisteswissenchaftlicher Betrachter] recebe em cada individualidade uma legião de entidades individuais (Cysarz, 1926CYSARZ, Herbert. Literaturgeschichte als Geisteswissenschaft. Halle an der Saale: Verlag von Max Niemeyer, 1926., p. 55, 59).

A pesquisa desempenhada pelo “historiador genuíno” era primeiramente direcionada para a problemática da totalidade (Cysarz, 1926CYSARZ, Herbert. Literaturgeschichte als Geisteswissenschaft. Halle an der Saale: Verlag von Max Niemeyer, 1926., p. 67). A dinâmica temporal/atemporal que se apresentava na duração e era compreendida mediante vivência apresentava-se como o foco dos estudos históricos. O comprometimento com o atemporal, a presença do eterno no mundo, relacionava-se com o princípio de cientificidade do conhecimento histórico. A ciência baseada em regras universais de pesquisa desconsiderava a presença do eterno no tempo (p. 68). Nessa ciência a individualidade era destituída da totalidade. A análise científica procurava compreender um único ponto como fim em si mesmo (p. 71). Não se trata de negar a cientificidade, apesar da forte influência do pensamento de Friedrich Nietzsche, mas de refletir acerca dos princípios que garantiam a cientificidade da história.

Cysarz não desconsiderou outra categoria fundamental do conhecimento histórico científico, tão cara ao historicismo, o desenvolvimento [Entwicklung]. A individualidade era caracterizada pelo desenvolvimento e, logo, pela mudança constante e pela negação da existência de uma natureza humana imutável. Cysarz resolveu a problemática da permanência e da mudança afirmando que o desenvolvimento, característica da individualidade e, logo, da história, constituía a junção entre o Sein, o ser, aquilo que permanece, e o Werden, aquilo que vem a ser - transposto aqui também para o que foi -, interconectado ao Sein (Cysarz, 1926CYSARZ, Herbert. Literaturgeschichte als Geisteswissenschaft. Halle an der Saale: Verlag von Max Niemeyer, 1926., p. 151). A individualidade que comporta o Sein apresenta-se no mundo fenomênico, Werden, e apresenta uma dinâmica entre a mudança e a permanência (p. 181-182).

A individualidade comportava a mudança, mas não o progresso, como colocado pelas filosofias da história de cunho positivista, que poderia ser admitido nas ciências impessoais, de caráter matemático, porém jamais nas humanidades (Cysarz, 1926CYSARZ, Herbert. Literaturgeschichte als Geisteswissenschaft. Halle an der Saale: Verlag von Max Niemeyer, 1926., p. 161, 168). O desenvolvimento está em acordo com a dinâmica da individualidade e da totalidade e, logo, do atemporal e do temporal. Caso contrário, se o desenvolvimento for considerado simplesmente uma junção de pontos sequenciais, como uma adição, então trata-se apenas de leis do decurso histórico.

O conhecimento histórico não constituía uma justaposição de leis atemporais do desenvolvimento histórico e não era também uma história tradicional e exemplar, nos moldes da historia magistra vitae. As leis do desenvolvimento histórico eram “ideias ilusórias”, a “história não constitui para nós uma professora do caminho da vida, mas do entendimento da vida” (Cysarz, 1926CYSARZ, Herbert. Literaturgeschichte als Geisteswissenschaft. Halle an der Saale: Verlag von Max Niemeyer, 1926., p. 91). Por isso, a questão da prova para o conhecimento histórico se distinguia substancialmente quando comparada com as ciências naturais. Uma vez que o objeto da ciência histórica era o que era vivo, constituído pelo ser [Wesentlichkeit], ele não podia ser provado com base em uma análise de caráter repetitivo, mas deveria ser apurado metodicamente (p. 91).

A experiência do tempo da Geisteswissenschaft não retira do conhecimento histórico sua maior característica: ser uma ciência que se dedica primordialmente ao estudo do passado, que não anseia prever o futuro. Seu caráter pragmático de orientação não significa previsão, pois “toda tentativa de determinar a história futura é completamente sem sentido” (Cysarz, 1926CYSARZ, Herbert. Literaturgeschichte als Geisteswissenschaft. Halle an der Saale: Verlag von Max Niemeyer, 1926., p. 30, 77-78). Embora Cysarz defenda que o passado, como o presente, deva ser observado a partir de uma perspectiva da possibilidade de seu efeito no presente [Wirkensperspektive], o presente não deve ser analisado da mesma forma que o passado, pois isso poderia sufocar as energias vitais do tempo presente. O presente é o tempo da ação, e o passado diz respeito àquilo que passou, apesar do desempenho de sua função pragmática (p. 221).

No entanto, a teleologia permanece como um princípio para dar sentido ao passado. As leis de cunho universal não faziam sentido quando aplicadas aos estudos históricos, pois dar sentido ao passado era um ato cognitivo de base teleológica e, mais que isso, dependente do mundo histórico. O sentido histórico somente poderia ser encontrado diante do mundo real, longe das abstrações, e diante de um motivo circundante (Cysarz, 1926CYSARZ, Herbert. Literaturgeschichte als Geisteswissenschaft. Halle an der Saale: Verlag von Max Niemeyer, 1926., p. 79). A raiz hegeliana da proposta de Cysarz se evidencia na sua concepção de individualidade que, interconectada a uma totalidade, apresenta-se como a realização de uma ideia (p. 161) no decurso temporal. A filosofia hegeliana associou a apreensão do tempo ao devir, ao movimento, não podendo o tempo ser considerado completamente independente da realidade histórica. Cysarz, por sua vez, agregou ao movimento a eternidade que se realizava no mundo histórico e era apreendida via compreensão da individualidade.

A investida de Cysarz para compreender a presença do eterno no mundo histórico converge com a experiência da modernidade ocidental com relação à eternidade. Não foi como uma negação do tempo que os modernos experienciaram a eternidade, mas como um prolongamento infinito do tempo que conduziu à afirmação do eterno no desenrolar temporal que caminha ao lado da sua negação pelo próprio tempo. Diante da perda da transcendência, a exigência do absoluto também foi colocada pelos modernos, e a eternidade deixou de significar a evasão do tempo e passou a constituí-lo (Domingues, 1996DOMINGUES, Ivan. O fio e a trama. Reflexões sobre o tempo e a história. Belo Horizonte, São Paulo: Editora UFMG, Iluminuras, 1996., p. 39, 43). O eterno foi percebido como copertença, ou copresença, como prefere Jacques Rancière. Para o filósofo francês, a tensão entre o atemporal e o temporal foi central para o nascimento da história científica, que implicou a oposição à presença da eternidade no tempo, ao estabelecer o tempo horizontal da sucessão. Entretanto, o tempo da cronologia depende de um tempo onde ela não exista, a eternidade (Rancière, 2011RANCIÈRE, Jacques. O conceito de anacronismo e a verdade do historiador. In: SALOMON, Marlon(Org.). História, verdade e tempo. Chapecó: Argos, 2011., p. 23).14 14 Domingues faz uma observação semelhante com relação à imputação causal. “Afirmando a identidade de termos heterogêneos e não podendo eliminar a multiplicidade dos termos que ela trata de pôr em relação à causalidade somente poderá estabelecer os nexos entre os termos antecedentes e os termos consequentes se, ao se referir à sucessão dos fenômenos (acontecimentos) no tempo, se pôr de alguma forma fora do tempo e se pôr num plano real que transcenda o tempo e a ordem dos fenômenos enquanto tal: a eternidade” (Domingues, 1996, p. 74) A eternidade está no presente “que se dobra sobre si, alonga-se e abre-se de um só golpe ao tempo que sucede, e ao eterno, que dura - eis o sentido profundo de copertença do efêmero e do eterno na modernidade” (Domingues, 1996DOMINGUES, Ivan. O fio e a trama. Reflexões sobre o tempo e a história. Belo Horizonte, São Paulo: Editora UFMG, Iluminuras, 1996., p. 45).15 15 Algo diferente de Plotino, filósofo grego que primeiro pensou sobre a eternidade e o tempo. Em Plotino, eternidade é indissociável da reflexão sobre o tempo. A eternidade não constitui uma sucessão, um tempo que dura para sempre, pois ela se encontra fora do tempo e o tempo, por sua vez, é a imagem fragmentada da eternidade. Ao contrário de Aristóteles, Plotino recusa a identificação do tempo com o movimento, pois o tempo é subordinado à alma. A eternidade é pensada como uma unidade inextensa e, assim, não pode ser pensada como um fluxo. A unidade inextensa da eternidade não diz respeito a um antes ou depois, pois, fora da sucessão temporal, aparece como um “sempre presente”. “Vendo-se todas essas coisas, vê-se a eternidade, porque se vê uma vida que permanece em identidade por possuir sempre presente sua totalidade, não uma parte e outra depois, mas todas as coisas de uma só vez; e, como não são certas coisas agora e depois outras, mas uma completude indivisível — como um ponto em que todos os raios estivessem juntos sem jamais avançarem até um fluxo, mas que permanece em identidade em si mesmo e que não se transforma, estando sempre no presente porque nada dele passou nem nada de novo surgirá, mas sendo precisamente o que é —, assim, a eternidade é não o substrato, mas aquilo que, por assim dizer, reluz a partir do próprio substrato em conformidade à identidade que ele oferece, não em relação ao que virá a ser, mas ao que já é, assim mesmo como é, e não de outro modo; [...] Resulta, portanto, que a vida ao ente em seu ser, toda a completude plena e inteiramente inextensa, é isso o que procuramos: a eternidade” (Plotino, 2014, p. 62-63). Apesar do distanciamento das reflexões, subsiste a ideia da existência da unidade que, originada em um princípio original, existe em todas as partes, sendo característica da eternidade.

A morfologia para a história pragmática

A ideia de uma unidade complexa ligada à totalidade, que Cysarz denominou de Gestalt é central para o desempenho de um olhar morfológico para a Geisteswissenschaft.

O método morfológico prevalecia como referencial para toda atividade cognitiva que se desenvolvesse mediante sua perspectiva da Geisteswissenschaft. Essa morfologia englobava a experiência dinâmica do tempo que acompanhava toda unidade cosmológica, a dinâmica entre o temporal e o atemporal e a pragmática do conhecimento para a vida humana prática. Cysarz, ao evocar o método morfológico, retoma a questão da relação entre forma e matéria no mundo histórico e qual seu papel para o desempenho de um conhecimento histórico com função pragmática tal como proposto pela sua Geisteswissenschaft. No âmbito do conhecimento histórico, a pragmática se apresentava, sobretudo, diante da consideração da identidade16 16 Entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, termos como povo, alma do povo, caráter do povo, designam o que mais tarde seria conceituado como identidade. Num primeiro momento, o conceito de identidade foi utilizado no âmbito da psicologia individual e posteriormente adotado pelas ciências humanas. Cysarz compartilhou um léxico comum utilizado extensivamente no meio intelectual. Cysarz usou termos como vida e alma acompanhados de povo e comunidade para designar a identidade nacional alemã. de um povo que constituía uma unidade cosmológica. O espírito alemão constituía, para Cysarz, uma Gestalt.

A morfologia apresentada por Cysarz, considerada a existência de um elemento eterno temporalizado no mundo, corresponde à dialética entre “hylé e eidos, Werden e Sein” (Cysarz, 1926, p. 174) em consonância com a categoria de desenvolvimento colocada pelo germanista. Como anteriormente disposto, a categoria do desenvolvimento no mundo histórico diz respeito à união entre o Sein, o ser, aquilo que permanece, e o Werden, aquilo que vem a ser, válido também para o vir a ser do passado. Werden e Sein se manifestam na individualidade histórica. Para Cysarz, a matéria (hylé) é aquilo que é eterno e depende de ser informada por uma ideia (eidos) para se realizar no mundo histórico. Essa manifestação informada da eternidade depende, por sua vez, de um sujeito agente. Trata-se, portanto, de tornar visível a matéria. Cysarz identificou a produção intelectual do século XIX como apartada desta proposição ao optar pela estática do platonismo (p. 162).

Na dinâmica de Cysarz, um dos mecanismos de compreensão da realidade é entendê-la mediante a harmonia entre um “fluxo [Fluß] temporal” e uma “forma espacial” (Cysarz, 1926, p. 161). O conceito de individualidade que compete à Geisteswissenschaft liga-se à dinâmica entre o temporal e o atemporal, Sein e Werden, o que, para Cysarz, apresenta-se na relação dialógica entre a Gestalt que age e vive no mundo histórico e o fluxo temporal que traz consigo o elemento atemporal (p. 167).17 17 Pode-se indagar se o conceito de Gestalt que Cysarz deriva de Wolters não estaria ligado ao “indivíduo genuíno” de Aristóteles. Segundo Röd (1983, p. 201), retomando a Metafísica, o indivíduo genuíno é aquele cuja característica é unir forma e matéria. Contudo, Cysarz não faz referência explícita a esta questão. O que permanece na duração é uma adesão comprometida com a vida e a eternidade. Está conectado às categorias de individualidade e desenvolvimento [Entwicklung] de tudo que é vivo [Seelisch-Lebendig], o tornar-se carne das forças humanas. O desenvolvimento no espaço [räumliche Fortschritt] é sem vida, sem alma, é, por fim, técnico (p. 194).

A produção do conhecimento histórico se comprometia com o povo, uma comunidade, e era, por conseguinte, pragmática (Cysarz, 1926CYSARZ, Herbert. Literaturgeschichte als Geisteswissenschaft. Halle an der Saale: Verlag von Max Niemeyer, 1926., p. 100). Essa comunidade que constituía o povo alemão, o ser coletivo dos alemães [das Gesamtwesen Deutsch], apenas era apreendida se relacionada com a experiência do tempo da Geisteswissenschaft. A constante identitária dos alemães, o elemento que se relacionava com a dialética entre o temporal e o atemporal, não podia ser examinado baseado em “séries causais” ou somente em “nomes abstratos de uma sequência cronológica”. Tratava-se de uma “unidade e totalidade de uma mutualidade viva”, com a qual se entrelaçava toda a história alemã (p. 103). Cysarz alerta que a germanicidade não constituía uma essência autônoma ou uma ideia, pois ela era dependente da experiência (p. 43-44).

Nem toda apresentação de uma individualidade constituía uma visão morfológica da história. O método morfológico de Cysarz objetivava a construção de uma relação orgânica entre a individualidade e a totalidade.18 18 Essa é a crítica que Cysarz dirige a Jakob Grimm, Leopold von Ranke e Karl Lamprecht. Para Cysarz, Grimm e Ranke, apesar das competentes análises históricas e da consideração com o espírito alemão, não atrelaram suas análises a uma organicidade. Lamprecht — que foi protagonista de uma grande discussão metódica no início do século XX — é acusado de aproximar-se demasiadamente das ciências naturais e, logo, do positivismo histórico (Cysarz, 1926, p. 104-106). A relação da individualidade com a comunidade é condicionada à relação temporal entre o temporal e o atemporal, característica da individualidade. Nessa dialética da experiência temporal se desenrola e se constrói a relação intersubjetiva com a comunidade (Cysarz, 1926, p. 107-108).

A individualidade enquanto a expressão da união entre o eterno e o temporal ganha uma função pragmática quando aliada à ideia de um povo. Um dos objetivos pontuados por Cysarz para sua Geisteswissenschaft era criar um sentido de essência [Wesentlichkeitssinn] que se apresentava como elemento fundamental para a coesão de um povo. Um povo se tornava efetivo não mediante a análise zoológica das espécies, mas como um organismo (Cysarz, 1926CYSARZ, Herbert. Literaturgeschichte als Geisteswissenschaft. Halle an der Saale: Verlag von Max Niemeyer, 1926., p. 149). Cysarz interligou seu complexo temporal à fundamentação identitária de um povo. A individualidade não significava a vida de um indivíduo em seu âmbito pessoal, mas “a vida do indivíduo na comunidade e a vida da comunidade no indivíduo” (p. 150).

O que se apreende é que existe para Cysarz uma relação mítica com o passado que pressupõe uma origem comum que demarca este elemento eterno fundante da identidade. Uma vez que toda parte se relaciona com a totalidade, a individualidade seria constituída pelo elemento eterno que também fora parte desta origem comum. Embora Cysarz não esclareça a filiação de suas ideias, sua insistência na sua morfologia leva a crer que esse elemento eterno comportaria uma matéria a ser constantemente informada no mundo histórico, podendo ser compartilhada a cada atividade cognitiva de compreensão de uma individualidade conforme sua Geisteswissenschaft. Esse elemento informado na dinâmica tempo e eternidade mantinha e fundava, desde sua origem, a identidade do povo alemão.

A individualidade desenvolve-se em um mundo histórico determinado, e suas possibilidades de ação ocorrem na cultura, unidade viva que, para Cysarz (1926CYSARZ, Herbert. Literaturgeschichte als Geisteswissenschaft. Halle an der Saale: Verlag von Max Niemeyer, 1926., p. 192), apresentava-se como a unidade fundamental com a qual se encontrava unido o indivíduo. Se a cultura é uma individualidade complexa, ela porta, por consequência, a dinâmica entre o temporal e o atemporal, por isso, ela é marcada por dois polos, o tempo e o espaço. Assim como toda individualidade, a cultura se baseia notadamente na junção entre o ser [Sein] e o vir a ser [Werden] (p. 193). A totalidade de uma cultura funciona como uma espiral cujo centro de influência se estende na duração. No caso alemão, a problemática de sua Geisteswissenschaft estava ligada à cultura alemã que, no seu entender, fora sempre caracterizada pelo envolvimento entre o saber e a influência, entre a ideia e a vitalidade com forte conteúdo idealista (p. 210).

A história produz um conhecimento pragmático para o presente e, não sem sentido, Cysarz fala em efeito [Wirkung] do vivente, entendido aqui diretamente unido à ideia de imortalidade. A única lei para a história era a sua relação com o juízo da identidade [Identitätsurteil]. Contudo, cabia àquele que pesquisava selecionar dentre tudo aquilo que poderia ser vivo para o presente os elementos que teriam realmente efeitos no plano social (Cysarz, 1926CYSARZ, Herbert. Literaturgeschichte als Geisteswissenschaft. Halle an der Saale: Verlag von Max Niemeyer, 1926., p. 188). Os caminhos que conduziriam corretamente esta escolha não são apontados por Cysarz. Todavia, ressalta-se sua inclinação romântica ao afirmar que o intelectual trazia consigo um talento nato, um entusiasmo. Assim, não seria exagero afirmar que a produção de um conhecimento que se guiasse pelos princípios epistemológicos e metódicos de sua Geisteswissenschaft constituía a tarefa de poucos escolhidos.

Considerações finais

Na tarefa de defender uma atitude diante da produção do conhecimento histórico cujo objetivo era estabelecer os princípios epistemológicos para a produção de um conhecimento histórico pragmático, Cysarz não se afastou das correntes historiográficas predominantes ao longo do século XIX. A história, com seu estatuto científico indiscutível, não configurava uma crônica de fatos, mas era produto de uma investigação metódica e controlada. Ademais, a história apresenta-se como um coletivo singular, “há apenas uma história que está em muitas” (Cysarz, 1926CYSARZ, Herbert. Literaturgeschichte als Geisteswissenschaft. Halle an der Saale: Verlag von Max Niemeyer, 1926., p. 187).

É evidente que a morfologia histórica de Cysarz se afastou das correntes comumente denominadas por escolas metódicas - que, de modo geral, foram predominantes como paradigma da ciência histórica até a Primeira Guerra Mundial - e se aproximou de correntes filosóficas guiadas, sobretudo, pelas ideias interconectadas de vida e vivência e pela exaltação da experiência interior que sublinhava a experiência do tempo intenso como fundamental para a compreensão de toda realidade histórica significativa.

Cysarz enfrentou os desdobramentos da chamada crise do historicismo - que se configurou principalmente enquanto uma crise da função pragmática para o conhecimento histórico - a qual se aprofundaria no decorrer do século XX, perturbado por dois conflitos armados mundiais. Para Cysarz, era imprescindível uma história rerum gestarum na qual o conhecimento histórico não se apresentava como uma coleção de descrições de fatos compondo uma crônica, mas como um conhecimento que auxiliava o indivíduo, inserido em sua totalidade, na fundamentação, afirmação e capacidade de crítica de sua identidade individual e coletiva. Essa transformação do conhecimento histórico era possível se ocorresse uma modificação na forma pela qual se apreendia a experiência do tempo.

Herbert Cysarz concentrou-se com afinco para refletir acerca da experiência do tempo. Para o germanista, o tempo “não é uma forma vazia, mas também desenvolvimento, que o vir a ser tem um sentido” (Cysarz, 1926CYSARZ, Herbert. Literaturgeschichte als Geisteswissenschaft. Halle an der Saale: Verlag von Max Niemeyer, 1926., p. 304) e, assim, todo e qualquer ser humano, com sua autonomia crítica e diante de seu mundo histórico, carrega consigo seu fado: “Permanece como nosso destino a necessidade de encontrar sentido” (p. 304). Esse sentido atrela-se à manutenção de uma identidade alemã com forte conteúdo idealista que se realizava na manifestação do elemento eterno nas individualidades históricas.

O conhecimento científico baseado na Geisteswissenschaft travava uma luta de libertação com relação ao positivismo, entendido como a prevalência de leis racionais e como puro realismo. Cysarz defendeu o afastamento de uma apreensão puramente racionalista da realidade que desconsiderasse o âmbito intuitivo do conhecimento. Assim, contrapôs-se ao materialismo, para o qual nenhuma outra realidade existiria para além daquela que se apresentasse no aspecto físico dos fenômenos. A procura por um elemento eterno não desqualificava o estatuto científico do conhecimento proposto por Cyszar. Sua Geisteswissenschaft era, antes de tudo, uma ciência (Cysarz, 1926CYSARZ, Herbert. Literaturgeschichte als Geisteswissenschaft. Halle an der Saale: Verlag von Max Niemeyer, 1926., p. 4).

O conhecimento histórico está atrelado à função pragmática de fundamentar e conservar a identidade nacional mediante a existência de um elemento atemporal no mundo histórico. Trata-se de impedir a ação corrosiva do tempo, buscando um fio atemporal que vencesse o efêmero. Volta-se aqui ao desejo de eternidade como parte do tempo que constitui toda a experiência humana relativa a ele (Domingues, 1996DOMINGUES, Ivan. O fio e a trama. Reflexões sobre o tempo e a história. Belo Horizonte, São Paulo: Editora UFMG, Iluminuras, 1996., p. 19).

A eternidade enquanto constitutiva da espiral do tempo histórico traz consigo a permanência como critério fundamental para compreendê-la. O princípio da permanência é o que garante a estabilidade da identidade social e cultural alemã diante das mudanças significativas. Cysarz escreveu em um tempo, por um lado, vertiginoso e, por outro, desastroso. De um lado, as evoluções técnicas que, principalmente desde a segunda metade do século XIX, impulsionadas pelo processo tecnológico advindo da industrialização - tardia no caso alemão - despertavam a sensação de um mundo onde não se poderia fincar raízes em lugar nenhum. A evolução tecnológica do trem a vapor estreitava as distâncias.

O telefone, apesar de novo e não completamente acessível a todas as camadas sociais, abria um novo caminho para a comunicação. A expansão da iluminação elétrica deu surgimento a novos hábitos, a possibilidade das gravações a partir do fonógrafo e, posteriormente, do gramofone, modificaram as perspectivas no campo das artes. Na última década do século XIX, surgiu uma das invenções mais potentes e atordoantes, que influenciaria o mundo de modo definitivo, principalmente nos anos vindouros diante da ascensão dos regimes totalitários: o cinema.

Por outro lado, Cysarz vivenciou as consequências desastrosas trazidas pela Grande Guerra, na qual serviu também como soldado. Ressalta-se que a Grande Guerra abriu um novo padrão de conflito no qual a matança - e com ela a invenção de novas armas - e o desgaste da população civil eram mecanismos para o alcance da vitória. Observou os resultados do Tratado de Versalhes e a humilhação e completa derrota imposta aos alemães e o crescente revanchismo. O período de Weimar trouxe, além da austera crise econômica, a experiência híbrida da democracia com a qual parcela significativa dos alemães não se identificava. Novos atores sociais apareceram para reivindicar seu papel no plano político, o movimento dos operários, com destaque para o movimento Espartaquista. Cysarz entusiasmou-se com a política do nacional-socialismo e viu com bons olhos a ascensão de Hitler ao poder.

O mundo intelectual não se encontrava à parte diante das transformações. O final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, momento em que Cysarz publicou sua obra, foram notadamente agitados. As ciências humanas se viram diante do desafio de encontrar e justificar, de alguma forma, sua função pragmática frente ao fortalecimento das ciências naturais e a expansão de sua metodologia para as ciências humanas. A filosofia da vida propunha um retorno à experiência interior, e correntes como a fenomenologia ganharam espaço.

Cysarz atravessou um tempo turbulento no qual as reflexões intelectuais não podiam esquivar-se de sua ligação direta com uma função pragmática para a vida humana cotidiana. Para muitos intelectuais, vida e obra convergiam para um único caminho possível.

Referências

  • BERGSON, Henri. Ensaios sobre os dados imediatos da consciência Lisboa: Edições 70, 1988.
  • CYSARZ, Herbert. Literaturgeschichte als Geisteswissenschaft Halle an der Saale: Verlag von Max Niemeyer, 1926.
  • DOMINGUES, Ivan. O fio e a trama. Reflexões sobre o tempo e a história. Belo Horizonte, São Paulo: Editora UFMG, Iluminuras, 1996.
  • GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I. Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica Petrópolis: Editora Vozes, 1997.
  • HUMBOLDT, Wilhelm von. Sobre a tarefa do historiador. In: MARTINS, Estevão C. de Rezende. A história pensada. Teoria e método na historiografia europeia do século XIX São Paulo: Contexto, 2010.
  • SCHMITZ, Victor. Gundolf. Eine Einführung in sein WerkMünchen: Helmut Küpper, 1965.
  • SCHOLTZ, Gunter. Diltheys Geschichtstheorie. In: SCHOLTZ, Gunter (Hg.). Diltheys Werk und die Wissenschaften. Neue Aspekte Göttingen: V&R Unipress, 2013.
  • SILVA, Walkiria Oliveira. Como reconstruir o passado? Ernst Kantorowicz e a escrita da história como literatura nacional. Revista de História da Unisinos, v. 21, p. 216-223, 2017.
  • PLOTINO. Sobre a eternidade e o tempo. In: PUENTE, Fernando Rey; Bacara JÚNIOR, José (Org.). Tratados sobre o tempo. Aristóteles, Plotino e Agostinho Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.
  • RANCIÈRE, Jacques. O conceito de anacronismo e a verdade do historiador. In: SALOMON, Marlon(Org.). História, verdade e tempo Chapecó: Argos, 2011.
  • RÖD, Wolfgang(Hg.). Geschichte der Philosophie. Band II. Die Philosophie der Antike 2 München: C. H. Beck, 1983.
  • RÖD, Wolfgang O caminho da filosofia. Dos primórdios até o século XX. v. 2: Do século XVII ao século XX. Brasília: Editora UnB, 2008.
  • TADDEY, Gerhard(Hg.). Lexicon der Deutschen Geschichte bis 1945 Stuttgart: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1998.
  • WOLTERS, Friedrich. Gestalt. In: GUNDOLF, Friedrich; WOLTERS, Friedrich. Zweiter Jahrbuch für die geistige Bewegung Berlin: Verlag der Blätter für die Künst, 1911.
  • 1
    Agradeço ao Prof. Estevão de Rezende Martins pela leitura prévia.
  • 2
    A história da Silésia é dominada por divisões territoriais e invasões. Por volta do ano 900, a região foi conquistada pelos boêmios e, após 950, por poloneses que a cristianizaram. Sob domínio do imperador Frederico I do Sacro Império Romano Germânico, a Silésia conquistou relativa autonomia política. No século XIII, com a queda da dinastia polonesa dos Piasten, recebeu um contingente populacional da Saxônia e da Turíngia. Depois de 1250, a região se dividiu em inúmeros principados. Foi incorporada novamente à Boêmia, em 1348, durante o reinado de Carlos IV, futuro Kaiser do império. No século XV, a alta Silésia caiu sob domínio polonês. No século XVI, passou ao domínio dos Habsburgos, que levaram a cabo a contrarreforma na região, pois o protestantismo alcançara a Silésia no século XVI. Em 1740, Frederico II ocupou a Silésia, e a Paz de Berlim (1742)estabeleceu que a maior parte do território deveria ficar com a Prússia. No século XIX seguiu a industrialização e fortalecimento polonês. Com o Tratado de Versalhes, o império alemão cedeu parte do território à Tchecoslováquia e parte da fronteira leste à Polônia (Taddey, 1998TADDEY, Gerhard(Hg.). Lexicon der Deutschen Geschichte bis 1945. Stuttgart: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1998., p. 1123-1125)
  • 3
    Todas as traduções do alemão foram realizadas por mim.
  • 4
    O conhecimento da obra de Herbert Cysarz deu-se durante meu estágio de doutoramento no exterior. Ao pesquisar a correspondência do germanista Friedrich Gundolf (1880-1931), cuja obra foi o foco da tese, notei uma troca epistolar significativa entre Gundolf e Cysarz. Gundolf era um dos mais importantes germanistas alemães, principalmente após a publicação de seu Goethe, de 1916. Ao analisar a correspondência, percebi que parte dela era dedicada à obra de Cysarz analisada neste artigo. Era perceptível a relevância intelectual de Cysarz para Gundolf, o que indicava que Cysarz era uma figura importante no cenário acadêmico do período. Em outro artigo, pretendo analisar a troca de correspondências entre Gundolf e Cysarz. Cabe sublinhar, porém não esmiuçar neste artigo, que Cysarz cita Gundolf — e por extensão o poeta Stefan George, de cujo círculo Gundolf foi o mais destacado membro — em vários momentos da sua obra.
  • 5
    Algumas obras de Cysarz valem ser lembradas: Em 1928, publicou Von Schiller zu Nietzsche [De Schiller a Nietzsche] e, em 1934, Schiller. Em 1940, veio a lume uma obra que indica ser uma reflexão do autor sobre o tema da eternidade: Das Unsterbliche. Die Gesetzlichkeiten und das Gesetz der Geschichte [A imortalidade: a legitimidade e a lei da história]. Reflexões sobre o impacto da Primeira Guerra Mundial nas ciências humanas parecem estar presentes em Zur Geistesgeschichte des Weltkriegs. Die dichterischen Wandlungen des deutschen Kriegsbildes 1910-1930 [Sobre a ciência do espírito da guerra. As transformações poéticas das imagens alemãs da guerra 1910-1930?.
  • 6
    Na virada do século XIX para o XX, o campo da germanística foi influenciado por outras áreas de estudo. A escola da filologia histórica fundada por Wilhelm Scherer, que realizou um trabalho de reunião e crítica das fontes, sofreu influxo da psicologia e da filosofia da vida. As obras que eram, de maneira geral, analisadas com apoio na vida dos autores, começaram a ser entendidas mediante outras questões que ultrapassavam as condições históricas materiais. A influência do pensamento de Bergson e Dilthey contribuiu para firmar o consenso de que havia outras circunstâncias espirituais a ser consideradas. Prevaleceu a ideia da existência de um princípio original, Ursprung, para além da condicionalidade histórica e atrelada a uma origem espiritual (Schmitz, 1965SCHMITZ, Victor. Gundolf. Eine Einführung in sein WerkMünchen: Helmut Küpper, 1965., p. 24-25).
  • 7
    1916 é o ano da publicação de Goethe por Gundolf, como já mencionado. Sua obra, desde a publicação de sua tese de doutorado, Shakespeare und der deutsche Geist [Shakespeare e o espírito alemão], em 1912, marca uma virada metodológica nos estudos em história da literatura alemã. Cysarz não aponta a obra de Gundolf como um marco fundador, no entanto, é notável a referência ao ano de 1916 especificamente. 1916 é também o ano da batalha de Verdun, definitiva para as transformações dos padrões de guerra. Pode-se dizer que tal acontecimento influenciou as reflexões acerca das funções do conhecimento para a vida, reforçando-as.
  • 8
    A filosofia da vida de Bergson não foi discutida largamente entre os historiadores alemães, que, por sua vez, não estavam completamente distanciados das propostas filosóficas que tinham a vida como referência. É viável lembrar que as primeiras décadas do século XX são marcadas pela fenomenologia de Edmund Husserl e, posteriormente, Martin Heidegger publicaria, em 1927, uma das obras fundamentais da filosofia ocidental contemporânea, Ser e tempo. Não menos importante, é o surgimento da psicanálise freudiana e sua ênfase no inconsciente e no reprimido. De toda forma, a filosofia de Bergson figura como uma referência significativa para alguns germanistas, como o próprio Cysarz e Friedrich Gundolf. Outros intelectuais que estiveram ligados ao Círculo de Stefan George se apoiaram na filosofia bergsoniana em seus artigos e livros. É o caso, por exemplo, de dois historiadores, Friedrich Wolters e Ernst Bertram.
  • 9
    O termo utilizado por Cysarz, Zeitraum, tempo espacializado, pode levar a um mal-entendido com relação à obra de Bergson. Cysarz não esclarece se, ao contrário do filósofo francês, considerou de forma positiva o espaço. Contudo, é o que sua obra deixa transparecer. Cysarz segue Bergson ao entender o espaço como um agregado de dados, acumulação e, como Bergson, considera o espaço como fundamental à análise científica (Cysarz, 1926, p. 75).
  • 10
    Faço clara alusão à obra de Ivan Domingues, O fio e a trama (1996).
  • 11
    Em 1930, o historiador Ernst Kantorowicz proferiu uma conferência no Historikertag na Universidade de Halle sobre os limites e possibilidades da apresentação da história medieval. Para Kantorowicz, o conhecimento histórico dependia de regras metódicas atemporais. Contudo, a historiografia fazia parte da literatura nacional e ao dar sentido ao passado garantia a função pragmática da história para a vida (Silva, 2017SILVA, Walkiria Oliveira. Como reconstruir o passado? Ernst Kantorowicz e a escrita da história como literatura nacional. Revista de História da Unisinos, v. 21, p. 216-223, 2017.).
  • 12
    Cysarz (1926, p. 115) cita o trabalho do historiador Friedrich Wolters como base para o seu conceito de Gestalt. No segundo Jahrbuch für die geistige Bewegung [Anuário para o movimento espiritual], publicação oficial do Círculo de Stefan George, Wolters escreveu um artigo, Gestalt. A Gestalt de Wolters, em oposição ao racionalismo, trata a individualidade como a instância portadora da força eterna em comunhão com a comunidade, e junção entre corpo e espírito, cuja separação seria característica da modernidade. A individualidade não deixa de pertencer ao mundo histórico, pois é a experiência do divino no mundo. A Gestalt manifesta a síntese entre o limitado e o infinito. É uma síntese entre o temporal e o eterno, e mediante sua análise intersubjetiva era possível detectar as forças nela manifestas e trazê-las para a experiência do presente e de suas respectivas necessidades históricas (Wolters, 1911WOLTERS, Friedrich. Gestalt. In: GUNDOLF, Friedrich; WOLTERS, Friedrich. Zweiter Jahrbuch für die geistige Bewegung. Berlin: Verlag der Blätter für die Künst, 1911., p. 145-148).
  • 13
    O atomismo trata de uma análise extensiva, no espaço, e não intensiva, na duração (Cysarz, 1926, p. 112). Cysarz elenca uma série de autores cujas análises de caráter individualista e coletivista se opunham ao atomismo: os neokantianos, Heinrich Rickert e Max Weber. O teólogo Ernst Troeltsch; os historiadores Friedrich Wolters (1876-1930) e Oswald Spengler (1880-1936) e o sociólogo Ferdinand Tönnies. Para Cysarz, a importância de Weber e Troeltsch reside nos seus estudos sobre o protestantismo em conexão com o seu próprio presente, superando uma análise morta do passado. Cysarz detém-se um pouco mais em Tönnies e Spengler. Gemeinschaft und Gesellschaft, clássica obra de Tönnies, publicada em 1887, opera uma distinção sociológica entre a comunidade e a sociedade que Cysarz interpreta a partir da filosofia de Bergson. A sociedade constitui um conglomerado espacial e a comunidade possui um destino comum e uma ligação orgânica entre o indivíduo e o coletivo (Cysarz, 1926, p.117).
  • 14
    Domingues faz uma observação semelhante com relação à imputação causal. “Afirmando a identidade de termos heterogêneos e não podendo eliminar a multiplicidade dos termos que ela trata de pôr em relação à causalidade somente poderá estabelecer os nexos entre os termos antecedentes e os termos consequentes se, ao se referir à sucessão dos fenômenos (acontecimentos) no tempo, se pôr de alguma forma fora do tempo e se pôr num plano real que transcenda o tempo e a ordem dos fenômenos enquanto tal: a eternidade” (Domingues, 1996, p. 74)
  • 15
    Algo diferente de Plotino, filósofo grego que primeiro pensou sobre a eternidade e o tempo. Em Plotino, eternidade é indissociável da reflexão sobre o tempo. A eternidade não constitui uma sucessão, um tempo que dura para sempre, pois ela se encontra fora do tempo e o tempo, por sua vez, é a imagem fragmentada da eternidade. Ao contrário de Aristóteles, Plotino recusa a identificação do tempo com o movimento, pois o tempo é subordinado à alma. A eternidade é pensada como uma unidade inextensa e, assim, não pode ser pensada como um fluxo. A unidade inextensa da eternidade não diz respeito a um antes ou depois, pois, fora da sucessão temporal, aparece como um “sempre presente”. “Vendo-se todas essas coisas, vê-se a eternidade, porque se vê uma vida que permanece em identidade por possuir sempre presente sua totalidade, não uma parte e outra depois, mas todas as coisas de uma só vez; e, como não são certas coisas agora e depois outras, mas uma completude indivisível — como um ponto em que todos os raios estivessem juntos sem jamais avançarem até um fluxo, mas que permanece em identidade em si mesmo e que não se transforma, estando sempre no presente porque nada dele passou nem nada de novo surgirá, mas sendo precisamente o que é —, assim, a eternidade é não o substrato, mas aquilo que, por assim dizer, reluz a partir do próprio substrato em conformidade à identidade que ele oferece, não em relação ao que virá a ser, mas ao que já é, assim mesmo como é, e não de outro modo; [...] Resulta, portanto, que a vida ao ente em seu ser, toda a completude plena e inteiramente inextensa, é isso o que procuramos: a eternidade” (Plotino, 2014PLOTINO. Sobre a eternidade e o tempo. In: PUENTE, Fernando Rey; Bacara JÚNIOR, José (Org.). Tratados sobre o tempo. Aristóteles, Plotino e Agostinho. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014., p. 62-63). Apesar do distanciamento das reflexões, subsiste a ideia da existência da unidade que, originada em um princípio original, existe em todas as partes, sendo característica da eternidade.
  • 16
    Entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, termos como povo, alma do povo, caráter do povo, designam o que mais tarde seria conceituado como identidade. Num primeiro momento, o conceito de identidade foi utilizado no âmbito da psicologia individual e posteriormente adotado pelas ciências humanas. Cysarz compartilhou um léxico comum utilizado extensivamente no meio intelectual. Cysarz usou termos como vida e alma acompanhados de povo e comunidade para designar a identidade nacional alemã.
  • 17
    Pode-se indagar se o conceito de Gestalt que Cysarz deriva de Wolters não estaria ligado ao “indivíduo genuíno” de Aristóteles. Segundo Röd (1983RÖD, Wolfgang(Hg.). Geschichte der Philosophie. Band II. Die Philosophie der Antike 2. München: C. H. Beck, 1983., p. 201), retomando a Metafísica, o indivíduo genuíno é aquele cuja característica é unir forma e matéria. Contudo, Cysarz não faz referência explícita a esta questão.
  • 18
    Essa é a crítica que Cysarz dirige a Jakob Grimm, Leopold von Ranke e Karl Lamprecht. Para Cysarz, Grimm e Ranke, apesar das competentes análises históricas e da consideração com o espírito alemão, não atrelaram suas análises a uma organicidade. Lamprecht — que foi protagonista de uma grande discussão metódica no início do século XX — é acusado de aproximar-se demasiadamente das ciências naturais e, logo, do positivismo histórico (Cysarz, 1926, p. 104-106).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    06 Mar 2019
  • Aceito
    10 Jun 2019
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