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Resistência, sobrevivência e associativismo: reinventando a vida nos territórios de escravidão moderna (séculos XVIII-XX)

Resistance, survival, and associativism: reinventing life in the territories of modern slavery (18th-20th centuries)

Resumo:

Este dossiê apresenta resultados inéditos de uma agenda de investigação que problematiza a dinâmica das relações sociais, no Brasil, discutindo como as populações escravizadas e libertas montaram estratégias de sobrevivência e de reinvenção em territórios demarcados pela escravidão moderna por meio do associativismo. Os artigos se espraiam entre os séculos XVIII e XX, abrangem diversas regiões brasileiras e ampliam as percepções de como negras e negros moldaram o país a partir de tensionamentos, conflitos e negociações alterando as configurações sociais, culturais, educacionais, científicas, dentre outros campos das relações humanas.

Palavras-chave:
Escravidão moderna; Associativismo; Resistência

Abstract:

This dossier brings to the public new results of a research agenda that problematizes the dynamics of the social relations in Brazil, discussing how the enslaved and freed populations developed strategies of survival and reinvention through associativism in territories marked by modern slavery. The articles cover a period extending from the eighteenth to the twentieth centuries, approach different Brazilian regions, and expand how the perceptions of black women and men have shaped the country through tensions, conflicts, negotiations, changing social, cultural, educational, and scientific configurations, among other fields of human relations.

Keywords:
Modern slavery; Associativism; Resistance

Ao longo das últimas décadas, os programas de pós-graduação e os centros/grupos de investigação em ciências sociais ampliaram as pesquisas relacionadas à escravidão moderna, rompendo com as interpretações essencialistas e problematizando os arranjos locais e as experiências históricas das populações escravizadas e libertas em espaços de escravidão atlântica, inclusive no Brasil, o maior país escravista das Américas, quiçá do mundo moderno. Esses trabalhos revelam a intensa troca de experiências, saberes, estratégias e sensibilidades que alteraram a forma de compreensão das relações sociais no âmbito da experiência escravista (Gomes et al., 2016GOMES, Flavio dos Santos et al. (Orgs.). Da escravidão e da liberdade: processos, biografias e experiências da Abolição em perspectiva transnacional. Cruz das Almas: Ed. UFRB; Belo Horizonte: Fino Traço, 2016.; Reis, Gomes e Carvalho, 2010REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos; CARVALHO, Marcus J. M. (Orgs.). O alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico Negro, c.1822-c.1853. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.; Albuquerque, 2009ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.; Xavier, Farias, Gomes, 2012XAVIER, Giovana; FARIAS, Juliana Barreto; GOMES, Flávio dos Santos(Orgs.). Mulheres negras no Brasil escravista e do pós-emancipação. São Paulo: Selo Negro, 2012.; Cottias e Mattos, 2016COTTIAS, Myriam; MATTOS, Hebe (Orgs.). Escravidão e subjetividade no Atlântico luso-brasileiro e francês (séculos XVII-XX). Tradução de Patrícia Rodrigues Costa. Marseille: Open Edition Press, 2016.).

Além dos autores acima citados, tal giro epistemológico também é perceptível nos trabalhos que tratam sobre família escrava (Slenes, 1999SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava, Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.), liberdades e resistências (Reis e Silva, 1989REIS, João José; SILVA, Eduardo (Orgs.). Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.; Barcia, 2008BARCIA, Manuel. Seeds of insurrection: domination and resistance on Western Cuban Plantations, 1808-1848. Baton Rouge: Louisiana State University Press, 2008.; Scott e Hébrard, 2012SCOTT, Rebecca J.; HÉBRARD, Jean M. (Orgs.). Freedom papers: an Atlantic odyssey in the age of emancipation. Cambridge: Harvard University Press, 2012.); cultivo e propriedades agrícolas (Schwartz, 2001SCHWARTZ, Stuart B. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: Edusp, 2001.); comércio (Reis, Gomes e Carvalho, 2010SCHWARTZ, Stuart B. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: Edusp, 2001.); saúde dos escravos (Pimenta e Gomes, 2016PIMENTA, Tânia Salgado; GOMES, Flávio dos Santos (Orgs.). Escravidão, doenças e práticas de cura no Brasil. Rio de Janeiro: Outras Letras, 2016.) e, recentemente, organização de irmandades e associação de caráter profissional, político, assistencial e pedagógico (Cord, 2012CORD, Marcelo Mac. Artífices da cidadania: mutualismo, educação e trabalho no Recife oitocentista. Campinas: Fapesp/Editora da Unicamp, 2012.; Barreto e Cerqueira, 2019BARRETO, Maria Renilda; CERQUEIRA, João Batista. Assistência à saúde no interior da Bahia oitocentista: a Irmandade da Santa Misericórdia de Nazaré. In: BARRETO, Maria Renilda; SANGLARD, Gisele; FERREIRA, Luiz Otávio(Orgs.). A interiorização da Assistência: um estudo sobre a expansão e a diversificação da assistência à saúde no Brasil (1850-1945). Belo Horizonte: Fino Traço, 2019, v. 1, p. 205-232.). Nesses e em outros trabalhos os/as escravizados/as, livres e libertos passaram a ser compreendidos/as como agentes sociais transformadores, a despeito das duras e assimétricas condições do cativeiro. Tais análises manejam as tensões, plasticidades e solidariedades das identidades étnicas, dentre outras.

Com o propósito de ampliar reflexões que problematizam a complexidade das relações sociais este dossiê reúne quatro artigos inéditos, no âmbito de uma agenda de investigação que discute como as populações escravizadas e libertas montaram estratégias de sobrevivência e de reinvenção em territórios demarcados pela escravidão negra no Brasil, com destaque especial para os modos de associativismo entre escravizados e libertos. Os artigos concentram-se em três regiões, a saber, Rio Grande do Sul, Bahia e Rio de Janeiro, e cobrem um período que se estende desde fins do século XVIII a princípios do século XX.

O primeiro artigo, “Cativeiro e compadrio em um porto atlântico (Rio Grande, 1780-1850)”, por Marcelo Santos Matheus, examina como o compadrio foi uma das formas de associação que os africanos e seus descendentes encontraram para dar significado às suas vidas e sobreviver à experiência do cativeiro, manejando possibilidades de obter proteção e, quiçá, a liberdade. O autor se valeu de fontes seriadas - 3.700 atestados de batismo - para defender que o compadrio foi uma estratégia de rearticulação diaspórica em zona de cativeiro, seja dentro ou fora do mesmo grupo étnico.

O segundo artigo, “Pedro, escravo, ‘mandado pelo Altíssimo para absolver os pecados’: autonomia escrava, mestiçagem e insurgência na Bahia, c.1790 a c.1830”, por Alex Andrade da Costa, muda a área geográfica de análise para a Bahia, particularmente para as comarcas de Ilhéus e Valença, durante o pico do comércio de escravos. O estudo de caso centra-se em um escravizado fugitivo, autoidentificado com o papa, capaz de reunir uma pequena multidão, na igreja matriz da vila de Barra do Rio de Contas, para oferecer cura. Embora lido como mais uma insurgência e rebeldia de grupos oprimidos pela escravidão e pobreza na Bahia, o artigo nos permite enxergar uma atitude de apropriação simbólica subversora da ordem colonial, senhorial e religiosa. Tal percepção nos remete à perspectiva interpretativa de Paul Gilroy (1993GILROY, Paul. The Black Atlantic: modernity and double consciousness. London: Verso, 1993.), onde as trocas transnacionais e transculturais fizeram surgir culturas planetárias híbridas e heterogêneas, as quais constituem um desafio interpretativo para o historiador que precisa pensar fora do desenho colonial eurocêntrico.

O artigo seguinte, de autoria de Melina Perussatto, nos conduz a Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, e apresenta Esperidião Calisto, homem negro, letrado, que fez uso da imprensa negra como estratégia de organização e de intervenção sociais. O grupo ao qual pertencia Calisto possuía uma expectativa geracional ao depositar nas crianças e jovens a possibilidade de mudanças a partir da instrução e da aquisição de habilidades intelectuais (ler, escrever e contar). A autora, ao problematizar o processo de racialização da instrução pública provincial desde sua primeira legislação em 1837, identificar sujeitos, interesses e sentidos em disputa, evidencia o protagonismo das/os negras/os. Essas/es, apesar das interdições racializadas, frequentaram escolas, criaram núcleos instrutivos e foram autodidatas.

Enfim, o último artigo, escrito por Jeanine R. Claper e Gisele Sanglard, enfrenta a discussão racial na interface da assistência à saúde e da medicina no Rio de Janeiro, na transição da escravidão para o pós-abolição. Elas ressaltam uma emergente agenda de pesquisa. Primeiramente, caracterizam a assistência aos pobres na então capital nacional, especialmente aos considerados alienados. Em seguida, examinam o discurso médico dominante da época e sua influência nas diretrizes da Assistência aos Alienados, especialmente com relação à questão racial. Por fim, analisam como esse discurso era colocado em prática, particularmente no Hospício Nacional dos Alienados. De toda maneira, o artigo demonstra como hospitais, doentes, médicos e medicina enfrentaram raça, racismo e cidadania na virada do século XIX para o XX.

Desejamos que este dossiê amplie as percepções de como negras e negros moldaram o Brasil a partir de tensionamentos, conflitos e negociações, alterando as configurações sociais, culturais, científicas, artísticas, filosóficas, linguísticas, educacionais, territoriais, jurídicas, dentre outros campos das relações humanas.

Boa leitura!

Referências

  • ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
  • BARCIA, Manuel. Seeds of insurrection: domination and resistance on Western Cuban Plantations, 1808-1848 Baton Rouge: Louisiana State University Press, 2008.
  • BARRETO, Maria Renilda; CERQUEIRA, João Batista. Assistência à saúde no interior da Bahia oitocentista: a Irmandade da Santa Misericórdia de Nazaré. In: BARRETO, Maria Renilda; SANGLARD, Gisele; FERREIRA, Luiz Otávio(Orgs.). A interiorização da Assistência: um estudo sobre a expansão e a diversificação da assistência à saúde no Brasil (1850-1945) Belo Horizonte: Fino Traço, 2019, v. 1, p. 205-232.
  • CORD, Marcelo Mac. Artífices da cidadania: mutualismo, educação e trabalho no Recife oitocentista Campinas: Fapesp/Editora da Unicamp, 2012.
  • COTTIAS, Myriam; MATTOS, Hebe (Orgs.). Escravidão e subjetividade no Atlântico luso-brasileiro e francês (séculos XVII-XX) Tradução de Patrícia Rodrigues Costa. Marseille: Open Edition Press, 2016.
  • GILROY, Paul. The Black Atlantic: modernity and double consciousness London: Verso, 1993.
  • GOMES, Flavio dos Santos et al. (Orgs.). Da escravidão e da liberdade: processos, biografias e experiências da Abolição em perspectiva transnacional Cruz das Almas: Ed. UFRB; Belo Horizonte: Fino Traço, 2016.
  • PIMENTA, Tânia Salgado; GOMES, Flávio dos Santos (Orgs.). Escravidão, doenças e práticas de cura no Brasil Rio de Janeiro: Outras Letras, 2016.
  • REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos; CARVALHO, Marcus J. M. (Orgs.). O alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico Negro, c.1822-c.1853 São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
  • REIS, João José; SILVA, Eduardo (Orgs.). Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
  • SCHWARTZ, Stuart B. Escravos, roceiros e rebeldes Bauru: Edusp, 2001.
  • SCOTT, Rebecca J.; HÉBRARD, Jean M. (Orgs.). Freedom papers: an Atlantic odyssey in the age of emancipation Cambridge: Harvard University Press, 2012.
  • SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava, Brasil Sudeste, século XIX Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
  • XAVIER, Giovana; FARIAS, Juliana Barreto; GOMES, Flávio dos Santos(Orgs.). Mulheres negras no Brasil escravista e do pós-emancipação São Paulo: Selo Negro, 2012.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    17 Jun 2021
  • Aceito
    28 Jun 2021
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