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“O latifúndio é o Diabo”: apontamentos sobre a inusitada trajetória de Saluzinho

“Unproductive large states are the devil”: analysis of the unusual trajectory of Saluzinho

Resumo:

O objetivo deste trabalho é investigar a trajetória de Salustiano Gomes Ferreira (Saluzinho), dando especial atenção para o conflito mais marcante em que esteve envolvido, em Varzelândia (MG), no final da década de 1960. Buscamos compreender as suas próprias interpretações sobre o caso, as imagens veiculadas pela imprensa da época e as perspectivas de alguns atores envolvidos. Nesse sentido, discutimos as relações entre esse trabalhador, outros posseiros da região, seus adversários e movimentos sociais no campo, procurando compreender suas noções de direitos e sua perspectiva sobre o pensamento comunista. Dessa forma, acreditamos ser possível lançar alguma luz sobre as especificidades desse indivíduo, assim como sobre o significado de sua trajetória para um entendimento mais amplo.

Palavras-chave:
Saluzinho; Posseiros; Minas Gerais

Abstract:

The goal of this article is to investigate the trajectory of Salustiano Gomes Ferreira (Saluzinho), especially a remarkable conflict he has been involved in Varzelândia (MG) by the end of the 1960s. We tried to understand his own interpretations concerning such case, the images conveyed by the press, and the perspectives of some of the actors enmeshed in that quarrel. Furthermore we discuss the relationships established between that worker, other land possessors from that region, his adversaries, and rural social movements, with the aim to assess his notions of customary and written law and his views on communism. By doing so we intend to shed some light on those individual’s features as well as on the meaning of his trajectory in order to get a broader understanding.

Keywords:
Saluzinho; Land possessors; State of Minas Gerais

Não é descabido supor que uma família de posseiros,1 1 O termo posseiro aqui empregado refere-se ao trabalhador rural que ocupa pequena porção de terras devolutas para morar e trabalhar com sua família, geralmente sem documento oficial. A condição de posseiro é legitimada pelo trabalho na terra, que ocupa por longo período, muitas vezes gerações, praticando principalmente agricultura de subsistência e estabelecendo relações de solidariedade com os outros posseiros da região. Esses trabalhadores têm grande dificuldade para legalizar suas posses e, assim, são vulneráveis ao avanço de grandes empreendimentos capitalistas. Esse avanço, em muitos casos, é concretizado através da expulsão de suas terras a mando de grileiros, que dispõem de maior poder econômico, político e militar (Martins, 1984; Motta, 2005; Espindola, 2010). que viveu e trabalhou no campo brasileiro entre as décadas de 1940 e 1970, tivesse certa dificuldade para entender quais eram seus direitos e como se relacionar com o poder público. Os sinais que vinham dos “de cima” eram confusos e, muitas vezes, contraditórios, especialmente sobre o direito à terra.

Até meados do século XX, prevaleceu a iniciativa estatal voltada para a ocupação de regiões desabitadas ou habitadas por povos indígenas. Foram abertas estradas e concedidas isenções fiscais para aqueles que se dispusessem a “abrir a mata”, enfrentar os índios, viver e produzir em terras devolutas. O direito à terra desses trabalhadores, além de indicado por essas políticas, muitas vezes foi atestado também por documentos de posse emitidos pelo Estado e entregues aos posseiros. Assim, essas pessoas migraram para várias regiões, vivendo e trabalhando nessas terras por décadas, formando famílias, comunidades e enfrentando inúmeras adversidades.

No entanto, novas forças passaram a impulsionar a vida no campo para outros rumos, transformando drasticamente essas relações. Na segunda metade do século XX, passaram a prevalecer ações modernizadoras para o campo, numa estreita aliança entre poder público, fazendeiros e grandes empresas, grupos que trataram os posseiros como obstáculo para seus interesses políticos e econômicos. A terra sofreu uma intensa valorização monetária, os casos de grilagem2 2 Grilagem de terras é o uso de documentos falsos para tomar posse de terras devolutas (do Estado, sem posse privada). O termo grilagem originou-se da prática de dar aparência de antigo para documentos falsos, ao colocá-los em contato com substâncias provenientes das fezes de grilos, que os deixam amarelados. se multiplicaram e ocorreu grande concentração fundiária. O mesmo poder público que, algum tempo antes, incentivara o povoamento, assegurando aos posseiros o direito à terra, nesse momento passou a permitir e impulsionar a expulsão desses trabalhadores. Muitos foram assassinados, outros integrados às fazendas como assalariados ou expelidos para os centros urbanos, tendo suas condições de vida e trabalho fortemente degradadas. Por outro lado, em convergência com o processo político nacional, que prometia maior participação política das massas e reforma agrária, parte dos trabalhadores rurais expulsos trilhou o caminho da resistência, organização e enfrentamento, muitas vezes reunidos em ligas, associações e sindicatos, entidades que se expandiram nesse momento em várias regiões do Brasil (Martins, 1981MARTINS,José de Sousa.Os camponeses e a política do Brasil.Petrópolis:Vozes,1981.;Medeiros, 1989MEDEIROS,Leonilde Sérvolo de.História dos movimentos sociais no campo.Rio de Janeiro:Fase,1989.,2003MEDEIROS,Leonilde Sérvolo de.Reforma agrária no Brasil: história e atualidade da luta pela terra.São Paulo:Fundação Perseu Abramo,2003.,2007MEDEIROS,Leonilde Sérvolo de.Luta por terra e organização dos trabalhadores rurais: a esquerda no campo nos anos 50-60. In:MORAES,João Q.;DEL ROIO,Marcos.História do marxismo no Brasil , v.4.Campinas:Editora da Unicamp,2007, p.229-270.).

Em Minas Gerais, essas mobilizações foram intensificadas no final da década de 1950 e início da década de 1960, com forte participação do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e de alguns segmentos da Igreja católica (Borges, 2004BORGES,Maria Eliza Linhares.Representação do universo rural e luta pela reforma agrária no leste de Minas Gerais.Revista Brasileira de História (São Paulo). v.24, n.47, p.303-326,2004.). A realização em 1961 do I Congresso de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas em Belo Horizonte3 3 Esse encontro contou com a presença de cerca de 5 mil pessoas, dentre elas Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas, Magalhães Pinto, governador de Minas Gerais, e João Goulart, presidente do Brasil. é um marco desse processo, no qual a sindicalização no campo e a luta pela reforma agrária ganharam destaque, trazendo otimismo para as forças populares, assim como temor aos fazendeiros e defensores do status quo. Nesse momento, se intensificaram as ações políticas, ideológicas e militares de várias facções da classe dominante contra os trabalhadores rurais (Starling, 1986STARLING,Heloisa M.Os senhores das Gerais: os novos inconfidentes e o Golpe de 1964.Petrópolis:Vozes ,1986.).

Com o Golpe de 1964 os efeitos da repressão se tornaram devastadores para os movimentos de trabalhadores rurais e a concentração fundiária decorrente dessa violência no campo atingiu um novo patamar. As forças dominantes passaram a ter maior controle sobre o aparato do Estado, podendo intensificar suas ações quase que de forma irrestrita, expulsando os trabalhadores das terras num ritmo ainda mais intenso, agressivo e arbitrário. Os movimentos de trabalhadores, especialmente suas lideranças, foram duramente perseguidos, muitos deles sendo presos e assassinados. Tornou-se comum que fazendeiros recrutassem milícias, formadas por jagunços e policiais, para expulsar posseiros das terras em que viviam por décadas, usando o pretexto de “caçar” comunistas, mesmo quando esses trabalhadores claramente não tinham qualquer relação com movimentos e organizações políticas.Mesmo sem respaldo organizacional e isolados, alguns desses posseiros tentaram resistir a esses processos de expulsão, de diferentes formas, realizando enfrentamentos cujo conhecimento ainda é um desafio para os historiadores.

Foi nesse momento de intensa violência que uma situação aparentemente banal tomou rumos imprevistos e de grande repercussão, chegando às páginas de jornais de grande circulação em várias regiões do país. A figura central desse caso foi Salustiano Gomes Ferreira, conhecido como Saluzinho, um posseiro do interior de Minas Gerais de quem poucos tinham notícia até então, mas cuja valentia se tornou largamente conhecida a partir de seu mais notório embate. Saluzinho nasceu no ano de 1917 na região de Serra Azul (ou Serra do Gato) em Varzelândia, Norte de Minas Gerais, onde viveu até os 16 anos. Nesse momento, migrou para o Paraná em busca de terras férteis, tendo lá vivido por 19 anos. No início da década de 1960 Saluzinho retornou para viver e trabalhar nas terras da família, em meio ao intenso processo de expulsão de posseiros na região (Campos, 2014CAMPOS,Leonardo Álvares da Silva.Saluzinho: luta e martírio de um bravo.Belo Horizonte:Editora D’Plácido,2014.).

Lá restabelecido há alguns anos, Saluzinho foi surpreendido no dia 17 de novembro de 1967, quando pistoleiros e policiais militares (sem farda), a mando do jornalista e fazendeiro Oswaldo Antunes, chegaram à sua casa no intuito de expulsá-lo de suas terras. Para a surpresa do grupo, o posseiro resistiu e alvejou João Gonçalves Ruas (funcionário do fazendeiro) e o policial militar Luiz Barral.

Figura 1:
Microrregiões e municípios de Minas Gerais em 1972, com destaque em vermelho para o município de Varzelândia

O grupo recuou e, ciente de que certamente retornariam, o posseiro refugiou-se numa gruta nas proximidades, levando água, uma garrucha e um revólver 38 que havia sido derrubado pelos agressores. Não demorou muito para que um grande número de policiais, agora fardados e fortemente armados, chegasse ao local e realizasse uma busca intensa. Vários posseiros das imediações foram presos, agredidos e torturados, inclusive a mulher e os filhos de Saluzinho, para que indicassem a sua localização.4 4 Vários relatos apontam que a esposa de Saluzinho, Dulce Gonçalves Pereira (ou Dúlcia Gonçalves de Araújo), foi torturada nessa ocasião e faleceu pouco tempo depois, talvez em decorrência dessas violências. Ver o Relatório da Comissão da Verdade em Minas Gerais - Covemg (Minas Gerais, 2017), onde são descritas as violações sofridas por esses posseiros da região, assim como por outros sujeitos que atuaram nesse processo. Quando finalmente o encontraram na gruta e tentaram novamente alvejá-lo, o posseiro revidou atingindo outro policial (Moreira, 2010MOREIRA,Hugo Fonseca.“Se for para morrer de fome, eu prefiro morrer de tiro”: o Norte de Minas e a formação de lideranças rurais.Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade),Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.Rio de Janeiro,2010.).

Nesse momento, a resistência e valentia de Saluzinho já começavam a chamar atenção, pois o posseiro enfrentava sozinho todo um destacamento policial trazido da cidade de Montes Claros, grupo que se valeu de fogo pesado e várias estratégias para vencê-lo. Após várias tentativas frustradas de alvejá-lo, os policiais tentaram incendiar a gruta com o uso de gasolina e, sem sucesso, buscaram provocar um desmoronamento com dinamite. Saluzinho ficou praticamente surdo, mas surpreendentemente resistiu e sobreviveu àquelas investidas. Em seguida, foi enviado um comando especial do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), com cerca de quarenta homens, e um lançador de bombas de gás, que foi utilizado várias vezes contra o posseiro. Saluzinho não se entregou e continuou atirando nos policiais que tentavam entrar na gruta.

Sua resistência por tanto tempo e diante de um aparato policial desse porte chamou atenção da imprensa regional e nacional, que passou a cobrir o conflito. Diante dessa visibilidade, os policiais não podiam mais simplesmente executar Saluzinho sem qualquer constrangimento frente à opinião pública, sendo obrigados a uma negociação para que ele se entregasse. Depois de cinco dias na gruta, já sem água e fraco, Saluzinho se entregou.

Depois disso Saluzinho passou por várias prisões, inclusive permaneceu como preso político por longo tempo no Dops, em Belo Horizonte, onde fez contato com militantes de esquerda, como discutiremos mais à frente. Foi solto e preso outras tantas vezes, com base em diversas alegações, tendo grande dificuldade para retomar uma vida normal depois do ocorrido. Amado e odiado, exaltado e perseguido, esse posseiro não retomou suas terras, tendo que migrar continuamente para outras regiões em busca de moradia e trabalho. Saluzinho faleceu em 1990, sofrendo fortes privações materiais.

Ao olharmos uma trajetória como a de Saluzinho, cujas especificidades são tão marcantes, não podemos esquecer os processos e relações mais amplas que, em grande medida, nos permitem compreender as lógicas das ações de indivíduos e grupos em cada campo (Bourdieu, 2002BOURDIEU,Pierre.A ilusão biográfica. In:AMADO,Janaína;FERREIRA,Marieta de Moraes (orgs.).Usos e abusos da história oral.Rio de Janeiro:Fundação Getulio Vargas,2002, p.183-191.). Por outro lado, existe também o risco de olharmos a trajetória individual como exemplo ou expressão do social, enquadrando e limitando a percepção das especificidades em modelos rígidos estabelecidos previamente. Muitas vezes também, ao partir da projeção de certos modelos de racionalidade e linearidade para os indivíduos, acabamos por perder a oportunidade de ver as incertezas, as incoerências, a instabilidade e a inércia nas suas ações (Levi, 2002LEVI,Giovanni.Usos da biografia. In:AMADO,Janaína;FERREIRA,Marieta de Moraes(orgs.).Usos e abusos da história oral.Rio de Janeiro:Fundação GetulioVargas,2002, p.167-182.).

Acreditamos que foi com base nessas preocupações que se estabeleceram alguns conceitos e procedimentos da micro-história, especialmente a redução da escala de observação, a investigação indutiva e a análise densa das fontes, estratégias que, ao olhar o vivido ao rés do chão, podem esclarecer as especificidades do objeto, assim como seu valor para a compreensão de processos mais amplos (Revel, 1998REVEL,Jacques.Jogos de escalas: a experiência da microanálise.Rio de Janeiro:Fundação Getulio Vargas ,1998., 2000, 2010). Dessa forma, é possível compreender melhoras estratégias dos atores sociais diante de seu universo de possibilidades, na tensão entre as determinações sociais e a margem de liberdade/racionalidade dos sujeitos em cada processo concreto e específico (Levi, 1992LEVI,Giovanni.Sobre a micro-história. In:BURKE,Peter (org.).A escrita da história: novas perspectivas.São Paulo:Editora Unesp,1992.,2002LEVI,Giovanni.Usos da biografia. In:AMADO,Janaína;FERREIRA,Marieta de Moraes(orgs.).Usos e abusos da história oral.Rio de Janeiro:Fundação GetulioVargas,2002, p.167-182.).5 5 Levi (1992) considera que a micro-história vai além da descrição densa de significados (Geertz, 1978) ao buscar compreender também as diferentes racionalidades e seus limites em cada contexto, as estratégias e conflitos presentes na vida social e as relações de poder que influenciam fortemente na construção processual dos significados. Nesse sentido, Levi também enfatiza a importância da perspectiva comparativa e da reconceitualização para melhor compreender a realidade social.

Inspirados por essas ideias, nosso principal objetivo neste trabalho foi investigar a trajetória de Saluzinho, dando especial atenção para o conflito mais marcante em que esteve envolvido. Buscamos, então, compreender as suas próprias interpretações sobre o caso, as imagens veiculadas pela imprensa da época e as perspectivas de alguns atores envolvidos. Nesse sentido, discutimos as relações entre esse trabalhador, outros posseiros da região, seus adversários e movimentos sociais no campo, assim como buscamos compreender suas noções de direitos e sua perspectiva sobre o pensamento comunista. Apesar da escassez de fontes, foi possível encontrar vestígios variados que possibilitaram o cruzamento entre informações e o aprofundamento em alguns aspectos que consideramos relevantes.6 6 Dentre as fontes consultadas, destacamos os documentos do Departamento de Ordem Política e Social de Minas Gerais (Dops-MG), Serviço Nacional de Informações (SNI), várias matérias publicadas em jornais da época, entrevistas com pessoas que conviveram e dialogaram com Saluzinho e os livros de Campos (2014) e Antunes (2007). Até o momento, o processo criminal de Saluzinho não foi disponibilizado para consulta.

O conflito nos jornais da época

O confronto entre Saluzinho e as forças de segurança no interior de Minas Gerais ganhou repercussão em grandes jornais do eixo Rio-São Paulo. Os principais periódicos dessa região, com poucas exceções, apoiaram o Golpe de 1964. Porém, logo começaram a sentir o peso de medidas repressivas e da censura da parte do novo governo. De qualquer forma, preservaram os ideais liberais-conservadores que os norteavam, e preocupavam-se com a eclosão de focos de conflito social. Tratava-se de um momento em que parte significativa da esquerda brasileira dividia-se numa miríade de grupos para combater a ditadura e desfechar uma luta de caráter anti-imperialista ou uma revolução de caráter socialista no Brasil. E desde as décadas de 1950 e de 1960, setores da esquerda vislumbravam o campo como espaço privilegiado para o desencadeamento de suas ações. Inspirando-se em exemplos de movimentos revolucionários impulsionados a partir do mundo rural, como aqueles de Cuba, da China e do Vietnã, procuravam levar a cabo seus projetos tendo como base o campo brasileiro (Dezemone, Grynszpan, 2007DEZEMONE,Marcus;GRYNSZPAN,Mario.As esquerdas e a descoberta do campo brasileiro: Ligas Camponesas, comunistas e católicos (1950-1964). In:FERREIRA,Jorge;REIS,Daniel Aarão (orgs.). Nacionalismo e reformismo radical.Rio de Janeiro:Civilização Brasileira ,2007, p.209-237., p. 217-218).

Muitos jornais de grande circulação do eixo Rio-São Paulo, influentes na definição do noticiário em escala nacional, pareciam temer abalos na ordem social e por isso noticiaram a contenda entre Saluzinho e a polícia. Na maioria dos casos, ecoaram as versões dos grandes proprietários ou das forças de repressão, sem apurar o acontecimento. Somente em poucas situações abriram espaço para as vozes dos posseiros envolvidos. Entretanto, tais fontes não são de todo desprovidas de valor para o estudo do caso de Saluzinho, pois encerram contradições que podem lançar luzes sobre ele.

De início, uma reportagem do Jornal do Brasil, publicada em 22 de dezembro de 1967, chama a atenção por cobrir o cerco a Saluzinho tratando-o como “líder de um grupo que invadiu fazendas”. Segundo posicionamento dos órgãos de repressão reproduzido pelo periódico, não havia qualquer vínculo “dos invasores de terras no Norte de Minas com movimentos políticos”, acentuando que “tudo não passa de briga pessoal limitada à colocação de cercas, ou apossamento puro e simples de terras” e de pessoas “roubando gado”.7 7 Tropa do Exército cerca líder de invasores de terras no norte de Minas. Jornal do Brasil, 22 nov. 1967, Primeiro Caderno, p. 7. Nessa perspectiva, amplamente escorada na versão dos fazendeiros e da polícia, teriam sido Saluzinho e seus seguidores os responsáveis pela eclosão daquele confronto, em função de supostamente não respeitarem os limites da propriedade privada e ameaçarem os grandes proprietários e seus funcionários. Ademais, é evidente o esforço das autoridades em negar o caráter de conflito social do acontecido, com o intuito de afastar a possibilidade de “subversão”. Ora, esse ponto de vista possui o objetivo de enquadrar os posseiros então estabelecidos em Varzelândia na categoria de criminosos e de desqualificar seus possíveis atos de resistência pela posse da terra.

Como explicar o choque entre posseiros e fazendeiros em tal cenário além desse viés oficioso? Certas características do processo de ocupação daquelas terras podem lançar algumas luzes sobre essa questão. É preciso levar em conta que a produção agrícola naquela região foi diretamente incentivada pelo governo federal em anos anteriores. Em 1964, alguns dias antes do golpe, Osvaldo Lima Filho, ministro da Agricultura do governo Goulart, enviou toneladas de sementes, adubos e defensivos agrícolas para os pequenos agricultores das regiões do médio e do superior rio São Francisco, no Norte de Minas Gerais, incluindo a região de Varzelândia.8 8 Sementes para o São Francisco. Jornal do Brasil, 10 mar. 1964, Primeiro Caderno, p. 11. Em momento em que o governo federal avançava na implementação de um extenso plano de reforma agrária em escala nacional, ele estimulava simultaneamente a produção agrícola entre os pequenos lavradores daquela localidade. Essa situação mudou drasticamente com a concretização do golpe e o consequente reforço do poder dos grandes proprietários, conforme discutido acima; porém, certamente deixou marcas e criou expectativas entre os sujeitos beneficiados por aquela política governamental que incentivava a fixação na terra.

O aumento da demanda por gêneros alimentícios e a indefinição jurídica das terras da região de Varzelândia podem ter sido as fagulhas que detonaram o conflito entre posseiros e grandes fazendeiros ali. É o que sugere a atitude do governo de Minas Gerais em 1966 - um ano antes do confronto envolvendo Saluzinho -, no sentido de tentar regulamentar a ocupação de terras no norte do estado. Naquele ano, o governador Israel Pinheiro enviou um projeto de lei à Assembleia Legislativa estadual propondo a criação da Fundação Rural Mineira - Colonização e Desenvolvimento Agrário -Ruralminas. Essa instituição seria voltada para a definição de critérios para a ocupação das terras devolutas do estado. Segundo a mensagem do governador que acompanhou o projeto, este era pensado para que a produção rural “possa vir a atender [...] à crescente demanda do mercado consumidor, acentuada dia a dia pelo incremento populacional e demográfica [sic] nos grandes centros industriais”.9 9 Projeto pede criação de um órgão para promover progresso rural em Minas. Jornal do Brasil, 13 out. 1966, Primeiro Caderno, p. 13. Ao que tudo indica, o crescimento populacional e industrial, em anos anteriores, aumentara a demanda por produtos agrícolas. O governo federal já sentira a necessidade de estimular as lavouras daquela região, conforme visto. Desta vez, era o governo estadual quem se prontificava a fazer o mesmo por meio de regulamentação, provavelmente tendo em conta os conflitos que tal pressão engendrava para o controle das terras devolutas.

A instalação de duzentas famílias de posseiros naquela região era supervisionada por órgãos do governo federal, a saber, o Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário (Inda) e o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (Ibra).10 10 O Inda foi criado pela Lei n. 4504, de 30 de novembro de 1964 (Estatuto da Terra), com regulamento aprovado em 31 de março de 1965. Tratava-se de uma autarquia ligada ao Ministério da Agricultura, cujo principal objetivo era estimular e promover o desenvolvimento das atividades agrárias através da colonização, da extensão rural, do cooperativismo, do sindicalismo e outras formas de associação, da eletrificação rural, da revenda de material agropecuário, do desenvolvimento tecnológico e da organização de comunidades. O Inda deveria antecipar-se ao Ibra, também criado pelo Estatuto da Terra, tendo em vista implementar o programa de ação econômica e social do governo, estimulando os agricultores a aumentar a sua produção e com isso aliviando as tensões sociais e os desequilíbrios econômicos regionais. Cf. Medeiros, Leonilde Sérvolo de; Araújo, Brás José de. Verbete “Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário (Inda)”, in: Fundação Getulio Vargas. Dicionário histórico-biográfico CPDOC. Disponível em: <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/instituto-nacional-de-desenvolvimentoagrario-inda>. Acesso em: 28 mar. 2020. Contudo, nem mesmo estes pareciam ter clareza dos limites territoriais daquela área ou uma definição precisa de quais eram as terras devolutas. Nesse sentido, em reportagem publicada no jornal O Estado de S.Paulo em 22 de novembro de 1967, aparece depoimento do delegado de polícia de Montes Claros, o qual afirma que o “clima é tenso na região” e que os funcionários do Inda e do Ibra não sabem “quais são as terras que pertencem ao governo”. Nesse cenário, diariamente, “os posseiros derrubam as cercas construídas pelos fazendeiros da região e vice-versa”.11 11 Invasor de terras é cercado pela polícia. O Estado de S. Paulo, 22 nov. 1967, p. 5. Entre as reportagens analisadas, essa é a única que deixa entrever, a partir da perspectiva da polícia, que ocorriam derrubadas de cerca da parte tanto dos posseiros quanto dos fazendeiros, o que certamente foi estimulado pela indefinição legal e jurídica dos limites territoriais daquela região.12 12 Tanto o fazendeiro Oswaldo Antunes, em seu livro de memórias (Antunes, 2007), quanto Saluzinho, em entrevista a Campos (2014), relataram que a disputa pelos limites entre as terras foi um dos estopins para o conflito. A referida reportagem de O Estado de S.Paulo é bastante rica para a análise do episódio em questão. Apoiando-se na narrativa da polícia, o jornal coloca que Saluzinho é homem “muito perigoso que age sob as ordens de Pedro Laurentino,13 13 Em algumas fontes o chamado “Pedrão” aparece com o nome de Pedro Laurentino, em outras como Pedro Martins de Oliveira. agitador profissional que já pertenceu à Supra” (Superintendência de Política Agrária) e que “tenta agora impedir a implantação de um plano de reforma agrária na região”. Ademais, o delegado de Montes Claros assevera que “os posseiros, em reunião” realizada há “poucos dias, decidiram não abandonar suas terras, resistindo a qualquer ataque”. A perspectiva dos órgãos de repressão, se analisada com cuidado, pode indicar um trabalho de politização entre os posseiros. Ao que parece, eles haviam tido contatos com um antigo funcionário da Supra, órgão responsável pela política de reforma agrária do governo Goulart, e promoviam encontros para discutir estratégias de resistência. Assim, é possível que, em meio à visão tradicional de Saluzinho e de seus companheiros, fossem discutidas noções jurídicas de direitos pela posse da terra e pela reforma agrária.

Guardadas as devidas proporções, esse conflito lembra alguns aspectos da resistência dos utilizadores das terras comunais, na Inglaterra do final do século XVIII e início do século XIX, ao avanço dos cercamentos. Tais sujeitos se opuseram à construção de cercas em terras por eles ocupadas em defesa de uma antiga economia baseada nos costumes. Nesse cenário, por mais desigual que fosse a distribuição de poder entre os grupos sociais, muitas vezes o poder devia se submeter a algumas limitações; entre outros motivos, porque poderia se ver em perigo se o abuso dos direitos do costume enfurecesse as camadas populares. Desse modo, os camponeses que resistiam aos cercamentos recorriam à invasão e ao roubo de caça, ao lobby, a cartas, a petições, a ataques a autoridades, a incêndios criminosos, à agitação, à derrubada de cercas. Essa resistência obstinada não era despropositada, pois, além de atrasar os cercamentos, podia modificar seus termos (Thompson, 1998THOMPSON,Edward P.Costume, lei e direito. In:THOMPSON,Edward P.Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional.São Paulo:Companhia das Letras ,1998., p. 95-102). No que diz respeito a Saluzinho e seus companheiros, é difícil identificar com certeza se se pautavam por alguma espécie de direito costumeiro. As vozes desses sujeitos foram em grande medida suprimidas. De qualquer forma, num dos poucos vestígios da interpretação de Saluzinho sobre o conflito, registrado por um repórter pouco depois de sua prisão, o posseiro relatou que “sou autoridade dentro da minha casa e atirei naqueles bandidos na defesa de meus direitos”,14 14 Saluzinho conta toda a história e pede justiça. O Diário de Montes Claros. 26 nov. 1967. Matéria disponibilizada em Campos (2014). o que pode indicar certo sentimento de defesa de direitos em suas ações. Tal hipótese pode então ser levantada, ainda que precise ser investigada mais a fundo, caso novas fontes que permitam acesso às vozes dos posseiros sejam encontradas.

Por ora, as ambiguidades das falas das autoridades envolvidas, por vezes, permitem problematizar a ideia de que a ação daqueles sujeitos era de natureza criminosa. O jornal Correio da Manhã, por exemplo, chegou a noticiar que um “homem misterioso, amado pelos camponeses e odiado pelos fazendeiros, enfrenta, à bala, possivelmente com o apoio de lavradores”, todo um destacamento policial. O periódico ainda veiculou entrevista com o coronel José Coelho de Lima, comandante do 10º Batalhão de Montes Claros, que afirmou então que a situação na região era muito grave, pois “muitos são os problemas”. De modo geral, disse que, “atrás de todo o conflito, existe um profundo problema social”.15 15 Líder camponês resiste cerco da polícia à bala. Correio da Manhã, 23 nov. 1967, p. 10. Tal colocação indica que, a despeito de Saluzinho ser um sujeito extraordinário, provavelmente expressasse um sentimento de injustiça bastante difundido em meio à sua comunidade. Os posseiros podiam partilhar a percepção, gestada durante vários anos, de que fazendeiros cometiam abusos.

Após se entregar à polícia, Saluzinho prestou depoimento em que relatou que, após a primeira refrega, teria reunido “12 lavradores” que o acompanharam armados até a gruta, os quais, porém, logo depois deixaram o local.16 16 Fome derrota jagunço para a PM: Minas. Correio da Manhã, 24 nov. 1967, Primeiro Caderno, p. 7. É preciso ter cuidado para não se considerar que todos os outros indivíduos presos naquela ocasião tivessem tido envolvimento direto com o conflito, mas é pouco provável que Saluzinho tivesse atuado sozinho. As autoridades governamentais e policiais pareciam temer um levante de grandes proporções entre os posseiros, cuja situação consideravam “tensa”. Daí um destacamento policial inteiro ter sido enviado para aquela localidade, além de reforços solicitados junto ao governo do estado. Ambos os contingentes dificilmente seriam necessários para lidar com um único homem, por mais destemido que se mostrasse.

Havia um apoio social bastante disseminado para os atos de Saluzinho. O sentimento de injustiça diante de fazendeiros e policiais, bem como a percepção de que o último agia com heroísmo, disseminaram-se pelo Norte de Minas Gerais. É o que sugere a apreensão, na cidade de Montes Claros, de grande número de folhetos com versos exaltando a sua luta, cerca de um mês depois dos acontecimentos. A cidade, sede do jornal Diário de Montes Claros, de propriedade de Oswaldo Antunes, fazendeiro diretamente envolvido no conflito, teria amanhecido repleta de opúsculos intitulados Saluzinho, a fera humana. Neles, por meio de “versos simples, à maneira dos cantadores do sertão”, exaltava-se “a epopeia do valente, o homem sozinho, que enfrentou a milícia e sua gente”. Segundo o delegado Atílio Fallieri, o mesmo que atuou no cerco a Saluzinho, a justificativa para o recolhimento do material e da prisão de quem os distribuía devia-se à opinião de que se tratava de uma afronta à Polícia Militar de Minas Gerais ou ao temor de que podia “servir de incentivo à guerra ideológica”.17 17 Delegado mineiro apreende folheto que conta como um valente enfrentou a polícia. Jornal do Brasil, 20 dez. 1967, Primeiro Caderno, p. 14. O delegado parece ter encontrado material que sugere a formação de uma espécie de opinião pública entre as camadas populares do sertão mineiro. Muitos indivíduos pertencentes a estas últimas, alijados do acesso aos principais órgãos da imprensa nacional e local, parecem ter criado e ecoado uma espécie de jornal escrito e cantado, em que vocalizavam suas queixas em relação ao que percebiam como arbitrariedades de fazendeiros e policiais.

Tal fenômeno pode ser melhor compreendido se levarmos em conta que a perspectiva de fazendeiros era muitas vezes meramente reproduzida não apenas pela imprensa local, como também pela chamada grande imprensa. Em seu livro de memórias, Oswaldo Antunes conta que, à época, era correspondente freelancer de O Globo e que enviou “reportagem correta, bom texto, omitindo sua burlesca e involuntária participação” àquele jornal (Antunes, 2007, p. 227). Em reportagem publicada em O Globo, naquela ocasião, o jornalista afirmou que Saluzinho, “criminoso comum”, encarregara-se de “reunir malfeitores e desordeiros cuja tarefa foi espalhar a notícia de que os fazendeiros da região iam expulsar os posseiros de suas terras”.18 18 Bando armado reage a bala e agita posseiros em Minas. O Globo, 21 nov. 1967, p. 18. Se o jornalista contraria a versão de que os posseiros seriam banidos de suas terras, é muito provável que tais sujeitos tenham discutido essa possibilidade; a questão é apurar se realmente eles corriam o risco de ser expulsos, o que será feito adiante.

Antes de mais nada, é preciso destacar a relação porosa entre fazendeiros, policiais e órgãos do governo estadual. Uma das poucas reportagens que veiculam vozes dos posseiros é a de O Jornal, publicada no dia 20 de dezembro de 1967. Nela, a equipe daquele periódico registra o movimento de familiares destes últimos em frente a um batalhão de polícia para denunciar arbitrariedades de policiais e capatazes durante a perseguição a Saluzinho. Nas falas, surgem diversas acusações de tortura física e psicológica, assim como ameaças de estupro. As queixas daqueles sujeitos voltavam-se particularmente contra Jerônimo, o capataz envolvido na eclosão imediata da contenda. Segundo a matéria, “Jerônimo, um capataz que vive armado até os dentes, segue a polícia, ou seria melhor dizer que a polícia o segue, quando deseja andar com segurança pelas redondezas”.19 19 Polícia mineira faz herói para camponeses. O Jornal, 20 dez. 1967, p. 11. A reportagem de O Jornal mostrava-se preocupada com o grau de barbárie da suposta ação conjunta entre a polícia e empregados de fazendas, o que, supõe-se, poderia ser um incentivo para a ampliação do conflito. Tanto essa matéria quanto outras indicam elevado grau de coordenação entre tais grupos, assim como de arbitrariedades por eles praticadas.

No que diz respeito às ameaças de expulsão dos posseiros, uma matéria de O Jornal relata, em 11 de fevereiro de 1968 (cerca de três meses depois do início do entrevero), que duzentas famílias de posseiros haviam sido expulsas de suas terras em Varzelândia.20 20 Talvez essas informações se refiram à expulsão dos posseiros da comunidade de Cachoeirinha, também em Varzelândia (MG), onde 212 famílias de posseiros foram expulsas de suas terras por grileiros nos anos de 1964 e 1967, sendo perseguidas e resistindo por décadas (Zangelmi, 2019). O periódico não liga esse acontecimento ao caso de Saluzinho, ocorrido pouco antes, mas seria possível utilizá-lo para dar credibilidade à notícia provavelmente discutida entre os lavradores de que seriam retirados de suas posses. Além disso, no momento da expulsão, o jornal destacou que os “policiais e cangaceiros expulsaram as famílias a mando de [...] fazendeiros da região, ávidos com a próxima safra”. Segundo a denúncia de Eurídio Soares da Cruz, representante dos posseiros que conseguira romper o cerco, alguns fazendeiros já haviam dado um jeito de se “aproveitarem da situação e fazerem a colheita da terra, o que foi feito”.21 21 Polícia expulsa famílias de camponeses em Minas. O Jornal, 11 fev. 1968, Primeiro Caderno, p. 5. Para o jornalista, o termo cangaceiro parecia ser intercambiável com as noções de “capataz” ou “jagunço”. De qualquer forma, confirmava-se o temor dos posseiros de que seriam expulsos. E o foram por meio da ação conjugada da polícia com funcionários das fazendas, sem a aparente utilização de mandado judicial. Em reportagem do Diário da Noite, do Rio de Janeiro, os jornalistas Leo Guanabara e Joaquim Pinto Nazário chamaram a atenção para a possibilidade de um massacre naquela ocasião. Em breve nota, afirmaram que fazendeiros e polícia tentavam expulsar posseiros, que estavam cercados em suas terras protegendo a safra, “por sinal excelente”. Segundo eles, tratava-se simplesmente de “roubo de terras e da safra, embora tais casos se apresentem sempre como ‘disputa de terras’”.22 22 Diário da Noite (RJ), 16 fev. 1968, Segundo Caderno, p. 4.

A resistência de Saluzinho, apesar de extraordinária, ajuda a iluminar o contexto em que se deu, um terreno fértil para conflitos entre fazendeiros, poder público e posseiros. Não foi à toa que sua luta passou a representar o sentimento de injustiça partilhado entre os posseiros daquela região. Saluzinho, em certa medida, canalizou o desejo de enfrentamento de muitos daqueles que não se levantaram, devido aos processos econômicos e políticos em curso. Para as forças dominantes, por outro lado, o posseiro representava a insubmissão e o risco de reação dos trabalhadores rurais. Talvez por isso as forças de repressão e parte da imprensa tenham se esforçado tanto para minar sua imagem. Além de ser caracterizado, pela grande imprensa, como líder de bando criminoso e violento, algumas fontes indicam que Saluzinho também foi retratado como militante comunista. Esse suposto vínculo político, propagado em caráter regional, muito contribuiu para ampliar a aversão e o temor da população, assim como provavelmente foi um dos principais motivos que levaram esse posseiro ao Dops.

Militância de esquerda, noções de direitos e comunismo

Os militantes de organizações e movimentos sociais populares foram os alvos preferenciais da repressão após o Golpe de 64, mesmo quando esses atores já estavam dispersos e desarticulados. O pretexto de impedir o avanço comunista serviu para que a violência contra esses grupos fosse, em grande medida, legitimada e desejada por vários segmentos da sociedade brasileira.

Mas esse pretexto serviu também para atingir pessoas que não tinham vínculo com essas organizações. Numa busca obstinada pela “ordem” propagada pelos repressores, em muitos casos bastava uma afirmação vaga de que tal indivíduo ou grupo era comunista para justificar uma repressão violenta, servindo aos diversos interesses de avanço do status quo sobre populações fragilizadas, como, por exemplo, a expulsão de posseiros.

Esse parece ter sido o caso de Saluzinho que, mesmo sem integrar qualquer organização comunista, foi taxado dessa forma como justificativa para sua perseguição. Segundo Campos, essa imagem foi construída, principalmente, por uma forte campanha difamatória realizada pelo O Jornal de Montes Claros, de propriedade de Oswaldo Antunes. Valendo-se do temor de que ocorressem guerrilhas na região:

Seu jornal, “O Jornal de Montes Claros”, foi largamente utilizado, de uma maneira imoral, veiculando notícias solertes para confundir a opinião pública, na tentativa de transformar Saluzinho num endemoniado, num ser odioso e comunista, empunhando uma bandeira destinada a transformar a República numa ditadura marxista (Campos, 2014CAMPOS,Leonardo Álvares da Silva.Saluzinho: luta e martírio de um bravo.Belo Horizonte:Editora D’Plácido,2014., p. 54).

Talvez essa seja uma das explicações para que Saluzinho tenha passado longo período preso no Dops, em Belo Horizonte, juntamente com integrantes de várias organizações. Salustiano, ao que tudo indica, foi um posseiro desvinculado de qualquer militância. Sua valentia e pontaria merecem destaque, evidentemente, assim como seu forte sentimento de que estava sendo injustiçado. Mas, pelo que pudemos perceber, sua resistência não teve motivação na participação direta em grupos organizados ou utopias políticas sistematizadas.

Percebemos isso ao perseguirmos os rastros que poderiam indicar essas relações políticas, não encontrando vínculos que apontassem nesse sentido. Inicialmente, a possível ligação com a Ação Popular (AP)23 23 A AP foi uma organização constituída em 1962 por setores progressistas da Igreja católica. foi um forte indício, pois essa organização atuou no final dos anos 1960 naquela região. Na documentação do Dops-MG, encontramos sinais de que a Ação Popular considerava a região de Varzelândia como “centro estratégico para o desenvolvimento da guerra popular”, onde seus militantes realizaram um “trabalho camponês” junto a posseiros que tinham suas terras ameaçadas.

O trabalho camponês, que começou a dar resultados positivos foi iniciado em novembro de 1968 na região da Mata da Jaíba, Norte de Minas Gerais, nas localidades de Serra Azul, Varzelândia e Rio Bonito. Essa região foi escolhida em virtude do conflito existente entre posseiros de terras devolutas e os administradores da área, subordinados à Ruralminas. Nessa área houve um atrito de grandes proporções entre os posseiros Salustião Gomes, conhecido por Saluzinho, e um contingente da PMMG. Os militantes da Ação Popular Oldack Miranda (“Vicente”) e sua esposa Solange Soares Nobre (“Clara”), juntamente com outros militantes, se instalaram na área, ganhando a confiança da família de Saluzinho, por meio de assistência material e jurídica a este posseiro, homem bastante trabalhador, estimado e respeitado entre os habitantes daquela região.24 24 Arquivo Público Mineiro, Arquivos da Polícia Política - Ação Popular - Investigações. (APM/DOPS/R004/P0040).

É importante notar que, mesmo na documentação produzida pelos repressores, foi possível identificar que a atuação da AP na região se deu depois da repercussão do conflito entre Saluzinho, jagunços e polícia. Quando a AP foi para a região, Salustiano já estava preso e seu caso já era bem conhecido, o que, inclusive, motivou o direcionamento desse movimento para aquela região. Carlos Melgaço Valadares, uma das principais lideranças da AP na época, contou como a resistência do posseiro chamou a atenção do grupo e foi percebida como potencial de mobilização da região:

Saiu a história de Saluzinho em todos os jornais. Um posseiro que tinha resistido à bala ao cerco policial e se refugiou numa gruta. Em que pese bombas, gás lacrimogênio etc., conseguiu ficar praticamente uma semana lá resistindo. Isso levou a falar assim: -Aquela área tem característica de conflitos, luta pela posse da terra [...]. E era uma área de mata também, uma terra devoluta. Era uma área que tinha um potencial grande.25 25 Depoimento de Carlos Melgaço Valadares concedido ao autor e à Comissão da Verdade de Minas Gerais (Covemg), em 26 de maio de 2017.

Ironicamente, ao noticiarem o caso de Saluzinho, talvez apreensivos de que ocorressem guerrilhas naquela região, os jornais da época acabaram por dar combustível para que esse temor fosse efetivado. Assim, a região foi vista pelos integrantes da AP como um terreno fértil para um enfrentamento unificado, como também indica Manfredini:

Logo os militantes acercaram-se da família de Saluzinho, que estava preso em Belo Horizonte devido à luta contra os grileiros. Prestaram toda a assistência, até mesmo angariando fundos para contratar uma boa defesa para o líder posseiro. Isso facilitou o debate sobre os direitos à posse da terra com os demais camponeses, sempre apreensivos com a possibilidade de serem despejados de suas terras como ocorreu com Saluzinho (Manfredini, 1989MANFREDINI,Luiz.As moças de Minas: uma história dos anos 60.São Paulo:Alfa-Omega,1989., p. 32).

Dessa forma, a resistência de Saluzinho não teve como fundamento sua suposta militância política junto a AP, ao contrário, a atuação da AP na região foi motivada pela repercussão do caso desse posseiro. Esses militantes buscavam atuar em contextos nos quais já existiam grupos que passavam por algumas situações de conflito, como no caso de posseiros sofrendo tentativas de expulsão de suas terras, considerados mais propensos ao trabalho de “conscientização” para o enfrentamento contra o poder estabelecido.Assim, buscaram realizar algumas ações de mediação (Neves, 2008NEVES,Delma Pessanha (org.).Desenvolvimento social e mediadores políticos.Porto Alegre:Editora da ­UFRGS,2008.) ao articularem os conflitos pela terra vividos por esses posseiros com as lutas mais amplas da AP contra o regime militar.

Vale lembrar que a Ação Popular passava por fortes transformações no final da década de 1960, aproximando-se do maoísmo. Nessa tendência, esses jovens militantes, geralmente de classe média, buscaram se integrar aos trabalhadores no campo e na cidade, sendo a chamada “proletarização” uma estratégia fundamental para a construção de laços de confiança no interior do sistema produtivo (Ciambarella, 2007CIAMBARELLA,Alessandra.Do cristianismo ao maoísmo: a história da Ação Popular. In:FERREIRA,Jorge;REIS,Daniel Aarão (orgs.).Revolução e democracia.Rio de Janeiro:Civilização Brasileira,2007, p.101-129.). Essa organização também era marcada por um forte “romantismo revolucionário” (Ridenti, 2002RIDENTI,Marcelo S.Ação Popular: cristianismo e marxismo. In:REISFILHO,Daniel Aarão;RIDENTI,Marcelo(orgs.).História do marxismo no Brasil , v.5:Partidos e organizações dos anos 20 aos 60.Campinas:Editora da Unicamp ,2002, p.213-282.), baseado num ideal anticapitalista que visava recuperar, através da ação revolucionária, certos valores perdidos na modernidade (comunidade, doação, harmonia com a natureza, trabalho como arte etc.), o que possibilitaria a construção de um novo futuro. Assim, apesar do afastamento organizacional da AP em relação à Igreja católica, seu “romantismo revolucionário” foi fruto da articulação entre elementos do cristianismo (como o sentimento de missão, comunhão e devoção) e marxistas, especialmente da perspectiva maoísta.26 26 Parte dessas ações tomava como base a Teologia da Libertação, que articulava fé e política na busca por justiça social e econômica (Smith, 1991), numa combinação entre cristianismo e marxismo (Löwy, 1991).

Apesar da atuação da AP não ter atingido os resultados esperados, sendo rapidamente reprimida, talvez tenha exercido alguma influência nas futuras lutas dos trabalhadores da região. Por outro lado, como vimos, ela não tem relação direta com a resistência de Saluzinho no seu conflito mais espetacular. Assim, buscamos identificar também se Saluzinho teve contato com alguma outra organização ou ideologia política, sem conseguirmos encontrar qualquer sinal de relações diretas. No entanto, pudemos supor que esse posseiro carregava algumas percepções políticas que o diferenciavam em relação à maior parte dos posseiros da região, talvez em decorrência das diversas experiências que Saluzinho teve em outras regiões ao longo da vida.

Carlos Melgaço Valadares narrou suas impressões sobre Saluzinho no período em que estiveram presos juntos no Dops, em 1969, o que nos ajudou a compreender as motivações da resistência do posseiro e suas percepções sobre os conflitos que viveu:

Ele não confiava em polícia. Quem tentou atacar no Paraná foram policiais e jagunços. A mesma coisa no Norte de Minas. Ele não tinha confiança em polícia, tanto que a resistência dele foi maior porque ele sabia que se saísse (da gruta), ia ser assassinado, então ele batalhou para ter um processo de negociação, para poder não morrer ali. Quer dizer que ele também tinha consciência de que ali era desproporcional.27 27 Depoimento de Carlos Melgaço Valadares concedido ao autor e à Covemg, em 26 de maio de2017.

Nessa interação, Melgaço pôde perceber também que, quando Saluzinho afirmava recorrentemente que o “latifúndio é o Diabo”, não estava se referindo apenas a um conflito ou latifundiário específico, mas a uma identidade mais ampla, um grupo, uma força econômica e política que atacava os direitos dos posseiros.

Saluzinho já estava preso e depois foi considerado preso político. É raro um camponês ser incluso na Lei de Segurança Nacional. No caso aí, ele foi incluso na Lei de Segurança Nacional, e esteve preso aqui no Dops e aí foi quando eu o conheci pessoalmente; eu conhecia a história dele, mas o conheci pessoalmente [...]. Ele era um cara muito calado. Era uma pessoa extremamente sensível e solidária dentro da prisão. E a consciência dele era contra o latifúndio. Quer dizer que, isso aí, esse negócio da afirmação de que o latifundiário é o diabo, já mostra que é uma coisa mais geral não era só uma coisa… individual [...] Ele estava falando do conjunto!28 28 Depoimento de Carlos Melgaço Valadares concedido ao autor e à Covemg, em 26 de maio de2017.

Essa perspectiva pode demonstrar certa compreensão das concepções políticas sobre a luta pela terra, em disputa no período. Como demonstrouNovaes (1997NOVAES,Regina Reyes.De corpo e alma: catolicismo, classes sociais e conflitos no campo. Rio de Janeiro:Graphia,1997.), no início da década de 1960 estava em curso a construção de uma nova linguagem política no campo, que contrapunha o camponês ao latifundiário. A identidade de camponês se referia ao trabalhador rural organizado politicamente, unificando as diversas categorias que sofriam os avanços do capital em lutas como o direito à terra, reforma agrária e busca por direitos trabalhistas. Por outro lado, como identidade oposta e interdependente, o latifúndio, “quase como um emblema mítico, sintetizava um conjunto de normas, atitudes e comportamentos atualizados pelo conjunto dos proprietários rurais respaldados pelo poder local” (Novaes, 1997, p. 51). A crítica de Saluzinho ao latifúndio como uma força opressiva, de forma abrangente, pode estar relacionada com algum acesso ao pensamento disseminado pelos movimentos de trabalhadores, especialmente no processo de mobilização que antecedeu o Golpe de 1964.

Em 1979, numa entrevista aCampos (2014CAMPOS,Leonardo Álvares da Silva.Saluzinho: luta e martírio de um bravo.Belo Horizonte:Editora D’Plácido,2014.), Saluzinho fez algumas afirmações que podem indicar que ele exerceu alguma forma de liderança entre os posseiros, sem, contudo, estar ligado a alguma organização política:

Conhecia o grilo (grilagem) que eles estavam fazendo ali, arrancando posseiro, matando e pintando o diabo. [...] E eu aconselhei eles (posseiros) e aqui na Justiça de Itambacuri, e nós fomos lá e levamos eles. Agora, por causa disso, eles tinham interesse em mim, porque eu fui o homem que orientei os colegas e arrancamos aquela jagunçada (Entrevista de Saluzinho a Campos, em 1979; apudCampos, 2014CAMPOS,Leonardo Álvares da Silva.Saluzinho: luta e martírio de um bravo.Belo Horizonte:Editora D’Plácido,2014., p. 113).

Assim, podemos supor que Saluzinho pode ter sido uma liderança para os posseiros, mesmo por pouco tempo, assim como pode ter trazido conhecimentos que não estavam disponíveis naquela localidade até então.

Em todo o material que analisamos, o único indício de relação entre Saluzinho e o pensamento comunista foi encontrado em uma passagem da referida entrevista a Campos. Note-se que, apesar de demonstrar certo apreço, o posseiro faz uma interpretação muito própria sobre o que entende como comunismo, diferentemente das formulações teóricas das organizações do período:

O comunismo é uma coisa muito interessante paras nações. Não só o Brasil. Mundial. Existe o respeito humano para toda a sociedade. Mas, infelizmente, os fundiários dos latifúndios vêm com veneno na frente. Dizem que onde tem comunista falta com o respeito com a família do próximo, não tem direito de ver um filme. Sendo que é mentira. Porque eles têm costume... Os latifundiários... Não todos eles. Dizem assim: “- Dá uma esmola, ele é mendigo”. Nós não necessitamos de esmolas. Nós necessitamos do que é nosso, que é o que o comunista apoia. O comunismo apoia os direitos humanos. Se eu tenho capacidade de trabalhar para ganhar 100 cruzeiros, então me dá os 100 cruzeiros, e não 50 cruzeiros. Se eu tenho capacidade de ganhar um milhão de cruzeiros, me dá meu milhão de cruzeiros, não me dá 500 cruzeiros. Porque vai me fazer falta no dia de amanhã. A luta do comunismo é essa (Entrevista de Saluzinho aCampos; apud Campos, 2014CAMPOS,Leonardo Álvares da Silva.Saluzinho: luta e martírio de um bravo.Belo Horizonte:Editora D’Plácido,2014., p. 136).

Salustiano associa comunismo à luta por direitos, especialmente do direito à terra, direitos humanos e direito ao trabalho livre de exploração. Segundo ele, “fica o fundiário com fartura e o pobre morrendo em situação de miséria” (Campos, 2014CAMPOS,Leonardo Álvares da Silva.Saluzinho: luta e martírio de um bravo.Belo Horizonte:Editora D’Plácido,2014., p. 125). Sendo a entrevista de 1979, é possível também que Saluzinho tenha assimilado uma visão positiva sobre o comunismo depois do conflito ocorrido em 1967, talvez a partir de seus contatos na prisão do Dops, onde conviveu por longo período com militantes de diversas organizações influenciadas pelo marxismo. De qualquer forma, absorveu essa ideologia de modo diferenciado em relação aos integrantes dessas organizações e não teve participação como militante em qualquer luta política. Mesmo no inquérito policial-militar (IPM) de 1969, que investigou as atividades subversivas da AP, Saluzinho é citado como “homem bastante trabalhador, estimado e respeitado entre os habitantes daquela região”,29 29 Arquivo Público Mineiro, Arquivos da Polícia Política - Ação Popular - Investigações. (APM/DOPS/R004/P0040/doc. 81). indicando que, nesse momento, nem mesmo o Dops considerou o posseiro um agente subversivo. O esforço dos investigadores, nesse processo, foi argumentar que os posseiros estavam sendo manipulados por integrantes da AP, os principais alvos da repressão naquele momento.Sem sombra de dúvida, Saluzinho estava bem distante do “comunista sanguinário” que amedrontava na região.

No rastro dos significados de um indivíduo

Percebemos que, pouco antes do conflito na gruta, Saluzinho estava numa situação muito tensa, pois via a expulsão e a violência se espalhando contra outros posseiros, muito próximos, e estava sendo ameaçado pelos jagunços de Oswaldo Antunes. Conhecia a ambição dos fazendeiros, a grilagem e a atuação de jagunços e policiais já nas suas experiências anteriores, em outras regiões, onde esteve envolvido em vários conflitos, que geralmente acabavam em tiroteios (Campos, 2014CAMPOS,Leonardo Álvares da Silva.Saluzinho: luta e martírio de um bravo.Belo Horizonte:Editora D’Plácido,2014.;Chaves, 2005CHAVES,Luiz Antônio.Saluzinho e a luta pela terra no Norte de Minas.Revista Verde Grande (Montes Claros). v.1, n.3, p.98-108.2005.). Saluzinho já havia participado de conflitos no Paraná em pelo menos duas ocasiões, em 1957 e 1963,30 30 Pelo que pudemos investigar, não houve relação direta entre os conflitos em que Saluzinho esteve envolvido no Paraná e movimentos de resistência mais amplos, que ocorreram, nesse período, especialmente no oeste e sudoeste do estado. Segundo Campos (2014), Saluzinho morou na região de Loanda, noroeste do Paraná. Aparentemente, participou de conflitos isolados, em torno de disputas específicas. No entanto, devido à intensidade dos conflitos no período, não podemos descartar a possibilidade de notícias terem chegado a esse posseiro e, assim, terem influenciado suas ações de enfrentamento. depois teve seu caso mais conhecido em 1967, em Varzelândia. Mesmo depois, quando viveu, na década de 1970, em Itacarambi, esse posseiro insubmisso resistiu à bala aos abusos de fazendeiros e jagunços. Saluzinho não parecia ter medo da morte, mas tinha profunda aversão a sofrer uma desonra ou uma injustiça sem reagir. Sua resistência na gruta foi surpreendente, pela duração e desproporcionalidade de forças. Mas também surpreende como, envolvido em tantos embates ao longo da vida, esse posseiro inconformado não tenha sido atingido fatalmente.

O levante de Saluzinho contra capatazes e oficiais de polícia, bem como sua aguerrida resistência à prisão, evidentemente são extraordinários do ponto de vista de análises históricas ou sociológicas, o que torna impraticável reduzir seus atos a simples reflexos de seu grupo social. De qualquer forma, o lavrador levava, em grande medida, ao paroxismo sentimentos de injustiça social partilhados entre posseiros com relação a grupos de fazendeiros no Norte de Minas. Pouco antes do Golpe de 1964, os posseiros haviam sido incentivados pelo governo federal, com recursos materiais, para cultivar terras devolutas do estado. O avanço da industrialização provocou o aumento da demanda por gêneros agrícolas, e o governo de Minas Gerais planejou regulamentar a distribuição de terras no norte do estado como forma de incentivar a produção rural. Contudo, ao mesmo tempo que aquela área se valorizava e o governo estadual incentivava sua exploração, ela permanecia numa espécie de limbo jurídico, sem uma definição precisa dos limites das terras devolutas nem mesmo pelos órgãos oficiais. Nesse cenário, é provável que os posseiros ali residentes tenham criado expectativas de permanecer nas terras por eles cultivadas.

As derrubadas de cercas, pelas ações tanto de posseiros quanto de fazendeiros, assemelham-se ao processo de avanço dos cercamentos na Inglaterra em séculos passados, o qual transformava terras comunais em propriedade privada, tendo recebido resistência acirrada de camponeses, que derrubavam constantemente as divisórias que delimitavam as propriedades. É possível, portanto, que os posseiros de Varzelândia tivessem desenvolvido uma noção de direito costumeiro sobre a posse da terra que cultivavam. É igualmente possível que tenham tido contato com algumas noções jurídicas que lhes despertassem a expectativa de obter a titularidade do solo do qual cuidavam, conforme sugere a alegada influência de funcionário da antiga Supra entre eles. Ao que parece, o referido confronto é parte do violento processo de disseminação da propriedade privada da terra. Este último é caracterizado pela privação de direitos costumeiros daqueles que imaginam possuí-los. Trata-se da oposição entre um direito criado pelo dinheiro e um direito gerado pelo trabalho, muito comum em áreas de fronteira no Brasil (Martins, 1998MARTINS,José de Sousa.A vida privada nas áreas de expansão da sociedade brasileira. In:SCHWARCZ,Lilia M. (org.).História da vida privada no Brasil, v. 4: contrastes da intimidade contemporânea.São Paulo:Companhia das Letras,1998, p.659-726., p. 670-673).

Porém, a provável valorização de suas terras e de seus produtos, em meio ao crescimento da demanda por alimentos nos centros urbanos e industriais, bem como a indefinição jurídica das terras devolutas, pode ter impulsionado o avanço de fazendeiros daquela localidade no sentido de se apropriar das terras dos posseiros. No contexto pós-Golpe, esses grupos reforçaram seu poder junto ao Estado, contando com o apoio de agentes da polícia para executar ações extralegais sobre a comunidade de lavradores que rodeava suas posses. As ameaças de expulsão e a concretização de atos de violência contra os posseiros, por sua vez, quase detonaram um levante de grandes proporções. Não uma revolta para alterar a ordem social vigente, mas sim um movimento para preservar ou recuperar costumes tradicionais, o que aproxima aqueles trabalhadores do que Hobsbawm e Thompson chamam de rebeldes primitivos.31 31 O caso de Saluzinho evoca algumas semelhanças com o bandido social analisado por Hobsbawm, apesar de não se enquadrar completamente nele: o primeiro não questiona a exploração de fazendeiros sobre outros agricultores; reivindica apenas que as relações hierárquicas entre esses sujeitos se deem no interior de limites tidos como “justos” pela tradição, que, em seu caso específico, implica a manutenção de sua condição de agricultor autônomo. Por outro lado, Saluzinho é uma figura distinta da de Lampião, a qual foi objeto de análise do historiador inglês. O lendário cangaceiro, juntamente com seu grupo, tomava a iniciativa de praticar roubos e assassinatos; ao passo que o posseiro, no episódio em questão, defendia-se da ameaça de expulsão das terras que cultivava. Na sequência, o ímpeto inicial dos lavradores deve ter perdido força, diante do possível cálculo a respeito da relação de forças entre eles, os fazendeiros e a polícia, e por isso muitos abandonaram o confronto direto. Saluzinho, porém, decidiu levar a luta adiante: chegou a lutar sozinho com armas, de maneira obstinada, contra um amplo contingente de policiais e capatazes mais bem equipados; com isso, dava uma resposta individualizada a sentimentos de opressão e arbitrariedade coletivamente experimentados.

Também é possível que Saluzinho, ancorado nos direitos tradicionais, tenha dado um passo no sentido de um pensamento mais amplo e abstrato, estimulado pelas lutas efervescentes até o Golpe de 1964 e pela resistência fragmentada de militantes na segunda metade da década de 1960. Esse posseiro não se opunha somente aos seus adversários concretos, os fazendeiros e jagunços que o atacaram diretamente, mas também odiava o latifúndio, em sentido amplo, identidade política forjada em oposição a identidade de camponês (Novaes, 1997NOVAES,Regina Reyes.De corpo e alma: catolicismo, classes sociais e conflitos no campo. Rio de Janeiro:Graphia,1997.). Mesmo não participando diretamente das organizações que promoviam esse caminho, como sindicatos, movimentos e partidos, a resistência de Saluzinho também pode ter sido motivada pelos sentimentos e conhecimentos decorrentes das ações desses grupos. Em suas experiências diversificadas em várias regiões, dialogando com diferentes atores, esse posseiro pode ter estabelecido contato com fragmentos desse pensamento político sem, contudo, assumir uma identificação mais clara e sistematizada.

Apesar de prevalecerem por muitos anos as dúvidas sobre seu paradeiro, a resistência de Saluzinho continuou presente na tradição oral do sertão. Depois de seu conflito mais marcante, Saluzinho passou a ser lembrado como um homem de grande valentia, para alguns, como herói dos posseiros, para outros, como bandido sanguinário. A primeira perspectiva ficou mais restrita aos posseiros da região durante décadas, em vista da força da segunda perspectiva, imposta pelas autoridades e imprensa.

A reação das pessoas com relação a Saluzinho era terrível. Para a maioria, Saluzinho era um homem muito perigoso, um bandido. Eu lembro-me que as mães até brincavam com os filhos dessa forma: “Ô, meu filho, vai pra dentro. Sai da rua, sai da rua, que Saluzinho vem aí, Saluzinho vem aí!”32 32 Luiz Chaves foi integrante da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Minas Gerais (Fetaemg) desde meados da década de 1970. Depoimento de Luiz Chaves, concedido à Covemg, em 26 de maio de 2017.

Assim, o estigma de Saluzinho chegou ao ponto de transformá-lo no “bicho-papão” daquela região, figura utilizada para assustar e controlar as crianças. Essa imagem praticamente impossibilitou seu convívio naquela sociedade, assim como o obrigou a morar e trabalhar de forma instável e precária pelo resto de sua vida. Salustiano, então, viveu isolado por muitos anos, deixando poucos vestígios sobre seu paradeiro, levando grande parte da população da região a acreditar que havia falecido na década de 1970. Essa imagem prevaleceu até a década de 1980, quando o cenário político era outro e ele foi encontrado por Luiz Chaves na região do Parque Peruaçu,33 33 O Parque Nacional Cavernas do Peruaçu localiza-se no município de Januária, Norte de Minas Gerais, a cerca de 250 km de Varzelândia. num local de difícil acesso.

Em consonância com a luta pela abertura política e a emergência de novos movimentos sociais no campo,34 34 Destacamos o crescimento do movimento sindical, mediado pela Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Minas Gerais (Fetaemg) e pela Central Única dos Trabalhadores (CUT), assim como pelas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), provenientes da Igreja católica. Nesse período, o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais SemTerra (MST) também tiveram atuação relevante no meio rural. novas forças passaram a disputar essas significações e Saluzinho voltou à cena. Nesse momento, a história de Saluzinho foi retomada para inspirar trabalhadores rurais na luta por terra e justiça, como pudemos ver numa cartilha publicada em 1980, denominada “Da roça para a cidade”. Esse material conta, de forma simples e ilustrada, uma história sobre o processo de expulsão da terra sofrido naquela região. Em certa passagem, ela menciona o caso de Saluzinho como exemplo de resistência:

- E o pessoal que permaneceu nas posse, o que aconteceu?

- Compadre Saluzinho e uns outros resistiram de arma na mão, mas era pouca gente! Saluzinho ficou 5 dia e 5 noite escondido numa gruta! Tiraram ele a poder de bomba e granada! Ele foi preso e o Coronel Giorgino botou gado nas terras!35 35 Cadernos do CET - Série Trabalho (Centro de Estudos do Trabalho/Fundação de Estudos do Trabalho/Belo Horizonte/MG). Fundo: Serviço Nacional de Informações/Arquivo Nacional. Referência BR DFANBSB V8.MIC, GNC.OOO.80001723. A menção equivocada ao Coronel Giorgino, que não participou diretamente desse conflito, mas sim do caso de Cachoeirinha (Zangelmi, 2019), é reveladora de como ambos os conflitos foram lembrados como partes de um mesmo processo de expulsão.

Depois que correu a notícia de que foi encontrado, Saluzinho passou a ser convidado pelos movimentos em ascensão para que sua luta inspirasse os trabalhadores rurais em várias regiões do estado:

Eu trouxe ele para Montes Claros [...], acharam que Saluzinho tinha morrido e foi muito bonito encontrar o Saluzinho, foi homenageado na Câmara Municipal, e eu rodei com ele, eu fiz vários encontros dos trabalhadores com ele, até Unaí, eu levei ele. Toda vez que eu fazia uma reunião com trabalhador, eu levava Saluzinho. Foi bastante conhecido aí, nessa época.36 36 Depoimento de Luiz Chaves, concedido à Covemg, em 26 de maio de 2017.

Essa reaparição de Saluzinho, em Unaí, foi registrada também na documentação intitulada “Crescimento do movimento dos trabalhadores na área rural - problemas e perspectivas”, fruto da investigação do Serviço Nacional de Informações. O documento afirma que no ano de 1986 “em Unaí (MG), por ocasião da realização do ato público contra a violência no campo, apresentou o trabalhador rural - Salustiano Gomes Ferreira (Saluzinho) - como o herói dos posseiros da região Norte de Minas”.37 37 Fundo: Serviço Nacional de Informações/Arquivo Nacional. Referência BR DFANBSB V8.MIC, GNC.OOO.86011571.

Seja como “herói”, canal de expressão para tantos trabalhadores silenciados, seja como “bandido”, para aqueles que se sentiram ameaçados pelos movimentos que contestavam o status quo, Saluzinho foi transformado em um símbolo, cujo significado continua em disputa até nossos dias. Pelo que pudemos perceber, sua trajetória não pode ser compreendida somente através dessas classificações forjadas no calor das disputas. Observados de perto, os indivíduos se mostram muito mais complexos do que as expressões dos desejos e temores que buscam conformá-los. Salustiano, ao chamar atenção de forma tão intensa, revelou a tensão e as relações de poder naquele contexto. Por outro lado, mostrou também que sua reação específica estava no universo de possibilidades que se desenhava para aqueles posseiros, expandindo nossa compreensão sobre a multiplicidade de respostas que os atores podem dar para os problemas que vivenciam coletivamente.

Referências

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  • 1
    O termo posseiro aqui empregado refere-se ao trabalhador rural que ocupa pequena porção de terras devolutas para morar e trabalhar com sua família, geralmente sem documento oficial. A condição de posseiro é legitimada pelo trabalho na terra, que ocupa por longo período, muitas vezes gerações, praticando principalmente agricultura de subsistência e estabelecendo relações de solidariedade com os outros posseiros da região. Esses trabalhadores têm grande dificuldade para legalizar suas posses e, assim, são vulneráveis ao avanço de grandes empreendimentos capitalistas. Esse avanço, em muitos casos, é concretizado através da expulsão de suas terras a mando de grileiros, que dispõem de maior poder econômico, político e militar (Martins, 1984; Motta, 2005; Espindola, 2010).
  • 2
    Grilagem de terras é o uso de documentos falsos para tomar posse de terras devolutas (do Estado, sem posse privada). O termo grilagem originou-se da prática de dar aparência de antigo para documentos falsos, ao colocá-los em contato com substâncias provenientes das fezes de grilos, que os deixam amarelados.
  • 3
    Esse encontro contou com a presença de cerca de 5 mil pessoas, dentre elas Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas, Magalhães Pinto, governador de Minas Gerais, e João Goulart, presidente do Brasil.
  • 4
    Vários relatos apontam que a esposa de Saluzinho, Dulce Gonçalves Pereira (ou Dúlcia Gonçalves de Araújo), foi torturada nessa ocasião e faleceu pouco tempo depois, talvez em decorrência dessas violências. Ver o Relatório da Comissão da Verdade em Minas Gerais - Covemg (Minas Gerais, 2017), onde são descritas as violações sofridas por esses posseiros da região, assim como por outros sujeitos que atuaram nesse processo.
  • 5
    Levi (1992) considera que a micro-história vai além da descrição densa de significados (Geertz, 1978) ao buscar compreender também as diferentes racionalidades e seus limites em cada contexto, as estratégias e conflitos presentes na vida social e as relações de poder que influenciam fortemente na construção processual dos significados. Nesse sentido, Levi também enfatiza a importância da perspectiva comparativa e da reconceitualização para melhor compreender a realidade social.
  • 6
    Dentre as fontes consultadas, destacamos os documentos do Departamento de Ordem Política e Social de Minas Gerais (Dops-MG), Serviço Nacional de Informações (SNI), várias matérias publicadas em jornais da época, entrevistas com pessoas que conviveram e dialogaram com Saluzinho e os livros de Campos (2014) e Antunes (2007). Até o momento, o processo criminal de Saluzinho não foi disponibilizado para consulta.
  • 7
    Tropa do Exército cerca líder de invasores de terras no norte de Minas. Jornal do Brasil, 22 nov. 1967, Primeiro Caderno, p. 7.
  • 8
    Sementes para o São Francisco. Jornal do Brasil, 10 mar. 1964, Primeiro Caderno, p. 11.
  • 9
    Projeto pede criação de um órgão para promover progresso rural em Minas. Jornal do Brasil, 13 out. 1966, Primeiro Caderno, p. 13.
  • 10
    O Inda foi criado pela Lei n. 4504, de 30 de novembro de 1964 (Estatuto da Terra), com regulamento aprovado em 31 de março de 1965. Tratava-se de uma autarquia ligada ao Ministério da Agricultura, cujo principal objetivo era estimular e promover o desenvolvimento das atividades agrárias através da colonização, da extensão rural, do cooperativismo, do sindicalismo e outras formas de associação, da eletrificação rural, da revenda de material agropecuário, do desenvolvimento tecnológico e da organização de comunidades. O Inda deveria antecipar-se ao Ibra, também criado pelo Estatuto da Terra, tendo em vista implementar o programa de ação econômica e social do governo, estimulando os agricultores a aumentar a sua produção e com isso aliviando as tensões sociais e os desequilíbrios econômicos regionais. Cf. Medeiros, Leonilde Sérvolo de; Araújo, Brás José de. Verbete “Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário (Inda)”, in: Fundação Getulio Vargas. Dicionário histórico-biográfico CPDOC. Disponível em: <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/instituto-nacional-de-desenvolvimentoagrario-inda>. Acesso em: 28 mar. 2020.
  • 11
    Invasor de terras é cercado pela polícia. O Estado de S. Paulo, 22 nov. 1967, p. 5.
  • 12
    Tanto o fazendeiro Oswaldo Antunes, em seu livro de memórias (Antunes, 2007), quanto Saluzinho, em entrevista a Campos (2014), relataram que a disputa pelos limites entre as terras foi um dos estopins para o conflito.
  • 13
    Em algumas fontes o chamado “Pedrão” aparece com o nome de Pedro Laurentino, em outras como Pedro Martins de Oliveira.
  • 14
    Saluzinho conta toda a história e pede justiça. O Diário de Montes Claros. 26 nov. 1967. Matéria disponibilizada em Campos (2014).
  • 15
    Líder camponês resiste cerco da polícia à bala. Correio da Manhã, 23 nov. 1967, p. 10.
  • 16
    Fome derrota jagunço para a PM: Minas. Correio da Manhã, 24 nov. 1967, Primeiro Caderno, p. 7.
  • 17
    Delegado mineiro apreende folheto que conta como um valente enfrentou a polícia. Jornal do Brasil, 20 dez. 1967, Primeiro Caderno, p. 14.
  • 18
    Bando armado reage a bala e agita posseiros em Minas. O Globo, 21 nov. 1967, p. 18.
  • 19
    Polícia mineira faz herói para camponeses. O Jornal, 20 dez. 1967, p. 11.
  • 20
    Talvez essas informações se refiram à expulsão dos posseiros da comunidade de Cachoeirinha, também em Varzelândia (MG), onde 212 famílias de posseiros foram expulsas de suas terras por grileiros nos anos de 1964 e 1967, sendo perseguidas e resistindo por décadas (Zangelmi, 2019).
  • 21
    Polícia expulsa famílias de camponeses em Minas. O Jornal, 11 fev. 1968, Primeiro Caderno, p. 5.
  • 22
    Diário da Noite (RJ), 16 fev. 1968, Segundo Caderno, p. 4.
  • 23
    A AP foi uma organização constituída em 1962 por setores progressistas da Igreja católica.
  • 24
    Arquivo Público Mineiro, Arquivos da Polícia Política - Ação Popular - Investigações. (APM/DOPS/R004/P0040).
  • 25
    Depoimento de Carlos Melgaço Valadares concedido ao autor e à Comissão da Verdade de Minas Gerais (Covemg), em 26 de maio de 2017.
  • 26
    Parte dessas ações tomava como base a Teologia da Libertação, que articulava fé e política na busca por justiça social e econômica (Smith, 1991), numa combinação entre cristianismo e marxismo (Löwy, 1991).
  • 27
    Depoimento de Carlos Melgaço Valadares concedido ao autor e à Covemg, em 26 de maio de2017.
  • 28
    Depoimento de Carlos Melgaço Valadares concedido ao autor e à Covemg, em 26 de maio de2017.
  • 29
    Arquivo Público Mineiro, Arquivos da Polícia Política - Ação Popular - Investigações. (APM/DOPS/R004/P0040/doc. 81).
  • 30
    Pelo que pudemos investigar, não houve relação direta entre os conflitos em que Saluzinho esteve envolvido no Paraná e movimentos de resistência mais amplos, que ocorreram, nesse período, especialmente no oeste e sudoeste do estado. Segundo Campos (2014), Saluzinho morou na região de Loanda, noroeste do Paraná. Aparentemente, participou de conflitos isolados, em torno de disputas específicas. No entanto, devido à intensidade dos conflitos no período, não podemos descartar a possibilidade de notícias terem chegado a esse posseiro e, assim, terem influenciado suas ações de enfrentamento.
  • 31
    O caso de Saluzinho evoca algumas semelhanças com o bandido social analisado por Hobsbawm, apesar de não se enquadrar completamente nele: o primeiro não questiona a exploração de fazendeiros sobre outros agricultores; reivindica apenas que as relações hierárquicas entre esses sujeitos se deem no interior de limites tidos como “justos” pela tradição, que, em seu caso específico, implica a manutenção de sua condição de agricultor autônomo. Por outro lado, Saluzinho é uma figura distinta da de Lampião, a qual foi objeto de análise do historiador inglês. O lendário cangaceiro, juntamente com seu grupo, tomava a iniciativa de praticar roubos e assassinatos; ao passo que o posseiro, no episódio em questão, defendia-se da ameaça de expulsão das terras que cultivava.
  • 32
    Luiz Chaves foi integrante da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Minas Gerais (Fetaemg) desde meados da década de 1970. Depoimento de Luiz Chaves, concedido à Covemg, em 26 de maio de 2017.
  • 33
    O Parque Nacional Cavernas do Peruaçu localiza-se no município de Januária, Norte de Minas Gerais, a cerca de 250 km de Varzelândia.
  • 34
    Destacamos o crescimento do movimento sindical, mediado pela Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Minas Gerais (Fetaemg) e pela Central Única dos Trabalhadores (CUT), assim como pelas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), provenientes da Igreja católica. Nesse período, o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais SemTerra (MST) também tiveram atuação relevante no meio rural.
  • 35
    Cadernos do CET - Série Trabalho (Centro de Estudos do Trabalho/Fundação de Estudos do Trabalho/Belo Horizonte/MG). Fundo: Serviço Nacional de Informações/Arquivo Nacional. Referência BR DFANBSB V8.MIC, GNC.OOO.80001723. A menção equivocada ao Coronel Giorgino, que não participou diretamente desse conflito, mas sim do caso de Cachoeirinha (Zangelmi, 2019), é reveladora de como ambos os conflitos foram lembrados como partes de um mesmo processo de expulsão.
  • 36
    Depoimento de Luiz Chaves, concedido à Covemg, em 26 de maio de 2017.
  • 37
    Fundo: Serviço Nacional de Informações/Arquivo Nacional. Referência BR DFANBSB V8.MIC, GNC.OOO.86011571.
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    Os autores agradecem às (aos) pareceristas pelas críticas e sugestões que contribuíram para o enriquecimento deste artigo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    19 Abr 2020
  • Aceito
    20 Ago 2020
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