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Conflitos intraelite, cidadania e representação da minoria: o debate parlamentar sobre a reforma eleitoral de 1875

Intra-elite conflicts, citizenship and minority representation: the 1875 electoral reform parliamentary debates

Resumo:

Analisa-se aqui o debate parlamentar que antecedeu a promulgação, no Brasil, da lei eleitoral conhecida como Lei do Terço (1875). Abordam-se duas questões que ganharam centralidade na discussão após a apresentação do projeto de reforma eleitoral: a adoção da eleição direta ou a manutenção da eleição em dois graus, e o método a ser utilizado para garantir a representação da minoria no Legislativo. Procura-se demonstrar que as divergências no interior da elite política expressavam diferentes concepções de governo representativo, tendo em vista a necessidade de obter legitimidade e eficácia decisória para o Estado, em um contexto escravista e de profunda hierarquia social. O Legislativo é apresentado como instância com papel decisivo para institucionalizar os conflitos entre os distintos setores da heterogênea elite política, com protagonismo dos partidos na articulação das propostas e no encaminhamento do debate.

Palavras-chave:
Lei do Terço; Partidos; Governo representativo

Abstract:

In this article I analyze Parliamentary Debates that preceded the approval of the 1875 Brazilian electoral Bill, known as “Lei do Terço”. After the Executive Power presented the House of Representatives, in 1873, a new bill regarding elections in the country, two issues capitalized the debates. First, the discussions of how the elections should henceforth be organized, either indirectly, as was the rule, or from then on directly. Secondly, how to ensure the representation of political minorities. I intend to demonstrate that political elites’ dissent expressed different views regarding a representative government. A crucial matter in order to assure both legitimacy and an effective process of decision making in a country torn by slavery and deep social hierarchization. The Legislative Power had then a preeminent role in institutionalizing conflicts among a heterogeneous political elite, as political parties took the forefront regarding legislative proposals and ongoing debates.

Keywords:
1875 Electoral Bill; Political parties; Representative government

A análise do debate em torno da legislação eleitoral no parlamento brasileiro no século XIX permite refletir sobre as diferentes visões que permeavam a elite a respeito do perfil do arranjo político-institucional que deveria prevalecer. Construir uma nova nação, garantir a continuidade da escravidão, promover a reprodução cotidiana da profunda hierarquia social eram objetivos que só poderiam ser atingidos com a atuação decisiva do Estado. O que se traduzia em capacidade de preservar a ordem, formular e implementar políticas, conquistar legitimidade perante diversos setores, oferecer instâncias de negociação, conflito e decisão para os diferentes grupos da elite, de modo a impedir que os antagonismos transbordassem as instituições em forma de luta armada (embora esta nem sempre tenha sido evitada). Tratava-se de canalizar institucionalmente as demandas de uma elite heterogênea, que se dividia conforme o tema em pauta, fosse por sua origem provincial, por sua inserção econômica, por crenças doutrinárias ou por filiação partidária. Decisões e sua implementação, relativas aos mais variados temas, necessitavam de espaço institucional considerado eficaz e legítimo para internalizar e transformar em política os diversos elementos que pressionavam o contexto interno e o externo. Assim, sem negar que interesses concretos estivessem obviamente presentes, o debate político era também o debate em torno de visões distintas sobre a forma considerada mais eficaz para cumprir este papel e ao mesmo tempo preservar a ordem escravista.

Um regime no qual o imperador desse a última palavra ou impusesse, de alguma forma, sua vontade não preencheria estes requisitos. Da mesma maneira, um governo controlado por determinada elite econômica que instrumentalizasse o Estado para o atendimento de suas demandas não contemplaria as condições acima descritas. A eficácia decisória dependia da existência de espaços para negociar as diferentes demandas dos setores da elite e também era pré-requisito para que estes reconhecessem a legitimidade do regime. Na monarquia brasileira, o Legislativo foi uma instância estratégica para costurar acordos que contemplassem prioridades, objetivos e interesses comuns aos grupos que conseguiam constituir maioria a cada contexto, impondo-se a minorias que deveriam acatar sua derrota. As divergências muitas vezes não eram superadas, mas encontravam nas instituições fórmulas para serem acomodadas. Resoluções nunca permanentes, mas que variavam ao sabor das mudanças na economia, na sociedade, no contexto externo, como também ao sabor da dinâmica institucional no interior da qual estas resoluções eram continuamente construídas.

Por outro lado, se o processo decisório era monopólio dos diferentes setores de elite, a legitimidade buscada pelo Estado tinha também o sentido de ser reconhecido por grupos mais amplos e fazer valer seu papel normativo e implementar determinadas políticas. Desta forma, era preciso criar mecanismos de legitimação perante os diferentes grupos sociais que compunham o conjunto que ficou conhecido como homens livres pobres. Grupos rurais e urbanos, libertos e livres, que desempenhavam as mais diversas atividades, que muitas vezes se rebelavam e colocavam em xeque o próprio Estado. Mas para que revoltas e questionamentos não se transformassem em um conflito permanente que colocaria em risco a continuidade da ordem escravista, não bastava repressão.

Para obter legitimidade e eficácia decisória não seria suficiente uma espécie de simulacro de instituições liberais. O governo representativo predominava no mundo ocidental e foi adotado pelos países da América que fizeram suas independências no início do século XIX. No Brasil, a monarquia constitucional tinha as características próprias dos regimes liberais oitocentistas. A elite brasileira compartilhava deste repertório, na defesa de um regime que lhe garantia o controle, ao mesmo tempo que prescrevia uma nova relação entre Estado e indivíduos, transformados em cidadãos, um novo desenho institucional, com poderes autônomos e uma assembleia de representantes eleitos. Para além das características básicas destes regimes, as instituições foram organizadas e moldadas de diferentes formas a partir das experiências concretas de cada país.

No Brasil, o perfil da monarquia esteve permanentemente em disputa. A hipótese da pesquisa da qual este artigo faz parte é que esta disputa se deu em várias frentes, entre elas, no interior do Legislativo e na relação deste com o Executivo. Estavam presentes concepções distintas de representação, que incluíam o perfil do representante a ser eleito, a definição de cidadania, o equilíbrio entre poderes. Além disso, proponho que os partidos tiveram papel fundamental para organizar os diferentes projetos e concepções, ao defenderem propostas antagônicas.1 1 Esta abordagem, ao propor a heterogeneidade da elite que resolvia seus conflitos em um Legislativo com autonomia e peso no processo decisório, segundo as características próprias de um governo representativo oitocentista, diverge das análises propostas por Holanda (1985), Graham (1997), Carvalho (2008) e Matttos (1987). Autores que, com interpretações divergentes entre si, concordam que o governo representativo era falseado em função da imposição da vontade do imperador, ou dos interesses de uma elite hegemônica, ou ainda pelos potentados locais. A referência ao projeto de um e outro partido fundamenta-se na atuação de suas lideranças no Parlamento, a quem se alinhavam deputados e senadores nas suas intervenções em plenário. As filiações partidárias eram pautadas por alianças e disputas locais. Mas isto não inviabilizava que as lideranças, no Rio de Janeiro, no exercício da representação, abraçassem projetos que definiam linhas partidárias distintas e antagônicas entre si.2 2 Este é o critério adotado por Jeffrey Needell (2006, p. 74) que também aponta a imprensa política como expressão das posições partidárias. O autor salienta a importância dos partidos na dinâmica política do Segundo Reinado. No entanto, em sua análise, apenas os saquaremas e seus herdeiros, os emperrados, na década de 1870, tinham compromisso com a defesa do governo constitucional representativo. Por esta razão empenharam-se em garantir que o Parlamento tivesse papel significativo nas decisões das políticas de Estado. O que só seria possível se o ministério não respondesse apenas ao imperador, mas também tivesse que contar com maioria na Câmara dos Deputados. Por outro lado, para ele, liberais e conservadores moderados basicamente serviam aos projetos do imperador. Como se procurará apontar neste artigo, contudo, a defesa do papel da Câmara no governo representativo era compartilhada por todos os partidos.

Um tema privilegiado para analisar a dinâmica do governo representativo é a intensa e contínua discussão sobre a legislação eleitoral que percorreu todo o Segundo Reinado e que resultou em cinco leis principais, promulgadas em 1842, 1846, 1855, 1875 e 1881. Este artigo tem por objetivo analisar o debate que precedeu a aprovação da lei de 1875.3 3 Em outro artigo (Dolhnikoff, 2017) analisei o debate em torno das Instruções de 1842 e das leis de 1846 e 1855. As referências neste texto às questões relativas a estas leis constam deste artigo anterior. A constância com que os parlamentares discutiam a legislação eleitoral indica que consideravam que, apesar das fraudes e violência que marcavam os pleitos na época, a lei tinha algum impacto sobre seus resultados. Conforme a conjuntura específica, a posição dos partidos variou ao longo do período. Na primeira metade da década de 1840, no contexto do Regresso, o Partido Conservador tinha nas Instruções de 1842 a expressão de sua visão sobre as diversas questões que envolviam a organização das eleições. Com proposta divergente, o Partido Liberal empenhou-se em rever as normas eleitorais e foi bem-sucedido com a aprovação da lei de 1846, durante o Quinquênio Liberal. Como procurei demostrar em artigo anterior, estavam em jogo perspectivas distintas sobre o perfil do governo representativo.

A partir de 1846, o debate partidário assumiu nova dinâmica com a divisão dos conservadores sobre o tema. Enquanto os saquaremas permaneciam aferrados ao modelo até então defendido pelo partido, uma parcela dele, liderada pelo marquês de Paraná, assumiu um dos pontos centrais do projeto liberal: a necessidade de garantir a representação da minoria. Chamados de conservadores moderados se aliaram aos liberais para aprovar, sob o Ministério da Conciliação, nova lei que consagrava a única forma então conhecida para que o partido minoritário nas eleições tivesse representação no Parlamento: o voto distrital consagrado pela Lei dos Círculos aprovada em 1855.

A legislação eleitoral no Império tem sido analisada por diversos autores como mera aparência, uma vez que o resultado dos pleitos era determinado pela fraude, o clientelismo e a violência. Assim Richard Graham interpreta o intenso esforço legislativo, que resultou em diferentes leis sobre eleições, como resposta aos impasses criados pela importação de um modelo político que não condizia com a realidade herdada do período colonial. As várias reformas eleitorais teriam como objetivo apenas manter a aparência de uma democracia representativa. Nesse sentido, o autor considera que os legisladores desejavam organizar eleições que criassem mecanismos para que vozes divergentes no interior da elite acreditassem ser possível obter algum grau de vitória eleitoral, de modo a conferir legitimidade ao regime. As leis acenavam com medidas para limitar o controle do governo e garantir a chamada representação da minoria. Destinadas ao mundo das aparências, contudo, estas leis pouco impactariam nas eleições, comandadas pelo clientelismo e pela intervenção do governo (Graham, 1997GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997., p. 104-112). Nesta perspectiva, as leis não eram fruto de projetos políticos específicos, e o debate sobre elas não ganha relevância, uma vez que o sistema é compreendido pela chave das relações clientelistas. Em relação especificamente à lei de 1875, Graham considera, equivocadamente como se verá a seguir, que a determinação de que cada eleitor votasse em dois terços do número de candidatos que sua província elegia teria sido proposta do Partido Liberal para garantir que houvesse alguma representação da minoria partidária no Parlamento, de modo a manter a aparência de alternância por via das eleições. Proposta que em 1875 teria recebido a adesão dos conservadores, sendo então promulgada a Lei do Terço (Graham, 1997GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997., p. 109).

José Murilo de Carvalho, por sua vez, considera que as eleições eram ditadas pela vontade do Poder Moderador e da restrita elite política homogênea a ele articulada. Também para ele, a transposição de um modelo liberal, estranho à realidade herdada do período colonial, criou a necessidade de conciliar modelo e contexto real, e desta forma deve ser entendida a abundante legislação eleitoral do período. Três temas teriam norteado o debate parlamentar sobre estas leis: a definição da cidadania, a representação da minoria e a eliminação da interferência do governo e do poder privado. Mas a lógica que prevaleceu, segundo Carvalho, foi a progressiva restrição dos direitos de cidadania. Em relação especificamente à lei de 1875, o autor faz apenas uma breve menção, apontando que se tratava da adoção de uma nova fórmula para obter a representação da minoria em lugar do voto distrital. Carvalho ressalta que as diversas leis não foram capazes de limitar a intervenção do governo, pois esta era condição para a estabilidade do regime. Apenas a interferência do Poder Moderador nos pleitos, garantindo a vitória de uma maioria que apoiasse o ministério por ele nomeado, manteria o conflito intraelite regulado, sem extrapolar os limites institucionais. Todas estas questões estavam relacionadas, na interpretação de Carvalho, à necessidade de resolver o que considera “o grande dilema da política imperial: como tornar o poder mais dependente dos interesses da classe proprietária rural sem, no entanto, deixar de ser árbitro dos conflitos entre setores desta mesma classe” (Carvalho, 2008, p. 397). A hipótese aqui sustentada é que os conflitos intraelite tinham no Legislativo fórum crucial para sua regulação e por isso as leis eleitorais tinham relevância.

Em relação a outro ponto central do debate que precedeu a promulgação da lei de 1875, a eleição direta, Jeffrey Needell atribui sua defesa pelos emperrados, entre outras razões, ao seu compromisso em preservar a legitimidade da Câmara e o papel dos representantes na dinâmica política institucional. Segundo ele, uma ideia cara aos saquaremas (Needell, 2006, p. 263). Como se procurará demonstrar, o tema dividiu os partidos em função das concepções distintas de governo representativo, regime que todos defendiam.

Por outro lado, diversos historiadores reconhecem que a legislação eleitoral não era inócua. Carvalho, por exemplo, afirma que a Lei dos Círculos promulgada em 1855, que introduziu o voto distrital e proibiu que magistrados se candidatassem nos distritos onde exerciam jurisdição, teria resultado em significativa renovação da Câmara dos Deputados. Renovação partidária, uma vez que se elegeram deputados dos dois partidos, em contraste com as câmaras anteriores, dominadas por um único partido. Renovação também no tipo de representante eleito, pois teria havido um reforço no poder das autoridades locais, que, com o voto distrital conquistaram capacidade de se eleger sem mediação das lideranças políticas nacionais (Carvalho, 2008, p. 399). Além disso, o mesmo autor considera que a lei de 1881, ao adotar a eleição direta, foi responsável pela drástica redução do eleitorado (Carvalho, 2008, p. 399). Sergio Ferraz, por sua vez, ao apresentar uma análise segundo a qual mais da metade das quedas de gabinetes no Segundo Reinado foram consequência da oposição a eles na Câmara, afirma que a adoção do voto distrital em 1855 teria tornado mais difícil para o Executivo construir maiorias na Câmara e por isso teria acirrado os embates entre ambos (Ferraz, 2017, p. 81).

Os historiadores, ao analisarem a legislação eleitoral do Império, têm privilegiado a lei de 1846, a Lei dos Círculos e a lei de 1881. Enquanto a lei promulgada em 1875, a chamada Lei do Terço, tem recebido menor atenção. Na primeira metade da década de 1870, sob o ministério conservador moderado presidido por Rio Branco, o contexto havia sofrido transformações importantes. Em consequência, reformas de grande impacto foram propostas e algumas aprovadas, entre elas a Lei do Ventre Livre. Reformas que respondiam a questões de envergadura: a reorganização partidária com a experiência da Liga Progressista, na década de 1860, a necessidade de enfrentar a questão da escravidão, o surgimento de um ainda incipiente, mas organizado, movimento republicano, a perspectiva de que o regime precisava se modernizar através de reformas de fundo, especialmente defendidas pelos liberais, como a reforma judiciária, e a consagração de maior autonomia para os governos provinciais. Todos estes pontos levaram a uma espécie de revisão de posições. Do ponto de vista dos partidos houve um reagrupamento em relação às décadas anteriores.

Alguns conservadores moderados que haviam aderido à Liga Progressista incorporaram-se ao Partido Liberal quando aquela acabou. Os liberais dividiam-se em grupos mais ou menos reformistas. Os conservadores continuavam divididos entre moderados e emperrados (uma espécie de herdeiros dos saquaremas). Mas o alinhamento político mudou, pelo menos no que dizia respeito à reforma eleitoral, quando da discussão sobre o projeto apresentado na Câmara pelo gabinete Rio Branco em 1873.

Várias foram as questões envolvidas no debate que precedeu a aprovação da lei de 1875. Este artigo abordará duas delas. Em primeiro lugar, o confronto entre a defesa da manutenção da eleição em dois graus e a adoção da eleição direta. Este foi o tema central debatido na Câmara e no Senado. O segundo ponto a ser analisado é a representação da minoria, não apenas pela centralidade que teve na discussão, mas também pelas novidades que trazia e pela consonância com o que estava sendo discutido na Europa.

No debate que se iniciou na Câmara em 1874, liberais e emperrados se articularam em oposição aos conservadores moderados do gabinete e da maioria na Câmara. Segundo afirmou em discurso no plenário o deputado liberal Martinho Campos, a oposição ao gabinete contava com cerca de quarenta deputados.4 4 Portal da Câmara dos Deputados do Brasil, Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 7 jul. 1874, p. 68. Nas próximas notas será usada a abreviação AC. Ele se referia à oposição ao projeto e incluía neste grupo tanto os liberais como os emperrados. Ambos unidos para defender a eleição direta. O número foi confirmado depois por Gusmão Lobo, deputado alinhado ao governo, que afirmou que a oposição tinha 48 votos contra setenta ministerialistas.5 5 AC, sessão de 23 jul. 1874, p. 245.

Embora o gabinete Rio Branco contasse com a maioria dos deputados, uma oposição de cerca de quarenta parlamentares foi suficiente para obrigar o ministério a negociar. A lei aprovada em 1875 resultou de importantes mudanças no projeto original. Este é um elemento entre outros a indicar que, para analisar a relação entre Parlamento e Executivo na monarquia brasileira, não basta constatar uma maioria do mesmo partido do ministério para concluir que este controlava a Câmara dos Deputados. Em primeiro lugar, porque dependendo do tema o partido podia dividir-se em dois grupos, como aconteceu com os conservadores em relação a esta reforma eleitoral. Em segundo lugar, porque ter a maioria, diante da presença de minoria com relativo peso e articulação, não desobrigava o ministério a negociar com o Parlamento e ceder em pontos às vezes centrais para garantir a aprovação de um projeto. No caso do projeto apresentado no final de 1873, a prioridade de manter a eleição em dois graus, combatida por liberais e emperrados, levou o ministério a ceder em outros itens decisivos para a dinâmica do processo eleitoral, entre eles a composição da junta de qualificação e a fórmula para garantir a representação da minoria.

Diretas

Prevista na Constituição de 1824, a eleição em dois graus dividia os cidadãos com direito a voto em dois grupos. Os votantes elegeriam os eleitores que, por sua vez, votariam nos candidatos a deputado e senador. A principal diferença nos requisitos para ser votante e eleitor era a renda e ter nascido livre para o segundo (os libertos poderiam ser apenas votantes). Lei aprovada em 1846 indexou a renda exigida na Constituição ao valor da prata, com o argumento de atualizá-la em relação à inflação. A partir de então a renda exigida passou a ser o dobro, 200 mil réis para ser votante e 400 mil réis para ser eleitor.

Em 1874, pela primeira vez, a eleição direta ocupou o centro do debate. Estavam em pauta três propostas distintas que refletiam concepções diversas sobre a participação de setores da população no processo eleitoral. Nenhuma delas se alinhava ao sufrágio universal, permanecendo fiéis ao preceito constitucional que reservava o direito de voto e de candidatura a cidadãos que preenchessem determinados requisitos. Como indicou Graham, apesar das limitações impostas, a percentagem de votantes no Brasil era alta, se comparada com países europeus, perfazendo cerca de 50% dos homens livres (Graham, 1997GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997., p. 147). Em 1874 estava em jogo esta percentagem e o tipo de participação.

A aliança entre emperrados e liberais em torno da eleição direta representou uma reconfiguração da articulação política em matéria eleitoral, substituindo a aliança entre liberais e conservadores moderados das décadas de 1840 e 1850. Em 1874 era uma aliança de circunstância, pois a proposta de eleição direta dos liberais não era a mesma que a dos emperrados. Além disso, em outros temas, como a qualificação e a representação da minoria, liberais e emperrados estiveram em lados opostos.

No Partido Conservador havia divergências sobre como conciliar ilustração e formas de representação que garantissem a legitimidade do regime e sua eficácia decisória. Esta divisão esteve presente na discussão sobre o voto distrital a partir de 1846. Em 1874 ela se expressava, entre outras, na oposição entre eleição direta e eleição em dois graus.

Para os moderados do gabinete, a legitimidade do regime dependia da manutenção do direito de voto para ampla parcela da população. Para garantir que o princípio da capacidade e ilustração prevalecesse era necessário que a maioria participasse apenas como votante, ou seja, não tivesse influência direta sobre a escolha de deputados e senadores, que ficaria a cargo dos eleitores, presumivelmente portadores de ilustração. Dividir os cidadãos entre aqueles com direito de escolher deputados e senadores e aqueles com função de apenas indicar os eleitores, sem influírem diretamente na escolha dos representantes, era a fórmula segura para, tendo em vista a menor capacidade de parte da população, não excluí-la do processo eleitoral. Assim, afirmava o deputado José de Alencar: “a eleição indireta é o verdadeiro corretivo dos abusos do sufrágio universal. Desde que se combinar com a representação da minoria, o legislador pode afoitamente, sem o menor receio, deixar que a liberdade do voto se expanda em toda a sua plenitude”.6 6 AC, sessão de 13 jul. 1874, p. 131. Segundo Alencar, a eleição indireta permitiria maior participação da população, uma vez que o primeiro grau estava “ao alcance da quase universalidade dos cidadãos, o segundo ao alcance dos mais capazes e instruídos”.7 7 Idem, p. 135. Estabelecia-se, no seu entender, relações de representação cumulativas, pois “o sistema representativo é o sistema da delegação. A soberania transmite-se de grão em grão para formar o poder constituído”.8 8 AC, sessão de 13 jul. 1874, p. 135.

No mesmo sentido, o ministro do Império João Alfredo Correa de Oliveira invocava a capacidade na defesa da eleição indireta. O votante seria capaz de escolher o eleitor, mas não de eleger deputados e senadores, isto porque, ao votar em alguém no âmbito da paróquia,

o votante escolhe o eleitor que vive em contato com ele, cujos sentimentos, aspirações e interesses conhece (...). Até aí chegam as habilitações do votante de paróquia. Mais do que isso é o que não poderiam fazer ou não faria bem o indivíduo que tem conhecimentos limitados à sua freguesia e quando muito à sua comarca e não conhece os interesses de um extenso país, as ideias em discussão, nem os homens capazes de realizá-las.9 9 AC, sessão de 22 jul. 1874, p. 366.

Os emperrados, por sua vez, entendiam que a ilustração dos representantes dependia da participação exclusiva de eleitores virtuosos. A adoção da eleição direta, com exigência de renda prevista na Constituição para ser eleitor, indexada em prata conforme a lei de 1846, excluiria a massa de votantes que consideravam ignorantes, manipulada pelo governo e potentados locais, e incapaz de participar do processo decisório mesmo que indiretamente. A um deputado pelo Ceará que havia afirmado que representava na Câmara 38 mil votantes, Paulino Soares de Souza, filho do visconde do Uruguai e um dos principais líderes dos emperrados na Câmara, respondia que

o fim de sua presença nesta casa é defender os interesses do Ceará e principalmente os grandes interesses do país, não nos termos de um mandato ordinário, mas segundo sua ilustrada consciência. Para julgarem se o nobre deputado bem desempenha este dever, deve ele querer constituintes que, tendo pelo menos noção, senão conhecimento desses elevados e tão caros interesses, deem-lhe com sua aprovação e voto a força política que não podem dar os votantes atuais, em sua máxima parte ignorantes, pela inferioridade de sua condição, dos deveres da vida pública10 10 AC, sessão de 13 jul. 1874, p. 360.

Além da questão da capacidade, estava em jogo o debate sobre a melhor estratégia para limitar fraudes e manipulações. O deputado Francisco Belisário Soares de Souza, membro da dissidência conservadora, argumentava que a eleição direta seria o melhor remédio, pois não haveria mais candidatos a eleitor cabalando votos dos votantes e para isso recorrendo ao apoio do governo. Na eleição direta, como o eleitorado não seria definido por uma eleição prévia, como todos os que preenchessem os requisitos legais votariam, não haveria dependência do governo e, portanto, liberdade de voto.11 11 AC sessão de 10 jul. 1874, p. 327. Nas palavras do deputado Brusque, um direito que derivaria “por si mesmo da posição social do homem, da sua fortuna, da sua indústria, da sua ciência, enfim da sua capacidade verificada. Nessas condições, para adquirir o direito não há mister em corromper as massas, nem lisonjear o poder”.12 12 AC sessão de 21 jul. 1874, p. 225.

Os emperrados criticavam também o fato de que, com a eleição em dois graus e a consequente definição de quantos eleitores dava cada paróquia, apenas os eleitores escolhidos pelos votantes poderiam votar. Com a eleição direta, todos os que preenchessem os requisitos para serem eleitores participariam do pleito.13 13 As chamadas eleições primárias - a escolha dos eleitores pelos votantes - eram realizadas por paróquia, sendo que uma lei ordinária definia o número de eleitores a que cada paróquia tinha direito. Este critério variou ao longo do tempo. A lei de 1846 estabeleceu que cada paróquia daria um eleitor para cada quarenta votantes. A lei de 1860 prescreveu um eleitor para cada trinta votantes, ampliando assim o número dos eleitores por paróquia. O projeto de 1873 seguiu esta tendência ao estabelecer que cada paróquia elegeria um eleitor para cada 25 votantes. A lei aprovada em 1875, entretanto, modificava o projeto e estabeleceu que, tendo em vista o recenseamento de 1872, cada paróquia teria direito a escolher um eleitor por quatrocentos habitantes de qualquer sexo e condição. Era uma ampliação significativa, uma vez que a base de cálculo deixava de ser o número de votantes (restrito aos homens maiores de 25 anos com renda de 200 mil réis anuais) para ser a população, incluindo mulheres e aqueles que não alcançavam a renda para ser votante. A constante elevação do número de eleitores por paróquia, contudo, não modificava o princípio de que, com a eleição em dois graus, apenas uma parcela dos que preenchiam os requisitos para serem eleitores efetivamente exerciam o direito de voto. Propunham assim uma exclusão (a dos votantes) que garantia uma inclusão (todos que poderiam ser eleitores). Diminuía-se o número total daqueles que participavam das eleições, mas ganhava-se, nesta concepção, a participação de todos que tinham as virtudes para escolher os melhores representantes. Segundo Paulino Soares de Souza:

Uma das vantagens da eleição direta é alargar consideravelmente o quadro de eleitores, que se tornará latíssimo, comparativamente ao atual. Conta hoje todo império pouco mais de vinte mil eleitores, que se reúnem em colégios para designação dos deputados, senadores e membros das assembleias provinciais. Adotada a eleição direta censitária nos termos que indiquei, ou ainda mesmo que se exigisse mais elevado censo, só o município da Corte, que hoje dá 300 e tantos eleitores, qualificará mais que o dobro dos que hoje votam em todo o império.14 14 AC, sessão de 13 jul. 1874, p. 360.

Realizar-se-ia, nesta concepção, a relação de representação plena, pois nas eleições em dois graus, um grupo, os votantes, estabelecia uma conexão com os eleitores que não era de representação. Segundo Paulino,

existirá o elo político entre o representante da nação e o eleitor, mas não vai ele até o votante, pois vós mesmo o julgais sem a aptidão para conhecer quem está no caso de desempenhar o encargo legislativo. E nesta incapacidade fundais o vosso sistema de eleição indireta.15 15 AC, sessão de 20 jul. 1874, p. 358.

Já os liberais defendiam as eleições diretas de acordo com uma concepção distinta da representação. Não desprezavam o valor da ilustração e da capacidade, por isso não defendiam o sufrágio universal, mas entendiam que a legitimidade dependia de uma relação de representação entre todos que votavam e os candidatos a representantes, o que só seria viável se os votantes se tornassem eleitores, por isso queriam eleição direta com exigência da renda necessária para ser votante. Tratava-se, portanto, de uma inclusão dupla. Os votantes passariam a ter influência direta, votando nos candidatos a deputado e senador, e todos os que preenchiam o requisito para ser eleitor votariam, sem depender de uma escolha prévia de um número limitado deles. Para garantir que a inclusão dos votantes como eleitores não fosse ilimitada, defendiam uma nova interpretação da renda líquida exigida pela Constituição. Renda líquida seria o resultado da renda do trabalhador menos os gastos com sua sobrevivência, aumentando na prática a renda exigida para votar.

Ou seja, da mesma forma que fizeram os liberais em 1845, ao defenderem a indexação da renda à prata, em 1874 eles advogavam que era preciso tornar mais rigorosa a definição da renda prevista na Constituição. Desse modo, seria possível tornar eleitores os votantes, nas eleições diretas, sem serem incluídos aqueles que a Carta pretendera excluir. Assim, Eufrásio Correa propunha acrescentar no artigo que definia os critérios de aferição da renda este novo entendimento sobre renda líquida: “Como renda líquida só se pode considerar aquela que serve para a formação do capital, isto é, a sobra dos lucros ou da renda anual que não foi consumida na mantença do indivíduo e sua família”.16 16 AC, sessão de 23 jul. 1874, p. 251. Esta nova definição de renda líquida não foi incorporada à lei promulgada em 1875. Por outro lado, a lei inovou ao estabelecer critérios para definir a renda, de modo que normatizava neste ponto a atuação das juntas de qualificação. Apresentava uma lista de grupos que tinham renda reconhecida ou presumida e, portanto, tinham que ser automaticamente qualificados. Mas não excluía da possibilidade de ser votante aquele que não pertencia a estes grupos, pois admitia a comprovação de renda por testemunha.

Para defender a inclusão dos votantes como eleitores em eleições diretas, os principais argumentos dos liberais eram o da capacidade e o do combate à fraude. Martinho Campos, um dos mais importantes líderes dos liberais na Câmara, afirmava que se o gabinete defendia a eleição em dois graus porque confiava no votante, então “se o votante sabe o que faz, se é capaz de discernimento e critério na eleição de eleitor, chame-o o ilustre ministro a votar diretamente para deputado”.17 17 AC, sessão de 18 jun. 1874, p. 214. Outro argumento era que, ao conferir real responsabilidade aos votantes, de escolher deputados e senadores, eles deixariam de se comportar como massa de manobra do governo, diminuindo drasticamente a capacidade deste de manipular o resultado eleitoral. Neste sentido, o senador Nabuco de Araújo argumentava que abolir a eleição para eleitor reduziria a corrupção eleitoral. Uma vez que o eleitor tinha que ser eleito, havia intervenção fraudulenta ou violenta para definir esta escolha. Por outro lado, se todos fossem eleitores, sem uma eleição prévia, as oportunidades de manipulação reduziam-se consideravelmente.18 18 Anais do Senado (AS), 30 jun. 1875, p. 462.

As intervenções de Martinho Campos, Nabuco de Aráujo, Paulino e Belisário, entre outros, deixam claro que liberais e emperrados tinham visões diferentes e objetivos diversos na defesa da eleição direta. Concordavam apenas que era a melhor maneira de combater a fraude

No início do debate na Câmara em 1874 houve certa indefinição sobre a principal divergência, a definição da renda, principalmente porque não interessava aos dois grupos explicitar suas diferenças de modo a não colocar empecilhos para a aliança em torno da eleição direta. Mas ao longo das sessões tornou-se clara a diferença: os liberais em defesa da inclusão dos votantes como eleitores e os emperrados em defesa de sua exclusão. De início houve desacordo mesmo entre os liberais, que acabaram por se unir em torno da inclusão dos votantes com nova definição de renda líquida.

Nenhum dos três grupos abria mão do critério de capacidade para definir quem deveria votar e ser votado. E, apesar de suas posições divergentes, compartilhavam da visão expressa por Diogo Velho: “Em teoria a capacidade presume-se no número, na propriedade, na renda, no imposto e na inteligência, considerados esses elementos não isoladamente mas em proporcionada combinação”.19 19 AC, sessão de 4 jun. 1875, p. 72. A questão era como cada um dos grupos via esta combinação.

Assim, para os conservadores moderados, a legitimidade viria da maior participação, mas condicionada pela capacidade. A eleição direta com censo para ser votante, na sua visão, seria sufrágio universal e com censo para ser eleitor seria esbulho. Neste último caso a legitimidade do regime seria contestada pelos excluídos. Para os liberais, era participação direta dos votantes, desde que adotado seu critério para definir a renda líquida, o que impediria a tirania do número. Para os saquaremas, era ampliar participação para todos os que podiam ser eleitores e a exclusão dos votantes.

O ministro do Império, João Alfredo, por exemplo, insistia que a eleição em dois graus aliava o critério da capacidade com a inclusão necessária para a legitimação do regime. Apenas os mais capazes votavam nos candidatos como eleitores, mas “o princípio de que o voto é um direito pertencente ao cidadão” ficava resguardado pela participação como votante. Do contrário, se os votantes fossem excluídos, a ordem interna seria colocada em risco:

eu acredito piamente que as revoluções hão de ser impossíveis no Brasil, se continuarmos a dar a liberdade ao povo, à liberdade do cidadão toda a importância que ela merece, mas não posso responder, como os nobres deputados, pela paz no momento em que o povo for privado do direito que a constituição lhe confere.20 20 AC, sessão de 13 jun. 1874, p. 346.

Quando o projeto estava em 3ª discussão, em 1875, Alencar foi ainda mais enfático. Com a eleição direta censitária

nós expulsamos, por assim dizer, do grêmio político a maioria real do país, criamos uma nação artificial e estabelecemos um antagonismo entre os homens que influem nos destinos do país e aqueles que sofrem o ônus, os impostos e as contribuições. Este antagonismo há de necessariamente trazer efeitos deploráveis: um dia, por mais pacífica que seja a índole do povo, falta a paciência e a maioria real ergue-se, não para promover a anarquia, mas para reclamar a reintegração do seu direito.21 21 AC, sessão de 2 jun. 1875, p. 38.

A eleição direta com inclusão dos votantes, por sua vez, também era inaceitável para Alencar, pois seria a adoção do sufrágio universal, já que o censo para ser votante previsto na Constituição era muito baixo. O que “nos conduziria àquele regime que tanto aterroriza aos nobres deputados, ao regime napoleônico”, para ele sinônimo de “um governo despótico onipotente”.22 22 Idem.

Do outro lado, os defensores da eleição direta censitária também lançavam mão do fantasma da desordem social. Apresentavam a eleição direta como uma demanda da opinião pública nacional e por isso Belisário, por exemplo, afirmava que “o projeto aumenta a situação e o perigo que assinalo: o divórcio entre a nação e seus representantes vai ser o mais completo”.23 23 AC, sessão de 3 jun. 1875, p. 53. Divórcio que resultaria inevitavelmente, segundo ele, em revoltas e revoluções.

Por fim, os liberais que advogavam a eleição direta com renda para ser votante também apelavam para o temor de revoltas, caso sua proposta não fosse aprovada. Para eles não era aceitável para a população manter a eleição em dois graus, que limitava a participação da maioria à mera indicação dos eleitores. Também geraria reação violenta a eleição direta com exclusão dos votantes. O senador Saraiva apelava para o duque de Caxias quando este presidia o conselho de ministros, em substituição a Rio Branco:

S. Ex., apesar de ter debelado revoltas, é homem de senso. Sabe que apesar de toda a paciência do nosso povo, do espírito ordeiro da nossa população, ela às vezes se exalta, quando o sofrimento é grande, quando se persuade de que não vota, de que não é ouvida em seus negócios. A explosão pode demorar-se, mas é certa.24 24 AS, sessão de 6 ago. 1875, p. 76.

Em outro discurso, Saraiva indicava que a eleição direta com censo para ser votante não seria sinônimo de sufrágio universal, justamente por uma medida prevista no projeto ministerial: o estabelecimento de critérios para comprovar a renda. Reproduzindo o artigo do projeto que estabelecia as categorias que tinham renda legal conhecida e presumida e, portanto, deveriam ser qualificadas para votar, Saraiva afirmava que correspondiam a um projeto liberal de eleição direta, sem perigo de sufrágio universal, pois “Nessas bases se acharão todas as classes que na nossa sociedade podem ser levadas à urna, quando se tratar de votar para deputado, e não somente para eleitores”, de modo a excluir “as multidões ignorantes e brutas que não tenham uma renda”.25 25 AS, sessão de 11 ago. 1875, p. 175.

Mesmo com um sentido fortemente retórico, para reforçar suas posições, com a ameaça da ocorrência de revoltas caso seu modelo não fosse adotado, cada um dos grupos reconhecia que a legitimidade do Estado dependia das eleições. As três posições distintas indicavam três entendimentos de como esta legitimidade seria obtida pela definição de cidadania, articulada, na visão predominante no mundo ocidental, ao critério de capacidade para o exercício do voto. Critério este também em disputa. Em 1875, a promulgação da Lei do Terço, que mantinha a eleição em dois graus, foi a vitória dos conservadores moderados. Vitória que não duraria muito. Poucos anos depois, a discussão sobre a eleição direta voltou a ocupar a agenda do Parlamento e acabou consagrada na lei promulgada em 1881.

Representação da minoria

A função do Parlamento, para os diversos publicistas e políticos do século XIX, era ser o espaço de negociação da qual resultariam as melhores políticas para atender o bem comum e, principalmente, a institucionalização do conflito intraelite. No entanto, havia divergência sobre qual perfil de representantes seria o ideal para garantir a eficácia decisória do regime. No Brasil, o debate até a década de 1860 era entre, de um lado, a defesa de que os representantes deveriam ser os homens mais ilustrados da nação e, de outro, aqueles que pugnavam a necessidade de o Parlamento espelhar a diversidade de opiniões da sociedade, expressas através dos partidos, com a representação das agremiações minoritárias, de forma que tivessem voz na negociação política. Minoria para estes políticos referia-se ao partido que, em dada eleição, não tivera a maioria dos votos. Para os que defendiam esta última posição, o desafio era encontrar uma fórmula que garantisse a representação no Parlamento dos partidos minoritários, sem abrir mão do critério de capacidade.

Liberais e conservadores moderados consideravam que, sem representação da minoria, o Legislativo não seria instância eficaz de negociação e conflito entre os diferentes grupos políticos. Por isso defenderam, nas décadas de 1840 e 1850, a única forma de representação da minoria então conhecida, o voto distrital,26 26 O partido minoritário na província certamente, calculavam, seria majoritário em alguns distritos e nestes elegeria deputados. com ferrenha oposição dos saquaremas, em nome da eleição dos mais ilustrados.

A mudança na década de 1870 era que a representação da minoria havia se tornado consenso. Mesmo os emperrados não contestavam o princípio, como o fizeram os saquaremas em anos anteriores. A divergência que prevaleceu era sobre a forma como obtê-la. O Parlamento brasileiro estava em sintonia com o debate político no mundo ocidental, mais especificamente na Europa, onde haviam surgido diversas propostas para garantir a representação da minoria de forma inovadora: o voto proporcional. Este era o formato proposto no projeto do ministério em uma época na qual o voto proporcional ainda era discussão de caráter teórico, adotado parcialmente apenas pela Dinamarca e Inglaterra. Conforme afirmava Alencar,

a representação das minorias é um corolário necessário do governo representativo, o qual exige que no parlamento esteja representada fielmente a nação com todas as suas opiniões e os sentimentos que a animam (...). O sistema representativo não é a decisão dos negócios públicos nas urnas, pois isto importaria a democracia simples. O governo representativo é a decisão dos negócios num parlamento, onde todas as opiniões devem ser ouvidas, onde todas as classes e interesses sociais devem ter voz.27 27 AC, sessão de 13 jul. 1874, p. 134.

Uma vez que o voto proporcional era novidade recente, vários eram os modelos em discussão pelos publicistas e políticos. A comissão especial da Câmara dos Deputados encarregada de dar um parecer sobre o projeto apresentado pelo gabinete, o fez na sessão de 4 de agosto de 1873. Nele são elencados todos os modelos então em discussão na Europa e Estados Unidos. Muitos deles não seriam considerados hoje voto proporcional, mas assim o eram no parecer da Câmara. O parecer divide os diferentes sistemas em dois grupos: processo empírico pelo qual a representação da minoria é obtida sem ser adotada uma proporcionalidade matemática, e processo racional, no qual a representação da minoria é obtida por coeficiente eleitoral.

Os modelos apresentados no parecer considerados como pertencentes ao processo empírico eram a pluralidade simples, o voto limitado ou incompleto, o voto cumulativo, o voto plural e o voto por pontos. Já a representação da minoria pelo chamado voto racional englobava a representação pessoal com voto contingente, o voto sucessivo com o voto eventual, a lista livre com o voto simultâneo e o sufrágio uninominal com o voto transferível.28 28 AC, sessão de 4 ago. 1873, p. 9ss.

A pluralidade simples foi a fórmula adotada no projeto apresentado pelo ministério Rio Branco. Consistia no eleitor votar em um nome, sendo eleitos os mais votados na circunscrição, segundo o número de candidatos que ela deveria eleger. O projeto do gabinete retomava como circunscrição a província. O debate no Parlamento mudou este que era considerado um dos principais pontos do projeto.

Ao final prevaleceu o chamado voto incompleto, com a província como circunscrição. Na lei de 1875, o eleitor deveria votar em dois terços do número de candidatos que sua província elegeria, presumindo-se que o terço restante seria necessariamente preenchido pela minoria. Era o sistema, segundo o parecer, adotado na Inglaterra desde 1867, para os distritos que elegessem três deputados. Mas a lei brasileira inovava ao adotar este sistema com voto provincial e não distrital.

Conservadores moderados e liberais não eram mais aliados neste ponto. Ambos defendiam a representação da minoria, mas, enquanto os liberais continuavam fiéis ao voto distrital, os moderados passaram a defender um modelo de voto proporcional. Encontraram em um método específico, entre aqueles disponíveis no debate na época, a conciliação entre sua concepção conservadora de eleição dos mais ilustrados com a eficácia maior que a representação da minoria garantiria ao governo representativo, tanto em termos de legitimidade como forma de garantir a institucionalização dos conflitos intraelite. Puderam abandonar o voto distrital, ao qual aderiram por falta de opção, e abraçar a pluralidade simples e, depois, o voto incompleto por província. Garantia-se a eleição dos mais ilustrados com representação da minoria. Rio Branco explicitou esta visão em discurso na Câmara dos Deputados. Afirmou que a prioridade de seu grupo era garantir a representação da minoria em nome da legitimidade do Parlamento como espaço de negociação de conflitos. Prioridade que levara ele e seus correligionários a defenderem o voto distrital em 1855, quando Rio Branco era ministro do gabinete Paraná. No entanto, afirmava ele em 1875, o apoio ao voto distrital se justificava porque era o único método conhecido para se alcançar a representação da minoria. O apoiara mesmo tendo claro que

circunscrições locais muito limitadas colocam muitas vezes os candidatos na dependência de duas ou três influências, subordinam a atenção de seus representantes à defesa dos interesses locais (...) diminuem pelo menos o prestígio que deve cercar o representante da nação.29 29 AC, sessão de 31 maio 1875, p. 183.

Para Rio Branco, os moderados aceitaram pagar este preço pois sua prioridade era promover a representação da minoria. No entanto, continuava ele, na década de 1870 novos métodos de representação da minoria foram conhecidos. Métodos que permitiam preservar o voto provincial e com ele uma representação mais ilustrada, porque não subordinada aos potentados locais.30 30 Rio Branco apresenta aqui uma versão que não corresponde ao debate que precedeu a aprovação da Lei de 1855. Naquela ocasião, os conservadores moderados, grupo do qual fazia parte, contestavam o argumento dos saquaremas de que o voto distrital resultaria no controle das eleições pelos poderosos da localidade. Ao lado dos liberais defendiam que o voto distrital articularia a localidade à dinâmica política geral, pois os potentados dependeriam dos partidos para ganhar eleições e os deputados, uma vez eleitos, teriam que negociar suas demandas no Legislativo para compor maiorias. Referindo-se ao voto incompleto, afirmava: “por este modo atendida a legítima aspiração das minorias, não impera a mesma razão que em épocas anteriores levou o parlamento a preferir a eleição por distritos, antes cumpre combinar as vantagens da eleição por província com os prováveis resultados desse grande princípio”.31 31 AC, sessão de 31 maio 1875, p. 183.

Já os emperrados, antes viscerais opositores da representação da minoria, concordavam em 1874 que ela era necessária. No entanto, defendiam que bastava a eleição direta censitária para obtê-la. Paulino afirmava que, com eleitorado permanente em cada paróquia (sem variar ao sabor de eleições primárias como ocorria na eleição em dois graus), estes eleitores “quer se achem em maioria, quer em minoria, são convocados ao colégio eleitoral no qual influem com os votos que na realidade tem natural e não artificialmente com os que lhes der, em uma proporção incerta ou arbitrária o sistema de representação que se adotasse”.32 32 AC, sessão de 13 jul. 1874, p. 363.

Em especial, Paulino criticava o método proposto no projeto, a pluralidades simples. Para ele, de todos era este o pior. Estabeleceria uma verdadeira anarquia, pois

esmolando cada um o voto para si com prejuízo de seus próprios amigos, em vez de solicitá-lo para a lista de seu partido (...), romper-se-ia de uma vez a disciplina partidária e sobre suas ruínas levantar-se-ia em plena onipotência a única força que se quer consolidar no país, a do elemento oficial.33 33 AC, sessão de 20 jul. 1874, p. 373.

Belisário acrescentava que tanto o voto proporcional por coeficiente como o voto incompleto poderiam tornar o país ingovernável, pois uma substantiva minoria poderia se aliar a parte da maioria de forma a impedir que o ministério tivesse votos suficientes para aprovar seus projetos. Garantir um terço dos deputados para a minoria resultaria em ingovernabilidade, pois

como é sabido, os ministérios tendem cada vez mais a não reunir a totalidade dos votos do seu próprio partido (...). Reunida aos votos radicalmente adversos ao gabinete, qualquer deputação, qualquer coalizão terá a vida do ministério a sua mercê, manobrando sobre a base certa de uma oposição já numerosa.34 34 AC, sessão de 18 mar. 1875, p. 16.

Paulino e Belisário levantavam dois pontos fundamentais: o grau de coordenação que os partidos teriam que ter nas eleições e a governabilidade possível com uma Câmara na qual surgisse maioria contrária ao ministério.

Em relação à coordenação dos partidos, Theodoro da Silva argumentava que no método do projeto esta não seria possível, pois os partidos teriam que calcular o número de candidatos que apresentariam, de acordo com os votos de que dispunham, e garantir a distribuição destes votos entre estes candidatos, de modo a evitar a concentração dos votos em um só candidato e, de outro lado, a excessiva dispersão. Para ele, “isso somente seria possível se a disciplina dos partidos fosse tão férrea, tão severa, tão inabalável (...) que tal disciplina acabasse com a liberdade do voto”.35 35 AC, sessão de 16 jul. 1874, p. 177.

O liberal Martinho Campos, por sua vez, acusava o projeto do gabinete de ser contrário à verdadeira representação da minoria. Primeiro porque restabelecia o voto provincial, segundo porque propunha um método de difícil compreensão e aplicação.36 36 AC, sessão de 18 jun. 1874, p. 213. Por fim, porque se cada eleitor votaria em um candidato ganharia necessariamente aquele mais conhecido e que tivesse apoio do governo, de modo que, ao contrário da representação da minoria, o governo faria todos os deputados. Neste ponto concordava com os emperrados. Segundo ele, o voto por província com cada eleitor votando em apenas um candidato exigia um grau de coordenação para ganhar que só o governo tinha. Assim, em vez de garantir a representação da minoria, era uma fórmula que oferecia ao governo as condições para sempre ganhar as eleições:

neste sistema de eleições de província, a organização da chapa há de ser do governo. O governo distribui os coeficientes, porque vota o eleitor em um só nome. Por exemplo, a província de Minas terá vinte candidatos [a província elegia 20 deputados] e a secretaria respectiva, encarregada do serviço eleitoral, expedirá para certo e determinado número de eleitores a razão do coeficiente, dizendo: vós dareis tantos votos a tal candidato e ninguém terá os mesmos meios e de igual eficácia para distribuição de coeficientes em círculo tão vasto, sendo do governo os correios, todos os funcionários públicos e os cofres prontos para todos os sacrifícios.37 37 AC, sessão de 7 jul. 1874, p. 74.

O coeficiente a que Martinho Campos se referia era o cálculo necessário para apurar quantos votos cada candidato deveria receber para ser eleito.

Os defensores do projeto respondiam que a exigência de maior coordenação pelos partidos os fortaleceria ao invés de enfraquecê-los, pois os partidos teriam maior disciplina. O ministro do Império afirmava que

se os partidos tiverem a sua condição vital, a disciplina, a boa direção, longe de trazer o aniquilamento dos partidos, o processo que o projeto prefere há de mais firmá-los, há de mais discipliná-los e isto será uma condição para que eles sejam representados no parlamento conforme suas forças. Os partidos são necessários no sistema representativo, mas é condição da utilidade, como o é da vida, que sejam disciplinados e dirigidos por chefes capazes e justos.38 38 AC, sessão de 13 jul. 1874, p. 348.

A preocupação com a coordenação das eleições pelos partidos indica que todos os grupos conferiam um papel relevante para as agremiações no jogo eleitoral. Nas eleições até 1855 o partido tinha que ter coordenação suficiente para elaborar as chamadas “chapas”, listas com os nomes dos candidatos do partido na província, apresentadas ao eleitor, que votava na lista completa. Um tipo de coordenação relativamente simples. A partir da adoção do voto distrital em 1855, os partidos tinham que coordenar a indicação de um candidato seu por distrito e, a partir de 1860, três candidatos por distrito. A pluralidade simples e o voto incompleto exigiam um grau de coordenação bem mais complexo, que liberais e emperrados consideravam impossível.

Após dias de discussão, o ministro do Império anunciava em plenário a disposição do gabinete de alterar seu projeto para viabilizar sua aprovação. Ou seja, em um dos seus pontos cruciais, o projeto era mudado pelo gabinete por pressão dos parlamentares. Assim, anunciava o ministro que

de acordo com o que eu tenho dito, isto é, que aceitaria modificações no projeto, conciliando as opiniões dos amigos que o apoiam e de todos os outros que queiram apoiá-lo, o governo resolveu adotar emendas muito importantes (...). O princípio da representação das minorias será praticado pelo voto incompleto em distritos de três, votando o eleitor em dois terços dos candidatos a eleger.39 39 AC, sessão de 22 jul. 1874, p. 368.

Em uma tentativa de chegar a um acordo com os liberais, o ministério aceitou mudar seu projeto, adotando o voto distrital. A adoção do voto incompleto foi uma concessão à maioria que apoiava o gabinete e que não concordava com a pluralidade simples. Era a opinião “dos amigos” a que se referia o ministro.

Mas a estratégia não surtiu o efeito esperado. O conservador João Mendes, aliado do gabinete Rio Branco, insistia na circunscrição provincial prevista no projeto original, por se opor radicalmente ao voto distrital. Segundo ele,

a eleição por distritos desorganiza os partidos, criando tantas seitas partidárias quantos são os diversos distritos eleitorais. E não é isso perpetuar o mal, isto é, a fraqueza dos partidos, que todos nós deploramos e que é talvez a causa do abastardamento do sistema representativo entre nós?40 40 Idem, p. 257.

Também não satisfez liberais e emperrados. Os primeiros eram contrários ao voto incompleto, os segundos insistiam que bastava a eleição direta para garantir a representação da minoria e mantinham sua oposição ao voto distrital. Depois de encerrada a 2ª discussão do projeto na Câmara, em 16 de abril de 1875, ele foi enviado a uma comissão especial, com as emendas aprovadas, para a redação do projeto modificado. Em 31 de maio a comissão apresentou a nova versão do projeto para a 3ª discussão. Nesta nova versão o voto não era mais distrital. Adotava-se o voto incompleto com voto provincial. Assim, a comissão fizera a opção de manter a medida reivindicada pela maioria ministerial e retirar a concessão feita aos liberais. Foi a fórmula consagrada na lei.

Os termos da discussão para representação da minoria no Senado eram ainda mais complexos, uma vez que a decisão era partilhada entre eleitorado e Coroa. No Brasil, ao contrário de outras monarquias constitucionais, os componentes da Câmara alta não eram escolhidos exclusivamente pela Coroa entre os nobres. O imperador escolhia de uma lista tríplice composta pelos três nomes mais votados em eleições com as mesmas regras que as das eleições para deputados. O projeto do governo previa que na lista tríplice sempre tivesse um nome da minoria. O problema, segundo os críticos, era que o imperador tinha livre escolha entre os três nomes e poderia escolher sempre o candidato da minoria. Se assim ocorresse, a minoria seria majoritária na Câmara alta. Desta perspectiva, o voto incompleto para o Senado resultaria em maior poder do imperador para decidir qual partido seria majoritário no Senado. Sendo a lista composta pelos três candidatos mais votados, a decisão do imperador ficava limitada à vontade do eleitorado. Com o voto incompleto, por outro lado, apontava o liberal Pinheiro Guimarães,

suponha-se, o que não é muito de estranhar, pois está ligado o fato à natureza humana, que a Coroa tem um pendor decidido por um dos partidos que disputam o poder, com essa representação da minoria fica ela preparada para formar o senado a seu talante, isto é, de acordo com este pendor.41 41 AC, sessão de 7 ago. 1874, p. 80.

Na lei aprovada, o voto incompleto foi adotado para a eleição de deputados gerais, deputados provinciais e vereadores, mantendo-se a forma anterior pela qual se dava a eleição dos senadores.

A defesa que todos então faziam da representação da minoria, disputando o método a ser adotado, implicou a vitória de uma determinada concepção do governo representativo na década de 1870. Embora muitos continuassem ardorosos adeptos da ideia de que a representação cabia aos mais ilustrados, todos compartilhavam a concepção de que o Parlamento, para ter eficácia na regulação dos conflitos intraelite, deveria ser uma espécie de espelho das diferentes forças políticas. Concepção que vinha sendo defendida pelos liberais em aliança com conservadores moderados desde a década de 1840. Agora parecia amplamente disseminada, como condição de funcionamento do governo representativo.

Deputados e senadores conheciam bem o debate sobre a melhor forma de obter a representação da minoria que se materializava em distintas propostas defendidas por publicistas e políticos europeus. Conheciam também as poucas tentativas práticas, como na Inglaterra e na Dinamarca. Mobilizaram este repertório para defender cada grupo o sistema que considerava o mais apropriado. O resultado do debate parlamentar brasileiro foi a adoção de um método de representação da minoria inédito até então: o voto incompleto por província com eleição em dois graus.

Outro ponto importante no debate que precedeu a promulgação da lei de 1875 foi a qualificação. Modificação central introduzida pelas Instruções de 1842, a criação da junta de qualificação trouxe consigo uma intensa discussão sobre sua composição. A prevista em 1842 expressava a concepção dos saquaremas quanto à forma de organizar as eleições. Os liberais reagiram e aprovaram mudança profunda na composição da junta na lei de 1846. Por falta de espaço não apresentarei aqui o debate sobre o tema em 1874 e 1875. Vale apontar que, mais uma vez, se contrapuseram concepções divergentes, em especial, a manutenção, defendida pelos liberais, de cidadãos eleitos como membros da junta, modelo consagrado na lei de 1846, em oposição à tentativa do ministério de substituí-los por proprietários. Os emperrados esforçaram-se por incluir membros do Judiciário, considerados mais ilustrados do que cidadãos eleitos, sujeitos à pressão de seus eleitores. Ao final, prevaleceu uma solução intermediária, distinta da prevista no projeto ministerial. A junta seria composta por quatro membros e um presidente escolhidos pelos eleitores. Mantinha-se assim o princípio que norteava a formação das juntas de qualificação consagrada na lei de 1846. No entanto, suas decisões estariam submetidas a uma junta municipal, que daria a palavra final, composta pelo juiz municipal ou substituto do juiz de direito, como presidente, e dois membros escolhidos pelos vereadores. Esta junta municipal, com maioria de membros de cidadãos eleitos, já constava da lei de 1846, mas tinha função recursal. A concessão aos emperrados estava justamente no recurso às decisões da junta municipal, que seria atribuição dos juízes de direito de cada comarca, de modo que os magistrados ganhavam influência significativa na decisão sobre a qualificação. Por fim, se liberais e emperrados não conseguiram aprovar a eleição direta, ao menos foi aprovada a qualificação permanente, de modo que a definição do eleitorado deixava de ser a cada eleição. Além disso, a lei de 1875 estabeleceu critérios objetivos para aferir a renda na qualificação. Estratégia que seria ampliada na lei de 1881.

O intenso debate sobre os diversos pontos do projeto, em especial a eleição de dois graus e a eleição direta, o método a ser adotado para obter a representação da minoria, as novidades introduzidas na qualificação, indica que os parlamentares estavam convencidos de que a lei tinha impacto no processo eleitoral. Tamanho empenho de cada grupo em defender sua posição se explica porque acreditavam que as determinações legais poderiam definir o grau de participação, criar medidas para combater a fraude, definir o perfil do representante eleito, e, portanto, do próprio Parlamento, e garantir mecanismos de legitimidade para o regime, fosse pelo tipo de eleitor, fosse pela eficácia do Legislativo em ser a instância de decisões dos conflitos intraelite. Crença que, por sua vez, estava associada a determinada concepção sobre como organizar o governo representativo.

Referências

  • CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro das Sombras: a política imperial 4ª ed.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
  • DOLHNIKOFF, Miriam. Governo representativo e eleições no século XIX. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (Rio de Janeiro). n. 474, p. 15-46, maio/ago. 2017
  • FERRAZ, Sérgio Eduardo. A dinâmica política do Império: instabilidade, gabinetes e Câmara dos Deputados (1840-1889).Revista de Sociologia e Política(Curitiba). n. 62, p.63-91, 2017.
  • GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no Brasil do século XIX Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997.
  • HOLANDA, Sérgio Buarque de. Do Império à República. História geral da civilização brasileira 4a ed. São Paulo: Difel, 1985, t. II, v. 5.
  • MATTTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema São Paulo: Hucitec, 1987.
  • NEEDELL, Jeffrey. The Party of Order. The Conservaties, the State and Slavery in the Brazilian Monarchy, 1831-1871 Stanford: Stanford University Press, 2006.
  • 1
    Esta abordagem, ao propor a heterogeneidade da elite que resolvia seus conflitos em um Legislativo com autonomia e peso no processo decisório, segundo as características próprias de um governo representativo oitocentista, diverge das análises propostas por Holanda (1985), Graham (1997), Carvalho (2008) e Matttos (1987). Autores que, com interpretações divergentes entre si, concordam que o governo representativo era falseado em função da imposição da vontade do imperador, ou dos interesses de uma elite hegemônica, ou ainda pelos potentados locais.
  • 2
    Este é o critério adotado por Jeffrey Needell (2006, p. 74) que também aponta a imprensa política como expressão das posições partidárias. O autor salienta a importância dos partidos na dinâmica política do Segundo Reinado. No entanto, em sua análise, apenas os saquaremas e seus herdeiros, os emperrados, na década de 1870, tinham compromisso com a defesa do governo constitucional representativo. Por esta razão empenharam-se em garantir que o Parlamento tivesse papel significativo nas decisões das políticas de Estado. O que só seria possível se o ministério não respondesse apenas ao imperador, mas também tivesse que contar com maioria na Câmara dos Deputados. Por outro lado, para ele, liberais e conservadores moderados basicamente serviam aos projetos do imperador. Como se procurará apontar neste artigo, contudo, a defesa do papel da Câmara no governo representativo era compartilhada por todos os partidos.
  • 3
    Em outro artigo (Dolhnikoff, 2017) analisei o debate em torno das Instruções de 1842 e das leis de 1846 e 1855. As referências neste texto às questões relativas a estas leis constam deste artigo anterior.
  • 4
    Portal da Câmara dos Deputados do Brasil, Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 7 jul. 1874, p. 68. Nas próximas notas será usada a abreviação AC.
  • 5
    AC, sessão de 23 jul. 1874, p. 245.
  • 6
    AC, sessão de 13 jul. 1874, p. 131.
  • 7
    Idem, p. 135.
  • 8
    AC, sessão de 13 jul. 1874, p. 135.
  • 9
    AC, sessão de 22 jul. 1874, p. 366.
  • 10
    AC, sessão de 13 jul. 1874, p. 360.
  • 11
    AC sessão de 10 jul. 1874, p. 327.
  • 12
    AC sessão de 21 jul. 1874, p. 225.
  • 13
    As chamadas eleições primárias - a escolha dos eleitores pelos votantes - eram realizadas por paróquia, sendo que uma lei ordinária definia o número de eleitores a que cada paróquia tinha direito. Este critério variou ao longo do tempo. A lei de 1846 estabeleceu que cada paróquia daria um eleitor para cada quarenta votantes. A lei de 1860 prescreveu um eleitor para cada trinta votantes, ampliando assim o número dos eleitores por paróquia. O projeto de 1873 seguiu esta tendência ao estabelecer que cada paróquia elegeria um eleitor para cada 25 votantes. A lei aprovada em 1875, entretanto, modificava o projeto e estabeleceu que, tendo em vista o recenseamento de 1872, cada paróquia teria direito a escolher um eleitor por quatrocentos habitantes de qualquer sexo e condição. Era uma ampliação significativa, uma vez que a base de cálculo deixava de ser o número de votantes (restrito aos homens maiores de 25 anos com renda de 200 mil réis anuais) para ser a população, incluindo mulheres e aqueles que não alcançavam a renda para ser votante. A constante elevação do número de eleitores por paróquia, contudo, não modificava o princípio de que, com a eleição em dois graus, apenas uma parcela dos que preenchiam os requisitos para serem eleitores efetivamente exerciam o direito de voto.
  • 14
    AC, sessão de 13 jul. 1874, p. 360.
  • 15
    AC, sessão de 20 jul. 1874, p. 358.
  • 16
    AC, sessão de 23 jul. 1874, p. 251. Esta nova definição de renda líquida não foi incorporada à lei promulgada em 1875. Por outro lado, a lei inovou ao estabelecer critérios para definir a renda, de modo que normatizava neste ponto a atuação das juntas de qualificação. Apresentava uma lista de grupos que tinham renda reconhecida ou presumida e, portanto, tinham que ser automaticamente qualificados. Mas não excluía da possibilidade de ser votante aquele que não pertencia a estes grupos, pois admitia a comprovação de renda por testemunha.
  • 17
    AC, sessão de 18 jun. 1874, p. 214.
  • 18
    Anais do Senado (AS), 30 jun. 1875, p. 462.
  • 19
    AC, sessão de 4 jun. 1875, p. 72.
  • 20
    AC, sessão de 13 jun. 1874, p. 346.
  • 21
    AC, sessão de 2 jun. 1875, p. 38.
  • 22
    Idem.
  • 23
    AC, sessão de 3 jun. 1875, p. 53.
  • 24
    AS, sessão de 6 ago. 1875, p. 76.
  • 25
    AS, sessão de 11 ago. 1875, p. 175.
  • 26
    O partido minoritário na província certamente, calculavam, seria majoritário em alguns distritos e nestes elegeria deputados.
  • 27
    AC, sessão de 13 jul. 1874, p. 134.
  • 28
    AC, sessão de 4 ago. 1873, p. 9ss.
  • 29
    AC, sessão de 31 maio 1875, p. 183.
  • 30
    Rio Branco apresenta aqui uma versão que não corresponde ao debate que precedeu a aprovação da Lei de 1855. Naquela ocasião, os conservadores moderados, grupo do qual fazia parte, contestavam o argumento dos saquaremas de que o voto distrital resultaria no controle das eleições pelos poderosos da localidade. Ao lado dos liberais defendiam que o voto distrital articularia a localidade à dinâmica política geral, pois os potentados dependeriam dos partidos para ganhar eleições e os deputados, uma vez eleitos, teriam que negociar suas demandas no Legislativo para compor maiorias.
  • 31
    AC, sessão de 31 maio 1875, p. 183.
  • 32
    AC, sessão de 13 jul. 1874, p. 363.
  • 33
    AC, sessão de 20 jul. 1874, p. 373.
  • 34
    AC, sessão de 18 mar. 1875, p. 16.
  • 35
    AC, sessão de 16 jul. 1874, p. 177.
  • 36
    AC, sessão de 18 jun. 1874, p. 213.
  • 37
    AC, sessão de 7 jul. 1874, p. 74.
  • 38
    AC, sessão de 13 jul. 1874, p. 348.
  • 39
    AC, sessão de 22 jul. 1874, p. 368.
  • 40
    Idem, p. 257.
  • 41
    AC, sessão de 7 ago. 1874, p. 80.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    26 Mar 2018
  • Aceito
    18 Set 2018
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