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O Brasil e o Tribunal do Santo Ofício português: réus, cartas e agentes em circulação no mundo atlântico

Brazil and the Court of the Portuguese Holy Office: defendants, letters and agents in circulation in the Atlantic world

Resumo:

Este artigo pretende fazer algumas reflexões em relação ao tribunal inquisitorial português, criado em 1536 e extinto em 1821, no que diz respeito às múltiplas dimensões de uma circulação que esta instituição possibilitou: primeiramente, de vasta correspondência e de seus agentes no Império colonial português no Atlântico, uma vez que no Brasil não se criou um tribunal local. Além disso, a própria dinâmica de funcionamento do Santo Ofício, ao transferir os acusados no Brasil para o Tribunal de Lisboa, para lá aguardarem o desfecho de seus processos, fez circular indivíduos acusados de ideias e práticas heréticas, que acabaram por se difundir também no Reino. Enfatizaremos aqui alguns exemplos ligados aos cristãos-novos e aos feiticeiros. Além disso, o sistema punitivo inquisitorial, ao incluir a pena do degredo no rol de penitências que sofreram os réus, foi também promotor da proliferação de condutas heréticas que o Santo Ofício queria extirpar.

Palavras-chave:
Inquisição; Correspondência; Heresia; Agentes inquisitoriais

Abstract:

This article intends to develop a few reflections regarding the Portuguese Inquisition Tribunal (1536-1821), and the range of its mainly extended circulation of correspondences and agents all over the Atlantic Portuguese Empire. Once there was never created a local tribunal in Portuguese America, the functioning dynamics of the Holy Office itself, transferred to the Lisbon Tribunal all those considered guilty in the colonies, in order to wait for the conclusions of their criminal proceedings. Such practice allowed the regular presence in the Reign of the people accused of heresy, and the circulation with their many ideas and practices as well. I will emphasize in this text a few of these examples related to the New Christians and the sorcerers. Moreover, the fact that expatriation and banishment were among the punishments imposed to the defendants, these also contributed to promote and disseminate the heretical behaviors the Holy Office wanted to extirpate.

Keywords:
Inquisition; Correspondence; Heresy; Inquisitorial agents

O título deste artigo, “O Brasil e o Tribunal do Santo Ofício português: réus, cartas e agentes em circulação no mundo atlântico”, evoca a percepção da Inquisição portuguesa como uma instituição religiosa que, além de Portugal, estendeu sua ação a várias regiões no Ultramar, quer no Atlântico, quer no Índico, pois o Santo Ofício esteve presente ainda em algumas possessões lusitanas no Oriente. A extensão geográfica da ação inquisitorial ensejou grande circulação de pessoas pelo Império português, fossem réus, fossem seus próprios agentes que, investidos pelo poder do Santo Ofício, vasculharam regiões na busca de hereges e no cumprimento de ordens dos inquisidores.

Os estudos sobre o Atlântico se adensaram no contexto dos conflitos ideológicos da Guerra Fria. Inspirado pela obra-prima de Fernand Braudel, sobre o papel do Mediterrâneo no reinado de Filipe II, na segunda metade do século XVI - já bem conhecida, em forma de tese, no meio historiográfico francês, antes de ser impressa em Paris em 1949 -, Jacques Godechot publicou, em 1947, a Histoire de l’Atlantique. Mas Godechot ficou mais conhecido por seu livro Les révolutions du monde atlantique, também no pós-guerra, com destaque para o nexo entre a Revolução Francesa e a independência dos Estados Unidos. Outros dois grandes discípulos de Braudel, por sua vez, mergulharam no Atlântico, publicando obras capitais: Fréderic Mauro, com seu Portugal et l’Atlantique (1957) e Pierre Chaunu, Seville et l’Atlantique, em doze volumes (1962), demonstrando como os historiadores franceses perceberam a importância do Atlântico Sul na historiografia europeia e mundial na época.

Já o inglês Charles Boxer, com seu Salvador Correia de Sá e a luta pelo Brasil e Angola, 1602-1686, publicado em 1952, inaugurou estudos dedicados a pensar a América portuguesa numa perspectiva integrada ao mundo do Atlântico sul. Mas esse movimento, de fato, só se intensificou nos anos 1990, a partir de um campo que ficou conhecido como história atlântica, estudando as grandes transformações econômicas, políticas, sociais e culturais inauguradas pelos contatos entre as sociedades ao redor do oceano Atlântico. As conexões entre as Américas, a África e a Europa, tema de seminários e grupos de estudos iniciados em Harvard e depois também desenvolvidos em outras instituições acadêmicas, acabaram por gerar uma historiografia com trabalhos marcantes, a exemplo de Bernand Bailyn, Philip Curtin, John Elliot e Jack Green.

Estudar o Tribunal do Santo Ofício como uma instituição típica deste mundo atlântico é tema que se inscreve no período de formação das identidades atlânticas a partir do século XVI, quando se iniciam os contatos com o Novo Mundo e a configuração de influências recíprocas no plano cultural e religioso (Green e Morgan, 2009GREEN, Jack; MORGAN, Philip. Atlantic History: A Critical Appraisal. New York: Oxford University Press, 2009.). David Armitage propõe uma tipologia que concebe formas distintas, mas não excludentes, de se estudar a história atlântica, sugerindo três abordagens: uma que enfatiza a circulação de pessoas que cruzaram o oceano, fossem com mercadorias ou ideias ou crenças (história circum-atlântica); outra que compara distintas regiões (história trans-atlântica) e por fim o estudo de lugares específicos, de uma nação, de um Estado ou uma instituição no mundo atlântico que resulta numa rede mais ampla de conexões (história cis-atlântica) (Armitage, 2014ARMITAGE, David. Três conceitos de história atlântica. História Unisinos, v. 18, n. 2, p. 206-217, 2014.). De acordo com as propostas de Armitage, o estudo da Inquisição lusitana, na perspectiva que estamos propondo, se articula a esses escopos teórico-metodológicos.

Neste mesmo período, o historiador indiano Sanjay Subrahmanyam, ao estudar a Ásia portuguesa, vislumbrou o que chamou de “histórias conectadas” entre regiões distintas que se ligavam por interesses comuns ou mesmo conflitos, contrapondo-se a uma história eurocêntrica (Subrahmanyam, 1995). Outras contribuições dignas de nota, a partir das quais podemos pensar a Inquisição portuguesa como uma promotora de grande mobilidade entre Portugal e suas colônias, foi primeiramente a de Russel-Wood, vislumbrando o mundo moderno num constante movimento de agentes administrativos, colonizadores, escravos, comerciantes, ideias, crenças, missionários (Russel-Wood, 1988RUSSELL-WOOD, Anthony J. R. Um mundo em movimento: os portugueses na África, Ásia e América (1415-1808). Algés: Difel, 1998., p. 13). Depois, Serge Gruzinsky, inspirado na perspectiva das histórias conectadas, segue também o caminho trilhado por Russel-Wood, pensando a existência do que ele denominou de “mundialização” ou “globalização” no século XVI, em momento emblemático da história ibérica, entre 1580 e 1640, período de união das coroas portuguesa e espanhola. Este “planeta filipino”, que une Portugal, Espanha, as possessões orientais, africanas e americanas, é o espaço em que se constrói uma história cultural ampliada, histórias partilhadas, abarcando, além do Atlântico, o mundo oriental. Gruzinsky nos mostra as múltiplas dimensões desta globalização, desde as redes mercantis, os movimentos humanos, a circulação da espiritualidade, das crenças, as religiosidades, até a disseminação dos saberes, dos livros, das cartas, de médicos, plantas, de linguagens, da arte. Nas “quatro partes do mundo”, as travessias que muitos desses homens fizeram foram acompanhadas de mercadorias, de conhecimento, de escritos, livros, crônicas, cartas, de imagens (Gruzinsky, 2014). Assim sendo, a proposta desse artigo é articular o Tribunal do Santo Ofício neste circuito atlântico, percebendo a circulação de seus agentes, de seus papéis e dos réus que perseguiu por condutas contrárias à ortodoxia católica nos Tempos Modernos.

Papéis e agentes do Santo Ofício em circulação

A Inquisição portuguesa surgia no Mundo Moderno num contexto de intrincadas relações da comunidade judaica na Península Ibérica. Primeiramente na Espanha, em 1478, e depois em Portugal, em 1536, o Tribunal do Santo Ofício perseguiu todos aqueles que, por atos, palavras e ideias, desafiaram a fé católica, consagrando-se assim como hereges. Referimo-nos, sobretudo, nesse momento, aos judeus convertidos ao cristianismo, e portanto, batizados - denominados de cristãos-novos ou marranos -, que continuaram a praticar o judaísmo em segredo. Mas para além dos cristãos-novos judaizantes, a Inquisição agregou, ao seu rol de delitos heréticos, os sodomitas, bígamos, feiticeiros, protestantes, blasfemos, solicitantes, todos aqueles que obstassem o funcionamento do tribunal, dentre outros. Ao longo de quase três séculos de existência, a Inquisição portuguesa (1536-1821) estendeu sua área de atuação pelo mundo atlântico e também para o Oriente, onde criou, em 1560, na cidade de Goa, na Índia, o único tribunal local fora do Reino. A organização do Santo Ofício se fez a partir de tribunais regionais, e se no início era composta por seis deles, a partir de 1565 acabaram por prevalecer somente três em Portugal - os de Lisboa, Évora e Coimbra -, e o de Goa, na Índia, tendo cada um deles jurisdições territoriais específicas (Bethencourt, 2000BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália, séculos XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000., p. 44-46).

Sua estrutura administrativa foi fundamental para uma ação efetiva contra os grupos heréticos que perseguiu, como atestam o conjunto de regimentos publicados em 1552, 1613, 1640 e 1774. A existência de uma instituição tão longeva nos leva a uma reflexão inequívoca de sua história, atrelada e imiscuída à própria história de Portugal na Época Moderna, como tão bem acentuaram José Pedro Paiva e Giuseppe Marcocci, em obra síntese da maior importância sobre o tribunal português (Paiva e Marcocci, 2013PAIVA, José Pedro; MARCOCCI, Giuseppe. História da Inquisição portuguesa, 1536-1821. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2013., p. 17). Evidentemente que não nos cabe aqui articular exaustivamente a proposta deste artigo em cada um desses contextos, mas sim apenas marcar alguns pontos que consideramos relevantes para demonstrar o alcance desta instituição pelo mundo atlântico, por onde circularam seus réus, documentos, seus agentes e heresias.

Justiça e misericórdia: as correspondências inquisitoriais

Os debates nas cortes constituintes portuguesas de 1821, relacionados à extinção do Santo Ofício, culminaram com a aprovação do projeto apresentado pelo deputado Francisco Simões Margiocchi, acrescido de uma última proposta de outro deputado, José Mendonça: que se queimassem todos os processos inquisitoriais numa grande fogueira no Rossio, praça onde se localizava o Palácio da Inquisição (Paiva e Marcocci, 2013PAIVA, José Pedro; MARCOCCI, Giuseppe. História da Inquisição portuguesa, 1536-1821. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2013., p. 444). Felizmente, por unanimidade, não foi aprovada, impedindo assim prejuízo incalculável ao estudo de manancial tão imenso de fontes produzidas pelo Santo Tribunal ao longo de toda sua história. Documentação que, logo após sua extinção, foi para a Biblioteca Pública de Lisboa, depois passando para outros locais, até que, em inícios da década de 1990, foi transferida para um prédio moderno na alameda da Universidade, próxima à Universidade de Lisboa, onde está até hoje o Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Pinto, 2019PINTO, Pedro. Um contributo para o conhecimento do Tribunal do Santo Ofício em arquivos e bibliotecas de Portugal. Lisboa: Universidade Católica Portuguesa/Centro de Estudos de História Religiosa, 2019., p. 29-33).

Dentre as instituições portuguesas no Antigo Regime, a Inquisição foi uma das maiores produtoras e detentoras de fontes sobre sua atuação: extensa, diversificada, sistematicamente organizada e classificada em cada um dos tribunais locais. Dentre este enorme conjunto, constam todo o corpus legal do tribunal, os inúmeros processos, denúncias, visitações, listagens de condenados, documentos vários sobre as habilitações dos candidatos aos cargos da administração inquisitorial, livros de presos, registros de correspondência, entre outros fundos. Cada um dos tribunais regionais tinha uma sistemática de guarda dos documentos, fundamental para o sucesso da ação inquisitorial, a ponto dessas informações estarem dispostas nos regimentos do Santo Ofício. Diferentemente da Inquisição medieval, em que o fluxo de comunicação se fazia predominantemente de modo horizontal, entre os inquisidores de distritos diferentes, na Inquisição ibérica havia uma dinâmica distinta (Bethencourt, 2000BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália, séculos XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000., p. 33). Tanto o tribunal espanhol como o português eram bastante hierarquizados, verticalizados, com uma estruturação e órgãos centrais, além de, evidentemente, uma comunicação entre os tribunais distritais. No caso de Portugal, o Conselho Geral do Santo Ofício - órgão máximo do tribunal lusitano - centralizava decisões importantes e deliberava sobre consultas não somente sobre os processos, sentenças, mas também instruções sobre preparação dos autos de fé, conflitos de jurisdição, situação financeira dos tribunais, visitações locais e a própria vida cotidiana dos tribunais, seus membros e a relação com outras potências europeias e o Papado (p. 40). Assim sendo, a gerência da documentação administrativa inquisitorial também foi marcada pela centralização, organização e classificação.

Logo no Regimento de 1552, é clara a preocupação com a guarda da documentação, dispondo que seria na “câmara do secreto” o local onde deveriam estar os “livros e registros e papéis pertencentes ao Santo Ofício”.1 1 Regimento do Santo Ofício, 1552. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (Rio de Janeiro). n. 392, p. 599, jul.-set. 1996. No Regimento de 1640, já estavam definidos núcleos documentais, como os livros específicos para delatados, decretos de prisão, listas de autos de fé, registros de diligências, livros de correspondências, dentre outros, bem como os locais de guarda.2 2 Regimento do Santo Ofício, 1640. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (Rio de Janeiro). n. 392, jul.-set. 1996. Livro I, Tit. II.

A eficiência do tribunal inquisitorial em organizar e estruturar um circuito de comunicação foi um dos mecanismos fundamentais para o controle dos habitantes no Império português e para fazer valer a justiça inquisitorial. O Conselho Geral do Santo Ofício mantinha constante troca de correspondência com os tribunais regionais de Lisboa, Coimbra, Évora e Goa; com outras instâncias eclesiásticas e seculares; e ainda com os tribunais espanhóis (Bethencourt, 2000BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália, séculos XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000., p. 36). Isso confirmou o que já supúnhamos em pesquisas anteriores: a riqueza imensa dessa documentação para entender melhor o funcionamento do tribunal, a lógica e a dinâmica das perseguições inquisitoriais no Reino e nas colônias, e ainda suas relações com a Igreja de Roma e com outras potências europeias.

O núcleo documental que vamos destacar aqui será a correspondência expedida do Tribunal de Lisboa para o Brasil, que estava sob a jurisdição do tribunal lisboeta. Como não houve na América portuguesa um tribunal local, a importância desta circulação de cartas foi fundamental para o funcionamento do Santo Ofício na colônia. Do total dos sete livros examinados, datando de finais do século XVI a inícios do século XIX, selecionamos todos os registros relativos às cartas enviadas para as capitanias da América portuguesa.3 3 Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Inquisição de Lisboa, Correspondência expedida (1605/1780) - Livros 18, 19, 20, 21, 22, 23 e 24. Estes livros, na verdade, em sua imensa maioria, são códices de registros da correspondência, não estando ali contidas propriamente as cartas ou outros documentos administrativos enviados junto a elas. Também a maneira como os notários inquisitoriais registraram as informações variou no tempo e no espaço. Por vezes o conteúdo dos registros foi transcrito na íntegra, mas em outras, de modo resumido, apresentando uma temática bastante diversa e que mostra inúmeras facetas do funcionamento do Tribunal inquisitorial português. Era frequente ainda que um mesmo registro mencionasse mais de uma solicitação que o Tribunal fazia a um agente ou a alguma autoridade eclesiástica ou secular no Brasil.

Os temas encontrados nos registros, de um modo geral, foram inúmeros, relacionados tanto a questões administrativas inerentes ao próprio tribunal, como relacionados aos réus e também aos poderes monárquicos e eclesiásticos, tanto em Portugal como em outras potências europeias. Diligências para averiguar famílias de candidatos aos cargos inquisitoriais; informes sobre número de agentes em diversas localidades; investigações de denúncias; busca de testemunhas; mandatos de prisão e remessa de presos; outros papéis e requerimentos necessários aos processos; documentos relacionados à repressão propriamente dita do tribunal, como editais da fé, onde se listavam os delitos que deviam ser denunciados pela população; listas de réus penitenciados nos autos de fé; listas de livros proibidos e até formulários de como processar e inquirir os réus foram os temas levantados nestas fontes.

Vários autores foram importantes para adensar esta pesquisa, a começar pelos historiadores que se dedicaram ao tribunal espanhol e seus congêneres americanos, que foram fontes de inspiração analítica e metodológica para pensar a dinâmica do fluxo de comunicação que moveram as inquisições ibéricas (Nuñez e Rubio, 2011NUÑEZ, Isabel; RUBIO, Rocío. “Por mares de olvidos”: correspondencia privada e Inquisición em Nueva España, siglos XVI-XVIII. In: VIEIRA, Alberto et al. Escritas das mobilidades. Funchal (Madeira): Centro de Estudos de História do Atlântico, 2011.; Vassalo, 2017VASSALO, Jacqueline. Gestiona la distancia através de documentos: cartas que van y vienen entre la Inquisición de Madrid, Lima, Cordoba y Buenos Aires. In: VASSALO, Jacqueline; LOURENÇO, Miguel Rodrigues; MATEUS, Susana Bastos(org.). Inquisiciones: dimensiones comparadas (siglos XVI-XIX). Córdoba: Brujas, 2017.). Também para os arquivos inquisitoriais portugueses, destacaríamos os historiadores José Pedro Paiva e Fernanda Olival, que se preocuparam com os circuitos documentais envolvendo a Inquisição e os poderes eclesiásticos (Paiva, 2005; Olival, 2006). E o Tribunal de Évora, entre 1700 e 1750, ganhou importante trabalho de autoria de Nelson Vaquinhas, que examinou o fluxo de correspondência entre este tribunal e o Algarve, desvendando a organização dos arquivos inquisitoriais na região, seus agentes e o controle social que o Santo Ofício ali estabeleceu (Vaquinhas, 2010VAQUINHAS, Nelson. Da comunicação ao sistema de informação: o Santo Ofício e o Algarve (1700-1750). Évora: Colibri; Cidehus/Universidade de Évora, 2010.). O último destaque fica para a tese de doutorado de Lucas Monteiro, que examinou as relações de cooperação entre as inquisições portuguesa e espanhola através de farta correspondência em que informações de réus eram trocadas por ambas as instituições (Monteiro, 2019MATTOS, Yllan de. A última Inquisição: os meios de ação e funcionamento do Santo Ofício no Grão-Pará pombalino, 1750-1774. Jundiaí, Paco, 2012.).

Cartas e agentes em circulação

A correspondência expedida do Tribunal de Lisboa levantada para o século XVII corresponde aos anos de 1600 a 1605 e 1677 a 1698, pois o livro referente a 1606 a 1676 não foi encontrado (Farinha, 1990FARINHA, Maria do Carmo Dias. Os arquivos da Inquisição. Lisboa: Arquivo Nacional da Torre do Tombo, 1990., p. 63). Dos 138 destinatários, das cartas, 108 eram clérigos, a quem, evidentemente, a Inquisição confiou sua ação na colônia. Desse total, 44,4% pertenciam ao clero regular (42 carmelitas, 10 jesuítas e 9 franciscanos). Mas de todo o conjunto, apenas 25 correspondentes eram agentes inquisitoriais, sendo 20 comissários e 5 familiares.4 4 Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Inquisição de Lisboa, Correspondência expedida, Livros 18 a 20. Este número ainda insipiente demonstra que a rede de agentes do Santo Ofício no Brasil ainda estava se formando. Vê-se, assim, que a colaboração do clero regular para a ação inquisitorial foi fundamental neste momento, sem contar ainda a evidência da circulação de homens de várias ordens religiosas na colônia.

Os comissários eram funcionários clérigos, letrados, que tinham por função realizar devassas e investigações dos suspeitos, organizar diligências para habilitação aos cargos do Santo Ofício, instruir processos, receber denúncias e remeter réus para os cárceres.5 5 Regimento do Santo Ofício, 1640. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (Rio de Janeiro). v. 157, n. 392, p. 693-883, 1996. Livro I, Tit. XI. Ocuparam o posto mais alto das autoridades inquisitoriais na colônia, respondendo diretamente ao Tribunal de Lisboa. Já os familiares, eram funcionários leigos que tinham por função denunciar suspeitos, executar prisões, acompanhar os presos nos autos de fé e vigiar presos nos cárceres, quando necessário.6 6 Regimento do Santo Ofício, 1640. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (Rio de Janeiro). v. 157, n. 392, p. 758-759, 1996.

A maioria das solicitações contidas na correspondência inquisitorial nesse período estava relacionada justamente à construção dessa rede de agentes inquisitoriais - em especial os familiares, aparecendo assim nesse fundo documental como tema da maior importância para se pensar a circulação de pessoas proporcionada pelo Tribunal do Santo Ofício. Os registros referentes a estes funcionários estavam voltados para determinações para que se realizassem os juramentos, rito final da consagração deste agente no ato do recebimento da sua carta de familiatura, documento que o possibilitava a atuar. De 186 temas arrolados - muitos deles num mesmo registro -, 33 referiam-se ao juramento dos familiares, seguido de inquirições sobre genealogias, diligências, mandados de prisão, referências à bigamia, envio de editais da fé, dentre outros normativos ou consultivos.

O total de familiares habilitados no século XVII, de acordo com amostragem que levantamos nos Livros de Habilitações do Santo Ofício, foi de apenas 101 indivíduos, número muitíssimo menor do que o século seguinte. E 66,3% deles eram nascidos em Portugal, tendo migrado para a colônia para trabalhar pelo “reto ministério do Santo Ofício”.7 7 Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Livro das habilitações do Santo Ofício, s.d., volumes 1 a 25. O rigor da seleção de candidatos ao cargo, cujo pré-requisito principal era a “pureza de sangue”, excluía da postulação aqueles que tivessem ascendentes índios, africanos, mestiços, judeus e cristãos novos (Saraiva, 1994SARAIVA, Antonio José. Inquisição e cristãos-novos. Lisboa: Estampa, 1994., p. 113). Diligências eram feitas atrás de testemunhas idôneas que fossem capazes de reafirmar ainda as qualidades morais e financeiras mínimas dos candidatos, de modo a que se habilitassem ao cargo.

Alguns agentes do Santo Ofício já possuíam uma trajetória de serviços à Coroa portuguesa, tendo atuado em várias instâncias administrativas ou instituições no Império português. Para citar um exemplo de indivíduos que pertenceram ao corpus administrativo inquisitorial e que construíam sua carreira no trânsito pelo Império, o caso de Antônio Teles da Silva é interessante. De origem nobre, a carreira militar o possibilitou integrar a expedição de retomada de Salvador em 1625, sob o domínio dos holandeses. A mercê recebida foi o cargo de capitão-mor das naus da Carreira das Índias em 1626 e em 1634. Mas a patente de governador-geral do Estado do Brasil, concedida por D. João IV, veio em 1642, no mesmo ano em que recebeu sua carta de Familiar do Santo Ofício (Gouveia, 2000GOUVEIA, Maria de Fátima. Antonio Teles da Silva [verbete]. In: VAINFAS, Ronaldo(org.). Dicionário do Brasil colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2000., p. 53). Em fins de 1645, o Santo Ofício lisboeta recebia farta correspondência vinda da Bahia denunciando a “escandalosa soltura” e os “terríveis pecados” que vinham se alastrando pela colônia. Não tardou para que se enviasse uma visita no ano seguinte, em 1646, da qual um dos maiores protagonistas foi Teles da Silva. Segundo Anita Novinsky, foi a maior intervenção inquisitorial realizada na Bahia no século XVII, tendo atuado o governador de modo implacável na perseguição e denúncia de vários importantes mercadores cristãos-novos, além de sodomitas e feiticeiros. Mandava espionar suspeitos, vasculhava toda a correspondência que chegava à Bahia e chegou a sugerir o estabelecimento de um tribunal na colônia. O zelo, a competência e a convicção com que serviu à Inquisição fizeram dele um dos mais atuantes familiares da região no século XVII (Novinsky, 1992NOVINSKY, Anita. Cristãos-novos na Bahia: a Inquisição. São Paulo: Perspectiva, 1992., p. 130-132).

Mas no século XVIII, contrariamente ao século anterior, as ordens do Tribunal de Lisboa para o Brasil mandadas cumprir através das cartas, na imensa maioria das vezes, couberam aos próprios agentes do Santo Ofício na colônia, já demonstrando uma estrutura mais consolidada da atuação desses agentes. Foram direcionadas sobretudo aos comissários inquisitoriais, correspondendo a um total em torno de 80%, concentrados nas capitanias da Bahia, Pernambuco, Minas Gerais e Rio de Janeiro (Rodrigues, 2012RODRIGUES, Aldair. Poder eclesiástico e Inquisição no século XVIII luso-brasileiro: agentes, carreiras e mecanismos de promoção social. Tese (Doutorado em História), Universidade de São Paulo. São Paulo, 2012. p. 23). Na Bahia, por exemplo, enquanto no século XVII receberam patente três deles, no XVIII 54 candidatos foram contemplados, de acordo com levantamento nos livros de registro de habilitações do Conselho Geral do Santo Ofício, livros de provisões de nomeação e termos de juramentos do Tribunal de Lisboa. O número de familiares nesta capitania também saltou de 88 no século XVI para 685 nos setecentos (Souza, 2009SOUZA, Grayce Mayre Bonfim. Para remédio das almas: comissários, qualificadores e notários da Inquisição portuguesa na Bahia (1692-1804). Tese (Doutorado em História Social), Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2009., p. 82, 83). Em Pernambuco, um pouco mais tardiamente, a rede de comissários só se adensou a partir de 1740, tendo sido somente em 1692 o primeiro comissário nomeado na região (Feitler, 2007FEITLER, Bruno. Nas malhas da consciência: Igreja e Inquisição no Brasil. >Nordeste, 1640-1750. São Paulo: Alameda, 2007., p. 119, 148).

O aumento do número de agentes inquisitoriais no Brasil no século XVIII não está articulado a um crescimento propriamente da ação do Santo Ofício, pelo contrário, pois a partir da segunda metade dos setecentos a ação inquisitorial já estava declinando. O aumento da demanda pelas patentes de comissários e sobretudo de familiares se relaciona aos grandes privilégios que impunha o cargo, tanto do ponto de vista financeiro, quanto social (Torres, 1994TORRES, José Veiga. Da repressão religiosa para a promoção social: a Inquisição como instância legitimadora da promoção social da burguesia mercantil. Revista Crítica de Ciências Sociais. n. 40, p. 109-135, out. 1994.; Calainho, 2006CALAINHO, Daniela Buono. Agentes da fé: familiares da inquisição portuguesa no Brasil colonial. Bauru: Edusc, 2006.). Não foi à toa que a maioria dos registros nas cartas também estava direcionada para a execução de diligências para o cargo de familiar, sendo que entre 1720 e 1760 foi o período de maior demanda (Rodrigues, 2012RODRIGUES, Aldair. Poder eclesiástico e Inquisição no século XVIII luso-brasileiro: agentes, carreiras e mecanismos de promoção social. Tese (Doutorado em História), Universidade de São Paulo. São Paulo, 2012., p. 256). As pesquisas de James Wadsworth, baseadas em vários núcleos documentais, apontam para cerca de 3.500 nomeações de familiares, sendo mais da metade delas da segunda metade do século XVIII (Wadsworth, 2007WADSWORTH, James. Agents of Orthodoxy: Honor, Status and Inquisition in Colonial Pernambuco, Brazil. Lanham, MD: Rowman & Littlefield, 2007., p. 37-41).

Quadro 1
Sentenciados e familiares do Santo Ofício no Brasil dos séculos XVI a XIX

Um aspecto interessante levantado nessa documentação e discutido por Aldair Rodrigues foi a concentração de tarefas em alguns desses comissários por parte do Tribunal de Lisboa, significando que o Santo Ofício acionou certos agentes várias vezes, em relação ao conjunto. Em torno de 70% dos registros tiveram como alvo 42 comissários, significando que foram requisitados mais de uma vez. A lógica da Inquisição era investir nos agentes que estavam no topo do oficialato episcopal, pois possuíam cargos importantes e tinham formação na Universidade de Coimbra, sendo assim considerados mais aptos a servir ao Santo Ofício (Rodrigues, 2012RODRIGUES, Aldair. Poder eclesiástico e Inquisição no século XVIII luso-brasileiro: agentes, carreiras e mecanismos de promoção social. Tese (Doutorado em História), Universidade de São Paulo. São Paulo, 2012., p. 220-221). Isso é exemplo também do quão importante eram as relações entre o poder do Santo Ofício e o poder episcopal, tema por sinal de relevância na historiografia inquisitorial, que pode ser constatado nesse circuito de comunicação, que passava pelas dioceses, igrejas, conventos e bispados (Paiva, 2011PAIVA, José Pedro. Baluartes da fé e da disciplina: o enlace entre a Inquisição e os bispos de Portugal, 1536-1750. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011.).

Os exemplos são inúmeros, mas fiquemos apenas com o do comissário João Calmon, famoso personagem da Bahia setecentista, que entre 1719 e 1735, foi o mais acionado pelo Tribunal de Lisboa, cabendo a ele quarenta registros.8 8 Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Inquisição de Lisboa, Correspondência expedida, Livro 21. Vigário-geral em Salvador, desembargador da relação eclesiástica, cônego, chantre e agente inquisitorial, Calmon atuou em habilitações ao cargo de familiar, em diligências contra bígamos, em inúmeras prisões e perseguições a cristãos-novos (Mott, 2010MOTT, Luiz. Bahia: Inquisição e sociedade. Salvador: Edufba, 2010., p. 43-64). Como ele, alguns outros protagonizaram repetidas ações repressivas na Colônia, ordenadas pelo Inquisidor de Lisboa.

Em relação aos delitos, foram os cristãos-novos suspeitos de judaizarem que lideraram os registros das diversas ações inquisitoriais na colônia, constatação evidente tendo em vista o foco primordial desta heresia no conjunto das perseguições do Santo Ofício ao longo de sua existência. Lourenço de Valadares Vieira, por exemplo, um dos mais requisitados comissários, foi encarregado de executar cerca de cinquenta mandados de prisão contra cristãos-novos no Rio de Janeiro em 1732.9 9 Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Inquisição de Lisboa, Correspondência expedida, Livro 22.

Outros delitos também se fizeram presentes nos registros das correspondências, como foi o caso da bigamia, vindo em segundo lugar, demonstrando o potencial da documentação inquisitorial para demonstrar que alguns destes indivíduos, por conta das várias razões que os fizeram migrar, acabaram por incorrer nesta conduta ao tentar refazer suas relações afetivas. Estes réus, porque casavam uma segunda vez, sendo vivo o primeiro cônjuge, evidenciando um possível desprezo pelo matrimônio, foram os mais perseguidos dentre os delitos de “cunho moral” do foro inquisitorial10 10 De acordo com Isabel Drumond Braga, a bigamia não era vista como uma heresia propriamente, mas semelhante a diversas proposições heréticas. Era um delito de foro misto, tanto da alçada civil como eclesiástica e inquisitorial, mas na prática, esta última monopolizou a punição (Braga, 2004, p. 302). (Vainfas, 2010, p. 251). No entanto, de acordo com os inúmeros relatos nos processos, a imensa maioria sequer cogitou desprezar o referido sacramento, sendo as várias circunstâncias de suas vidas a razão que os motivou a um segundo enlace: as longas separações ocasionadas pela distância entre Portugal e Brasil, no fluxo de suas atividades no mundo ultramarino; a falta de notícias dos cônjuges, considerando assim uma possível viuvez (p. 322-327). A grande circulação de indivíduos no Império português acabou por gerar tal conduta herética, duramente punida pelas autoridades eclesiásticas inquisitoriais.

Dentre estes casos, citemos o de José Pereira Ribeiro, pois junto dos papéis que exigiam que o mesmo fosse remetido a Lisboa para ser preso por uma denúncia de bigamia, em 25 de janeiro de 1781, esse mesmo tribunal requeria também ao seu destinatário em Recife, Pernambuco, que se realizasse uma averiguação sobre se a primeira esposa do réu ainda era viva. Outro caso ilustrativo foi a carta expedida para o Rio de Janeiro em abril de 1785, solicitando que fosse comprovado o óbito do primeiro conjugue de Maria Ribeiro, permitindo assim que a requerente contraísse um segundo casamento sem perpetrar bigamia.11 11 Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Inquisição de Lisboa, Correspondência expedida, Livro 24. Mas além dos bígamos, também sodomitas, feiticeiros, blasfemos e todos os outros hereges tiveram suas histórias sacramentadas nos papéis inquisitoriais que circulavam no ir e vir da correspondência do Santo Tribunal.

Em relação aos locais de destino da correspondência inquisitorial para o Brasil, as capitanias com maior incidência no século XVII foram as da Bahia, com 40%, seguida por Pernambuco, com 29% e depois Rio de Janeiro, 21%. Os menores índices couberam ao Maranhão, 6%, Pará, 3% e 1% com localidade não especificada.12 12 Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Inquisição de Lisboa, Correspondência expedida, Livros 18 a 20.

O controle inquisitorial estava voltado principalmente para as capitanias que protagonizaram, em vários períodos, regiões de ponta na economia colonial (Novinsky, 1992NOVINSKY, Anita. Cristãos-novos na Bahia: a Inquisição. São Paulo: Perspectiva, 1992., p. 111), como ambas as capitanias nordestinas que se configuraram como principais zonas açucareiras de exportação na América portuguesa no século XVII. Regiões, aliás, às quais foram enviadas as duas visitações inquisitoriais, até então mais conhecidas, documentadas e estudadas, respectivamente em 1591 e 1618. Senhores de engenho de origem cristã-nova, e ainda a fuga de cristãos-novos portugueses para o Brasil, aliado ao crescimento progressivo da rede de agentes inquisitoriais na América portuguesa, nos esclarecem sobre estas estatísticas (Schwartz, 1988SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.). No caso da Bahia, em particular, acrescente-se o fato de que Salvador foi sede do Governo-geral até 1763, e Sé primacial dos bispados coloniais desde 1551.

A conjuntura do século XVIII vai apontar progressivamente para uma mudança de foco da ação inquisitorial, que vai se direcionar também para a região das Minas e para o Rio de Janeiro. Os braços do Santo Ofício se estenderam para as regiões mineradoras já nas primeiras décadas do século, expandindo-se para outras regiões, sobretudo para o Rio de Janeiro, que se tornou centro econômico e administrativo da colônia no século XVIII. Na verdade, desde meados do século XVII, “o eixo dinâmico do império colonial português havia se firmado, definitivamente, no Atlântico, ficando as possessões orientais num plano secundário”, e nesse contexto, o Rio de Janeiro viu crescer sua posição estratégica (Bicalho, 2003BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003., p. 51). O porto carioca foi se tornando centro do comércio aurífero, crescendo nesse movimento o tráfico de escravos e uma estrutura mercantil importante. Até meados dos anos 1720, Salvador e Rio de Janeiro eram os maiores polos de comércio, mas a partir da década seguinte, o porto carioca foi se destacando no contexto colonial. Na segunda metade do XVIII, a diversificação da produção e o crescimento de uma elite mercantil vão dar o tom da economia colonial, com desdobramentos evidentes na sociedade (Sampaio, 2010SAMPAIO, A. C. Jucá de. Na curva do tempo: a economia fluminense na primeira metade do século XVIII. Mnemosine. v. 1, n. 1, p. 134-152, 2010.). E, no cotidiano desse novo movimento, crescia também a quantidade de comerciantes que iriam solicitar a habilitação aos cargos inquisitoriais, sobretudo o de familiares, pois pertencer ao quadro administrativo do Santo Ofício trazia privilégios, como isenção de impostos e nobilitação social, dentre outros (Torres, 1994TORRES, José Veiga. Da repressão religiosa para a promoção social: a Inquisição como instância legitimadora da promoção social da burguesia mercantil. Revista Crítica de Ciências Sociais. n. 40, p. 109-135, out. 1994.; Calainho, 2006CALAINHO, Daniela Buono. Agentes da fé: familiares da inquisição portuguesa no Brasil colonial. Bauru: Edusc, 2006.).

Quadro 2
Localidades de destino da correspondência expedida pelo Tribunal de Lisboa entre 1700 a 1802

A circulação de informações através desta vasta correspondência, demonstra o alcance do poder inquisitorial no Império português. Poder de perseguir hereges e poder de arregimentar agentes para seu aparato burocrático. A conclusão de um processo de habilitação a algum cargo na administração inquisitorial dependia do ir e vir de outros agentes que iriam investigar a vida pregressa do indivíduo, de modo a avaliar se estava apto ao cargo. Para fazer valer as ordens do Santo Tribunal, agentes circulavam para dar conta de toda a demanda exigida pela burocracia inquisitorial para a formação de seus agentes no Ultramar.

Réus e heresias em circulação

Um dos movimentos mais intensos de circulação de pessoas que a Inquisição proporcionou foi o de réus da colônia para Portugal. Todos os suspeitos e acusados de heresia no Brasil eram remetidos para o Tribunal de Lisboa, onde aguardavam nos cárceres do secreto o desenrolar de seu processo, pois, como não houve tribunal regional na colônia, como dissemos, estes réus eram julgados no Reino. Réus que, pela própria natureza do funcionamento do Santo Ofício, transitaram pelo Império ao longo de toda a história da Inquisição portuguesa. Os números gerais dos processados já há muito estão contabilizados, tendo o Tribunal de Goa em torno de 13 mil processados, Évora 11.050, Coimbra 10.374 e Lisboa 9.726 (Bethencourt, 2000BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália, séculos XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000., p. 275). Já no Brasil, contabiliza-se no século XVI 223 processados; no XVII, 87; na primeira metade do XVIII, 555; na segunda metade já decaindo para 107 e no século XIX, somente dois (Novinsky, 2009NOVINSKY, Anita. Inquisição: prisioneiros do Brasil, séculos XVI-XIX. São Paulo: Expressão e Cultura, 2009., p. 31).

Ao Brasil, foram enviadas algumas visitações, acompanhando a dinâmica de funcionamento do próprio Santo Ofício: no século XVI, a presença do visitador Heitor Furtado de Mendonça, entre 1591 e 1595, em Pernambuco e Bahia, aconteceu em meio ao contexto de expansão da Inquisição pelos domínios atlânticos e pelo próprio Reino. Já no século XVII, as visitações à Bahia (1618-1620), Rio de Janeiro, São Paulo e Espírito Santo (1627-1628) relacionaram-se a uma intensificação das perseguições aos cristãos-novos judaizantes (Feitler, 2013FEITLER, Bruno. A ação da Inquisição no Brasil: uma tentativa de análise. In: FURTADO, Junia; RESENDE, Maria L Chaves de. Travessias inquisitoriais das Minas Gerais aos cárceres do Santo Ofício. Belo Horizonte: Fino Trato, 2013., p. 32). Por fim, a tardia visita do século XVIII ao Grão-Pará e Maranhão, entre 1763-1769, esteve diretamente articulada ao projeto pombalino de submissão da Inquisição, bem como a questões envolvendo os poderes eclesiásticos locais (Mattos, 2012MATTOS, Yllan de. A última Inquisição: os meios de ação e funcionamento do Santo Ofício no Grão-Pará pombalino, 1750-1774. Jundiaí, Paco, 2012., p. 177-188).

Mesmo em diferentes cenários, o poder inquisitorial se fez presente no seu ímpeto persecutório, e o zelo por uma normatização religiosa e moral, esquadrinhando a sociedade colonial na busca por hereges, movimentou amplamente os grupos suspeitos em direção à Lisboa. A listagem dos delitos a serem confessados e denunciados ao visitador era afixada nas portas das igrejas, de modo que a própria população se responsabilizasse por fornecer estes réus. Mas as visitas eclesiásticas, a atuação dos agentes do Santo Ofício na colônia, as confissões sacramentais e as próprias visitas inquisitoriais colaboraram em muito para adensar o número de denunciados. Segundo Anita Novinsky, em enorme amostragem levantada, mais da metade dos processos no Brasil envolveram os cristãos-novos judaizantes: dos 1.076 casos, 544 foram penitenciados por este delito, seguindo-se a bigamia (87), proposições heréticas (87) e sodomia (50). Desse total, pouco mais da metade eram portugueses que migraram para o Brasil (Novinsky, 2009NOVINSKY, Anita. Inquisição: prisioneiros do Brasil, séculos XVI-XIX. São Paulo: Expressão e Cultura, 2009., p. 45-46).

Os inúmeros estudos dos pesquisadores que se dedicaram a desvendar os vários delitos inquisitoriais estão fartos de exemplos, a começar pelos cristãos-novos judaizantes, com famílias inteiras despedaçadas ao longo das perseguições que sofreram e que acabaram por se dispersar, seja fugindo do Santo Ofício, seja circulando pelo Império como réus e penitenciados. Lina Gorestein, ao estudar famílias de cristãos-novos no Rio de Janeiro no século XVIII, reconstruiu trajetórias de indivíduos que integravam redes de comércio, tanto em Portugal como no Brasil, transitando nestes espaços. Por cerca de três séculos, a família Vale, por exemplo, teve diversos membros presos e condenados. Portugueses de origem, integraram o grupo de judeus batizados compulsoriamente em 1497. Desde meados do século XVI, há indícios dos primeiros presos acusados de judaísmo, e também em inícios do século XVII, em Lisboa, outros tantos numa geração posterior. Um deles, depois de solto, fugiu para a Turquia, e outra parte da família acabou por se estabelecer no Rio de Janeiro, dedicando-se ao comércio: Gregório Mendes de Cea e Izabel Gomes tiveram três filhas, todas casadas com mercadores cristãos-novos. Uma delas, Izabel Mendes, cujo marido era também mercador e senhor de engenho, foi presa e julgada em Lisboa em 1634, bem como depois seus filhos no século XVIII (Gorestein, 2013GORENSTEIN, Lina. A família Vale: do reino às Minas. In: FURTADO, Junia; RESENDE, Maria L. Chaves de. Travessias inquisitoriais das Minas Gerais aos cárceres do Santo Ofício. Belo Horizonte: Fino Trato, 2013., p. 240-243). Um dos sobrinhos transitou por Amsterdã e Lisboa, foi denunciado e preso, pois como constatou Gorestein, “toda a família que estava viva no século XVIII no Rio de Janeiro caiu nas malhas do Santo Ofício” (Gorestein, 2005GOUVEIA, Maria de Fátima. Antonio Teles da Silva [verbete]. In: VAINFAS, Ronaldo(org.). Dicionário do Brasil colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2000., p. 77).

Em estudos sobre as práticas mágico-religiosas dos africanos e afrodescendentes em Portugal, aparecem vários casos de escravos e forros que andaram por Lisboa, Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro na primeira metade do século XVIII usando amuletos protetores, conhecidos como bolsas de mandinga. Fossem acompanhados de seus senhores, ou já na condição de réus degredados pelo Santo Ofício, difundiram o uso destes patuás, e até vendendo-os num circuito comercial, que por sinal ficou conhecido pelos inquisidores de Lisboa como sendo o Brasil o local originário desta prática. Com o objetivo de proteger contra agressões, doenças e outras tantas intempéries da vida cotidiana, e até para dar sorte no amor, no jogo e nos relacionamentos pessoais, os portadores das bolsas de mandingas sofreram processos, uma vez que seu uso foi associado à feitiçaria, e portanto atinente ao foro inquisitorial como uma prática herética, dada a suposta intervenção do demônio na sua confecção e poder (Souza, 1986SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986., p. 210-226; Mott, 1995MOTT, Luiz. Bahia: Inquisição e sociedade. Salvador: Edufba, 2010.; Calainho, 2008CALAINHO, Daniela Buono. Metrópole das mandingas: religiosidade africana e Inquisição portuguesa no Antigo Regime. Rio de Janeiro: Garamond, 2008.). Com largo uso em algumas regiões da África, chegaram na América por meio dos milhares de africanos escravizados, e foram ressignificadas, pois aqui receberam influências do cristianismo. Feitas de couro ou tecido, eram penduradas ao pescoço, atadas ao braço, cintura ou cruzadas no peito, e seu conteúdo era variado: ossos de defuntos, cabelos, raízes, sementes, sangue de animais, bebidas, como aguardente, pedras diversas, madeiras, pelos, penas, olho de gato, pólvora, balas de chumbo, mas também desenhos de Cristo crucificado, hóstias, orações dedicadas a santos, como são Marcos, são Cipriano, dentre outros (Calainho, 2008; Santos, 2008SANTOS, Vanicléia Silva. As bolsas de mandinga no espaço Atlântico, século XVIII. Tese (Doutorado em História), Universidade de São Paulo. São Paulo, 2008.). O estudo da circulação destes amuletos pelo espaço atlântico se relaciona, como bem demonstrou Russel-Wood, às “conexões, interconectividade, redes e diásporas que ligam a Europa, as Américas e a África; intercâmbio, seja de indivíduos, de flora e fauna, de mercadorias e produtos, seja de línguas, de culturas, de manifestações de fé, e de costumes e prática tradicionais; um Atlântico caracterizado pelo movimento” (Russel-Wood, 2009RUSSELL-WOOD, Anthony J. R. Um mundo em movimento: os portugueses na África, Ásia e América (1415-1808). Algés: Difel, 1998., p. 20-21).

Exemplo de trânsitos vários entre Brasil, África e Portugal foi o caso do liberto Francisco Antônio, preso pelo Santo Ofício em 1745. Nascido na Costa da Mina, chegou ainda criança nas Minas Gerais, e já adulto, conheceu o escravo André Pereira, companheiro nas lidas da extração aurífera. Passou a acompanhá-lo nas curas que fazia, observando que o amigo visualizava “feitiços” numa bacia, contendo caroços de coco de dendê, raízes, guizos, búzios e um dedal. Chupava-os com a boca e depois cuspia. Francisco Antonio aprendeu com maestria as artes de André Pereira, e acabou por herdar todo seu material quando este faleceu.13 13 Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Inquisição de Lisboa, Processo 11179. Permaneceu por mais três anos na região, mas depois desembarcou em Portugal, ou acompanhando seu senhor, ou mesmo já vendido para outro - não localizamos essa informação no processo -, tal qual inúmeros cativos que transitavam pelo Império português nessas condições. Para a região das Minas, entre 1718 e 1738, existem alguns dados quantitativos que demonstram a presença destes africanos vindos do Reino, compondo 21,7% da população escrava nas localidades de Vila Rica, Vila do Carmo e Tejuco, conforme estudo de Renato Pinto Venâncio. Supõe-se que eram propriedade de portugueses ricos atuando na colônia, e até uma espécie de “reserva de valor” em função dos altos preços que obtinham no Brasil pela sua qualificação profissional adquirida em Portugal, sendo interessante portanto que viessem para ser alugados ou até mesmo vendidos (Venâncio, 2012VENÂNCIO, Renato Pinto. Cativos do reino: a circulação de escravos entre Portugal e Brasil, séculos 18 e 19. São Paulo: Alameda, 2012.).

Mas voltemos ao nosso personagem, Francisco Antonio, que diante do inquisidor, confessou que quando chegou em Braga não fazia mais curas, e como ficou doente, foi abandonado pelo senhor à própria sorte. Não tendo como sobreviver, decidiu então se valer “da ciência que tinha”, e retomou os procedimentos curativos, cobrando por eles. Em seu processo constam sete denúncias, tanto de clientes, como de parentes e conhecidos deles que souberam de suas habilidades. Acometidos por doenças à época totalmente desconhecidas, sem conseguirem se recuperar, se julgavam enfeitiçados, e assim se submeteram às artes de Francisco Antônio. Este curandeiro usava em Portugal praticamente o mesmo procedimento que aprendera no Brasil, cantarolando cantigas “na língua de preto”. Fazia também uma pasta de urina e fezes de boi para passar nos doentes; dava-lhes de beber uma mistura de ovos, aguardente, ervas variadas, açúcar e mirra; e também por vezes usava um emplastro de dedo e sangue de uma galinha branca para enrolar no braço do enfermo.14 14 Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Inquisição de Lisboa, Processo 11179.

O porte de amuletos protetores e o curandeirismo foram exemplos de práticas mágico-religiosas associadas à feitiçaria, e em muitos desses processos, ao longo do tempo, estes réus acabavam por confessar o que os inquisidores queriam ouvir pela pressão da tortura, do longo tempo nos cárceres, pela perspectiva de uma condenação dura e até a própria fogueira inquisitorial. E nas confissões apareciam elementos da demonologia europeia, como a transmutação do Diabo em animais e o próprio pacto demoníaco. A aquisição destes conhecimentos muitas vezes ocorria nas próprias instâncias de poder: nos cárceres inquisitoriais, nos editais apregoados nas igrejas que incitavam denúncias e nos próprios autos de fé, com leituras públicas das sentenças, fazendo circular estes saberes entre os africanos e afrodescendentes e o restante da população. Mas, apesar de os réus por vezes assimilarem o discurso inquisitorial no momento das confissões, narravam também suas crenças e práticas, que mesmo chegando até nós de forma indireta, “através de filtros e intermediários que os deformam”, conforme Carlo Ginzburg, davam alguma ideia do universo religioso daqueles réus (Ginzburg, 1987GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987., p. 18). Tal qual no caso dos benandanti, estudados por ele, vinha à baila “um extrato de crenças populares substancialmente autônomas” em meio às perguntas dos inquisidores (p. 25). As reflexões deste autor sobre a circularidade cultural entre as categorias sociais dominantes e subalternas são uma chave interessante de entendimento dessas correlações envolvendo réus e inquisidores, uma vez que as influências recíprocas entre estes dois universos, o popular e o erudito, vão caracterizar estas relações.

Fossem cristãos-novos judaizantes, feiticeiros ou demais hereges perseguidos pelo Santo Tribunal, o fato é que os réus, ao permanecerem por meses e em muitos casos por anos nos cárceres inquisitoriais, em meio ao contato com outros presos, integrando circuitos de comunicação dentro das celas e fora delas, burlaram também as proibições e difundiram condutas heréticas dentro dos prédios dos tribunais locais. Vários ensinavam outros companheiros de cela algumas de suas práticas, a exemplo do escravo Afonso de Melo, que confessou ao inquisidor que vira José Francisco - de quem contratou os serviços para “acalmar a vontade do dito seu senhor” -, sair em auto de fé em 1738, acusado de feitiçaria. Declarou ao inquisidor que fugira dele por muito tempo, mas influenciado por outro companheiro de cativeiro “se sujeitou a fazer o que tem confessado”.15 15 Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Inquisição de Lisboa, Cadernos do Promotor 112, Livro 304. O modus operandi da Inquisição também circulava entre os presos, pois muitos ali acabavam por aprender com outros detentos e até com guardas, como se conduzir melhor nas inquirições e o que dizer para os inquisidores, na suposição de que poderiam ter uma pena mais branda, escaparem das sessões de tortura ou até mesmo serem absolvidos.

De todas as sentenças punitivas do Santo Ofício que não fossem a pena da morte na fogueira, a condenação ao degredo foi uma das mais duras, fazendo circular réus por vários cantos do Império, alterando drasticamente a vida dos indivíduos condenados (Pieroni, 1997PIERONI, Geraldo. Os excluídos do Reino: Inquisição portuguesa e o degredo para o Brasil-Colônia. Textos de História. v. 5, n. 2, p. 23-40, 1997.).16 16 Vamos nos ater ao degredo enquanto pena inquisitorial, deixando de lado as discussões relacionadas à esta pena, constante no corpus legal português, e a colonização. No século XVII, o Brasil foi a região para onde houve mais despachos de degredo pelo Santo Ofício, que ao lado da Coroa portuguesa, contribuiu também para a vinda dessas categorias sociais marginalizadas em direção à colonização ultramarina, pois esta penalidade também foi aplicada pela justiça secular e se consagrou como alternativa ao povoamento. Mas, no século XVIII, o Brasil perdeu seu lugar de destaque para o próprio Reino e as ilhas atlânticas na preferência desta sentença inquisitorial. Laura de Mello e Souza chama a atenção para o caráter simbólico do degredo enquanto elemento purificador dos pecados. No caso dos réus inquisitoriais, era o derradeiro passo do árduo caminho purgado inicialmente com a prisão, as inquirições, a tortura, o desfile no auto da fé e por fim o desembarque no local de cumprimento da pena (Souza, 1993SOUZA, Laura de Mello e. Inferno atlântico: demonologia e colonização, séculos XVI-XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1993., p. 90-94). Para os casos dos sentenciados oriundos do Brasil, mostrou-nos Anita Novinsky que dos 1.076 processos, a pena de degredo, associada a açoites e galés, vinham em terceiro lugar, antecedida pelas penas de cárcere e hábito penitencial perpétuo e abjurações e penas espirituais, lembrando que as sentenças envolviam por vezes penas conjuntas para o mesmo réu (Novinsky, 2009NOVINSKY, Anita. Inquisição: prisioneiros do Brasil, séculos XVI-XIX. São Paulo: Expressão e Cultura, 2009., p. 47-48).

Através do desterro, o Santo Ofício foi poderoso instrumento de transmissão cultural e religiosa de práticas e crenças que ele próprio procurava extirpar. Judaizantes, feiticeiros, sodomitas, bígamos, dentre outros, acabaram por reproduzir nos locais de degredo suas práticas, fosse por crença, desejo ou mesmo por necessidade, como no caso de feiticeiros que não tinham outra forma de sobreviver a não ser reiniciando suas práticas, cobrando por seus serviços, criando assim nova fama no lugar e até ensinando a outros. Diria novamente Laura de Mello e Souza em relação aos feiticeiros em Portugal e no Brasil, que “funcionando como via de purgação da metrópole, o degredo - ao mesmo tempo desterro e degradação - trabalhava no sentido de infernalizar a colônia, realimentando o que o olhar metropolitano via cada vez mais como humanidade inviável: olhar bem partilhado, comum a juízes do Santo Ofício e a réus modestos”. Degredados para o Brasil, alguns feiticeiros do Reino acabavam por reincidir aqui, levando a que voltassem para Portugal novamente como réus: “infernalizar a colônia significava muitas vezes ter de volta a metrópole infernalizada” (Souza, 1993SOUZA, Laura de Mello e. Inferno atlântico: demonologia e colonização, séculos XVI-XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1993., p. 101). A Inquisição acabava por recriar, assim, novos réus, configurando um impasse no controle social que o Tribunal procurava impor e uma evidente contradição relacionada aos mecanismos punitivos inquisitoriais. Cito um único exemplo, dos vários que encontrei, que foi o caso do curandeiro africano Domingos Álvares, que do Rio de Janeiro foi para Lisboa, preso pela Inquisição, e de lá degredado, em 1744, para Castro Marim, no Algarve, onde continuou atuando, sendo por isso novamente preso e penitenciado pelo Santo Ofício em 1749.17 17 Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Inquisição de Évora, Processo 7759. Em relação aos feiticeiros, de todas as penas da Inquisição entre 1600 e 1774, 80% foram de degredos associados a prisões e açoites, sendo estes réus enviados para algumas regiões de Portugal, Brasil e África (Paiva, 1997PAIVA, José Pedro. Bruxaria e superstição num país sem “caça às bruxas” (1600-1774). Lisboa: Editorial Notícias, 1997., p. 218).

Considerações finais

O sistema de comunicação organizado pelo tribunal inquisitorial, através de farta correspondência, particularmente para o Brasil, onde não houve um tribunal local, foi essencial para o êxito do controle, por parte da Igreja, da população colonial. A circulação dos seus agentes também foi procedimento muito importante para o Santo Ofício fazer valer suas determinações regimentais, processuais e a realização de diligências as mais variadas que serviram aos objetivos primordiais do tribunal. Mas, para além de ter sido instituição eclesiástica de combate a hereges, fossem de ordem religiosa ou moral, a Inquisição proporcionou um trânsito constante de réus em diversos estágios na sua saga diante dos inquisidores - desde os primeiros momentos em que foram presos até a sua sentença final, especialmente a pena do degredo. Mas é difícil avaliar se a Inquisição foi exitosa ou fracassou no combate a estas práticas heréticas, particularmente no caso dos cristãos-novos judaizantes, e a perspectiva de reconciliá-los com o catolicismo e trazê-los de volta ao seio da Igreja. O fato é que o temor ao Santo Ofício mobilizou muitos desta comunidade a migrarem para várias regiões europeias e coloniais, fugindo da sanha persecutória inquisitorial. Por outro lado, alguns dos seus mecanismos punitivos, como a pena do degredo, além de também movimentar réus pelo Império, propiciou por vezes a reedição de condutas heréticas nos locais a que esses penitenciados foram condenados a viver, como foi o caso de muitos feiticeiros.

Isabel Maria de Oliveira, natural de Coimbra e moradora em Belém do Grão-Pará, confessou que levava pessoas em viagens imaginárias de Belém a Portugal através de anéis de vidro que havia comprado no Terreiro do Paço, em Lisboa.18 18 Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Inquisição de Lisboa, proc. n. 5.180. (Souza, 1986, p. 188, 240). Foi processada por feitiçaria. Nos seus delírios de tão inusitada viagem, na imaginação que a tornou acusada pelo Santo Tribunal, ilustrou, alegoricamente, em seu devaneio, a capacidade que a Inquisição portuguesa teve de fazer transitar pelo Império indivíduos, papéis e crenças heréticas. Estudar a Inquisição é também pensar em espaços de mobilidade entre seus réus, seus agentes e suas ordens e determinações através da correspondência que circulou amplamente nesses espaços.

Referências

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  • 1
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  • 2
    Regimento do Santo Ofício, 1640. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (Rio de Janeiro). n. 392, jul.-set. 1996. Livro I, Tit. II.
  • 3
    Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Inquisição de Lisboa, Correspondência expedida (1605/1780) - Livros 18, 19, 20, 21, 22, 23 e 24.
  • 4
    Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Inquisição de Lisboa, Correspondência expedida, Livros 18 a 20.
  • 5
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  • 6
    Regimento do Santo Ofício, 1640. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (Rio de Janeiro). v. 157, n. 392, p. 758-759, 1996.
  • 7
    Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Livro das habilitações do Santo Ofício, s.d., volumes 1 a 25.
  • 8
    Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Inquisição de Lisboa, Correspondência expedida, Livro 21.
  • 9
    Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Inquisição de Lisboa, Correspondência expedida, Livro 22.
  • 10
    De acordo com Isabel Drumond Braga, a bigamia não era vista como uma heresia propriamente, mas semelhante a diversas proposições heréticas. Era um delito de foro misto, tanto da alçada civil como eclesiástica e inquisitorial, mas na prática, esta última monopolizou a punição (Braga, 2004, p. 302).
  • 11
    Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Inquisição de Lisboa, Correspondência expedida, Livro 24.
  • 12
    Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Inquisição de Lisboa, Correspondência expedida, Livros 18 a 20.
  • 13
    Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Inquisição de Lisboa, Processo 11179.
  • 14
    Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Inquisição de Lisboa, Processo 11179.
  • 15
    Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Inquisição de Lisboa, Cadernos do Promotor 112, Livro 304.
  • 16
    Vamos nos ater ao degredo enquanto pena inquisitorial, deixando de lado as discussões relacionadas à esta pena, constante no corpus legal português, e a colonização.
  • 17
    Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Inquisição de Évora, Processo 7759.
  • 18
    Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Inquisição de Lisboa, proc. n. 5.180. (Souza, 1986, p. 188, 240).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    30 Set 2021
  • Aceito
    10 Fev 2022
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