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Entre “liberdade” e “escravidão”: narrativas de agência e sofrimento no enfrentamento missionário ao tráfico de pessoas, em Fortaleza, Brasil

Between “freedom” and “slavery”: tales of agency and suffering on missionary fight against human trafficking in Fortaleza, Brazil

Resumo:

O artigo discute os usos das categorias “liberdade” e “escravidão” em ações evangélicas de enfrentamento ao tráfico de pessoas. A partir da pesquisa etnográfica conduzida entre 2014 e 2017 junto a grupos religiosos transnacionais em Fortaleza, argumenta que as estratégias de publicização missionárias são construídas sobre os trânsitos entre os domínios doméstico e público, ritual e cotidiano, religioso e secular. O sucesso de missionárias ao realizar esses trânsitos implica a leitura do sofrimento marcado por desigualdades de gênero como expressão de “liberdade”, enquanto outras formas dessas desigualdades seriam evidência da “escravidão” das supostas “vítimas”.

Palavras-chave:
Gênero; Tráfico de pessoas; Rituais; Missões

Abstract:

This article discusses “freedom” and “slavery” narratives in transnational evangelical actions to fight human traffick­ing. Based on an ethnographic study developed from 2014 to 2017, it argues that missionary strategies to publicize their initiatives are built upon the ability to move between domestic and public domains, ritual and ordinary actions, religious and secular contexts. The success of missionaries in making these transits implies the reading of suffering marked by gender inequalities as an expression of “freedom,” while other forms of these inequalities would be evidence of the “slavery” of the sup­posed “victims.”

Keywords:
Gender; Human trafficking; Rituals; Mission

Neste artigo discuto os usos das categorias “liberdade”1 1 As aspas são utilizadas para sinalizar categorias em disputa, assim como expressões presentes no material de campo. e “escravidão” relacionadas às desigualdades de gênero no enfrentamento missionário ao tráfico de pessoas. A partir das narrativas de uma missionária do norte global liderando ações de evangelização e enfrentamento a “crimes sexuais”2 2 “Crimes sexuais” é uma categoria analítica que utilizo para me referir a uma série de fenômenos, tipificados no código penal brasileiro ou não, que costumam aparecer juntos e são tratados como crime em Fortaleza: tráfico de pessoas com fins de exploração sexual, exploração sexual de crianças e adolescentes, “turismo sexual” e abuso sexual. em Fortaleza, Brasil, analiso como sujeitos do “resgate” são construídos em ações públicas através de narrativas de redenção que levam à “liberdade”, opostas ao sofrimento das “vítimas”, percebido como “escravidão”.

Essa análise se desenvolve em continuidade com os estudos que apontam os efeitos paradoxais das políticas de enfrentamento ao tráfico de pessoas sobre as pessoas consideradas vítimas, desenvolvidos no Brasil por Adriana Piscitelli (2013PISCITELLI, Adriana. Trânsitos: brasileiras nos mercados transnacionais do sexo. Rio de Janeiro: EdUerj , 2013.), Thaddeus Blanchette e Ana Paula da Silva (2012BLANCHETTE, Thaddeus; SILVA, Ana Paula da. On bullshit and the trafficking of women: moral entrepreneurs and the invention of trafficking of persons in Brazil. Dialectical Anthropology, v. 36, n. 1-2, p. 107-125, 2012.), José Miguel Nieto Olivar (2013OLIVAR, José Miguel Nieto. Devir puta: políticas de prostituição nas experiências de quatro mulheres militantes. Rio de Janeiro: EdUerj, 2013.), Laura Lowenkron (2015LOWENKRON, Laura. Consentimento e vulnerabilidade: alguns cruzamentos entre o abuso sexual infantil e o tráfico de pessoas para fim de exploração sexual. Cadernos Pagu, v. 45, p. 225-258, 2015.) entre outros.

Na tese Da violência ao amor: economias sexuais entre “crimes” e “resgates” em Fortaleza, percebi que o enfrentamento missionário ao tráfico de pessoas era empiricamente organizado sobre duas grandes bases: as relações de parentesco, que organizavam o cotidiano, e os rituais que publicizavam o modelo de família, operado na missão como uma política.

Os usos das relações de parentesco e da linguagem do amor no cotidiano do enfrentamento missionário a “crimes sexuais” foram analisados em outras publicações. Neste artigo, enfoco a forma como esses elementos vêm a público através de rituais religiosos e ações em contextos considerados seculares.

Argumento que as estratégias de publicização missionárias se fundam em ritualizações com formatos tradicionalmente associados ao religioso, como os cultos, e métodos pedagógicos considerados seculares, como dramas teatrais e formações. A comparação destes com um ritual estatal permite analisar as continuidades que existem entre narrativas de enfrentamento ao tráfico de pessoas religiosas e seculares.

Nessas performances, podem ser observadas ainda as tensões marcadas por gênero que atravessam o enfrentamento ao tráfico de pessoas, ao produzir hierarquias entre os domínios doméstico e público, ritual e cotidiano, religioso e secular. Essas hierarquias são constituídas sobre a continuidade e o embaralhamento crescente entre essas esferas.

Para construir essa discussão, inicio o artigo apresentando diferentes rituais evangélicos de enfrentamento ao tráfico de pessoas e outros “crimes sexuais”. Em seguida, analiso a construção de um desses rituais a partir da trajetória maternal e missionária de Emily, em Fortaleza. O tópico seguinte é dedicado à apresentação de um ritual secular no qual categorias e práticas cristãs podem ser observadas. Finalizo com a análise de como experiências de sofrimento marcadas por desigualdades de gênero podem ser interpretadas como “liberdade” no enfrentamento ao tráfico de pessoas em oposição à “escravidão” das supostas vítimas.

Ritualizações contra o tráfico de pessoas

As ações missionárias de enfrentamento a “crimes sexuais” analisadas na pesquisa que deu origem a este artigo têm nas relações de parentesco tanto objeto de intervenção quanto ferramenta de trabalho. As relações de parentesco, além do aspecto cotidiano que conecta missionárias/os às “vítimas” nos contextos em que estão instaladas, podem ser reconhecidas também nas dimensões públicas de sua atuação. Neste artigo, tenho como foco as questões suscitadas quando as missões endereçam o público em contextos religiosos ou seculares de enfrentamento ao tráfico de pessoas.

Os elementos públicos ou privados do parentesco, do amor e do sexo no enfrentamento ao tráfico de pessoas são objeto de tensões, por que a noção de público é justamente constituída sobre a dicotomia com as relações de parentesco (Yanagisako e Collier, 1987YANAGISAKO, Sylvia.; COLLIER, Jane. Toward a unified analysis of gender and kinship. In: COLLIER, Jane.; YANAGISAKO, Sylvia. Gender and kinship. Stanford: Stanford University Press, 1987. p. 14-85.), a linguagem do amor (Povinelli, 2006POVINELLI, Elizabeth. The empire of love: toward a theory of intimacy, genealogy, and carnality. Durham and London: Duke University Press, 2006.) e o sexo (Berlant e Warner, 1998BERLANT, Lauren.; WARNER, Michael. Sex in pub­lic. Critical Inquiry, v. 24, n. 2, p. 547-566, 1998.).

Judith Butler (2015BUTLER, Judith. Notes toward a performative theory of assembly. Cambridge and London: Harvard University Press, 2015.) nota que as esferas de aparecimento público são fortemente delimitadas, pois são definidas pela exclusão de certos sujeitos (mulheres, crianças, imigrantes sem papéis etc.). Apesar disso, esses sujeitos agem, e assim pôem em questão a própria definição do público e da ação política. Parto desta discussão para questionar: tendo a família como base do coletivo, como as missões traduzem suas ações de enfrentamento ao tráfico de pessoas para a esfera pública?

Observei na pesquisa que missionárias/os que corporificavam gênero, classe, raça e nacionalidade de modo distinto mobilizavam técnicas, categorias e relações específicas para obter reconhecimento a suas ações. Independente do seu (in)sucesso, considero que essas ações são políticas justamente por desestabilizarem limites convencionais (Butler, 2015BUTLER, Judith. Notes toward a performative theory of assembly. Cambridge and London: Harvard University Press, 2015.).

A etnografia que deu origem a esse artigo foi desenvolvida entre 2014 e 2017 junto a grupos religiosos transnacionais católicos e evangélicos engajados no enfrentamento a “crimes sexuais” e às pessoas por eles atendidas, em Fortaleza. Neste artigo, optei por me concentrar apenas nas ações evangélicas e sua relação com instâncias estatais de enfrentamento ao tráfico de pessoas.

Isto se justifica pela recente visibilidade das redes evangélicas transnacionais no enfrentamento a “crimes sexuais” no Brasil, enquanto em outros contextos ela avança a pelo menos duas décadas (Bernstein, 2010BERNSTEIN, Elizabeth. Militarized humanitarianism meets carceral feminism: the politics of sex, rights, and freedom in contemporary antitraficking campaigns. Journal of Women in Culture and Society, v. 36, n. 1, 2010.; Davidson, 2015DAVIDSON, Julia O’Connell. Modern slavery: the margins of freedom. London: Palgrave Macmillan UK, 2015.). Junto a instâncias de governança transnacional, redes católicas, certos coletivos feministas, agentes de segurança nacional, entre outros grupos, as redes evangélicas tomam parte importante na chamada “indústria do resgate” (Agustín, 1998AGUSTÍN, Laura. Sex at the margins: migration, labour markets and the rescue industry. New York: Zed Books, 1998.) cujas ações buscam conter a mobilidade de pessoas consideradas vítimas “puras” da opressão e exploração sexual, através de um “humanitarismo sexual” (Mai, 2014).

Contudo, mais que simplesmente somar-se aos grupos tradicionalmente relacionados a essa pauta no Brasil, as iniciativas evangélicas têm resultado em uma transformação no debate sobre o tráfico de pessoas, em que a retórica da defesa dos direitos humanos é obliterada por um humanitarismo que tem como foco a luta contra o “mal” (Piscitelli, 2020PISCITELLI, Adriana. Lidando com o mal. In: Reunião Brasileira de Antropologia, 32, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: ABA; Uerj, 2020.). Essa construção do tráfico de pessoas como materialização da “escravidão do mal” pode ser percebida nos rituais que apresento a seguir.

Drama musical

13 de junho de 2014. Na área externa da Fifa Fan Fest, estrutura montada como parte da Copa do Mundo Fifa em Fortaleza, um grupo de jovens com camisetas e faixas com dizeres contra a “exploração sexual infantil” encenou o “drama teatral”3 3 Termo empírico utilizado para descrever atividades missionárias em que “o corpo conta histórias”. que descrevo a seguir.

A apresentação foi acompanhada pelo som mecânico da música Set me free, da banda de rock cristã Casting Crowns. Enquanto a letra da música dizia, em inglês: “Nem sempre foi assim/ Eu lembro de dias melhores/ Antes da escuridão/ Que roubou minha mente/ Amarrou minha alma com correntes” era representada uma cena em que uma jovem estava de joelhos junto a outro jovem, que parecia mais velho, e fazia gestos expansivos, de pé, como se estivesse brigando com ela. Em certos momentos, ambos representavam uma disputa desigual em que correntes imaginárias que a amarravam eram puxadas por ele. Enquanto isso cinco ou seis outros/as jovens estavam deitados/as. Quanto mais os movimentos do jovem que segurava as correntes se tornavam bruscos, mais a jovem que estava de joelhos demonstrava sofrimento, levando as mãos ao rosto em gesto de desespero. Nesse momento as pessoas que estavam deitadas começaram a se levantar.

A música continuou: “Agora eu vivo entre os mortos/ Lutando contra vozes na minha cabeça/ Esperando alguém ouvir meu choro pela noite/ E me levar pra longe”. A cena ia se tornando cada vez mais tensa, até que a música entrou no refrão acompanhado por uma guitarra: “Me liberte das correntes que me seguram/ Tem alguém aí fora me ouvindo?/ Me liberte”. Neste momento a jovem que estava de joelhos se agitou e as/os coadjuvantes que começavam a despertar a envolveram, segurando-a enquanto ela fazia menção de correr.

O jovem com as correntes imaginárias passou a se mover rapidamente em torno dela, gesticulando muito. Ele repuxou as correntes, de modo que ela se debateu no chão, olhando ao redor em desespero, enquanto a música dizia: “A manhã traz um outro dia/ Me encontra chorando na chuva/ Estou sozinho com meus demônios/ Quem é este homem que vem no meu caminho?/ Os inimigos gritam/ Eles gritam Seu nome/ Este é Aquele que eles disseram que libertaria os cativos?/ Jesus, me salve”.

Apareceu um terceiro jovem na cena. Ele tinha os cabelos longos e uma barba. A jovem cativa, ainda de joelhos, gesticulou para ele, estendendo seus braços. Ele, por sua vez, de pé, a chamou, também fazendo muitos gestos com os braços, mas mantendo distância.

A música continuou: “E quando o homem de Deus passou por mim/ Ele olhou diretamente através de meus olhos/ E a escuridão não podia se esconder”. Ela tentou se libertar novamente, mas novamente foi envolvida pelos coadjuvantes e o jovem com as correntes, que ainda gesticulava muito. O jovem salvador fez ares de desespero, olhando ao redor, parecendo também impotente naquele momento. Em seguida a cativa ficou de pé. Ela foi jogada de um lado para o outro pelos coadjuvantes. A música retornou ao seu refrão, o cantor gritou “me liberte”. O salvador fez muitos gestos que indicavam desespero, chamando a cativa.

Ela tentou correr, mas foi segurada. A música: “Você quer ser livre? Quebre suas correntes/ Eu tenho a chave/ Todo o poder dos Céus e da Terra pertencem a mim”. Novamente o refrão. Ele estendeu o braço com veemência, ela se esticou, caiu. Atrás dela muitos puxaram correntes imaginárias. O salvador então estendeu o braço e imaginou também uma corrente que ele mesmo começou a puxar em sua direção. Ela ficou paralisada na tensão entre as duas forças. Finalmente, o salvador venceu e abraçou a cativa. Nesse momento percebemos o quão mais alto e corpulento que ela ele era. A música chegou ao fim: “Você está livre”.

Um jovem negro pegou um microfone e explicou, em português, que essa “peça” tinha sido feita para mostrar que “Jesus veio para nos libertar”. Ele explicou que temos vários desejos, por várias coisas que esse mundo oferece, mas que isso não traria a “verdadeira alegria” ou o “verdadeiro amor”. O único que poderia trazer alegria seria Jesus, como teria sido visto na peça. “Estamos aqui para falar sobre o amor de Jesus, sobre a libertação de Jesus, sobre o que Jesus pode fazer por nós.”

Esta ação foi realizada pelo grupo Jovens Com Uma Missão (Jocum), uma organização evangélica interdenominacional transnacional com sede nos EUA que forma jovens missionários/as desde 1960, presente no Brasil desde 1975, e no Ceará desde 1994. Segundo o site oficial, apesar dos dizeres contra a exploração sexual observados, nacional e transnacionalmente a principal preocupação desta rede em relação à Copa era o tráfico de pessoas.4 4 Ver mais informações em: http://www.ywamkickoff2014.com. Acesso em: 8 jan. 2015.

O líder do Jocum no Ceará explicou, posteriormente, que os dramas musicais são as ações mais simples promovidas pelos missionários na abordagem de problemas sociais. Para sua realização seriam escolhidas músicas populares que ajudassem a desenvolver discursos sobre esferas onde a sociedade estaria sendo “atacada”, nas quais haveria o perigo do “mal te dominar”, tais como drogas, prostituição, quebra de vínculo familiar, divórcio, separação, violência doméstica e abusos de todos os tipos.5 5 Entrevista, 29 out. 2014.

No evento descrito acima, o “lado social” da missão foi acionado numa gramática considerada secular para estabelecer diálogo em esferas públicas. Através de seus “corpos”, os missionários contariam histórias “interessantes” e as pessoas, por gostarem das histórias, “parariam” para ver. Foram mobilizadas linguagens consideradas “universais”, como o teatro de mímica, na qual performances de gênero e imagens religiosas cristãs serviam como pano de fundo.

Apesar desses esforços, poucas pessoas “pararam” diante dos dramas mobilizados durante a Copa. O líder do Jocum atribuiu isso à efemeridade dos momentos de “agregação” promovidos pelo evento esportivo. Para ele, eventos como a Copa mobilizariam muitas pessoas através de estratégias de marketing, porém isso não permitiria o estabelecimento de vínculos.

Em 2014 o Jocum procurava fortalecer seus vínculos com prefeituras na região metropolitana de Fortaleza, influenciando a elaboração de políticas estatais e ocupando espaços de atuação reservados à “sociedade civil”. Nesse intuito foram realizadas campanhas de prevenção ao tráfico de pessoas nas escolas, que apresento a seguir.

Formação Libertodos

O material intitulado Libertodos, produzido pelo Jocum, possui diferentes recursos a serem utilizados na prevenção ao tráfico de pessoas e “temas relacionados”. Além de apresentação em Power Point, existe um Manual de palestras interativas para prevenção ao tráfico de pessoas e materiais de áudio e vídeo para dramatizações.

O conteúdo da apresentação em Power Point situa o tráfico de pessoas entre outras formas de tráfico, como de drogas e de armas. São fornecidos números do fenômeno, acompanhados das fontes. O tráfico de pessoas é definido através do ato de “recrutar (chamar), transportar (levar), alojar (abrigar)” pessoas com uso de “ameaça, força, rapto, fraude/engano, abuso de autoridade, abuso da vulnerabilidade, entrega de dinheiro” com o objetivo de as “explorar”.

São abordadas as “semelhanças com escravidão” e, em seguida, expostas as finalidades do tráfico de pessoas. Para a exposição dessas finalidades, são sugeridos os “dramas”, que têm duração máxima de 2 minutos, e devem ser realizados pelo grupo missionário por meio de mímica e acompanhados por músicas instrumentais reproduzidas em caixas de som.

A primeira finalidade é o “tráfico para exploração sexual”. Após o drama, são apresentados diversos fatores de risco nessa modalidade, dentre os quais figuram “vulnerabilidade”, “famílias com renda menor que um salário mínimo”, “[pessoas que] sofreram abuso sexual na infância” e “entraram na prostituição”. Também são apresentados “possíveis aliciadores e exploradores”, que vão desde “meninas que foram traficadas” até “parentes”. Ao final dessa parte da apresentação, é ressaltado que os turistas estrangeiros não seriam os principais clientes na exploração sexual.

O esquema se repete em relação ao “tráfico para exploração de trabalho”, em que é ressaltada a diferença entre tráfico e migração. A última dramatização tem o tema do “transporte de drogas”. Em seguida, são apresentadas outras modalidades de tráfico de pessoas, como a “criança-soldado”, o “tráfico de órgãos” e a “mendicância”. A apresentação é finalizada com dicas de “o que fazer”. A primeira delas consiste em “não culpar a vítima” pois “não se abre mão dos seus direitos básicos”. Em seguida, recomenda-se “atenção” às propostas de viagens e a denúncia a uma linha telefônica segura em caso de suspeita.

Seguindo o Manual, Deus só seria mencionado no início da formação, quando missionárias/os apresentam o Libertodos como parte do Jocum, cuja proposta é “conhecer Deus e fazê-lo conhecido”. Na introdução do Manual, o projeto é justificado dentre as ações missionárias por meio do versículo em Provérbios 31:8.6 6 “Abre a tua boca a favor do mudo, pela causa de todos que são designados à destruição”. Na sessão “Para ler antes de fazer” do Manual, pontua-se que “é ideal ter uma equipe de intercessão orando antes e durante o trabalho nas escolas. Como preparação de todos os envolvidos, recomendamos a leitura de Isaías 58” (Jocum/Libertodos, 2014JOCUM/LIBERTODOS. Manual de palestras interativas para prevenção ao tráfico de pessoas. Belo Horizonte: Jocum, 2014., p. 5).

“Culto na boate”

A Missão Iris seria a especialista sobre a questão da prostituição dentre os grupos missionários evangélicos em Fortaleza, realizando ações antitráfico desde 2010, uma ou duas vezes por semana, das 22 às 2 horas da manhã, na área de bares e boates da praia de Iracema. Elas consistem em um momento de oração, que costuma acontecer na sede da Missão e, em seguida, na abordagem de “garotas de programa”.

Em maio de 2015, a Missão Iris organizou um “culto na boate”. O evento aconteceu em uma das maiores boates de encontro entre “nativas” e “gringos” da praia de Iracema a partir das 2h da manhã da sexta-feira, quando seu público habitualmente já se encaminhou para outra boate do bairro. O ritual foi organizado com a permissão do gerente do local, que se tornou simpático ao trabalho da Missão Iris após um dos missionários profetizar sobre sua vida.

Os missionários, que faziam evangelismo no local há muitos anos e “sentiam” que Jesus queria se apropriar daquela boate, viram na amizade com o gerente uma oportunidade para realizar a vontade de Deus. O público do culto foi constituído por fiéis de diversas igrejas evangélicas convidados a participar desse momento “incrível de celebração, oração e liberdade”.

O “culto na boate” representou a realização de diversos “sonhos”, sendo a permissão para a sua realização considerada um milagre, que levou as pessoas a ficarem em completa adoração com o poder de Jesus, que levou a “luz às trevas”, unindo todas as Igrejas, todas as pessoas em um só “coração”. Contudo, somente uma “garota de programa” ficou na boate.

Missionárias/os tomaram conta do som, da entrada e de outros detalhes, pois os/as funcionários/as haviam ido embora. Muitas/os eram da Igreja Universal do Reino de Deus e não sabiam como aquilo estava acontecendo ali. A “cereja do bolo” foi a presença do gerente e seu convite para que aquele fosse o primeiro de muitos cultos naquele local. Aquele fora um momento muito importante para a Missão Iris, cujos vídeos publicados no Facebook posteriormente chegaram a 900, 1.000 visualizações.7 7 Diário de campo, 27 maio 2015.

A ritualização do/no enfrentamento a “crimes sexuais” aconteceu na forma mais estilizada possível. Não havia dúvidas de que o “culto na boate” fosse um ritual de caráter religioso. Seu público foi composto por membros de igrejas “jovens” em um primeiro momento e, posteriormente, através dos vídeos, se expandiu para fiéis de diversas denominações evangélicas.

Contudo, a delimitação de ações rituais e conteúdos religiosos não fazia parte das práticas discursivas da Missão Iris. Pelo contrário, havia recusa à categoria religião como forma da organização e à fé como força que os movia. O objetivo da missão seria ter um relacionamento com Deus marcado pelo sobrenatural e pela entrega, algo que não aconteceria “nessas religiões”.8 8 Diário de campo, 30 set. 2015. A fé tampouco era adequada, pois as ações missionárias eram apresentadas através da linguagem do amor.9 9 Diário de campo, 7 out. 2015.

Somente com entrega e amor seria possível que o Espírito Santo exercesse seu poder através dos missionários, fazendo-os “personagens principais da aventura da vida real e da guerra do bem contra o mal” (Fanstone, 2016FANSTONE, Andrew. God plus one: to be where he is and go where he is not. Surrey: New Wine Press, 2016., p. 126). O poder sobrenatural é descrito como algo inacreditável que cura pessoas de doenças terminais, faz cair diamantes e ouro em pó do céu e ressuscita os mortos.

Transitando entre o ritual e o cotidiano, a Missão Iris dava importância absoluta ao sobrenatural, cujos milagres seriam a forma mais eficaz de intervenção missionária (Fanstone, 2016FANSTONE, Andrew. God plus one: to be where he is and go where he is not. Surrey: New Wine Press, 2016.). Os aspectos práticos de uma vida em absoluta obediência ao Senhor puderam ser observados nas narrativas de Emily, conhecidas através de diferentes encontros ao longo do período etnografado.

O seminário missionário de Emily

Emily era uma jovem missionária americana, mãe de dois filhos pequenos, que liderava ações na Missão Iris em Fortaleza. Ao primeiro contato por telefone para marcar uma entrevista, ela me explicou que o melhor horário para nossa conversa seria às 13 horas, quando as crianças estariam dormindo e ela poderia ficar mais à vontade.

Logo no início da conversa, Emily me explicou que não conhecia órgãos governamentais ou associações para o enfrentamento ao tráfico de pessoas em Fortaleza. As ações da Missão Iris eram articuladas junto a outros grupos evangélicos transnacionais, como o Jocum. Ela preferia manter-se distante do Estado, cumprindo exigências legais sem firmar parcerias formais, pois declarava que, no Iris, “não queremos estar presos aos pedidos de outras pessoas porque a gente precisa fazer o que Deus tá falando”.10 10 Entrevista, 5 nov. 2014.

No mesmo dia em que a conheci, teria início o primeiro Seminário Luz nas Ruas: Alcançando Zonas de Prostituição, promovido pelo Iris e direcionado a fiéis de igrejas evangélicas que desejavam construir abordagens de evangelismo em contextos de prostituição.

Emily é a fundadora das ações do Iris na “zona vermelha” da praia de Iracema. Ela contou-me que, ao casar, orou muito com seu marido para saber onde deveriam “fazer missões”. Eles “sentiram” que o local era Fortaleza, no Brasil. Emily aceitou seu destino, acreditando que estava abrindo mão do seu “chamado” para trabalhar com os temas do “tráfico humano” e das “pessoas abusadas sexualmente”, sobre os quais Deus já havia falado muito com ela.

Qual não foi sua surpresa quando, ao chegar em Fortaleza, ela descobriu, através de pesquisa em sites da internet, que a cidade estava listada como o terceiro destino no mundo para “turismo sexual”.11 11 O site mencionado por Emily chamava-se Hawkeys e não estava mais disponível para consulta em 2014. Com ajuda de amigas missionárias estrangeiras, ela iniciou o evangelismo na praia de Iracema em um final de semana e nunca mais parou.

No início, a ação consistia somente em oração: louvor na praia e preces para que Deus a direcionasse para as pessoas mais “desesperadas” para sair da prostituição. Ela perseverou mesmo diante de condições adversas até que engravidou pela segunda vez, há três anos da data em que conversávamos. O filho recém-nascido exigiu que ela parasse por um tempo, mas ela logo “sentiu” que deveria voltar.

O primeiro Seminário Luz nas Ruas, que aconteceu de 5 a 8 de novembro de 2014, materializava uma conquista de Emily, ao mesmo tempo em que provocava tensões, geradas pelas desigualdades de gênero no contexto familiar da missão. Emily ainda experimentava as dificuldades de conciliar as relações familiares/domésticas e as ações missionárias públicas.

O primeiro dia de seminário teve programação das 19h às 21h, sendo a primeira hora inteiramente dedicada ao louvor. A forma como esse momento foi conduzido me chamou atenção, pois ao invés de um culto marcado por gestos bem delimitados, esse ritual tinha uma forma aberta e fluida. Desde as 19h havia um jovem que tocava violão no altar improvisado na laje da casa missionária, onde havia um crucifixo construído a partir de material reciclado e luzes “pisca-pisca”. As músicas que ele cantava pareciam improvisadas e não era sempre possível perceber quando acabava uma e começava outra. O público era majoritariamente jovem e feminino. Contando todos os presentes havia 16 pessoas, o que parecia um bom número para a estrutura disponível.

Cada uma entrou em “estado de adoração” em momento diferente. Isso pôde ser percebido pelas orações proferidas, posturas corporais, dança, glossolalia, choro e gargalhada. Sobretudo, era algo que se manifestava em “corpos ritualizados”, ou seja, investidos com um “sentido ritual” (Bell, 1992BELL, Catherine. Ritual theory, ritual practice. Oxford and New York: Oxford University Press, 1992., p. 98).

Por volta das 20h, Emily encerrou a etapa com uma breve oração e em seguida apresentou o seminário. O tema do primeiro dia era intitulado “Visão mundial de Jesus sobre o tráfico sexual”. Foi entregue um material impresso em quatro folhas de papel ofício no qual estava contida a maior parte do conteúdo abordado naquele dia.

Emily iniciou sua fala explicando que falava português, mas que para alguns assuntos sentia-se mais à vontade ao falar em inglês. Em razão disso, pediu que outra missionária americana, casada com um brasileiro, traduzisse de forma simultânea a sua fala.

Ela iniciou com a experiência sobrenatural que motivara o seu engajamento no enfrentamento a “crimes sexuais”. Um “menino” teria profetizado sobre sua vida, falando que a via em casas “cheias de diamantes”. Sem compreender o significado dessa enigmática visão, Emily procurou saber como eram feitos os diamantes e descobriu que eram “terra” sob determinadas condições de temperatura e pressão. Ela entendeu que os diamantes eram uma metáfora perfeita para a condição das pessoas envolvidas em “exploração e tráfico sexual”.

“Quando Jesus olha pros [sic] travestis e mulheres prostituídas, Ele ver [sic] diamantes” (Iris Fortaleza, 2014IRIS FORTALEZA. Dicas práticas. In: Iris Fortaleza. Seminário Luz nas Ruas: alcançando zonas de prostituição, 1., Fortaleza. Fortaleza: Iris Fortaleza, 2014b.c, p. 1). A fala de Emily e o material seguiram, tanto em inglês quanto em português, acionando conhecimentos bíblicos (Oséias; Mateus: 22:37; Marcos: 2:17; Êxodos 22:22; Tiago 1:27; Isaías 52:1-5 e 1:17) e dados de agências transnacionais de governamentabilidade, como a ONU e a OIT. Não havia, porém, simetria no tratamento dessas fontes.

Os conhecimentos encontrados na Bíblia eram centrais no discurso sobre o enfrentamento ao tráfico de pessoas. Segundo esse material, o versículo que fundamenta o ministério na “zona vermelha” estava em Isaías 52:1-5:

Desperta, desperta, veste-te da tua fortaleza, ó Sião; veste-te das tuas roupas formosas, ó Jerusalém, cidade santa, porque nunca mais entrará em ti nem incircunciso nem imundo.

Sacode-te do pó, levanta-te, e assenta-te, ó Jerusalém: solta-te das cadeias de teu pescoço, ó cativa filha de Sião.

Porque assim diz o Senhor: Por nada fostes vendidos; também sem dinheiro sereis resgatados.

Porque assim diz o Senhor Deus: O meu povo em tempos passados desceu ao Egito, para peregrinar lá, e a Assíria sem razão o oprimiu.

E agora, que tenho eu que fazer aqui, diz o Senhor, pois o meu povo foi tomado sem nenhuma razão? Os que dominam sobre ele dão uivos, diz o Senhor; e o meu nome é blasfemado incessantemente o dia todo.

Segundo o texto didático elaborado pelo Iris:

A descrição nessa passagem é de uma mulher em um estado de humilhação caída na poeira com correntes ao redor do pescoço, que já foi estuprada muitas vezes ou pela sua própria vontade se entregou a muitos. Seu amado está dizendo para ela que nunca mais será vendida por dinheiro, que ela estará redimida e livre. Isso é o Espírito de Deus falando para sua esposa, sua prometida, querido Sião - povo de Deus (Iris Fortaleza, 2014IRIS FORTALEZA. Seminário Luz nas Ruas: alcançando zonas de prostituição, 1, Fortaleza. Fortaleza: Iris Fortaleza , 2014c.c, p. 1; destaque meu).

Há uma equivalência entre a cidade (Sião ou Jerusalém) e a mulher descrita no parágrafo acima (filha de Sião). A “prostituição” de ambas adquire no seminário muitos significados. Não se tratava de uma metáfora. Em ambos os casos “prostituição é uma antiga dor que parte o coração de Deus - está completamente envolvida na história do povo de Deus” (Iris Fortaleza, 2014IRIS FORTALEZA. Seminário Luz nas Ruas: alcançando zonas de prostituição, 1, Fortaleza. Fortaleza: Iris Fortaleza , 2014c.c, p. 1).

Diante desse problema “mundial” da prostituição, a “realidade da prostituição no Brasil” e, especificamente, em Fortaleza, seria marcada por especificidades que a tornariam mais difícil de entender. As pessoas não seriam “forçadas” à “escravidão”. O abuso começaria nas famílias - Emily argumentou que nunca conhecera uma prostituta ou travesti que não tivesse sido abusada em contexto familiar - e por isso as pessoas iriam buscar o amor “fora da família”.

Os dados seculares produzidos pela ONU e OIT complementaram, ao final do primeiro dia, esse debate. Os números foram citados para dimensionar o problema, mas alguns deles foram questionados na própria apresentação. Emily pontuou que, na verdade, eles eram apenas um convite para que as pessoas saíssem da sua “zona de conforto” e fossem viver a “grande comissão”, como Jesus pediu.

A “grande comissão” daquelas que faziam o evangelismo na “zona vermelha” era percebida como uma dupla tarefa. Haveria o combate à prostituição que estaria “VIVA e AGINDO dentro do corpo de Cristo”, ao mesmo tempo em que se buscaria defender os “oprimidos”: “mulheres e homens [que] estão sendo prostituídos por várias razões” (Iris Fortaleza, 2014IRIS FORTALEZA. Seminário Luz nas Ruas: alcançando zonas de prostituição, 1, Fortaleza. Fortaleza: Iris Fortaleza , 2014c.c, p. 2). Depois dessa fala, às 21h, Emily fez uma oração curta que encerrou o primeiro dia de seminário e explicou que sairia rapidamente, pois precisava cuidar dos filhos.

No segundo dia de seminário, a organização entre os momentos de adoração e falas se repetiu. Foram apresentadas as “Dicas práticas” para a realização de evangelismo na “zona vermelha”. No início das atividades, Emily não estava presente. Duas jovens missionárias cearenses, lideranças daquele ministério, ficaram responsáveis pela apresentação, dessa vez totalmente em português. Elas também distribuíram um material didático encabeçado por um versículo (Romanos 8:14-15) e separado em três momentos: antes da abordagem, durante a abordagem e depois da abordagem.

As jovens iniciaram enfatizando a importância dos momentos de intercessão, através da qual missionários/as seriam “capacitados pelo Espírito Santo” e teriam visões que direcionariam as pessoas e situações onde deveriam intervir. Mais que elementos sobrenaturais, porém, naquele dia o objetivo era repassar os conhecimentos práticos aprendidos no cotidiano das abordagens. Eles versavam sobre o modo de vestir, o porte de documentos, a logística e, sobretudo, o conteúdo da abordagem.

As dicas listadas eram: “falar sobre Cristo e não sobre religião”, “observar quando a pessoa não estiver aberta”, “função dos homens nos grupos”, “transmitindo palavras recebidas do Espírito Santo” e uma série de exemplos de frases para iniciar conversas (Iris Fortaleza, 2014IRIS FORTALEZA. Seminário Luz nas Ruas: alcançando zonas de prostituição, 1, Fortaleza. Fortaleza: Iris Fortaleza , 2014c.b, p. 1). As missionárias indicaram pensar que “as pessoas que tão lá embaixo são como nossos amigos”. Por isso, deveríamos nos apresentar, sorrir, olhar nos olhos, perguntar o nome da pessoa, se ela é de Fortaleza, se tem filhos e como está a noite. “Não tem tanto ‘ah, eu preciso chegar com oi, Jesus te ama’”.

O evangelismo combinava grupos de intercessão e de abordagem em que gênero era uma categoria fundamental. O ideal seria haver pelo menos um homem em cada grupo. O seu papel seria tanto de garantir segurança às missionárias quanto de oferecer o amor de Deus às “vítimas” sem pedir nada em troca. Mas, num ministério predominantemente feminino, “se não tiver homem, não é justificativa para não sair para rua”.

No terceiro dia, após o Culto de Missões, que acontecia semanalmente, nos preparamos para participar do evangelismo na “zona vermelha” como parte das atividades do seminário. Às 22h havia nove mulheres reunidas em círculo na laje. Emily conduziu o momento explicando que a intercessão representava 50% do seu trabalho. Através dela as missionárias entrariam em um “tempo de louvor” e chegariam à zona “cheias de Deus”. Isso ajudaria a dissipar também o cansaço, que naquela noite nos abatia a todas.

Após a intercessão, as pessoas compartilharam as visões que tiveram, tomaram café, observaram roupas e documentos, dividiram-se em grupos e seguiram a pé até a praia de Iracema. Eu fiquei em um dos grupos de abordagem, liderado por Emily. Ela estava visivelmente cansada e explicou que temia ter que voltar mais cedo, pois o seu bebê tinha acordado. O pai conseguira fazê-lo voltar a dormir, mas ela estava incerta sobre a resolução do problema, pois era ela quem cuidava das crianças durante a noite.

Apesar disso, conseguimos cumprir toda a programação para aquela atividade. As pessoas retornaram à base juntas para compartilhar suas experiências por volta das 2h da manhã, em um momento breve. Além das pessoas consideradas “vítimas de prostituição”, os grupos abordaram donos de bares, seus frequentadores e moradores/as “de rua”.

O último dia de seminário foi dedicado ao tema “Chamado: qual é o meu?”. Comandado pelo líder-fundador da Missão Iris em Fortaleza, esse momento foi dedicado a fornecer elementos para que as pessoas reconhecessem “o chamado cristão revelado na Bíblia” em suas vidas (Iris Fortaleza, 2014aIRIS FORTALEZA. Chamado: qual é o meu? In: Iris Fortaleza. Seminário Luz nas Ruas: alcançando zonas de prostituição, 1, Fortaleza. Fortaleza: Iris Fortaleza, 2014a., p. 1). O material didático indicava diversos versículos que estimulavam cumprir esse chamado e abordava as dúvidas que poderiam se colocar entre o “chamado” e a vida em “missões”.

Talvez, durante esses dias, você tenha sentido um chamado para levar o evangelho às zonas de prostituição, mas existem questões e dúvidas na sua cabeça. Existem várias formas que o diabo usa para colocar medo em relação a autoridade e capacidade. Mas essas são mentiras para que a verdade não se espalhe e para que ele possa continuar seu [trabalho?] de destruir famílias e a noiva de Cristo (Iris Fortaleza, 2014IRIS FORTALEZA. Seminário Luz nas Ruas: alcançando zonas de prostituição, 1, Fortaleza. Fortaleza: Iris Fortaleza , 2014c.a, p. 1).

O cansaço na expressão das quatro mulheres que acompanharam o seminário de forma integral e das missionárias que organizaram e lideraram todas as atividades até então tornava paradoxal a presença do missionário que, chegando ao final, impelia que estivéssemos abertas para “a liderança do Senhor”. Sua abordagem dura e fora de contexto chamava atenção para as desigualdades de gênero nos rituais missionários.

O ministério da “zona vermelha” em Fortaleza, profetizado e realizado por Emily quando ela não tinha “nada”, era, ao mesmo tempo, a sua “maior realização” enquanto missionária, e uma atividade, muitas vezes, incompatível com as moralidades de gênero e seus papéis na maternidade e no casamento, fundamentais para a autoridade missionária evangélica (Teixeira, 2012TEIXEIRA, Jacqueline. Da controvérsia às práticas: conjugalidade, corpo e prosperidade como razões pedagógicas na Igreja Universal. 2012. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social), Universidade de São Paulo. São Paulo, 2012.). Emily e seu marido eram, enquanto casal, líderes da base da Missão Iris em Fortaleza. A agência de Emily situava-se entre agir em “liberdade”, seguindo o seu “chamado”, e o sacrifício que isso representava no cotidiano das obrigações familiares, tal como ela as experimentava.

A noção de “liberdade” era articulada à “resistência” a (certas) relações de dominação marcadas por gênero nos moldes feministas de uma política progressista. Emily se opunha à degradação da mulher em contextos em que ela seria tratada como “mercadoria”. Assim como observado em outras pesquisas, essa oposição fundava a sua construção enquanto “cidadã liberal” (Mahmood, 2005MAHMOOD, Saba. Politics of piety: the Islamic revival and the feminist subject. Princeton and Oxford: Princeton University Press, 2005.).

Ao denunciar que, nas boates, “os homens tratam as meninas como uma coisa para comprar”,12 12 Entrevista, 5 de novembro de 2014. Emily acionava argumentos feministas radicais contra a prostituição. Apesar de seu posicionamento político se opor ao feminismo, o domínio dessa linguagem permitia a produção da missionária como um sujeito “moderno e autônomo” no enfrentamento a “crimes sexuais” e tornava sua as ações compatíveis com aquelas articuladas por grupos seculares (Bernstein, 2010BERNSTEIN, Elizabeth. Militarized humanitarianism meets carceral feminism: the politics of sex, rights, and freedom in contemporary antitraficking campaigns. Journal of Women in Culture and Society, v. 36, n. 1, 2010.).

Ao mesmo tempo, o discurso missionário se afastava do feminismo ao assimilar desigualdades de gênero no contexto familiar como parte do sofrimento necessário para a redenção. Na prática isso colocava, muitas vezes, as ações de “resistência” em conflito com os sistemas morais que sustentavam a vida missionária. A experiência desses conflitos não era considerada obstáculo a ser superado, mas parte do sacrifício pressuposto ao seguir os passos de Jesus.

As observações de Talal Asad (2003ASAD, Talal. Formations of the secular: christianity, Islam, modernity. Stanford: Stanford University Press, 2003.) acerca da sobreposição entre secularismo e religião são importantes para compreender como a ideia de agência enquadra tanto o sucesso quanto o sofrimento de Emily em uma narrativa de “liberdade” e “redenção”. O discurso missionário articula a divisão entre mundo sobrenatural e natural reconciliando o poder absoluto de Deus ao imperativo colonialista de intervir:

E ainda, a história missionária cristã conseguiu fundir os dois - emaranhou a promessa espiritual (“Cristo morreu para nos salvar”) ao projeto político (“o mundo precisa ser transformado para Cristo”) - fazendo o conceito moderno de redenção possível (Asad, 2003ASAD, Talal. Formations of the secular: christianity, Islam, modernity. Stanford: Stanford University Press, 2003., p. 62; tradução livre).

Ao mesmo tempo em que missionárias associavam o poder sobrenatural às suas intervenções no mundo, elas acionavam seu sofrimento cotidiano marcado por gênero como evidência do sacrifício necessário para alcançar esse poder. No caso de Emily, era a dor do seu cansaço, marcada por desigualdades de gênero, que criava o espaço para a sua agência (Asad, 2003ASAD, Talal. Formations of the secular: christianity, Islam, modernity. Stanford: Stanford University Press, 2003., p. 91). Foi entregando-se completamente e ficando sem “nada” que Emily ganhou a “autoridade” que vinha do poder de Jesus Cristo. O material do seminário explicitava esse duplo movimento:

Pessoal: por causa do sacrifício de Jesus, nós temos autoridade sobre nossas próprias vidas. Somos livres, não para viver em pecado, mas para viver em santidade. (Colossenses 2:13-15)

Ministério (Evangelismo): Nós temos o maior presente que pode ser dado a alguém - a verdade. Levando essa verdade para a zona vermelha, você estará levando a liberdade, pureza, e esperança para cada mulher, homem, e criança que se encontra na prisão da prostituição (João 8:31-32, Mateus 28:16-20) (Iris Fortaleza, 2014IRIS FORTALEZA. Seminário Luz nas Ruas: alcançando zonas de prostituição, 1, Fortaleza. Fortaleza: Iris Fortaleza , 2014c.a, p. 2).

A ideia missionária de agência é fundada na redenção através do sofrimento. Ela foi ensinada por Cristo e deve ser imitada pelas missionárias. Vivendo como Cristo em sua dor, também lhes é acessível o seu poder, que age tanto sobre o mundo natural quanto sobrenatural.

Reconhecer a agência missionária através da dor acompanha a proposta de Saba Mahmood (2005MAHMOOD, Saba. Politics of piety: the Islamic revival and the feminist subject. Princeton and Oxford: Princeton University Press, 2005.) de ir além dos termos binários de resistência e dominação. Analisando o movimento pietista feminino integrado ao revivalismo islâmico no Egito, Mahmood enfatiza a importância dos procedimentos, técnicas e exercícios corporais na produção de sujeitos éticos nesses contextos.

Na perspectiva de Mahmood, a noção de agência deve ser acionada também em contextos onde o “desejo de submissão a uma autoridade reconhecida” (Mahmood, 2006, p. 131) permite uma reiterabilidade produtiva das normas. Deste modo, a autora amplia o conceito de agência dentro do debate feminista, reconhecendo em seus significados de resistência uma marca da perspectiva liberal de autonomia dos sujeitos.

O material empírico que apresento permite mais um avanço teórico, pois demonstra que discursos liberais sobre agência como resistência podem assimilar a agência construída através da dor e submetida à autoridade, desde que estas sejam articuladas numa narrativa cristã. Elaboradas dentro do paradigma cristão, hegemônico na esfera pública no Brasil (Montero, 2009MONTERO, Paula. Secularização e espaço público: a reinvenção do pluralismo religioso no Brasil. Etnográfica, v. 13, n. 1, p. 7-16, 2009. ), as ações missionárias podem traduzir gramáticas religiosas do sofrimento em discursos seculares sobre “liberdade” sem que a “autonomia” dos sujeitos seja questionada.

Autoras interessadas no tema do enfrentamento ao tráfico de pessoas têm puxado os fios de tramas que reúnem grupos com interesses díspares em torno da categoria “liberdade”. Analisando os elementos que reúnem diferentes instituições no enfrentamento à “escravidão moderna” nos EUA, Elizabeth Bernstein nota que há um “consenso historicamente significativo em torno de ideais do capitalismo corporativo sobre liberdade e paradigmas carcerários de justiça” (Bernstein, 2007BERNSTEIN, Elizabeth. The sexual politics of the “new abolitionism”. differences: a jornal of feminist cul­tural studies, v. 18, n. 3, p. 128-151, 2007., p. 144).

Sobre as campanhas antitráfico no Canadá, Kamala Kempadoo (2016KEMPADOO, Kamala. Revitalizing imperialism: contemporary campaigns against sex trafficking and modern slavery. Cadernos Pagu, v. 47, n. e16478, 2016.) aponta que os termos do debate sobre a “escravidão moderna” e o “tráfico sexual” obliteram questões raciais importantes, afirmando masculinidades e feminilidades “brancas que são, entre outras coisas, poderosas, benevolentes e moralmente superiores”, num movimento revitalização do imperialismo.

Julia O’Connel Davidson (2015DAVIDSON, Julia O’Connell. Modern slavery: the margins of freedom. London: Palgrave Macmillan UK, 2015.) aponta que o heroísmo relacionado ao enfrentamento ao tráfico de pessoas se sustenta na mobilização do termo “escravidão moderna”, que faz referência ao conteúdo moral da escravidão transatlântica do século XIX, mas apaga os componentes estruturais de processos de racialização ainda operantes.

Todas as autoras notam a ênfase na “liberdade” que atravessa esses discursos e que se constitui como um pressuposto para a agência. Analisando as tensões que compõem o enfrentamento ao tráfico de pessoas no contexto de Fortaleza e, particularmente na vida de Emily, eu chamo atenção para a ambiguidade da “liberdade”.

A produção de Emily como sujeito ético “livre” sobrepunha casamento e maternidade cristã à liderança missionária transnacional contra o tráfico de pessoas. Sua “liberdade” coincidia com o poder de ser esposa e mãe e, ao mesmo tempo, resgatar pessoas da “escravidão” do mal que se materializava na prostituição. Vida doméstica e pública, parentesco e política, cotidiano e ritual se combinavam no enfrentamento ao tráfico de pessoas.

O simpósio dos magistrados

O quinto Simpósio Internacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas foi realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e pelo Tribunal Regional do Trabalho da 7a Região/Ceará (TRT7) em pareceria com a Escola Judicial deste mesmo tribunal, em Fortaleza, nos dias 16 e 17 de abril de 2015.

O evento aconteceu no prédio anexo à sede do TRT7, numa larga avenida de um bairro rico de Fortaleza. O edifício em estilo neoclássico era uma reprodução de Tara, a casa da personagem Scarlett O’Hara no filme E o vento levou....13 13 Essa informação foi fornecida pelo cerimonial do evento. O filme tematiza as desventuras da jovem e rica sulista branca em meio à Guerra de Secessão, nos EUA, onde estava em disputa a abolição da escravidão sobre a qual se sustentava a produção de sua fazenda. Ao entrar, uma jovem negra vestida em um terno preto perguntou-me se eu estava ali para o simpósio. Respondi afirmativamente ao que ela replicou que eu seria acompanhada até o outro prédio, onde o evento aconteceria.

Após subir os degraus de uma escadaria de mármore coberta por um tapete vermelho, caminhamos até um túnel que nos levou ao outro prédio, mais prosaico, com elevadores e caixas eletrônicos. A recepcionista me deixou com outra jovem, que acompanhava mais duas mulheres no percurso até o 4o andar por elevador. Chegando lá, outra recepcionista nos acompanhou até o credenciamento.

Recebi uma pasta em um material que imitava couro com um conteúdo diverso, entre a programação do simpósio e panfletos turísticos, junto a um crachá que seria lido eletronicamente no início de cada painel. Segui para o auditório, onde um homem tocava um piano elétrico enquanto imagens e textos que enalteciam o Ceará eram exibidas no telão. Após algum atraso, o mestre de cerimônias convidou todos para, “em posição de respeito” ouvir o Hino Nacional, que foi cantado em toda a sua extensão, acompanhado ao piano. Em seguida, o Coral Sétima Voz (do TRT7) cantou as músicas Bandoleiro, No Ceará é assim e Isso aqui o que é. Antes de conhecer qualquer “conteúdo” apresentado no simpósio, todos esses elementos me moldaram para uma postura reverencial.

O simpósio contou com a presença de representantes do Judiciário, Executivo e Legislativo municipais e estaduais em sua solenidade de abertura. Os demais painéis foram compostos majoritariamente por altos funcionários do Judiciário federal e estadual. Concentro esta análise nas categorias mobilizadas para fazer referência ao tráfico de pessoas e outros “crimes sexuais”.

Na solenidade de abertura, o secretário de Justiça do Ceará afirmou que o tráfico de pessoas era uma “chaga” da sociedade, termo cristão amplamente mobilizado para fazer referência aos “crimes sexuais” no Ceará, comentando a capacidade inventiva do “mal” e lembrando que o Ceará seria a “terra da luz” não por conta do sol, mas pela abolição da escravatura que “seu povo, tão acolhedor, já não admitia”.14 14 Para uma crítica a esse discurso relacionada ao enfrentamento a “crimes sexuais”, ver Sales (2021).

O secretário acionou tropos mobilizados desde os anos 1980 em referência a exploração sexual de crianças e adolescentes para abrir esse evento contra o tráfico de pessoas, atualizando a narrativa hegemônica local de que “crimes sexuais” seriam um “problema” que vinha de fora, vitimava pessoas inocentes e produzia estigmas em uma cidade explorada por ser acolhedora (Sales, 2018SALES, Ana Paula Luna. Da violência ao amor: economias sexuais entre “crimes” e “resgates” em Fortaleza. 2018. Tese (Doutorado em Ciências Sociais). Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2018.).

Nos painéis, apresentações consideradas “mais acadêmicas” e também “falas políticas” enfatizaram as diferenças entre tráfico de pessoas e migração. Algumas buscavam compreender os “motivos” das pessoas serem “traficadas”, mobilizando categorias como “situação de vulnerabilidade” ou “sonhos”. O “movimento de prostitutas” foi mencionado para argumentar que o trabalho do sexo seria uma “opção” quando exercido “em condições de liberdade”. Outras apresentações focaram nas mudanças legais que estavam sendo elaboradas na Câmara e no Senado sobre o tipo penal do tráfico de pessoas. O consentimento foi tematizado como uma questão de importância em diferentes apresentações, pois ele seria fundamental na definição de (alguns) “crimes sexuais” na legislação brasileira (Lowenkron, 2015LOWENKRON, Laura. Consentimento e vulnerabilidade: alguns cruzamentos entre o abuso sexual infantil e o tráfico de pessoas para fim de exploração sexual. Cadernos Pagu, v. 45, p. 225-258, 2015.).

Após o intervalo para o almoço, foi realizada uma sessão de ginástica laboral15 15 A ginástica laboral foi difundida no Brasil na década de 1980, e se popularizou nos anos 1990, em resposta à “epidemia” de lesões de esforço repetitivo. Realizada no meio do turno, ela tem caráter sobretudo compensatório (Soares, Assunção e Lima, 2006, p. 152). que acompanhei “molemente” enquanto me espantava com a materialidade do poder, que transbordava em seu excesso. Esse excesso contrastava com os parcos recursos dedicados à prevenção e assistência às vítimas do tráfico de pessoas no Ceará.

Os órgãos estatais e seus análogos da chamada “sociedade civil” dedicados à prevenção e assistência foram, naquele evento, situados na base da hierarquia do enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil, como o elemento que está “lá na ponta” da rede de enfrentamento, em “contato direto com a sociedade civil”.

A coordenadora do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Ceará, ao tomar a palavra, parabenizou o Judiciário por “sair de seus gabinetes e chegar à sociedade”. Em sua fala ela enfatizou que a prevenção seria o “carro-chefe” do enfrentamento, mencionou parcerias com a “sociedade civil”, através de grupos católicos, e finalizou sua apresentação abordando a Campanha Coração Azul, em que “o coração simboliza a tristeza da vítima, a insensibilidade do traficante e o amor de quem enfrenta, pois sem paixão pelo tema, não vai pra frente”. Nessa leitura, o enfrentamento ao tráfico de pessoas é puro sentimento.

A coordenadora do Núcleo do Pará, única pessoa negra entre panelistas, mencionou as parcerias com instituições católicas e ONGs, pontuando que “o crime já estava organizado” e este seria o momento do Estado (marcado por gênero em seus órgãos preventivos e assistenciais) também se organizar.

No último painel, dedicado à cooperação internacional, duas representantes do governo dos Estados Unidos se pronunciaram, acionando argumentos feministas pela abolição da prostituição, que foi equacionada à escravidão. As americanas também acionaram discursos de um feminismo carcerário (Bernstein, 2007BERNSTEIN, Elizabeth. The sexual politics of the “new abolitionism”. differences: a jornal of feminist cul­tural studies, v. 18, n. 3, p. 128-151, 2007.) ao trazerem histórias detalhadas e fotografias de pessoas condenadas por tráfico de pessoas.

As noções de “liberdade” e “escravidão foram acionadas em diferentes momentos com significados claramente divergentes: a liberdade de exercer o trabalho do sexo se opunha à equivalência entre trabalho do sexo e escravidão. Apesar das diferenças entre as posturas dos panelistas, não houve debate. A estilização de todos os momentos do simpósio, garantida pela atuação do mestre de cerimônias, inibia a participação do público.

Mais que isso, porém, o pano de fundo da moralidade cristã enquadrava a todo momento os usos das palavras “liberdade” e “escravidão”, percebidos em continuidade com dicotomias entre vítimas e culpados, o bem e o mal, Deus e diabo. O evento foi encerrado com a afirmação de que o enfrentamento ao tráfico de pessoas era “uma cruzada em que o Santo Graal era a dignidade humana”.

Acompanhando-o junto a missionárias do Jocum, percebi que a presença evangélica nas redes estatais de enfrentamento ao tráfico de pessoas carecia de peso naquele momento, nunca sendo mencionada. Isso apontava que, o pano de fundo cristão do campo político brasileiro era fundamentalmente católico e sua mobilização por grupos evangélicos, instável, uma vez que a própria posição “laica” seria derivada de preceitos católicos de inserção na “esfera pública” (Dullo, 2015DULLO, Eduardo. Política secular e intolerância religiosa na disputa eleitoral. In: Montero, Paula (org.). Religiões e controvérsias públicas: experiências, práticas sociais e discursos. São Paulo: Terceiro Nome; Campinas: Editora da Unicamp, 2015. p. 27-48.).

Os anos posteriores, porém, testemunharam a expansão das narrativas moralizantes no debate brasileiro acerca do tráfico de pessoas, publicizadas por redes evangélicas e seus representantes nos altos escalões do governo (Piscitelli, 2020PISCITELLI, Adriana. Lidando com o mal. In: Reunião Brasileira de Antropologia, 32, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: ABA; Uerj, 2020.), materializando uma tendência observada em outros países de misturar versões jovens do cristianismo à cultura popular e ao humanitarismo secular (Bernstein, 2010BERNSTEIN, Elizabeth. Militarized humanitarianism meets carceral feminism: the politics of sex, rights, and freedom in contemporary antitraficking campaigns. Journal of Women in Culture and Society, v. 36, n. 1, 2010.).

O’Connell Davidson retoma o contexto histórico que permitiu a emergência da “escravidão moderna” como categoria guarda-chuva do discurso humanitário contemporâneo e quais situações práticas puderam ser nele incluídas. A autora nota que, nesse contexto, emergiram ONGs transnacionais fundadas em princípios religiosos que passaram a promover a noção de tráfico de pessoas como um problema crescente, o equivalente “moderno” do tráfico de escravos através do Atlântico, uma forma única e intolerável de “mal”.

Esse tipo de argumento moral, associado a movimentos religiosos e políticos contestatórios, é facilmente assimilável pelos governos de estados liberais ricos (ou influentes em contextos regionais, como o Brasil) e por corporações, uma vez que o “mal” a ser combatido é compreendido algo como excepcional e incompatível com a ordem política e econômica dominante.

Nas práticas discursivas de movimentos evangélicos como o Not For Sale, contar a história da abolição da escravatura no século XIX tendo como foco a agência de determinados ativistas, dando pouca ênfase às estruturas econômicas que a sustentavam, garantiria a continuidade entre os discursos religiosos sobre o “velho” e o “novo” abolicionismo e a compatibilidade com discursos estatais (Davidson, 2015DAVIDSON, Julia O’Connell. Modern slavery: the margins of freedom. London: Palgrave Macmillan UK, 2015.).

Essa continuidade entre os elementos religiosos e seculares que atravessa a discussão acerca do tráfico de pessoas foi desfeita no simpósio dos magistrados através da criação de limites entre sujeitos que constituíam a trama de governamentalidade apesar (ou, justamente, por conta) da coincidência entre categorias mobilizadas no enfrentamento. No ritual do Estado, a potência governamental produziu tramas de aparência homogênea e hierarquizou uma ampla gama de sujeitos do “resgate” que articulavam categorias de gênero, sexualidade, classe, raça, nacionalidade e religião de modo diverso.

Considerações finais: “liberdade” e agência missionária

A produção doméstica, cotidiana e religiosa do enfrentamento ao tráfico de pessoas é representada como uma prática feminina de cuidado sustentada pelo amor “livre” e “libertador”, seja ele “maternal” ou “apaixonado”. Contudo, o enfrentamento é ao mesmo tempo uma política pública e secular de justiça. Quando as duas dimensões se encontraram num ritual secular, este híbrido entre sentimento e política foi hierarquizado, de modo que o amor e a moral foram representados como elementos subordinados à Justiça, ficando “lá na ponta”. No ritual secular do simpósio, “tudo pertence ao tribunal” (Kafka, 2005KAFKA, Franz. O processo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.).

Apesar de existirem importantes diferenças entre as esferas seculares e religiosas, ambas são informadas por conceitos de “liberdade” e “escravidão” gestados no seio dos sistemas morais cristãos em que a categoria da religião é articulada a gênero, sexualidade, classe, raça e nacionalidade na produção de hierarquias.

Analisando a trajetória missionária de Emily, compreendo que a “liberdade” cristã é alcançada através do sofrimento. Como essa narrativa de sofrimento marcada por gênero se diferencia, em esferas “seculares”, da “escravidão” gerada pela injustiça, violência ou exploração?

Emily encontra agência no sofrimento cristão marcado por desigualdades de gênero no contexto familiar. Ela fundamenta a sua autoridade para o evangelismo na “zona vermelha” como esposa e mãe. O sacrifício que ela faz é reconhecido em esferas seculares como feito por amor. Assim, o sofrimento, os sonhos e a agência de Emily são valorizados como forma de intervenção feminina na luta contra o “mal” da “mercantilização” dos corpos das mulheres.

Essa leitura permite que jovens evangélicas se engajem em uma cultura “sexual” sem serem “contaminadas” por ela, relacionem-se com mulheres “más” sem deixarem de ser “boas”, e entrem em bordéis sem arriscarem sua posição moral privilegiada (Bernstein, 2010BERNSTEIN, Elizabeth. Militarized humanitarianism meets carceral feminism: the politics of sex, rights, and freedom in contemporary antitraficking campaigns. Journal of Women in Culture and Society, v. 36, n. 1, 2010.). É uma agência que se funda em ideais de amor em “liberdade”, que assimilam o sofrimento desde que ele caiba no discurso cristão do sacrifício.

Dado que seu objetivo é a redenção humana, essa agência só se constitui mediante a produção de outros mundos, “sombrios”, “em desenvolvimento”, racializados, que precisam ser “libertados”. Nesses contextos, considerados moralmente errados, o sofrimento das vítimas por amor se tornaria “escravidão”. Este conteúdo moral do enfrentamento, presente nas narrativas evangélicas, está cada vez mais presente no debate brasileiro sobre o tráfico de pessoas.

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  • MONTERO, Paula. Secularização e espaço público: a reinvenção do pluralismo religioso no Brasil. Etnográfica, v. 13, n. 1, p. 7-16, 2009.
  • OLIVAR, José Miguel Nieto. Devir puta: políticas de prostituição nas experiências de quatro mulheres militantes Rio de Janeiro: EdUerj, 2013.
  • PISCITELLI, Adriana. Trânsitos: brasileiras nos mercados transnacionais do sexo. Rio de Janeiro: EdUerj , 2013.
  • PISCITELLI, Adriana. Lidando com o mal. In: Reunião Brasileira de Antropologia, 32, Rio de Janeiro. Anais.. Rio de Janeiro: ABA; Uerj, 2020.
  • POVINELLI, Elizabeth. The empire of love: toward a theory of intimacy, genealogy, and carnality Durham and London: Duke University Press, 2006.
  • SALES, Ana Paula Luna. Da violência ao amor: economias sexuais entre “crimes” e “resgates” em Fortaleza 2018. Tese (Doutorado em Ciências Sociais). Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2018.
  • SALES, Ana Paula Luna. The eternal return of the Praia de Iracema. Vibrant, v. 18, 2021.
  • SOARES, Raquel; ASSUNÇÃO, Ada; LIMA, Francisco. A baixa adesão ao programa de ginástica laboral: buscando elementos do trabalho para entender o problema. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, v. 31, n. 114, p. 149-160, 2006.
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  • 1
    As aspas são utilizadas para sinalizar categorias em disputa, assim como expressões presentes no material de campo.
  • 2
    “Crimes sexuais” é uma categoria analítica que utilizo para me referir a uma série de fenômenos, tipificados no código penal brasileiro ou não, que costumam aparecer juntos e são tratados como crime em Fortaleza: tráfico de pessoas com fins de exploração sexual, exploração sexual de crianças e adolescentes, “turismo sexual” e abuso sexual.
  • 3
    Termo empírico utilizado para descrever atividades missionárias em que “o corpo conta histórias”.
  • 4
    Ver mais informações em: http://www.ywamkickoff2014.com. Acesso em: 8 jan. 2015.
  • 5
    Entrevista, 29 out. 2014.
  • 6
    “Abre a tua boca a favor do mudo, pela causa de todos que são designados à destruição”.
  • 7
    Diário de campo, 27 maio 2015.
  • 8
    Diário de campo, 30 set. 2015.
  • 9
    Diário de campo, 7 out. 2015.
  • 10
    Entrevista, 5 nov. 2014.
  • 11
    O site mencionado por Emily chamava-se Hawkeys e não estava mais disponível para consulta em 2014.
  • 12
    Entrevista, 5 de novembro de 2014.
  • 13
    Essa informação foi fornecida pelo cerimonial do evento. O filme tematiza as desventuras da jovem e rica sulista branca em meio à Guerra de Secessão, nos EUA, onde estava em disputa a abolição da escravidão sobre a qual se sustentava a produção de sua fazenda.
  • 14
    Para uma crítica a esse discurso relacionada ao enfrentamento a “crimes sexuais”, ver Sales (2021).
  • 15
    A ginástica laboral foi difundida no Brasil na década de 1980, e se popularizou nos anos 1990, em resposta à “epidemia” de lesões de esforço repetitivo. Realizada no meio do turno, ela tem caráter sobretudo compensatório (Soares, Assunção e Lima, 2006, p. 152).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    13 Fev 2021
  • Aceito
    26 Nov 2021
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