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A ocupação de Alcatraz e o movimento indígena nos Estados Unidos (1969-1971)

The Alcatraz occupation and the American Indian movement (1969-1971)

Resumo:

O artigo analisa os pronunciamentos e as ações realizadas pelos ativistas indígenas que ocuparam a ilha de Alcatraz entre novembro de 1969 e junho de 1971. Na ocasião, um grupo de estudantes chegou à antiga prisão federal, intitulando-se “Indígenas de Todas as Tribos”, com o objetivo de reclamar o território para a fundação de um centro cultural e uma universidade indígenas. Através da análise de seus manifestos públicos buscaremos compreender como uma leitura própria do passado foi utilizada tanto como instrumento de legitimação das ações políticas de ação direta não violenta, visando a autodeterminação dos povos indígenas nos Estados Unidos, como também instrumento para forjar uma agenda interétnica, que pudesse reverter as péssimas condições sociais dos povos nativos nos centros urbanos e nas reservas.

Palavras-chave:
Estados Unidos; Movimento indígena; Ilha de Alcatraz

Abstract:

This article analyzes the actions and proclamations of Indian activists who occupied the island of Alcatraz between November 1969 and June 1971. On that occasion the Indian students, calling themselves “Indians of all Tribes”, arrived at the old federal prison and claimed the island as Indian territory in order to establish an Indian University and an Indian cultural center. By examining the public manifestos of the movement we hope to understand how the Indians viewed their own history both as an instrument to legitimize political demonstrations as well as an instrument for forging an interethnic political agenda. The article will analyze how the Indians who took control of Alcatraz believed their actions might ameliorate the harsh social conditions facing all Indian people in 1969, whether those native Americans lived in urban areas or on Indian reservations.

Keywords:
United States; Indian movement; Alcatraz island

Em 31 de outubro de 2019, o então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, instituiu novembro como o mês para a celebração dos “Fundadores [da nação] e da História Nacional Americana” (Trump, 2019TRUMP, Donald. Presidential Proclamation on National American History and Founders Month, 2019. Disponível em:Disponível em:https://www.whitehouse.gov/presidential-actions/presidential-proclamation-national-american-history-founders-month-2019/ . Acesso em: 20 abr. 2020.
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). A proclamação presidencial conclamou os cidadãos norte-americanos a comemorarem a singularidade de uma história nacional que teria sido empreendida por heróis crentes na vanguarda da experiência que realizavam, inspirados pela defesa e propagação dos ideais de democracia e liberdade.

Como aponta Junqueira (2003JUNQUEIRA, Mary A. Os discursos de George W. Bush e o excepcionalismo norte-americano. Margem, São Paulo, n. 17, p. 163-171, jun. 2003.), não é incomum que, ao se dirigirem à nação em diferentes contextos, presidentes dos Estados Unidos mobilizem um repertório de mitos e símbolos constituintes da chamada narrativa excepcionalista da história nacional. Ainda que nem todos os grupos sociais concordem com tal perspectiva, reconhecem seus sentidos e expressões. Para Madsen (1998MADSEN, Deborah. American exceptionalism. Edinburgh: University Press of Mississipi, 1998.), a penetração da narrativa excepcionalista na sociedade norte-americana perdura justamente pela sua inaparente flexibilidade, podendo ser ressignificada por diferentes grupos sociais e políticos em diversos contextos. Entretanto, como veremos ao longo deste artigo, a narrativa excepcionalista não permite sua apropriação ou reconfiguração pelos povos indígenas nos Estados Unidos, justamente porque sua construção ideológica se deu, em grande medida, no contraste com os povos nativos (Blanchette, 2006BLANCHETTE, Thaddeus G. Cidadãos e selvagens: antropologia aplicada e administração indígena nos Estados Unidos, 1880-1940. Tese (Doutorado em Antropologia Social), Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2006.). A construção de uma visão estereotipada dos indígenas, representando a antítese do progresso cultural e material de um “Estados Unidos” que se compreenderia como de tradição cristã e anglo-saxã, foi reforçada continuamente por interpretações maniqueístas sobre o período colonial, o período das chamadas Guerras Indígenas e sobre a expansão para o Oeste no século XIX. Não por acaso, novembro, mês escolhido por Trump para a celebração dos “Fundadores [da nação] e da História Nacional Americana”, é, desde 1990, o mês de celebração da “Herança Nacional dos Nativos Americanos”, após decreto do então presidente republicano George H. W. Bush.1 1 Na verdade, foi com o também presidente republicano Ronald Reagan, em 1986, que a celebração dos povos indígenas em novembro passou a ser proclamada pelos presidentes dos Estados Unidos. Entretanto, dois anos antes, Deloria Jr. e Lytle publicaram a obra The nations within: the past and future of American Indian sovereignty, onde discutiram, dentre outras questões, como o governo Reagan estaria se apropriando das demandas indígenas pela autodeterminação para imprimir-lhes uma diminuição da ajuda econômica estatal. Ainda segundo os autores, o slogan da relação “de governo para governo” da administração Reagan sugeria uma paridade de poder de negociação que não existia na prática. Vale ressaltar que a primeira proclamação do mês da “Herança Nacional dos Nativos Americanos” da administração Trump, em 2017, recuperou grande parte da agenda Reagan.

A proclamação de Donald Trump gerou uma forte reação entre os indígenas, com importante repercussão em parte da imprensa e nas redes sociais. Lideranças e intelectuais indígenas acusaram a administração federal de pretender invisibilizar as comemorações dos povos indígenas e, ainda pior, celebrar uma versão da história nacional que apagava as tensões, os conflitos e o sofrimento dos povos indígenas nos últimos séculos.

Enquanto a polêmica se desenrolava, um grupo de veteranos ativistas indígenas cruzou a baía de São Francisco em direção à ilha de Alcatraz para comemorar os 50 anos da ocupação da antiga prisão federal pelo movimento de estudantes indígenas autodenominados “Indígenas de Todas as Tribos” (Indians of all Tribes, IAT), ação que se tornaria símbolo da emergência do Red Power no final dos anos 1960. Ativistas veteranos retornaram ao local para, dessa vez com a ajuda de andaimes, revitalizar as diversas mensagens que deixaram em toda a ilha durante a ocupação, como a icônica frase “terra indígena” registrada na fachada do prédio principal do antigo presídio. A ocupação, que durou 19 meses, representou um dos acontecimentos mais surpreendentes do ativismo indígena no final da década de 1960 nos Estados Unidos. Para além da importância simbólica da ocupação, inspirando diversos movimentos e ações a partir dos anos 1970, os quase 2 anos da ação tornaram-se um objeto privilegiado de estudo para compreendermos o movimento indígena nos Estados Unidos a partir de suas múltiplas dimensões, passando pela construção de uma agenda política indígena compartilhada entre diferentes etnias e a construção de uma teia de relações que extrapolou as redes indígenas.

Nos limites deste artigo, daremos foco aos usos do passado como estratégia de intervenção política dos ativistas indígenas em Alcatraz, a partir da análise dos dois primeiros manifestos lidos e divulgados para a imprensa: “A Proclamação para o grande pai branco e todo o seu povo” (IAT, 20 nov. 1969IAT, INDIANS OF ALL TRIBES. Alcatraz Proclamations: The Letter. 16 dez. 1969 Disponível em Disponível em https://www.historyisaweapon.com/defcon1/alcatrazproclamationandletter.html . Acesso em: 9 dez. 2020.
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), em 20 de novembro de 1969, e “A carta” (IAT, 16 dez. 1969IAT, INDIANS OF ALL TRIBES. Alcatraz Proclamations: The Letter. 16 dez. 1969 Disponível em Disponível em https://www.historyisaweapon.com/defcon1/alcatrazproclamationandletter.html . Acesso em: 9 dez. 2020.
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), em 16 de dezembro de 1969. Pretende-se discutir a complexa teia construída pelos ativistas indígenas para a acomodação de diferentes interesses, projetos e perspectivas, tanto no interior do movimento como em suas relações com outros atores sociais no contexto das lutas pelos Direitos Civis nos anos 1960 e 1970.

Para os objetivos deste artigo, tais pronunciamentos serão compreendidos e analisados nos termos definidos por Albuquerque Júnior (2017ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval. A dimensão retórica da historiografia. In: PINSKY, Carla B.; LUCA, Tânia Regina de(orgs). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2017., p. 225):

ato ou efeito de publicamente expressar uma opinião, manifestar-se em defesa de dadas teses ou posições políticas, morais, religiosas, filosóficas, éticas, econômicas, jurídicas, estéticas, etc. [...] O pronunciamento tem ainda o sentido de irrupção, de emergência de algo que provoca mudanças ou que pretende, ao ser emitido, provocar transformações na maneira das pessoas, a quem é dirigido, pensarem, se comportarem, verem e dizerem as coisas.

Desse modo, ao considerarmos os pronunciamentos como instrumentos objetivos de intervenção política, faz-se necessário compreendê-los na relação intrínseca entre os seus aspectos discursivos, performances de apresentação e interlocutores almejados que, tomados de modo relacional, podem revelar, em um contexto determinado, o seu sentido de ação.

Alcatraz como ilha

Mayday! Mayday! The Indians have landed”. O pedido de ajuda via rádio do guarda Glenn Dobson,2 2 A reação inicial do guarda é rememorada no documentário “We hold the Rock: the indian occupation of Alcatraz” (1999). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gEmae2PsWJI&t=173s. Acesso em: 20 jan. 2018. único responsável pela vigilância da ilha de Alcatraz na manhã de 20 de novembro de 1969, marcou a chegada de 78 ativistas indígenas na antiga prisão federal, intitulando-se “Indígenas de Todas as Tribos”. Segundo Weaver (2009WEAVER, Jace. O vaivém da política indigenista. E-Journal USA, v. 14, n. 6, jun. 2009.), a maioria dos norte-americanos teria ficado chocada ao assistir o noticiário naquela noite.

A surpresa resultava não tanto do ato de ativismo radical - em 1969 os norte-americanos tinham se acostumado a ver protestos na TV - mas do fato de ainda existirem indígenas. Para muitos norte-americanos, os indígenas não haviam sobrevivido ao século XIX. Eles esqueceram de sua existência desde a declaração do fim das guerras indígenas em 1890 (Weaver, 2009WEAVER, Jace. O vaivém da política indigenista. E-Journal USA, v. 14, n. 6, jun. 2009., p. 16).

Como aponta Troy Johnson (1994JOHNSON, Troy. The Occupation of Alcatraz Island: Roots of American Indian Activism. Wicazo Sa Review, vol. 10, n. 2, p. 63-79, 1994.), considerados isolados em reservas longínquas ou assimilados “automaticamente” nos grandes centros urbanos, os povos indígenas sofreram, na primeira metade do século XX, um severo processo de invisibilização diante dos grandes debates nacionais nos Estados Unidos. No contexto da Guerra Fria, a própria existência de territórios indígenas no interior do país passou a ser questionada por parlamentares. Segundo Fixico (1986FIXICO, Donald. Termination and relocation: Federal Indian Policy, 1945-1960. Albuquerque: University of New Mexico Press, 1986.), o então senador por Montana, George Malone, foi um dos mais ferozes críticos da relação comunal dos indígenas com suas terras na década de 1950, denunciando-os como “socialistas naturais” que atuavam livremente dentro dos Estados Unidos, ao mesmo tempo que o país gastava bilhões de dólares para conter o comunismo no exterior. Assim, ganhou força no Congresso a chamada Política do Término, aprovada em agosto de 1953, ensejando ao governo federal abolir paulatinamente o caráter diferenciado dos povos nativos, incluindo a retirada do estatuto especial sobre suas terras para permitir, assim, o loteamento e a venda para agentes privados.

Naquele contexto, o então presidente Harry Truman nomeou o oficial Dillon S. Myer para dirigir a Secretaria de Assuntos Indígenas (Bureau of Indian Affairs, BIA) a partir de 1950. Myer havia se destacado durante a Segunda Guerra Mundial como diretor da agência de realocação de guerra (War Relocation Authority), no qual ficou responsável pela transferência de cidadãos japoneses e cidadãos nipo-americanos para diferentes campos de concentração, após os Estados Unidos declararem guerra ao Japão em dezembro de 1941. Como apontam Wilkinson e Biggs (1977)WILKINSON, Charles F.; BIGGS, Eric. The evolution of the termination policy. American Indian Law Review, vol. 5 n.1, p. 139-184, 1977. Disponível em:Disponível em:https://scholar.law.colorado.edu/faculty-articles/1105/ . Acesso em: 23 set. 2022.
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, Myer acreditava que o governo federal deveria estimular o deslocamento de indígenas para as áreas urbanas, promovendo sua assimilação cultural e econômica. A lei de realocação indígena que definiu os procedimentos para instrumentalizar a Política do Término, aprovada em agosto de 1956, causaria impacto importante nas reservas indígenas.

Conforme Boxer (2018), a recepção da nova política pelos povos indígenas foi ambígua. Embora algumas reservas tivessem sido preservadas e excluídas das ações governamentais, as péssimas condições de infraestrutura, miséria e abandono presentes na maior parte dos territórios indígenas estimulou que muitos grupos apoiassem a Política do Término e a lei de Realocação, deslocando-se para as grandes cidades. Pesquisando sobre as reservas localizadas no sul da Califórnia, Heather Daly (2009DALY, Heather Ponchetti. Fractured relations at home: the 1953 Termination Act’s effect on tribal relations throughout Southern California Indian Country. American Indian Quarterly, v. 33, n. 4, p. 427-439, 2009.) demonstrou como no auge desse processo, entre os anos 1956 e 1963, houve fortes embates nas reservas entre grupos favoráveis e contrários à adesão aos planos do governo federal. Segundo Daly (2009DALY, Heather Ponchetti. Fractured relations at home: the 1953 Termination Act’s effect on tribal relations throughout Southern California Indian Country. American Indian Quarterly, v. 33, n. 4, p. 427-439, 2009.), que trabalhou em sua pesquisa realizando entrevistas com indígenas que viveram o período, as fraturas foram tão intensas que muitos ainda se recusam a falar sobre o tema, mesmo décadas mais tarde.

O programa federal de realocação dos indígenas privilegiava o seu direcionamento para determinadas cidades como Denver, Salt Lake, Los Angeles, Chicago, Cleveland e San Francisco, aumentando significativamente a presença nativa nesses centros urbanos. Entretanto, embora o programa também previsse treinamento profissional e assistência financeira, na prática, os indígenas acabavam se estabelecendo nas áreas mais pobres dessas cidades, recebendo pouco ou nenhum auxílio efetivo do governo federal.

Para Troy Johnson (1994JOHNSON, Troy. The Occupation of Alcatraz Island: Roots of American Indian Activism. Wicazo Sa Review, vol. 10, n. 2, p. 63-79, 1994., p. 64),3 3 Esta e as demais citações de textos em língua inglesa têm tradução livre.

A história do esforço de realocação na região da baía de São Francisco é repleta de exemplos do povo indígena, homens, mulheres, jovens garotos e garotas, sentados por dias e semanas na estação de ônibus esperando pelo representante do governo que deveria encontrá-los e iniciá-los no caminho do sucesso da nova vida urbana.

O cotidiano de miséria e abandono resultou no surgimento de grupos de ajuda mútua em diferentes cidades, quase sempre orientados inicialmente pela identidade tribal, como os Sioux Clubs, Navajo Clubs etc., não tardando para que novos espaços de sociabilidade fossem criados, como os centros de cultura indígena, ou ocupados, como as igrejas, os bares e, aos poucos, as universidades, congregando assim diferentes etnias e gerações. Como aponta Blansett (2018BLANSETT, Kent. Journey to freedom: Richard Oakes, Alcatraz, and the Red Power Movement. New Haven: Yale University Press, 2018.), não era incomum que agentes do governo federal reforçassem a divisão entre os chamados “indígenas das reservas” e “indígenas urbanos”, buscando desestimular que indígenas realocados retornassem para suas reservas, o que na prática acontecia constantemente.4 4 Segundo Wilkinson e Biggs (1977), relatórios do BIA nos anos 1950 e 1960 apontam para uma taxa média de 30% de retorno indígena às reservas. Outros estudos apontam para uma média de até 80%. É preciso destacar que houve importantes diferenças regionais, e o forte movimento pendular imprimiu diferentes médias ao longo do tempo. Nos limites deste artigo, vale ressaltar, portanto, que não havia na prática uma oposição definitiva entre “indígenas das reservas x indígenas urbanos”. Para Blansett (2018BLANSETT, Kent. Journey to freedom: Richard Oakes, Alcatraz, and the Red Power Movement. New Haven: Yale University Press, 2018.), somado à forte presença indígena nas áreas urbanas, o constante fluxo pendular entre as reservas e os centros urbanos estimulou a apropriação do espaço urbano pelos indígenas a partir de suas referências culturais, constituindo verdadeiras “cidades indígenas” sobrepostas às cidades não indígenas.

É importante ressaltar que diversos povos indígenas possuíam muitas vezes um completo desconhecimento mútuo ou, ao contrário, rivalidades históricas, construídas mesmo antes do período colonial e/ou originadas pela competição por território imposta pela política de remoção5 5 A Lei de Remoção dos Índios (Indian Removal Act) foi sancionada pelo presidente Andrew Jackson em maio de 1830, autorizando o governo federal a conceder terras a oeste do rio Mississippi aos povos indígenas que aceitassem abandonar suas terras nos estados. Embora parte dos indígenas tenha se deslocado pacificamente, buscando evitar conflitos com o governo federal dos Estados Unidos, entre 1838 e 1839, os Cherokees foram removidos à força. Aproximadamente 4 mil indígenas morreram no trajeto que ficou conhecido como a “trilha de lágrimas”. Outro efeito importante foi o estímulo à rivalidade entre povos indígenas ao compartilharem forçadamente o então chamado “Território Indígena”, atual estado do Oklahoma. Para uma introdução ao tema, ver: Stewart (2007). no começo do século XIX. De todo modo, como apontam Smith e Warrior (1996SMITH, Paul Chaat; WARRIOR, Robert Allen. Like a hurricane: the Indian movement from Alcatraz to Wounded Knee. New York: The New Press, 1996.), compartilhar o mesmo cenário de miséria e abandono nas periferias das grandes cidades oportunizava aos indígenas não apenas um maior conhecimento mútuo entre etnias diversas, mas também a superação de antigas rivalidades, deixadas em segundo plano, fosse nos encontros da igreja ou centros comunitários, fosse em celebrações ou brigas de bares e, cada vez mais, nas universidades.

O ambiente de efervescência política e cultural nos anos 1960 se espraiou pelas principais universidades dos Estados Unidos, tornando-as alvo das críticas estudantis. Como informa Purdy (2010SMITH, Paul Chaat; WARRIOR, Robert Allen. Like a hurricane: the Indian movement from Alcatraz to Wounded Knee. New York: The New Press, 1996., p. 2), pesquisa realizada em 1969 identificou milhares de estudantes envolvidos em diversos protestos e manifestações, muitos dos quais foram sendo presos, suspensos e até mesmo expulsos das universidades.

De acordo com Cecília Azevedo (2007AZEVEDO, Cecília. Em nome da América: os Corpos da Paz no Brasil. São Paulo: Alameda, 2007., p. 39),

Os movimentos políticos e sociais dessa década partiram da denúncia da perversão dos princípios morais em que se assentava a nação, constituindo uma crítica da identidade nacional e da participação dos Estados Unidos no mundo. A rejeição e a crítica ao status quo, que já vinha sendo feita pela contracultura que germinava desde os anos 1950, explode nos primeiros anos da década de 1960 pela voz de artistas, hippies, mulheres, negros e jovens.

Estudantes da San Francisco State University e da University of California, Berkeley se reuniram para formar o Third World Liberation Front (TWLF), uma coalização heterogênea de universitários de origens diversas, negros, asiáticos, mexicanos, indígenas etc., que passaram a denunciar o viés racista das universidades norte-americanas e a reivindicar um currículo mais inclusivo, promovendo as mais longas greves estudantis nos Estados Unidos, precipitadas pela suspensão do professor de inglês e ministro dos Panteras Negras, George Mason Murray. Conforme aponta Eliassen (2018ELIASSEN, Meredith. The 1968 San Francisco State student strike. Process: a blog for American History. Organization of American History, dez. 2018.), as greves, apesar da forte reação das autoridades, resultaram em importantes modificações em algumas universidades, como a criação dos primeiros currículos de estudos negros e a criação do Black Studies Department na San Francisco State University. Para LaNada Boyer (1997BOYER, LaNada. Reflections of Alcatraz. In: JOHNSON, Troy; NAGEL, Joane; CHAMPAGNE, Duane. American Indian activism: Alcatraz to the Longest Walk. Urbana, Chicago: University of Illinois Press, 1997.), primeira estudante indígena na University of California, Berkeley, aquele ambiente de protestos e reivindicações foi palco de construção de solidariedade entre movimentos estudantis distintos, sendo fundamental para estudantes indígenas alcançarem importantes vitórias, como a inauguração, em 1968, do Native American Studies Department, atualmente American Indian Studies Department, também na San Francisco State University, com apoio determinante do movimento chicano-mexicano La Raza.

Ao longo dos anos 1950 e 1960, como aponta Forbes (1997FORBES, Jack D. The native struggle for liberation: Alcatraz. In: JOHNSON, Troy; NAGEL, Joane; CHAMPAGNE, Duane. American Indian activism: Alcatraz to the Longest Walk. Chicago: University of Illinois Press, 1997.), os ativistas e os protestos indígenas, inicialmente com foco em questões locais, como o direto de pesca, passaram a investir em associações que congregassem diferentes grupos étnicos, ainda que com pouca articulação entre elas. Em agosto de 1961 foi organizado em Chicago o National Indian Youth Council (NIYC), tornando-se uma voz importante da juventude indígena. Ainda neste período foi fundado o Native American Movement (NAM), em Los Angeles, congregando indígenas e chicanos-mexicanos. Em julho de 1968 foi fundada em Minneapolis, Minnesota, o American Indian Movement(AIM), originalmente com uma agenda regional, mas que aos poucos começou a se espalhar por outras regiões do país.6 6 No começo da década de 1970, o AIM (American Indian Movement) se tornaria a principal organização indígena nos Estados Unidos, liderando importantes ações, como a ocupação do prédio da Secretaria de Assuntos Indígenas (BIA) em Washington, em 1970, e a ocupação da Pine Ridge Reservation, na Carolina do Sul, em 1973. Esta última ocorreu no mesmo local do massacre de aproximadamente trezentos Sioux pela Cavalaria dos Estados Unidos em 1890, conhecido como o Massacre de Wounded Knee. Embora alguns livros e artigos científicos apontem o AIM como o grupo que concebeu e empreendeu a ocupação de Alcatraz, trata-se de um equívoco derivado do protagonismo que o grupo alcançaria nacionalmente, ainda durante a ocupação. Segundo os ativistas LaNada Boyer (1997) e Ed Castillo (1997), a ocupação de Alcatraz teria impulsionado o AIM, não o contrário.

Os centros de cultura indígena, por exemplo, tornaram-se espaços privilegiados para o ensino dos idiomas e das diversas práticas culturais e religiosas dos povos nativos aos jovens nascidos nos centros urbanos. Como aponta a ativista indígena LaNada Boyer, que participou da ocupação de Alcatraz:

Começávamos nossas vidas nas cidades socializando primeiramente com nosso próprio povo. Nas reservas era fácil dividir e colocar indígenas contra indígenas, mas na cidade grande ficávamos muito contentes em ver outros indígenas, não nos importando de qual tribo eles fossem. Eles eram nativos, e isso era tudo que importava (Boyer, 1997, p. 88).

Em outubro de 1969, o San Francisco Indian Center ardeu em chamas, ficando completamente destruído. O local havia se tornado um importante espaço de encontro para a população indígena da região da baía de São Francisco, promovendo eventos culturais, assistência médica e social. Para Troy Johnson (1994JOHNSON, Troy. The Occupation of Alcatraz Island: Roots of American Indian Activism. Wicazo Sa Review, vol. 10, n. 2, p. 63-79, 1994.), com a tragédia, ganhou força a ideia entre ativistas indígenas de ocupar a ilha de Alcatraz e reivindicá-la como o espaço para a construção de um novo centro indígena. Tal escolha não foi aleatória. Mundialmente famosa por ter abrigado uma importante penitenciária federal, entre 1934 e 1963, sendo tema de livros e filmes de circulação mundial, Alcatraz, também conhecida como The Rock, não abrigou apenas contraventores como Al Capone, James Bulger e Bumpy Johnson, mas também lideranças indígenas ao longo do século XIX, quando então abrigava uma base militar. Entre 1872 e 1873, durante o conflito entre o povo Modoc e o exército dos Estados Unidos (Modoc War), a ilha tornou-se o local de aprisionamento dos indígenas.

Após o fechamento da prisão federal em 1963, a ilha foi relativamente abandonada pelo governo federal, que não dispunha de um plano efetivo para revitalização dos prédios e ocupação dos espaços com novos projetos além de abrigar um farol para as embarcações que adentravam a baía, guardado por poucos vigilantes.

Já em 1964, a ativista indígena Belva Cottier sugeriu a ocupação e reivindicação da ilha, utilizando como base o Tratado de Fort Lamarie, assinado entre os Sioux e o governo federal dos Estados Unidos em 1868, no qual ficou estabelecido o direito dos povos nativos signatários de postular e recuperar a posse de terras federais abandonadas.

Em entrevista concedida em 1969 para o The San Francisco Examiner & Chronicle, Belva Cottier relembrou as circunstâncias para o surgimento da ideia de utilizar o tratado para reclamar a ilha:

Na época, falava-se muito sobre como nosso país deveria honrar o Tratado do Panamá. Eu falei para o meu marido, Allan Cottier, presidente do Conselho Indígena na época: ‘Nós temos um tratado também, por que não reivindicar a Ilha de Alcatraz apenas para testar?’ Foi a primeira vez que tivemos a ideia de reivindicar a ilha [...]. Tentamos conseguir uma cópia do tratado com o governo em Washington, mas eles não nos enviaram uma. Também tentamos obter uma no Centro Indígena em Pine Ridge, Dakota do Sul, mas não tivemos sucesso. Por fim, fomos à Biblioteca Bancroft na Universidade da Califórnia e encontramos uma cópia do tratado (Cottier, 1969).

O percurso descrito por Belva para obter uma cópia do tratado de 1868 ilustra como reminiscências da chamada Era dos Tratados eram compartilhadas pela população indígena. Como apontam Deloria Jr. e Lytle (1984DELORIA JR., Vine; LYTLE, Clifford. The Nations within: the past and future of American Indian sovereignty. New York: Pantheon Books, 1984.), grande parte do conjunto legal que separara os indígenas do resto da população nos Estados Unidos pode ser traçado a partir da doutrina do direito de descoberta (ver adiante) e das assinaturas de tratados. Como aponta Blanchette (2006BLANSETT, Kent. Journey to freedom: Richard Oakes, Alcatraz, and the Red Power Movement. New Haven: Yale University Press, 2018.), entre o último quarto do século XVIII e o final do século XIX, mais de seiscentos tratados foram assinados entre o governo dos Estados Unidos e os povos indígenas. Mais do que a guerra, os tratados foram o principal instrumento de tomada das terras indígenas.

De 1815 em diante, tratados eram crescentemente negociados porque constituíam a maneira mais econômica de tirar os índios de suas terras, não porque eles reconheciam a soberania nativa. Sob o Indian Trade and Intercourse Act de 1834, baseado em larga medida nas decisões de Marshall, definia-se até mesmo “território indígena” [“Indian Country”] não cedido como território conquistado, com os tratados sendo vistos como a maneira mais fácil de lidar com a intransigência indígena. Frequentemente, esses tratados eram imediatamente quebrados logo depois de serem assinados, usualmente devido a ações de cidadãos privados, mas muitas vezes ajudados e encorajados por políticas oficiais. Em outros casos, depois de serem assinados os tratados, suas provisões eram alteradas à vontade pelo Congresso sem conhecimento ou aprovação indígena (Blanchette, 2006BLANSETT, Kent. Journey to freedom: Richard Oakes, Alcatraz, and the Red Power Movement. New Haven: Yale University Press, 2018., p. 72-73).

Como destacam Johnson, Nagel e Champagne (1997), muitos indígenas não tinham conhecimento sobre o contexto de assinatura desses tratados ou sequer da existência deles. Para os autores, foi extremamente importante o ingresso dos indígenas nas universidades para que o tema voltasse a ser discutido tanto nos espaços acadêmicos quanto fora deles. É simbólico o fato de Belva Cottier não conseguir a cópia do tratado de 1868 em um centro de cultura indígena ou com o próprio governo dos Estados Unidos, mas encontrá-lo em uma biblioteca universitária.

A primeira ocupação de Alcatraz, em 1964, durou apenas quatro horas, sendo liderada por Richard McKenzie. Como aponta Johnson (1994JOHNSON, Troy. The Occupation of Alcatraz Island: Roots of American Indian Activism. Wicazo Sa Review, vol. 10, n. 2, p. 63-79, 1994.), embora a ocupação não tenha sido efetiva ou gerado grande repercussão, a reação não violenta do governo federal chamou a atenção dos ativistas indígenas, e o tema da primeira ocupação passou a circular em diferentes espaços de sociabilidade indígena, Alcatraz deixou de ser apenas um território, e passou a ser uma ideia.

Alcatraz como ideia

Já no contexto de 1969, dias após o incêndio do San Francisco Indian Center, um grupo de ativistas indígenas se reuniu e decidiu, inicialmente, circundar a ilha em embarcações para chamar a atenção da imprensa para seus projetos e reivindicações. Entretanto, durante a demonstração, parte dos estudantes decidiu pular das embarcações e nadar em direção à ilha, iniciando, de modo improvisado, uma segunda ocupação que, por falta de qualquer estrutura ou organização prévia, durou apenas uma noite. A ação improvisada estimulou novos planos, desta vez para uma permanência prolongada. Com a ajuda de Adam (Nordwall) Fortunate Eagle, fundador do United Bay Area Indian Council, Richard Oakes, LaNada Boyer e outros ativistas passaram a circular pelas universidades convidando estudantes indígenas a participarem da ação. Assim, em 20 de novembro de 1969, um grupo de 78 indígenas, sendo a maioria estudantes universitários, chegou à ilha, identificando-se para a imprensa como “Indígenas de Todas as Tribos”.

Como aponta Adam (Nordwall) Fortunate Eagle (2008EAGLE, Adam Fortunate. Heart of the rock: the Indian invasion of Alcatraz. Norman: University of Oklahoma Press, 2002.), foram estabelecidos contatos prévios com setores da imprensa para que a ocupação e o primeiro manifesto repercutissem em todo o país. Mais do que nacionalizar o movimento, a estratégia inicial foi tentar a federalização das reivindicações, buscando uma negociação direta com o governo de Richard Nixon. Vale ressaltar a importância do jornalista do San Francisco Chronicle, Tim Findley, no planejamento das ações para chamar a atenção da imprensa.

Findley transitava entre os diferentes movimentos sociais da época e costumava receber os estudantes universitários em seu apartamento para festas e eventos, muitas vezes tornando-o o local para a organização de ações de protesto. Conforme recordou mais tarde: “Os Panteras e o movimento antiguerra eram ‘meus’ no San Francisco Chronicle. Meu forte era cobri-los do ponto de vista deles, enquanto outros repórteres ocupavam lugares respeitáveis atrás das linhas policiais” (Findley, 1997FLINDLEY, Tim. Alcatraz recollection. In: JOHNSON, Troy; NAGEL, Joane; CHAMPAGNE, Duane. American Indian activism: Alcatraz to the Longest Walk. Urbana, Chicago: University of Illinois Press, 1997., p. 76). Foi justamente em uma dessas reuniões no apartamento de Findley que o ativista Adam Fortunate Eagle e o estudante Richard Oakes se uniram para traçar as estratégias de ocupação de Alcatraz, embora tivessem trajetórias e perspectivas distintas.

Nascido em uma reserva indígena em 1929, Adam Fortunate Eagle era filho de um imigrante sueco e uma indígena do povo Chippewa. Após frequentar a Pipestone Indian School em Minnesota, Eagle se casou e passou a viver na cidade de São Francisco. Segundo Paul Smith e Robert Warrior (1996SMITH, Paul Chaat; WARRIOR, Robert Allen. Like a hurricane: the Indian movement from Alcatraz to Wounded Knee. New York: The New Press, 1996., p. 9):

Adam Nordwall era o tipo de indígena que a burocracia federal esperava que a realocação criasse. [...] Em 1969 ele possuía seu próprio negócio, a First American Termite Company. Nordwall morava no subúrbio de San Leandro com sua esposa Bobbie e seus três filhos. Ele dirigia um Cadillac e empregava quinze pessoas.

Logo após se estabelecer na Califórnia, Adam envolveu-se em projetos para recepcionar indígenas que chegavam em busca de melhores condições de vida na cidade, passando a transitar entre prédios federais e espaços de sociabilidade indígena.

Segundo o próprio Eagle (2008EAGLE, Adam Fortunate. Heart of the rock: the Indian invasion of Alcatraz. Norman: University of Oklahoma Press, 2002., p. 25),

Se o BIA [Secretaria de Assuntos Indígenas] esperava que a realocação fizesse os indígenas desaparecerem na sociedade mainstream, eles calcularam mal. A solidão e o isolamento resultantes do programa provaram ser seu único ponto de redenção. Os indígenas, separados de suas famílias e suas culturas, procuravam-se uns aos outros em um parentesco entre povos que muitos deles nunca haviam conhecido antes.

Este foi exatamente o caso do estudante Richard Oakes. Nascido em 1942 em uma reserva Mohawk, na fronteira entre o estado de Nova Iorque e o Canadá, Oakes abandonou a escola aos 16 anos para trabalhar na construção civil. Aos 18 anos, em busca de melhores oportunidades, decidiu se mudar para São Francisco, dirigindo pelo país enquanto visitava e conhecia diferentes reservas indígenas.

Enquanto ainda trabalhava como barman no Warren’s Bar, local de encontro da juventude indígena, Oakes passou a realizar declarações públicas acerca da realidade dos povos nativos nos Estados Unidos. Segundo Adam Fortunate Eagle (2008EAGLE, Adam Fortunate. Heart of the rock: the Indian invasion of Alcatraz. Norman: University of Oklahoma Press, 2002.), embora as primeiras manifestações públicas tenham revelado um Richard Oakes tímido e titubeante, não tardou para se tornar um eloquente orador e, após ingressar na San Francisco State, líder dos debates acerca da fundação do Native American Studies Department.

Como relembrou Tim Findley (1997FLINDLEY, Tim. Alcatraz recollection. In: JOHNSON, Troy; NAGEL, Joane; CHAMPAGNE, Duane. American Indian activism: Alcatraz to the Longest Walk. Urbana, Chicago: University of Illinois Press, 1997.), ao final daquela festa em seu apartamento em novembro de 1969, os planos para a ocupação da ilha estavam traçados e, embora outros jornalistas tivessem tomado conhecimento, a informação não vazou, pegando as autoridades federais de surpresa. Na manhã do dia 20 de novembro de 1969, os ativistas indígenas chegaram à ilha, com ampla cobertura da imprensa. Embora não houvesse uma liderança formal, coube a Richard Oakes ler o primeiro manifesto, denominado: “A Proclamação para o grande pai branco e todo o seu povo”.

Em uma referência direta ao preâmbulo da Constituição dos Estados Unidos, “A Proclamação para o grande pai branco e todo o seu povo” iniciava com a seguinte frase: “Nós, os americanos nativos, reivindicamos a terra conhecida como ilha de Alcatraz, em nome de todos os indígenas americanos, por direito de descoberta”. A referência ao “direito de descoberta” buscou apontar a evidente contradição do pensamento colonial ocidental, que se outorgava o direito de considerar “descobertas” as terras já ocupadas pelos povos nativos ao definir por seus critérios o que seria uma efetiva posse e exploração da terra. De fato, como aponta Blanchette (2006BLANSETT, Kent. Journey to freedom: Richard Oakes, Alcatraz, and the Red Power Movement. New Haven: Yale University Press, 2018.), a doutrina do direito de descoberta remonta ao século XIII, quando um conjunto de bulas papais versaram sobre as relações entre os cristãos e não cristãos.

A Doutrina da Descoberta sustentava que as terras habitadas eram de posse de seus habitantes - não importava que religião esse povo professasse. Todos os homens eram homens e passíveis de salvação e todos os homens eram dotados de direitos de propriedade. A Igreja garantia aos descobridores os direitos de comerciar com ou adquirir terra de povos recém-descobertos, desde que os exploradores promovessem a fé cristã entre os nativos. A aquisição de terra dos nativos só podia ocorrer em duas circunstâncias: compra ou guerra justa, sendo a guerra considerada justa quando os nativos se recusavam a aceitar missionários ou atacavam cidadãos europeus (Blanchette, 2006BLANSETT, Kent. Journey to freedom: Richard Oakes, Alcatraz, and the Red Power Movement. New Haven: Yale University Press, 2018., p. 58-59).

Diferentemente da chamada “era das descobertas”, na Proclamação os ativistas indígenas sinalizaram a preocupação em respeitar ocupantes brancos da ilha. “Queremos ser justos e honrados em nossas relações com os habitantes caucasianos desta terra, e desse modo oferecer o seguinte tratado [...]”.

O parágrafo inicial do documento apresenta dois pontos extremamente relevantes: 1º. Ao substituir o “Nós, o povo dos Estados Unidos” por “Nós, os nativos americanos”, os ativistas não se reconheciam como parte dos Estados Unidos, buscando marcar uma posição de soberania em relação ao governo federal; 2º. Ao referenciar o direito de descoberta, mas oferecer um tratado justo, denunciavam a relação assimétrica à qual foram subordinados por séculos.

Como aponta Eagle (2008EAGLE, Adam Fortunate. Heart of the rock: the Indian invasion of Alcatraz. Norman: University of Oklahoma Press, 2002., p. 37),

os indígenas nunca se considerariam minorias em sua própria terra e se ressentiam em ser associados aos objetivos raciais dos negros e outros. [...] Nós não queríamos apenas um lugar de igualdade na sociedade. Nós queríamos o que era nosso.

O preâmbulo do Tratado apontava, assim, para o caráter excludente do conceito de “povo americano” presente na Constituição. De fato, a Constituição dos Estados Unidos tornou-se historicamente um documento catalizador de conflitos entre o governo federal e os povos indígenas. Como aponta Kelly (2014KELLY, Casey. Détournement, decolonization, and the American Indian occupation of Alcatraz Island (1969-1971). Scholarship and Professional Work-Communication, n. 92, 2014. Disponível em:Disponível em:https://digitalcommons.butler.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1091&context=ccom_papers . Acesso em: 23 set. 2022.
https://digitalcommons.butler.edu/cgi/vi...
, p. 9),

A constituição contém referências esparsas às tribos indígenas americanas. Ao tratar tecnicamente as tribos como nações estrangeiras, a Constituição as reconhece textualmente como entidades soberanas separadas. No entanto, inúmeras decisões da Suprema Corte interpretaram a Constituição como justificativa para incorporar os povos indígenas contra a sua vontade.

Na continuação do manifesto, percebe-se mais claramente a denúncia irônica acerca da condição de vida das populações indígenas:

Vamos comprar a Ilha de Alcatraz por vinte e quatro dólares (US $ 24) em miçangas de vidro e tecidos vermelhos, um precedente estabelecido pela compra de uma ilha semelhante cerca de 300 anos atrás pelo homem branco. Sabemos que US $ 24 em produtos comerciais por estes 16 acres é mais do que foi pago quando a ilha de Manhattan foi vendida, mas sabemos que o valor das terras tem aumentado ao longo dos anos.

A nossa oferta de US$ 1,24 por acre de terra é maior do que os 47 ¢ que homens brancos estão agora pagando aos índios da Califórnia pelas suas terras. Mas daremos aos habitantes desta ilha uma parcela de terra para o seu próprio uso. Vamos orientar os habitantes brancos sobre a maneira correta de viver. Vamos oferecer-lhes a nossa religião, a nossa educação, os nossos costumes, a fim de ajudá-los a alcançar o nosso nível de civilização e, assim, elevá-los acima de seu infeliz estado de selvageria.

Nós oferecemos este tratado de boa-fé e desejamos ser justos e honrados nas nossas relações com todos os homens brancos. Nós acreditamos que a chamada Ilha de Alcatraz é mais do que adequada para uma reserva indígena, determinada pelas próprias normas do homem branco.

Queremos dizer com isto que este lugar se assemelha às atuais reservas indígenas:

  1. . Não possui instalações modernas, e não tem meios de transporte adequado;

  2. . Não tem água corrente;

  3. . Tem instalações sanitárias inadequadas;

  4. . Não há petróleo ou minerais;

  5. . Não há nenhuma indústria e o desemprego é muito grande;

  6. . Não há instalações para a saúde;

  7. . O solo é rochoso e não produtivo; e a terra não possui cassino;

  8. . Não há instalações educacionais;

  9. . A população sempre excedeu o tamanho das terras;

  10. . A população tem sido sempre mantida como prisioneira e dependente;

Além disso, seria apropriado e simbólico que os navios de todo o mundo, entrando no Golden Gate, vejam em primeiro lugar uma terra indígena, e, assim, sejam lembrados da verdadeira história desta nação. Esta pequena ilha seria um símbolo das grandes terras que uma vez foram governadas por indígenas livres e nobres.

Referências diretas aos tratados históricos indicam a apropriação irônica do pensamento colonialista como forma de denunciar as contradições às quais os povos indígenas no passado foram expostos pelo governo. De fato, no contexto dos anos 1960 e 1970, as populações indígenas configuravam-se como os únicos grupos étnicos que poderiam solicitar a assinatura de tratados para negociar com o governo federal, um instrumento amplamente utilizado no passado. A comparação irônica entre a estrutura da ilha e as condições presentes nas reservas indígenas naquele momento, apontando para o abandono no qual encontravam-se as populações indígenas, buscava principalmente dialogar com a sociedade não indígena. Nesse sentido, ao subverter os textos oficiais, denunciavam-se não só as condições materiais e jurídicas em que se encontravam naquele momento, mas também importantes aspectos das relações históricas estabelecidas com o governo dos Estados Unidos.

Do ponto de vista prático, os ativistas se dividiram em diferentes partes da ilha com a intenção de evitar uma invasão da Guarda Costeira. Segundo Paul Smith e Robert Warrior (1996SMITH, Paul Chaat; WARRIOR, Robert Allen. Like a hurricane: the Indian movement from Alcatraz to Wounded Knee. New York: The New Press, 1996., p. 19):

Quase imediatamente, a Guarda Costeira bloqueou a ilha, dificultando a chegada de reforços e suprimentos. Em algumas ocasiões, a Guarda Costeira tentou ocupar o cais, mas os jovens radicais - incluindo um número de saudáveis veteranos do Vietnã experientes em combate - mantivera-os afastados.

Por outro lado, a ação ganhou a simpatia de estrelas de Hollywood e de diversos movimentos sociais que passaram a visitar a ocupação. Talvez mais importante, estimulou ainda que jovens indígenas de São Francisco e de outras partes do país seguissem em direção à ilha, eufóricos com a ousadia dos ativistas. Um complexo e improvisado sistema de doações foi forjado, permitindo que água potável, comida e roupas chegassem aos ativistas, que ocuparam principalmente dois prédios: as antigas celas, distribuídas em quatro blocos de três andares, passando a servir de dormitórios; e a Casa do Diretor, em péssimo estado de conservação, tornando-se o espaço para reuniões do recém-fundado conselho de coordenação.

Richard Oakes, que havia se mudado para a ilha com toda sua família, tornou-se o porta-voz do movimento, passando a ser o rosto da ocupação na imprensa. Entretanto, como apontam Smith e Warrior (1996SMITH, Paul Chaat; WARRIOR, Robert Allen. Like a hurricane: the Indian movement from Alcatraz to Wounded Knee. New York: The New Press, 1996., p. 20),

Muitos jovens haviam bebido profundamente da fonte do anarquismo popular entre os estudantes radicais da época, e até a estrutura nebulosa de um conselho de coordenação era, para eles, demais. Por que apenas uma pessoa deveria falar com a imprensa, eles pensaram, quando todos estavam arriscando suas vidas e suportando as dificuldades?

De acordo com LaNada Boyer (1997BOYER, LaNada. Reflections of Alcatraz. In: JOHNSON, Troy; NAGEL, Joane; CHAMPAGNE, Duane. American Indian activism: Alcatraz to the Longest Walk. Urbana, Chicago: University of Illinois Press, 1997., p. 92-93), que integrava o conselho de coordenação,

Nas semanas seguintes, os residentes iniciaram rapidamente a organização da ilha. Todo mundo queria reivindicar fama e ser incluído na formação [do conselho]. [...] Muita rivalidade e competição existiam na ilha. Senti que os homens indígenas não queriam reconhecer a autoridade das mulheres, pois haviam sido assimilados à sociedade branca e ao seu chauvinismo masculino.

Embora os ativistas se anunciassem como “Indígenas de Todas as Tribos”, e tivessem inspirado jovens indígenas pelo país, a construção de uma identidade política comum não seria tarefa fácil, como demonstrava a difícil interlocução entre diferentes grupos na própria ilha e fora dela. As organizações indígenas espalhadas pelo país, muitas das quais atuavam no interior da Secretaria de Assuntos Indígenas (BIA), demonstraram certa resistência em apoiar publicamente a ocupação da ilha. Allen Miller, estudante indígena da San Francisco State University e LaNada Boyer, da UC, viajaram a Washington para negociar o apoio formal do National Congress of American Indians (NCAI).

Como destaca Boyer (1997BOYER, LaNada. Reflections of Alcatraz. In: JOHNSON, Troy; NAGEL, Joane; CHAMPAGNE, Duane. American Indian activism: Alcatraz to the Longest Walk. Urbana, Chicago: University of Illinois Press, 1997., p. 96),

Essa organização era composta por tribos de todo o país e precisávamos do apoio delas. John Belindo, diretor da NCAI, não foi muito receptivo. [...] Fomos informados de que caberia à delegação [decidir]. A convenção nacional deles seria no Alasca, então tivemos que ir ao Alasca em busca de apoio.

Entretanto ambos foram barrados na convenção. LaNada Boyer (1997BOYER, LaNada. Reflections of Alcatraz. In: JOHNSON, Troy; NAGEL, Joane; CHAMPAGNE, Duane. American Indian activism: Alcatraz to the Longest Walk. Urbana, Chicago: University of Illinois Press, 1997.) credita a indiferença do NCAI ao lobby de agentes do governo dos Estados Unidos, que a todo tempo buscavam marcar a diferença entre as ações irresponsáveis de estudantes indígenas “urbanos” e uma suposta agenda madura e responsável das organizações indígenas. Na verdade, questões geracionais também surgiram na ilha, sem qualquer possível interferência do governo dos Estados Unidos. Segundo o jornalista Tim Findley (1997FLINDLEY, Tim. Alcatraz recollection. In: JOHNSON, Troy; NAGEL, Joane; CHAMPAGNE, Duane. American Indian activism: Alcatraz to the Longest Walk. Urbana, Chicago: University of Illinois Press, 1997., p. 84),

Naqueles dias, existia um sério e intransponível abismo entre os que tinham menos de trinta anos e os que eram mais velhos. Os jovens da ilha estavam recebendo a maior parte da atenção da mídia, especialmente Richard, e o grupo de apoio no continente não era realmente necessário para manter o fluxo de suprimentos chegando.

As dificuldades de acomodação de diferentes interesses e perspectivas não eram ignoradas pelos ativistas. Ainda segundo Tim Findley (1997FLINDLEY, Tim. Alcatraz recollection. In: JOHNSON, Troy; NAGEL, Joane; CHAMPAGNE, Duane. American Indian activism: Alcatraz to the Longest Walk. Urbana, Chicago: University of Illinois Press, 1997.), os membros do conselho de coordenação discutiram um segundo manifesto, que deveria ser menor e mais objetivo, para possibilitar sua publicação na íntegra nos jornais. O manifesto, intitulado A Carta, embora seja menos citado que o primeiro nas memórias dos ativistas (cf. Johnson, Nagel, Champagne, 1997), tornou-se uma fonte privilegiada para identificarmos alguns dos anseios e tensões existentes na ilha, assim como possíveis estratégias de superação. Diferentemente da Proclamação, a Carta foi dirigida especificamente para os povos indígenas.

Caros irmãos e irmãs:

Esta é uma convocação para que uma delegação de cada nação ou tribo indígena de todos os Estados Unidos, Canadá e México se reúna na Ilha de Alcatraz, na Baía de São Francisco, em 23 de dezembro de 1969, para uma reunião a ser provisoriamente chamada de Confederação das Nações Indígenas Americanas (Cain). [...] Embora tenha sido um pequeno grupo que se mudou para a ilha, queremos que todos os indígenas se juntem a nós. Mais indígenas de todo o país vêm para a ilha todos os dias. Estamos fazendo este apelo em uma tentativa de unificar todos os nossos irmãos indígenas em uma causa comum (IAT, 20 dez. 1969IAT, INDIANS OF ALL TRIBES. Alcatraz Proclamations: The Letter. 16 dez. 1969 Disponível em Disponível em https://www.historyisaweapon.com/defcon1/alcatrazproclamationandletter.html . Acesso em: 9 dez. 2020.
https://www.historyisaweapon.com/defcon1...
).

Vale destacar a recusa simbólica do chamado a restringir-se aos povos indígenas que viviam dentro das fronteiras dos Estados Unidos. A demarcação de uma existência prévia à construção do Estado nacional marcou uma das principais especificidades do movimento indígena no contexto das lutas pelos direitos civis. Como salienta Blansett (2018), embora estudantes indígenas tenham se aproximado e compartilhado reflexões e métodos de ação direta com outros movimentos da época, como o movimento negro, por exemplo, gostavam de pontuar continuamente que não lutavam pela ampliação dos direitos civis, mas pelo direito à soberania dos povos indígenas. A agenda pública não seria reivindicar uns Estados Unidos mais inclusivos, mas consolidar o direito dos povos indígenas à sua autodeterminação, sem intromissão do governo federal ou dos governos estaduais. Ou seja, pelo direito de serem deixados em paz.

Desse modo, o próprio fato de o Congresso dos Estados Unidos legislar acerca da organização dos povos indígenas deveria ser denunciado de forma a constranger publicamente autoridades que defendiam ações no exterior para garantir a soberania de outros povos sob risco do que consideravam a ameaça vermelha, mas subordinavam os povos indígenas a uma secretaria federal. Por outro lado, a proposta de constituição de uma Confederação das Nações Indígenas Americanas (Cain) também enfrentava uma perspectiva amplamente difundida nos Estados Unidos e em outros países do continente americano, de que os povos indígenas compunham um único povo. Além de remontar às confederações indígenas existentes antes do período colonial, também reforçavam o caráter heterogêneo do movimento, entendido à época e posteriormente como um movimento pan-indígena. Entretanto, intelectuais indígenas resistem ao termo, por sugerir um processo de homogeneização. Como aponta Blansett (2018), a emergência do Red Power no final dos anos 1960 tratou-se de um movimento intertribal, já que qualquer tendência homogeneizadora teria afastado os diferentes grupos indígenas, como ficou evidente na ilha. Em Alcatraz, esse complexo processo de acomodação de interesses e marcação das especificidades tribais se deu logo nas primeiras horas da ocupação. Como aponta Johnson (1994), a ocupação foi, em escala reduzida, uma aliança tribal, e a imprensa, originalmente pensada como instrumento de divulgação pelos ativistas, começou a induzir debates internos.

A liderança informal de Oakes causou estranhamento em muitos ativistas que não o conheciam e pretendiam forjar uma sociedade igualitária na ilha, sem hierarquias. Entretanto, Oakes foi identificado pela mídia e jornais como o “prefeito de Alcatraz”, sendo o mais solicitado para falar em nome do grupo (Johnson, 1994, p. 69).

A importância de reforçar o caráter plural do movimento ficou registrado no final da Carta:

Convidamos todos os nossos irmãos a se juntarem a nós no dia 23 de dezembro, se não pessoalmente, pelo menos em espírito. Não fizemos nenhuma tentativa de iniciar uma organização formal rígida. Elegemos porta-vozes porque alguém teve que ser porta-voz. Achamos que todos os índios deveriam estar presentes ou representados no início de uma organização indígena nacional formal. Também elegemos um Conselho Central para ajudar a organizar o funcionamento do dia a dia da Ilha. Esta organização não é um órgão deliberativo, mas operacional.

Esperamos ver você no dia 23 de dezembro.

Índios de Todas as tribos (IAT, 16 dez. 1969IAT, INDIANS OF ALL TRIBES. Alcatraz Proclamations: The Letter. 16 dez. 1969 Disponível em Disponível em https://www.historyisaweapon.com/defcon1/alcatrazproclamationandletter.html . Acesso em: 9 dez. 2020.
https://www.historyisaweapon.com/defcon1...
).

Embora a ocupação tenha durado 19 meses, o primeiro mês foi fundamental para o exercício dos ativistas da construção de uma agenda intertribal. Já em janeiro de 1970, a maior parte dos primeiros ocupantes retornou para as universidades, sendo substituída por indígenas que chegavam de várias regiões do país. Integrantes do movimento hippie se juntaram à ocupação, rompendo o acordo inicial de proibir o consumo de álcool e drogas na ilha. Como aponta Johnson (1994JOHNSON, Troy. The Occupation of Alcatraz Island: Roots of American Indian Activism. Wicazo Sa Review, vol. 10, n. 2, p. 63-79, 1994.), a estratégia do governo federal foi não intervir enquanto durasse o interesse da mídia. Em janeiro de 1970, Richard Oakes abandonou a ocupação após um acidente que mataria sua enteada, Yvonne Oakes, de 13 anos, após cair da altura de 3 metros no interior do prédio principal. Diferentes versões sobre as causas do acidente precipitaram a chegada do FBI à ilha para investigação, encerrada com um relatório inconclusivo.

Embora a ocupação tenha terminado de forma melancólica em junho de 1971, com a retirada pela Guarda Costeira de 14 remanescentes, e nenhuma das reivindicações tenha sido atendidas pelo governo federal, muitos dos ativistas participariam de diversas ações ao longo da década de 1970, logrando importantes vitórias legislativas, como o Indian Self-Determination and Education Assistance Act, em 1975. Desse modo, o sucesso da ocupação de Alcatraz não se reduz à pauta mais imediata do movimento.

Como aponta Forbes (1997FORBES, Jack D. The native struggle for liberation: Alcatraz. In: JOHNSON, Troy; NAGEL, Joane; CHAMPAGNE, Duane. American Indian activism: Alcatraz to the Longest Walk. Chicago: University of Illinois Press, 1997., p. 129),

Alcatraz foi talvez a primeira possessão controlada por indígenas realmente ‘livres’ dentro dos Estados Unidos desde que os brancos conquistaram o sudoeste do Colorado e o sudoeste de Utah entre 1910-1915, e assumiram o controle do interior do Alasca durante o mesmo período. Uma coisa que tornou Alcatraz tão significativa foi o fato de que, quando você deixava o píer, você deixava os Estados Unidos, e logo chegava a uma ilha nativa, temporariamente fora da jurisdição de qualquer autoridade branca. Outro aspecto significativo de Alcatraz foi que ela liberou a psiquê dos povos nativos, fazendo com que ‘fosse certo ser indígena, com bandanas e tudo’. Finalmente, foi um experimento de autodeterminação nativa em um sentido comunal e político.

Considerações finais

Ao conclamar os povos indígenas a lutarem lado a lado pela autodeterminação de seus povos, a ocupação de Alcatraz consolidou a tendência do movimento indígena nos Estados Unidos, a partir dos anos 1960, de construir e fortalecer uma agenda intertribal frente ao que consideraram constantes ataques do governo federal, dos governos estaduais e de interesses privados à existência indígena, atuando, quando entendessem necessário, a partir de ações diretas. A ocupação não logrou resultados objetivos, nenhuma das reivindicações foi atendida pelo governo federal, mas inspirou toda uma geração de ativistas indígenas que promoveram nos anos subsequentes, em diferentes esferas políticas e sociais, os interesses indígenas a partir de perspectivas indígenas, elaboradas e reelaboradas no processo efetivo de construção de consensos e dissensos entre as diferentes etnias. Como aponta Edward Castillo (1997), na verdade, para os indígenas, nunca houve uma ocupação, mas sim uma libertação de Alcatraz, o que pouco tem a ver, para os povos indígenas, com a efetiva propriedade da ilha.

Como bem salientam Escobar, Alvarez e Dagnino (2001FORBES, Jack D. The native struggle for liberation: Alcatraz. In: JOHNSON, Troy; NAGEL, Joane; CHAMPAGNE, Duane. American Indian activism: Alcatraz to the Longest Walk. Chicago: University of Illinois Press, 1997., p. 43),

muitas vezes, a construção de espaços públicos como arenas democráticas torna-se o legado mais importante de um determinado movimento social. Para além da vitória de sua agenda específica.

Portanto, a ocupação libertadora de Alcatraz, será sempre uma inspiração e um instrumento de luta dos povos indígenas nos Estados Unidos e - por que não? - em outros países. Como aponta François Dosse (2013, p. 148),

Esfinge, o acontecimento é igualmente fênix que na realidade nunca desaparece. Deixando múltiplos vestígios, ele volta constantemente, com sua presença espectral, para brincar com acontecimentos subsequentes, provocando configurações sempre inéditas. Nesse sentido, poucos são os acontecimentos que podemos afirmar que terminaram, porque estão ainda suscetíveis de novas atuações.

Apesar das tentativas de apagamento por Donald Trump, novembro de 2019TRUMP, Donald. Presidential Proclamation on National American History and Founders Month, 2019. Disponível em:Disponível em:https://www.whitehouse.gov/presidential-actions/presidential-proclamation-national-american-history-founders-month-2019/ . Acesso em: 20 abr. 2020.
https://www.whitehouse.gov/presidential-...
ficou registrado como o mês das comemorações dos 50 anos do movimento na ilha de Alcatraz. Na edição de 25 de novembro de 2021, o San Francisco Examiner noticiou em sua primeira página: ‘Unthanksgiving’ returns to Alcatraz, indicando o retorno das celebrações do Indigenous Peoples’ Thanksgiving Sunrise Ceremory, após o cancelamento no ano anterior devido à pandemia de Covid-19. A cerimônia, iniciada em 1975, tornou-se ao mesmo tempo um espaço de celebração e contestação indígena, tendo a ilha outrora ocupada como palco principal. Mais do que um pedaço de terra no meio da baía de São Francisco, Alcatraz se tornou um símbolo da resistência indígena nos Estados Unidos. Como pontuou Richard Oakes7 7 Richard Oakes foi assassinado a tiros em setembro de 1972, em Sonoma, Califórnia, após uma discussão com Michael Morgan, diretor do camping da Young Men’s Christian Association (YMCA) em circunstâncias não esclarecidas. Em 2018, o historiador Kent Blansett publicou a primeira biografia de Oakes diversas vezes à imprensa, durante sua curta, mas intensa passagem pela ilha: “Alcatraz não é uma ilha, é uma ideia”.

Fontes

Referências

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  • STEWART, Mark. The Indian Removal Act: forced relocation Minneapolis: Compass Point Books, 2007.
  • WATSON, Blake A. The doctrine of discovery and the elusive definition of Indian title. Lewis and Clark Law Review, v. 15, n. 4, 2012. p.995 - 1024.
  • WEAVER, Jace. O vaivém da política indigenista. E-Journal USA, v. 14, n. 6, jun. 2009.
  • WILKINSON, Charles F.; BIGGS, Eric. The evolution of the termination policy. American Indian Law Review, vol. 5 n.1, p. 139-184, 1977. Disponível em:Disponível em:https://scholar.law.colorado.edu/faculty-articles/1105/ Acesso em: 23 set. 2022.
    » https://scholar.law.colorado.edu/faculty-articles/1105/
  • 1
    Na verdade, foi com o também presidente republicano Ronald Reagan, em 1986, que a celebração dos povos indígenas em novembro passou a ser proclamada pelos presidentes dos Estados Unidos. Entretanto, dois anos antes, Deloria Jr. e Lytle publicaram a obra The nations within: the past and future of American Indian sovereignty, onde discutiram, dentre outras questões, como o governo Reagan estaria se apropriando das demandas indígenas pela autodeterminação para imprimir-lhes uma diminuição da ajuda econômica estatal. Ainda segundo os autores, o slogan da relação “de governo para governo” da administração Reagan sugeria uma paridade de poder de negociação que não existia na prática. Vale ressaltar que a primeira proclamação do mês da “Herança Nacional dos Nativos Americanos” da administração Trump, em 2017, recuperou grande parte da agenda Reagan.
  • 2
    A reação inicial do guarda é rememorada no documentário “We hold the Rock: the indian occupation of Alcatraz” (1999). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gEmae2PsWJI&t=173s. Acesso em: 20 jan. 2018.
  • 3
    Esta e as demais citações de textos em língua inglesa têm tradução livre.
  • 4
    Segundo Wilkinson e Biggs (1977), relatórios do BIA nos anos 1950 e 1960 apontam para uma taxa média de 30% de retorno indígena às reservas. Outros estudos apontam para uma média de até 80%. É preciso destacar que houve importantes diferenças regionais, e o forte movimento pendular imprimiu diferentes médias ao longo do tempo. Nos limites deste artigo, vale ressaltar, portanto, que não havia na prática uma oposição definitiva entre “indígenas das reservas x indígenas urbanos”.
  • 5
    A Lei de Remoção dos Índios (Indian Removal Act) foi sancionada pelo presidente Andrew Jackson em maio de 1830, autorizando o governo federal a conceder terras a oeste do rio Mississippi aos povos indígenas que aceitassem abandonar suas terras nos estados. Embora parte dos indígenas tenha se deslocado pacificamente, buscando evitar conflitos com o governo federal dos Estados Unidos, entre 1838 e 1839, os Cherokees foram removidos à força. Aproximadamente 4 mil indígenas morreram no trajeto que ficou conhecido como a “trilha de lágrimas”. Outro efeito importante foi o estímulo à rivalidade entre povos indígenas ao compartilharem forçadamente o então chamado “Território Indígena”, atual estado do Oklahoma. Para uma introdução ao tema, ver: Stewart (2007).
  • 6
    No começo da década de 1970, o AIM (American Indian Movement) se tornaria a principal organização indígena nos Estados Unidos, liderando importantes ações, como a ocupação do prédio da Secretaria de Assuntos Indígenas (BIA) em Washington, em 1970, e a ocupação da Pine Ridge Reservation, na Carolina do Sul, em 1973. Esta última ocorreu no mesmo local do massacre de aproximadamente trezentos Sioux pela Cavalaria dos Estados Unidos em 1890, conhecido como o Massacre de Wounded Knee. Embora alguns livros e artigos científicos apontem o AIM como o grupo que concebeu e empreendeu a ocupação de Alcatraz, trata-se de um equívoco derivado do protagonismo que o grupo alcançaria nacionalmente, ainda durante a ocupação. Segundo os ativistas LaNada Boyer (1997) e Ed Castillo (1997), a ocupação de Alcatraz teria impulsionado o AIM, não o contrário.
  • 7
    Richard Oakes foi assassinado a tiros em setembro de 1972, em Sonoma, Califórnia, após uma discussão com Michael Morgan, diretor do camping da Young Men’s Christian Association (YMCA) em circunstâncias não esclarecidas. Em 2018, o historiador Kent Blansett publicou a primeira biografia de Oakes

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    15 Fev 2021
  • Aceito
    02 Set 2021
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