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Intelectualidade negra e racismo em Cuba: entrevista com Tomás Fernández Robaina1 1 A entrevista de Tomás Fernández Robaina foi amavelmente concedida pelo pesquisador em julho de 2022, quando a professora Ynaê Lopes dos Santos se encontrava em Havana, realizando pesquisa financiada pela sua bolsa Jovem Cientista do Nosso Estado, Edital 4/2018, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj).

Black intellectuals and racism in Cuba: interview with Tomás Fernández Robaina

Resumo:

Entrevista concedida pelo historiador Tomás Fernández Robaina à revista Tempo, em Havana, no dia 22 de julho de 2022. Aborda os estudos sobre intelectuais negros cubanos, bem com o racismo que estrutura o país.

Palavras-chave:
Intelectuais negros; Racismo; Cuba

Abstract:

Interview with the historian Tomás Fernández Robaina to the Tempo journal, in Havana, on 22 July 2022. This interview addresses the studies on afro-cuban intellectuals, as well as the racism that structures the country.

Keywords:
Black intellectuals; Racism; Cuba

Resumen:

Entrevista concedida por el historiador Tomás Fernández Robaina a la revista Tempo, en La Habana, el 22 de julio de 2022. Dicha entrevista aborda los estudios sobre los intelectuales negros cubanos, así como el racismo que estructura el país.

Palabras clave: Intelectuales negros; Racismo; Cuba

A presente entrevista foi concedida pelo historiador cubano Tomás Fernández Robaina à revista Tempo no dia 22 de julho de 2022, na sua residência, na cidade de Havana, Cuba.

Tomás Fernández Robaina (1941- ) é pesquisador aposentado da Biblioteca Nacional José Martí e professor associado da Universidade de Havana. Autor de dezenas de livros e artigos, se tornou um dos maiores especialistas nos estudos afro-cubanos, dedicando especial atenção à elaboração de biografias de intelectuais negros que viveram e atuaram nos primeiros anos da República cubana, bem como a estudos que analisam a luta contra o racismo na ilha. Além de atuar em diversas associações de pesquisa, também contribuiu com a Fundación Ortiz e com a União de Escritores e Artistas de Cuba (Uneac). À extensa vida profissional se junta sua militância pela causa negra e LGBTQIA+.

Ynaê Lopes dos Santos: Tomás Robaina, agradeço muito a sua disponibilidade em me receber em sua casa, e gostaria de começar nossa entrevista pedindo que o senhor contasse um pouco sobre sua infância e sua formação acadêmica.

Tomás Robaina: O início da minha formação foi na escola pública. Em Cuba, o sistema educacional consiste em uma escola primária, elementar ou secundária, e uma escola especializada. Eu terminei o ensino médio e me dediquei avidamente a ler e a escrever. Até terminar a escola primária e me dedicar à escola primária superior. Até terminar esta escola primária de ensino médio, na verdade, na escola profissionalizante de comércio, porque eu sou formado em comércio. Não sou formado em história. Estudei biblioteconomia quando já havia terminado o ensino médio e frequentei a escola primária superior. Assim, na primária superior estudei as disciplinas básicas de história, ciências sociais, mas não sou formado em nenhuma escola especializada. Só muito mais tarde é que pude estudar e me formar no ensino fundamental, e me dediquei a estudar história, ciências sociais etc.

YLS: O senhor poderia explicar em que contexto a história dos negros cubanos passou a ser uma questão importante na sua vida profissional?

TR: Quando comecei a trabalhar na Biblioteca Nacional. Entrei lá em 1962. Então, me dediquei a pesquisar tudo que tinha a ver com o estudo da cultura africana e me tornei especialista nos afro-cubanos. É importante dizer que sempre me interessou a história da África, por uma questão pessoal, então comecei a ler e a estudar a história da África. Quando cheguei à Biblioteca Nacional, me solicitaram um conjunto de artigos de temas afro-cubanos. Então comecei a me dedicar plenamente a esse assunto. Ali, trabalhei com Carbonez, Catalla... E também com Zuleica Romay.2 2 Zuleica Romay (1958- ) é escritora e pesquisadora, foi presidente do Instituto Cubano del Libro.

YLS: O senhor é uma das maiores referências no estudo da questão negra e afro-cubana do seu país. Quando o senhor começou a estudar essas questões, nos anos 1960, qual era o tratamento dado a elas por historiadores e cientistas sociais?

TR: Era muito superficial, muito elementar. Muita gente negava haver uma problemática racial em Cuba. Atualmente o governo até reconhece oficialmente que em Cuba há uma questão racial… Então agora é completamente diferente, é muito fácil falar desse tema, fazer comentários, porque já se reconhece oficialmente que o problema existe. O primeiro que se dedicou a estudar a problemática negra em Cuba foi Fernando Ortiz.3 3 Fernando Ortiz (1881-1969) se formou em direito em Havana, mas sua principal atuação foi no campo da etnografia e antropologia. Considerado um dos mais importantes pensadores e intelectuais cubanos, Fernando Ortiz se destacou no estudo da herança e da cultura negra, como signo da nacionalidade cubana. Lydia Cabrera4 4 Lydia Cabrera (1899-1991) foi um dos grandes nomes da intelectualidade cubana. Etnógrafa, museóloga, literata e poeta, foi autora de mais de cem livros e dedicou parte de sua vida aos estudos das religiões e tradições culturais cubanas de matriz africana. abordou o tema também, também se aproximou do estudo dessas questões. E foi assim… Há outros, como Gustavo Urrutia5 5 Nascido em 1881, Gustavo Urrutia, ensaísta, arquiteto e escritor cubano, foi um dos primeiros negros a problematizar a questão racial em Cuba. Também teve importante papel público, tendo sido editor do Diario de la Marina (um dos mais importantes jornais cubanos). Foi um dos intelectuais cubanos estudados por Tomás Robaina. … bom… muito do que eu te ensinei, aprendi com ele.

YLS: Na sua opinião, há alguma diferença entre os estudos sobre a escravidão e os estudos sobre o pós-abolição em Cuba? Há mais trabalhos sobre a escravidão ou sobre a condição do negro livre? O senhor consegue traçar um panorama?

TR: A maioria dos estudos em Cuba, durante muito tempo, foram estudos sobre a escravidão, sobre o negro escravo. Agora está começando um processo de incrementação do estudo de tudo o que se sabe sobre a emancipação do negro, desde o ponto de vista mental e social, contra a discriminação racial do negro. Neste momento, penso que a grande maioria dos estudos é sobre o negro escravo, sobre os processos de emancipação nos quais lutaram os negros em Cuba, e cada vez mais se desenvolvem novos estudos sobre a história do negro. Porque já se fala do pensamento negro, inclusive do ponto de vista filosófico, do negro como uma pessoa que pensava por si mesmo e que criava seus próprios mecanismos, resoluções e ações emancipatórias do ponto de vista do negro, não do branco. Porque, durante muito tempo, tudo que se fazia em Cuba era a partir de um ponto de vista eurocêntrico. Depois isso mudou e surgiu um pensamento emancipatório negro, uma visão afrodescendente para a luta pela emancipação mental, cultural, política, histórica, uma visão do negro como um povo executor de ideias emancipatórias.

YLS: Nesse sentido, eu gostaria que o senhor falasse um pouquinho sobre o seu livro El negro en Cuba, 1902-1958 (1990), que é um marco na historiografia cubana sobre a história negra na ilha. Pode ser? Gostaria que falasse um pouco por que escolheu essas datas para pensar a produção negra em Cuba.

TR: Durante essa época, não se falava da escravidão e me parecia correto que eu começasse a trazer à tona tudo que foi escrito de 1902 a 1958 a favor da independência de Cuba enquanto uma república e como era a vida do negro na Cuba republicana, lutando por seus direitos, por sua história, para que soubessem como havia sido inaugurada essa luta de independência de Cuba do ponto de vista negro. Portanto, era importante, principalmente, que os cubanos soubessem como tinha sido aquela luta emancipatória naqueles anos em que Cuba ainda não era livre, bem como difundir o que os cubanos negros pensavam daquela época de escravidão e de tudo o que era feito para incorporar a história do povo negro à história da independência.

Sabíamos de muito poucos negros interessados em tornar a história do negro e a da independência conhecidas. Eram poucos os negros interessados em pesquisar a história do negro para alcançar a liberdade, a abolição da escravidão. Portanto, isso foi algo muito importante, que deu origem aos nomes de alguns historiadores que estavam preocupados em fazer saber que havia negros interessados em divulgar e trazer visibilidade para as atividades dos negros ou sua independência. Isso foi muito positivo, que esse aspecto esquecido ou silenciado da história tenha sido trazido à tona. Era pois de suma importância que se conhecesse a relevância de Gustavo Urrutia na divulgação do pensamento independentista. Dar a conhecer o pensamento dos negros que lutavam pela independência dos negros, pela abolição da escravidão. Dar a conhecer aqueles negros que estavam levantando a importância dos negros na luta pela emancipação. E Gustavo Urrutia tinha sido um deles. Outro foi Juan René Betancourt,6 6 Juan René Betancourt foi um intelectual e ativista negro cubano que teve importante papel no debate sobre o lugar do negro no início da experiência comunista em Cuba. que foi o mais anglicano de todos, por causa de seu livro Doctrina negra. É importante ver também os de Lino Dou, Juan Gualberto [Gómez], Julián Valdés Sierra e Alberto Arredondo. Rafael Serra7 7 Os mencionados foram importantes intelectuais negros cubanos, que atuaram entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, e que tinham a questão racial e a luta pelo fim do racismo como ponto central de suas agendas políticas. Lino Dou (1871-1939) escritor e intelectual cubano, lutou na guerra de independência cubana e dedicou sua vida à luta contra o racismo em Cuba. Juan Gualberto Gómez (1858-1933) foi um dos mais proeminentes intelectuais negros de Cuba. Rafael Serra (1858-1909) foi um intelectual cubano que teve papel central na luta pela independência cubana, bem como pelo fim da escravidão e da discriminação contra a população negra. também foi importante.

YLS: O senhor acredita ser possível fazer uma história da intelectualidade negra cubana? Se sim, poderia listar alguns nomes de pesquisadores que trabalham nesse sentido?

TR: Existem pessoas que estão fazendo, que querem fazer isso. Por exemplo, Zuleica Romay e Pedro de Sanchez.

YLS: A história do Partido Independiente de Color (PIC) - fundado em 1908 e extinto em 1912 -, ainda é pouco pesquisada, sobretudo se pensarmos na sua importância para a história cubana e a sua excepcionalidade no contexto do Mundo Atlântico. O senhor poderia nos contar um pouco sobre a história desse partido?

TR: Para mim, a ação do PIC é muito importante, porque Cuba é o único país no qual os negros se organizam de um ponto de vista político para lutar por seus direitos sociais e civis, coisa que não ocorreu antes do século XX. Em Cuba, a ideia de um partido político negro surge no século XIX e, para mim, isso é um mérito deles, que antes da criação do Partido Independiente de Color, houve uma tentativa dos negros intelectuais da época de se organizarem politicamente para fundar um partido negro.

Então, isso para mim é de suma importância… Eventualmente foi oferecida a presidência do partido a Juan Gualberto Gómez. Juan Gualberto Gómez era um negro que pensava mais como cubano do que como negro. Ele não viu a importância de que se criasse, naquele momento, uma organização composta apenas por negros. E rechaçou a proposta que fizeram para que fosse presidente. Ele seria o presidente à época… não havia um negro mais importante e com mais influência do que Juan Gualberto Gómez. Eu te asseguro, estou seguro de que todos os problemas que tivemos foi porque Juan Gualberto Gómez se negou a organizar o partido político negro… porque a história teria sido completamente diferente. Ele não aceita isso, os demais negros se negaram a se alinhar à ideia e a consequência está aí… Ainda a estamos sofrendo. E tem muita gente que tem medo da criação do partido político negro.

YLS: Até hoje?

TR: Até hoje.

YLS: Aproveitando esse gancho e lembrando do massacre de 1902, que desmantelou o PIC, gostaria de saber se o senhor acredita que na virada do século XIX para o século XX ainda existia um medo do Haiti?

TR: Sim, claro, isso é certo. Sempre que se fala do PIC, lá está a sombra do que ocorreu no Haiti, do medo negro, tudo isso de terrível que passamos. Bom, justamente esse temor motivou que fosse dada a ordem de fazer com que o partido desaparecesse. O partido surge graças a Evaristo Estenoz.8 8 Evaristo Estenoz (1872-1912) foi um importante político e militar negro cubano, fundador do Partido Independente de Color (PIC).. Atuou no Exército Libertador Cubano e morreu em meio ao massacre do Exército cubano que exterminou o PIC em 1912. É ele quem cria as cédulas, os núcleos, os grupos políticos que mais tarde vêm a compor a massa do Partido Independiente de Color.

YLS: E Evaristo Estenoz era próximo de Juan Gualberto Gómez?

TR: Sim, sim, eles se conheciam.

YLS: Eles tinham visões diferentes sobre o papel do negro em Cuba?

TR: Se conheciam, mas tinham pontos de vista diferentes, sim. Eu acredito que se Juan Gualberto Gómez tivesse concordado em apoiar… E, sim, tinha gente que o apoiava, não é? E, também, ele tinha os artigos do jornal Previsión [periódico criado pelos membros do PIC]; ele percebeu que também havia um movimento emancipatório negro que nada tinha a ver com a visão eurocêntrica.

Havia uma percepção de que havia negros pobres, negros ricos, que havia negros que pertenciam a algumas classes e que estavam ficando mais pobres… uma percepção ampla e maciça. Quando você ler o jornal e os artigos que estiverem lá, você vai perceber, e chegará a suas próprias conclusões… se achar interessante.

YLS: Eu gostaria de saber por que, na sua opinião, a história do PIC é tão pouco conhecida.

TR: Obviamente, [o PIC] era pouco conhecido no seu tempo e é pouco conhecido no momento, porque não é visto nos programas de estudo sobre negros em Cuba. Não o estudamos, e o que não é estudado, não é conhecido. Tenho certeza dos problemas… que na universidade… inclusive, até agora que se começa a estudar a história do PIC, quando se tem a disciplina da história de Cuba. Isso não se estudava. Há um livro chamado Por una Cuba negra... É um livro muito bom. Muito bom, muito bom. É a visão dos estudos negros com uma visão negra da história de Cuba. O livro chama-se Por una Cuba negra, e aponta as limitações, os erros... em não levar em conta a história do povo negro quando se fala da história de Cuba.

YLS: O senhor acredita que o problema era que não se reconhecia o racismo em Cuba?

TR: Claro! Em Cuba havia uma posição oficial antirracista, se ensinava que em Cuba não havia racismo.

YLS: Inclusive depois da revolução de 1959?

TR: Claro! Mas… mas ninguém sabe por que a revolução tinha isso… Tinha sido feita para se fazer justiça… e a Revolução Cubana dirigindo uma atitude antirracista, que em Cuba não havia racismo. Lamentavelmente, isso foi um dos erros…

YLS: Para o senhor, agora o debate sobre a questão racial está melhor em Cuba do que há algumas décadas? Há alguma melhora na discussão?

TR: Supõe-se que com tudo o que falamos sobre o povo negro, agora em Cuba seria possível… te contarei um caso como exemplo: Zuleica Romay foi convidada a participar de um evento em Camagüey. Ela disse que tinha preparado um seminário, um curso resumido sobre a história do negro e que deveria ter partido fazia dois dias para o evento… De repente, eles a chamaram, dois dias antes do início do evento e disseram que ela não poderia falar sobre este tema.

YLS: Quando foi isso? O senhor se lembra?

TR: Recentemente, há pouco tempo… O correto seria dizerem “não, nunca vimos uma pessoa estudando este assunto”. Mas disseram-lhe que não havia transporte, disseram-lhe muitas coisas, mentiras… e o problema é que não queriam que ela abordasse o assunto... Ela falaria sobre esse assunto de uma forma muito abrangente, não de forma ambiciosa ou oportunista. Zuleica Romay estava feliz… estava feliz porque estava surpresa, sabendo como é a situação em Cuba, do ponto de vista ideológico, que alguém a tivesse chamado para dar um curso… e quando ela pensava que ia começar o curso, disseram-lhe uma série de mentiras, para que ela não começasse a dar nenhuma parte do curso… e ela percebeu que era uma mentira e telefona para os organizadores… e então ela explica… explica… e eles saem ganhando, porque não há problema algum em desconvidá-la, pois lhe disseram que havia um problema de transporte, de acomodação, e… como estava chegando [a data do evento], ela foi à internet, a todas as redes sociais, e confirmou que não havia nada do tipo. Estavam dizendo isso porque não queriam que ela fosse a Camagüey e participasse do evento com o curso.

YLS: E o senhor enfrentou alguma dificuldade para estudar esse tema?

TR: Claro! E continuo enfrentando.

Eu entendo que já não estou mais na situação ideal para ir a Camagüey ou a qualquer outro lugar para dar um curso, porque agora eu trabalho em casa. Você entende? E isso é simplesmente porque eles não querem que as pessoas falem sobre este tópico.

YLS: Na sua opinião, há mais liberdade para tratar da escravidão do que da experiência do negro na República cubana?

TR: Bom, sim… se pode falar da escravidão, sobretudo no século XIX… mas a consequência… o que houve, o que há… a escravidão possibilitou conhecer o passado de verdade, e isso foi ocultado por aqueles que [o] silenciam… Aí Zuleica Romay me contou que lhe haviam dito que havia problema com o transporte. E ela sabia que tudo isso era mentira. Ela falou com a pessoa que estava encarregada de organizar tudo, e que de repente ela fora surpreendida… e ela lhe disse “Não vou permitir que me mandem para o século XX agora. Quando voltarem a suspender um seminário, vou denunciar e vou dizer o nome de quem pediu. Então, vamos esperar e ver o que acontece…”. Veja, para mim, é muito triste e doloroso ver o que estão fazendo conosco… sim, o fazem porque não querem que falemos do assunto, que é a nossa especialidade. Porque ela ia assumir um curso que tradicionalmente era eu que dava. Claro, eu entendo que eu dei lugar para outra pessoa entrar nos espaços e conduzir esse curso. Isto é logicamente dizer que o curso deve ser dado, não que eu o dê. Eu lamento que agora já não tenho força e coragem suficientes para dar esse curso, como eu costumava dar. Mas me alegro que outras pessoas o assumam, mas também não me deixam assumir… dando como pretexto que já estou velho, que tenho câncer, e todas essas coisas. E isso é o que usam como desculpa para não me dar um espaço público. Mas desejo que outras pessoas o deem, porque para mim o importante é que o curso seja dado. Não sou tão jovem, mas consideram que sou o único que pode fazê-lo… Não! Se eu preparei todo mundo que fez parte do curso, se eu disse às pessoas que o reproduzissem!! Mas, mesmo assim, não deixam que o repitam, nem me chamam.

YLS: Como o senhor sabe, no Brasil existe o mito da democracia racial, que pressupõe que não existe racismo no país, que vivemos numa grande harmonia racial. Em Cuba, existe algum tipo de mito fundador, criado pelas elites brancas, para manter a ideia de ausência de racismo na sociedade?

TR: Sim. Aqui se mantém a ideia de que não existe racismo. Mas é muito contraditório, dizem “não existe racismo, o que existe é preconceito”. Não pode haver racismo sem preconceito. Mas eles insistem que são duas coisas diferentes… como se fosse um mal passageiro… [silêncio]

YLS: E qual sua perspectiva sobre a juventude negra e a forma com a qual ela se relaciona, ou não, com a luta antirracista?

TR: Em Cuba o pensamento que predomina é que o jovem cubano negro pensa mais como cubano do que como negro.

YLS: Então o senhor não acredita que haja uma juventude cubana negra e consciente das dinâmicas do racismo?

TR: Não. O que existe em Cuba são negros que têm uma consciência negra e antirracista… mas, de modo geral, projeta-se que o jovem cubano pense mais como um cubano do que como um negro. Você pode fazer uma enquete: se pensa mais como um cubano negro do que como um negro cubano.

YLS: E para o senhor, há algum tipo de relação entre essa forma de pensar e o modelo racial dos Estados Unidos, onde a segregação racial é mais declarada? Porque no Brasil ainda é comum ouvirmos as pessoas dizerem que “no Brasil não há racismo. Racismo há nos Estados Unidos, com as leis Jim Crow”. Existe esse tipo de ideologia aqui em Cuba também?

TR: Sim, sim, sim. Em Cuba, como não existe o racismo, não há por que falar dele. É que não se pode dizer que em Cuba não se reconhece o racismo que existe. Se reconhece o racismo, mas nada se faz para combatê-lo… Sim, tem que ser combatido, eu também luto contra isso, mas o problema é que não importa o quanto eu diga que o racismo em Cuba existe, se, oficialmente, a tradição, o programa, te dizem que em Cuba o racismo não é exatamente um ódio do que é diferente. O que se faz é criar uma armadilha. É uma evidência de que em Cuba o racismo é reconhecido… mas, o racismo não é igual ao racismo historicamente ensinado na escola… imaginem… eles zombam de nós, gozam de nós. Eles dizem que o reconhecem, mas não tomam medidas contra o racismo… é terrível.

YLS: Senhor Tomás Robaina, agradeço muito seu tempo e disponibilidade em conceder essa entrevista. Para finalizar nossa conversa, gostaria, por favor, que o senhor fizesse suas considerações finais e autorizasse a publicação dessa entrevista na revista Tempo, da Universidade Federal Fluminense.

TR: Sim, com muito prazer. Penso que é muito importante para a luta que estamos travando em Cuba, no Brasil e em todos os países nos quais há uma população afrodescendente marginalizada, silenciada, cujas vozes de denúncia… onde esse silenciamento do qual somos vítimas se coloca. Que se publique com essa finalidade, para que se saiba tanto no Brasil, quando na Colômbia, quanto em Cuba, que nós, os negros… cubanos, estamos lutando para que se torne conhecida essa realidade que estamos sofrendo nesse momento, por toda parte onde há uma atividade de afrodescendentes que lutam por seus direitos.

YLS: Muito obrigada, muito obrigada.

Referências:

  • ROBAINA, Tomás F. El negro en Cuba, 1902-1958: Apuntes para la historia de la lucha contra la discriminación racial La Habana: Editorial de Ciencias Sociales, 1990.
  • 1
    A entrevista de Tomás Fernández RobainaROBAINA, Tomás F. El negro en Cuba, 1902-1958: Apuntes para la historia de la lucha contra la discriminación racial. La Habana: Editorial de Ciencias Sociales, 1990. foi amavelmente concedida pelo pesquisador em julho de 2022, quando a professora Ynaê Lopes dos Santos se encontrava em Havana, realizando pesquisa financiada pela sua bolsa Jovem Cientista do Nosso Estado, Edital 4/2018, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj).
  • 2
    Zuleica Romay (1958- ) é escritora e pesquisadora, foi presidente do Instituto Cubano del Libro.
  • 3
    Fernando Ortiz (1881-1969) se formou em direito em Havana, mas sua principal atuação foi no campo da etnografia e antropologia. Considerado um dos mais importantes pensadores e intelectuais cubanos, Fernando Ortiz se destacou no estudo da herança e da cultura negra, como signo da nacionalidade cubana.
  • 4
    Lydia Cabrera (1899-1991) foi um dos grandes nomes da intelectualidade cubana. Etnógrafa, museóloga, literata e poeta, foi autora de mais de cem livros e dedicou parte de sua vida aos estudos das religiões e tradições culturais cubanas de matriz africana.
  • 5
    Nascido em 1881, Gustavo Urrutia, ensaísta, arquiteto e escritor cubano, foi um dos primeiros negros a problematizar a questão racial em Cuba. Também teve importante papel público, tendo sido editor do Diario de la Marina (um dos mais importantes jornais cubanos). Foi um dos intelectuais cubanos estudados por Tomás Robaina.
  • 6
    Juan René Betancourt foi um intelectual e ativista negro cubano que teve importante papel no debate sobre o lugar do negro no início da experiência comunista em Cuba.
  • 7
    Os mencionados foram importantes intelectuais negros cubanos, que atuaram entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, e que tinham a questão racial e a luta pelo fim do racismo como ponto central de suas agendas políticas. Lino Dou (1871-1939) escritor e intelectual cubano, lutou na guerra de independência cubana e dedicou sua vida à luta contra o racismo em Cuba. Juan Gualberto Gómez (1858-1933) foi um dos mais proeminentes intelectuais negros de Cuba. Rafael Serra (1858-1909) foi um intelectual cubano que teve papel central na luta pela independência cubana, bem como pelo fim da escravidão e da discriminação contra a população negra.
  • 8
    Evaristo Estenoz (1872-1912) foi um importante político e militar negro cubano, fundador do Partido Independente de Color (PIC).. Atuou no Exército Libertador Cubano e morreu em meio ao massacre do Exército cubano que exterminou o PIC em 1912.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    14 Out 2022
  • Aceito
    16 Out 2022
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