Acessibilidade / Reportar erro

Fotografia, história e antropologia: uma entrevista com Elizabeth Edwards

Resumo:

Em sua entrevista a professora Elizabeth Edwards discorre sobre a sua formação como historiadora e antropóloga. Através da rememoração de sua trajetória acompanhamos as situações, pessoas e instituições que proporcionaram o seu encontro com a fotografia. Primeiramente, na prática museológica que a proporcionou indagar sobre os circuitos sociais, usos e funções da fotografia, como objeto da cultura material e visual, e, posteriormente como professora e pesquisadora em instituições de relevo no Reino Unido e na Europa. Ao longo da entrevista, relevantes reflexões foram apresentadas com destaque para a implicações conceituais relativas à materialidade da fotografia, a abordagem antropológica dos sistemas culturais e a importância da fotografia como plataforma de observação das relações entre passado, presente e futuro. Conjuga a sua reflexão com um conjunto relevante de referências historiográficas que nos permitem uma clara configuração de seus principais interlocutores na elaboração de uma abordagem complexa sobre a fotografia.

Palavras-chave:
Fotografia; Conhecimento; Ciências humanas

Abstract:

In her interview, Professor Elizabeth Edwards reflects on her training as a historian and anthropologist. Through remembering her trajectory, we follow the situations, people, and institutions that provided his encounter with photography. First, in the museological practice that allowed her to investigate photography’s social circuits, uses, and functions as an object of material and visual culture, and, later, as a teacher and researcher in relevant institutions in the United Kingdom and Europe. Throughout the interview, relevant reflections were presented, highlighting the conceptual implications related to the materiality of photography, the anthropological approach to cultural systems, and the importance of photography as a platform for observing the relationships between past, present, and future. It combines her reflection with a relevant set of historiographical references that allow a precise configuration of its main interlocutors in elaborating a complex approach to photography.

Keywords:
Photography; Knowledge; Human sciences

Em 12 de junho de 2018, como parte das minhas atividades como pesquisadora visitante na Universidade de Cambridge, no âmbito da Cátedra Celso Furtado, desenvolvi o projeto de história oral denominado “Trajetórias intelectuais nos estudos visuais”, composto por uma série de entrevistas gravadas com estudiosos da fotografia residindo/residentes na Inglaterra. Nessa ocasião tive a oportunidade de entrevistar Elizabeth Edwards, uma das mais importantes referências para uma abordagem crítica sobre fotografia nas ciências humanas.

Elizabeth Edwards (1952- ) é professora emérita da Universidade De Montfort; curadora emérita do Pitt Rivers Museum, Universidade de Oxford; pesquisadora associada do Instituto de Antropologia Social e Cultural da Universidade de Oxford; professora honorária do Departamento de Antropologia da University College London e Andrew W. Mellon Visiting Professor no V&A Research Institute.

Agradeço a generosidade da professora Edwards que, para esta publicação, conferiu, atualizou informações e colocou as referências dos trabalhos citados.

Ana Maria Mauad: Hoje é 12 de junho de 2018 e estou aqui no Victoria and Albert Museum com a professora Elizabeth Edwards para entrevistá-la para o projeto “Trajetórias intelectuais nos estudos visuais”. Gostaria de agradecer muito à professora Elizabeth por me receber. Para começar, pedimos que conte sobre a sua trajetória acadêmica e como a fotografia se tornou tema de pesquisa.

Elizabeth Edwards: É uma história longa e variada. Comecei como historiadora medieval, minha graduação foi em história medieval e arqueologia. Sempre tive interesse em histórias, para o meu aniversário de 4 anos pedi, e ganhei de presente, um livro de história [risos]. Pode-se dizer que nunca mais olhei para trás. [risos]. Prossegui com um mestrado em história regional inglesa, porque passara a me interessar muito por assuntos de regionalidade. Em vários sentidos, a Idade Média permanece um primeiro amor, ao qual voltei em minha pesquisa recente (Edwards, 2012, 2019). Comecei o doutorado num assunto bem entediante - e aí descobri a fotografia. Descobri a fotografia porque pertencia à geração de estudantes de pós-graduação, no início da década de 1970, que participava do circuito dos historiadores da nova esquerda radical, como Raphael Samuel. Eles levantavam questões sobre a história das mulheres ou a história dos imigrantes, história judaica e por aí. Como se pode escrever histórias submersas ou debaixo dos registros oficiais. Para mim, uma jovem mulher treinada em história medieval, habituada a assuntos como as reformas legais de Henrique II ou o monasticismo, representava uma revelação, era quase como se apaixonar. “Ah! Não fazia ideia que o trabalho de historiador podia ser assim”. [risos] A partir dessa experiência, passei a interessar-me muito por formas alternativas de historicidades, suas fontes e análise historiográfica. A fotografia foi uma delas. Quando terminei a faculdade, consegui um emprego como curadora de história social, o que deu início ao meu interesse por museus. Foi quando encontrei a fotografia de fato, normalmente sob a forma de postais ou placas de vidro para lanternas de projeção,1 1 Edwards refere-se às “lanternas mágicas”, dispositivos de projeção luminosa comuns desde a segunda metade do século XIX até as primeiras duas décadas do século XX. e comecei a refletir sobre isso.

Em seguida, trabalhei como curadora, bem júnior, na biblioteca e arquivo do Pitt Rivers Museum, em Oxford. Trata-se de uma das grandes coleções universitárias de pesquisa em antropologia. Eu não tinha treino em antropologia, mas dei-me conta que o tipo de histórias com que estava trabalhando, por exemplo sobre práticas culturais ou identidade, eram na verdade tipos de história muito influenciadas pela antropologia. Fiquei no Pitt Rivers por um longo tempo e logo tive ocasião de ampliar o meu interesse por fotografia. Nessa época, a maravilhosa coleção fotográfica do Pitt Rivers Museum estava alojada numa estufa. Ninguém trabalhava com ela, a não ser um ex-oficial das colônias, que produzia listas do conteúdo das caixas. Era um começo. Não sabíamos absolutamente nada, mas tínhamos a sensação de que podia ser interessante. Creio que é muito difícil para os estudantes de hoje em dia dar-se conta do quão pouco sabíamos. Desconhecíamos os nomes dos principais fotógrafos de antropologia do século XIX, onde o material que tinham produzido se encontrava, para que fora usado; desconhecíamos a perspectiva da história das ciências. Os textos sobre história da antropologia sequer mencionavam fotografia - penso aqui no importante trabalho inicial de George Stocking (1987, 1995) - embora fosse evidente o contexto intelectual no qual as fotografias se inseriam. Tinha que aprender no fazer do trabalho. Assim é que, durante a segunda metade da década de 1970, estávamos vendo o material, pensando sobre ele e tentando montar o quebra-cabeça. Para além do trabalho de curadoria, no início dos anos 1980 começara a participar no ensino de antropologia, para a graduação e a pós-graduação. Uma coisa que devo deixar clara é que o Pitt Rivers Museum, particularmente na estrutura de então, era um departamento de pesquisa da Universidade de Oxford. Por isso tinha, sobretudo na época, um enfoque forte no ensino. Todos os curadores sêniores, e aos poucos tornei-me curadora sênior, davam aulas. Comecei com o básico, com estudos visuais básicos - coisa que mais ninguém em Oxford fazia.

AM: Na década de 1980?

EE: Sim. Havia pouquíssima coisa, os textos eram praticamente inacessíveis, fora o trabalho de pessoas como Jay Ruby (1975) e John Collier (1967COLLIER, John. Visual Anthropology: photography as a research method. New York: Holt, Reinhart & Winston, 1967.), ou, mais tarde, Paul ­Hockings (2003HOCKINGS, Paul (ed.). The Principles of Visual Anthropology. New York: Mouton de Gruyter, 2003.).2 2 Ver também Banks e Morphy (1997). Os principais debates davam-se em torno das práticas e do valor do filme etnográfico, ou questões sobre gravação e photo-elicitation como técnicas de trabalho de campo, por exemplo. O livro de Mead e Bateson (1942MEAD, Margaret; BATESON, Gregory. Balinese Character. New York: New York Academy of Sciences, 1942.), Balinese Character, era provavelmente o clássico de antropologia visual na época. Na tentativa de encontrar uma linguagem para aquilo sobre o que estávamos pensando, voltamo-nos para o corpo que então emergia de teoria fotográfica, como o trabalho de Victor Burgin (1982BURGIN, Victor. Thinking Photography. Basingstoke: Macmillan, 1982.) ou John Tagg, cujo The Burden of Representationfoi publicado em 1988TAGG, John. The Burden of Representation. Basingstoke: Macmillan, 1988., não é? Traduzia-se Roland Barthes (1981BARTHES, Roland. Camera Lucida: Reflections on Photography. New York: Hill and Wang, 1981.)3 3 Em português: Barthes, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. e depois Pierre Bourdieu (1990BOURDIEU, Pierre. Photography: A Middle Brow Art. London: Polity Press, 1990.). Em seguida veio o trabalho de W. J. T. Mitchell (1994MITCHELL, William J. T. Picture Theory. Chicago: University of Chicago Press, 1994.). Estes textos tornaram-se referências importantes para nós.

AM: Sim.

EE: À medida que uma foto-teoria crítica começava a ser publicada, trabalhamos com ela por um bom tempo, apesar de, penso que mesmo então, sabermos que não era isso que buscávamos. Mas era tudo o que havia e foi importante para nos fazer pensar. Em muitos sentidos, tudo partiu daí. Em Oxford demos início a um mestrado [MSc - Master of Sciences] em Antropologia Visual, que criei junto com Marcus Banks, que estava interessado em filmagem e metodologia. Éramos uma boa equipe. Contudo, acabei por deixar Oxford, porque queria expandir as minhas asas do ponto de vista analítico. Queria ter oportunidade de trabalhar com tipos diferentes de imagens, não apenas coloniais e antropológicas. Queria encontrar um ambiente onde pudesse aplicar noções antropológicas a um espectro maior de produção fotográfica. Fui primeiro para a University of the Arts, London, que é uma faculdade de referência na área das artes plásticas. Passei lá seis anos interessantes, trabalhando com pessoas da área, sobretudo de fotojornalismo, que eram realmente boas. Dei muitas aulas, desenvolvi um programa de doutorado especializado e trabalhei bastante com ética de pesquisa e temas afins. Ao cabo de seis anos, período durante o qual contei com um grande fundo europeu, PhotoCLEC, orientado para a análise da fotografia colonial nos museus europeus,4 4 Disponível em: http://photoclec.dmu.ac.uk. fui para a De Montfort University, em Leicester. Queriam que criasse um Centro de Pesquisa em História Fotográfica, que agregava e ia adiante sobre temas preexistentes, mas aos quais faltava coerência. Queriam desenvolver algo que não fosse historiografia da arte. Fiquei lá por seis anos até me aposentar. Formalmente sou uma aposentada idosa [risos], mas estou como Andrew W. Mellon Visiting Professor no V&A,5 5 2016-2022. onde nos encontramos agora, tenho uma cátedra honorária em antropologia na UCL [University College London], e sou emérita na minha antiga universidade. Também mantenho ligação sênior com Oxford, de modo que hoje em dia estou ligada a quatro instituições. [risos].

AM: Que a abraçam...

EE: É... Então isso é o que nós fizemos, em resumo.

AM: É uma trajetória maravilhosa. Percebe-se a fundação de um campo de pesquisa na sua trajetória, e a relação com a história radical.

EE: História radical, sim, e penso que o outro aspecto-chave que não enfatizei foi, é claro, que por 28 anos participei da academia vinculada a um museu, o Pitt Rivers. Os anos no Pitt Rivers Museum foram esplêndidos. Tínhamos verbas de pesquisa vultosas, como para The Tibet Album,6 6 Disponível em: https://tibet.prm.ox.ac.uk. magníficas equipes fazendo um trabalho realmente inovador em todos os tipos de práticas visuais materiais dentro da antropologia. Sei que quer falar sobre materialidade e o trabalho que desenvolvi. Isso é muito parte da história, no sentido que eu estava nesse ambiente incrivelmente dinâmico de pesquisa em Oxford. No final da década de 1980, começo da de 1990, estava rodeada por pessoas que refletiam sobre cultura material, de modo profundamente analítico: por que pessoas tinham objetos, o que pensavam sobre eles, como lidavam com eles, o que significavam para as pessoas, qual era o simbolismo, o que essa materialidade significava, qual era a natureza própria da materialidade, como isso funcionava do ponto de vista social e cultural. Essas questões faziam parte do ar que respirávamos a cada dia.

Assim, foi quase que uma sequência natural que, como chefe do Departamento de Fotografias, o que eu era então, começássemos a fazer estas perguntas sobre as fotografias e seus usos. Partíamos da premissa de que fotografias não são apenas o seu conteúdo, mas sim objetos sociais vitais que circulam, como qualquer outro tipo de objeto. Foi estar nessa comunidade de pesquisa tão incrivelmente dinâmica, naquele momento histórico particular, que me permitiu começar a perseguir essas linhas de indagação. Também foi importante ter colegas que não exprimiam desprezo quando eu dizia “bem, fotografias também são objetos”. Entendiam perfeitamente a ideia de fotografias como coisas e ações. Fotografias e todo o universo de ações que as envolviam tornaram-se parte daquele debate. Não se falava sobre objetos sem falar sobre fotografias, não se falava sobre fotografias sem se falar sobre objetos. Estavam, e estão, completamente integrados enquanto conceito. Então, foi aí que se originou o meu foco em materialidade. Foram anos excitantes, embora as pessoas tenham prosseguido com novos interesses e um outro ambiente político haja emergido na universidade. Foi o momento em que eu pensei, na verdade é isto, as coisas se agregando e funcionando. Mas queria experimentar algo novo, e foi o que fiz.

AM: É ótimo. Se compilarmos os usos da fotografia na antropologia certamente voltamos ao século XIX. Contudo, pode-se observar uma diferença significativa entre os usos da fotografia no trabalho de campo nessa época e abordagens recentes como a sua. Como é que avalia esse processo? Concorda com os que consideram que houve uma virada material na análise fotográfica?

EE: Sim. Houve um deslocamento epistêmico nítido entre fotografias constituírem um certo tipo de evidência, que é como foram usadas a partir do século XIX, e as preocupações de finais do século XX sobre o que fotografias ‘fazem’. Há dois campos na antropologia visual. Primeiramente, antropólogos visuais, com frequência, embora nem sempre, realizadores de filmes, que usam fotografia ou filme como ferramenta comprovativa, para responder questões de ordem antropológica ou sociológica. O outro campo, ao qual pertenço, está interessado na antropologia de sistemas visuais - questões sobre o que as pessoas querem que as fotografias sejam, o que fazem com elas. Isto tornou-se um fio, ou tema, extremamente rico na antropologia visual. Na verdade, pode-se perguntar se é “antropologia visual”. Na verdade, penso que de fato é apenas uma antropologia que tem como assunto os usos da imagem, uma antropologia do visual.

A maior parte dos antropólogos usa fotografia no trabalho de campo, tira fotografias como evidência de alguma coisa ou de relações. Mas a virada material, no sentido em que falamos, também modificara isto. Os antropólogos têm muito mais noção do que fazem do ponto de vista fotográfico, como uma prática material. A virada material espalhou-se por todas as disciplinas - história, história das ciências, geografia, não apenas antropologia -, é como a virada linguística anterior, quando semiótica passou a dominar a análise. Viradas têm seus problemas, é claro! Quem foi que disse que viradas não são uma boa ideia? Todo mundo corre num sentido [risos] durante algum tempo e depois corre de volta em outro. Não me lembro quem disse isso, foi Clifford Geertz? Tendo a concordar. Seja como for, penso que o impacto e efeito mais importante da virada material foi o aumento cada vez maior da etnografia da prática fotográfica, ou prática visual.

AM: Claro...

EE: Mas voltando à categoria “antropologia visual”, pode ser bastante problemático colocar os que trabalham com ou sobre imagens à parte do que é encarado como central na disciplina. Precisamos dizer que somos antropólogos, somos historiadores, aconteceu-nos trabalhar com a imagem e o visual como forma de investigação antropológica. Não estamos fazendo nada diferente de alguém que realiza trabalho de campo no Sudão, Peru ou Índia... Penso em antropólogos do visual, como Chris Pinney (2004PINNEY, Christopher. Photos of the Gods. London: Reaktion, 2004.) na Índia, Karen Strassler (2020STRASSLER, Karen. Demanding Images: Democracy, Mediation and the Image Event in Indonesia. Durham, NS: Duke University Press, 2020.) na Indonésia ou Jennifer Deger (2016DEGER, Jennifer. Thick Photography. Journal of Material Culture, v. 21, n. 1, p. 111-132, 2016.) na Austrália, que têm feito um trabalho de campo visual maravilhoso. Muitos também estão de fato interessados na história ou antropologia de sistemas visuais, em particular sistemas fotográficos, o que as pessoas querem que fotografias sejam, o que fazem com fotografias, inclusive em ambientes digitais, a exemplo de Shireen Walton (2016WALTON, Shireen. Photographic Truth in Motion: The Case of Iranian Photoblogs. Anthropology & Photography, n. 4, 2016. Disponível em:http://www.therai.org.uk/images/stories/photography/AnthandPhotoVol4.pdf
http://www.therai.org.uk/images/stories/...
), que trabalhou com mídia digital no Irã. Todos vêm dessa trajetória em estudos visuais integrados. É muito bom ver tais abordagens amadurecendo dessa maneira, em excelentes etnografias de objetos visuais que têm importância na vida das pessoas no século XXI. Trata-se de uma antropologia significativa. Para mim, essa sempre foi a questão mais importante, mas talvez apenas para mim, provavelmente porque em última análise eu sou da história. [risos]

AM: Sim, é ótimo, porque a diferença entre estas duas abordagens é bem relevante para entender a ideia de circuito e o sistema antropológico visual...

EE: Sim... outro aspecto importante aqui é o modo como a antropologia passou a influenciar um trabalho bem mais vasto sobre sistemas visuais - a influência da antropologia, digamos, em história da arte, de uma maneira que provavelmente não ocorria trinta anos atrás. A antropologia, penso, ofereceu algumas metodologias-chave para trabalhar com fotografias, fora dos enquadramentos estéticos ou da intencionalidade e individualidade, por exemplo, que tendem a ser dominantes na história da arte. Claro, pode-se pensar em historiadores da arte hoje em dia que estão produzindo um trabalho realmente interessante, na verdade com uma abordagem bastante antropológica.

AM: Ao ler seus textos, podemos perceber que uma macro preocupação subjaz o trabalho, relacionada à consideração da materialidade das imagens e das fotografias em particular. Na sua percepção, o que esta preocupação implica em termos da análise de fotografias? Que tipos de problema se consegue evitar com esta perspectiva?

EE: Essa é uma grande questão, de que já falamos um pouco. Acho que a materialidade faz emergir a razão por que fotografias são importantes para as pessoas - e o meu interesse no assunto na verdade data da época como curadora no Pitt Rivers Museum. Estive em salas onde Povos Originais (First Nations), indígenas do Canadá e Austrália, por exemplo, com frequência como Nação ou como delegação tribal, vinham ver fotografias de seus ancestrais. Lembro-me, trinta anos atrás, de ver pessoas segurando fotografias e afagando-as, pessoas cantando para as fotografias. Tornou-me bem consciente das implicações políticas e da responsabilidade que nos cabia. Lembro-me de uma aborígene australiana dizer “é, é bem ruim que estejam com estas fotografias dos meus ancestrais, mas noto que de verdade lhes dão importância e cuidam muito bem delas”. É por isso que a prática da curadoria era tão relevante. Você tinha que assumir de fato nas políticas seguidas a responsabilidade que um comentário desses demanda. A materialidade torna-se particularmente significativa aqui, porque o que a maior parte das pessoas quer é poder ter o rastro do ancestral na sua mão. Embora hoje em dia seja com mais frequência num iPhone, nem por isso deixam de constituir experiências materiais e corporificadas. Testemunhei isso no mundo inteiro. Não significa necessariamente que tenha que ser na forma material original, na verdade aponta para a complexidade da discussão sobre o material - pode ser parte de uma série de traduções, de cópia em arquivo para cópia impressa, para digital, não é isso que importa.

Todavia, noutra perspectiva, uma linha material relevante na curadoria de uma coleção histórica é que se percebam os traços arqueológicos de sua utilização; como as fotografias existiram enquanto objetos materiais no mundo e que coisas lhes aconteceram. Quando se encara apenas o conteúdo, bem, o que se vê e percebe é muito limitado. Mas quando se vê o objeto original, se apreende o tamanho que tinha, se veem as marcas de gasto e os rasgados, onde foi dobrado. Essa é uma das desvantagens da digitalização, é muito comum deixar de olhar esse tipo de sinais. Para voltar ao que comentei antes, começamos a usar técnicas de cultura material, começamos a entender o uso e, portanto, o significado daquele objeto para determinados públicos. É claro que o significado dessas materialidades varia com diferentes públicos, como acabei de referir, mas penso que essas abordagens transformaram radicalmente o modo como entendemos fotografias. E não é apenas a fotografia específica, é como foi arquivada, as redes de relações que a sua preservação histórica estabeleceu, como as taxonomias funcionam, como operaram ao longo do tempo, como classificações funcionaram. Escrita na própria imagem, por exemplo, é sempre fascinante porque é a espécie de acréscimo material à fotografia que indica uma intenção clara quanto ao significado. Todas essas questões são de fato questões materiais que alteram a nossa compreensão dessa relação tátil e do uso da imagem. Creio que também perturbou a ideia de que a estética tinha que ser o parâmetro de referência para fotografias e sua análise.

De novo, esta é a área onde a antropologia, e em particular o ramo da cultura material, tem sido absolutamente central em termos de repensar como as pessoas lidam com fotografias. Acho muito interessante ver quantos artistas deram curso a isto nos últimos trinta anos, realmente desenvolveram um trabalho fantástico em torno da materialidade das fotografias, como, por exemplo, constituem memória, como refutam a memória colonial. Com frequência, aproximam-se desses temas a partir de um olhar muito material e materialista da imagem. Por fim, é claro, e isso é algo com que os artistas também lidaram de modo bem efetivo, as próprias tecnologias fotográficas são extremamente reveladoras. Se alguém decide usar platinotipia em vez de imprimir em papel de gelatina, isso diz algo sobre como percebe a atuação da imagem, o que queria que fizesse. No século XIX em particular, portam uma semiótica bem diversa, fazem uma fotografia passar de uma imagem dura a uma suave, e vice-versa, simplesmente por escolher se os precipitados químicos vão sobre ou embebidos no papel fotográfico. Creio que é outro fio da materialidade de fato importante.

AM: Interessante. Li o seu comentário sobre uma exposição que houve na Tate Gallery, aí a ideia de ‘arte’ como valor de referência para fotografias ( Edwards, 2015EDWARDS, Elizabeth. Photography’s default history is told as art - it shouldn’t be. The Conversation, 23 fev. 2015. Disponível em: https://theconversation.com/photographys-default-history-is-told-as-art-it-shouldnt-be-37734.
https://theconversation.com/photographys...
). Fiquei pensando se esse valor de referência não é também uma espécie, um tipo de esteticização da história...

EE: Sim, e acho que esse é um dos grandes desafios de exibir fotografias no contexto de galerias de museu, porque assim que se as coloca numa moldura, com um passe-partout em volta, começam a ser lidas como objetos preciosos, como arte. Com certeza uma esteticização de história. Mas, por outro lado, tem havido muito trabalho experimental interessante, o tipo de trabalho que Stefanie Klamm tem feito em torno de coleções em Berlim, sobre a exibição de arquivos inteiros, sua interpretação, e o significado de caixas (Ver Bärnighausen et al., 2020BÄRNIGHAUSEN, Julia; CARAFFA, Costanza; KLAMM, Stefanie; SCHNEIDER, Franka; WODTKE, Petra (eds.). Foto-objekte: Forschen in archäologischen, ethnologischen und kunsthistorischen Archiven. Bielefeld: Kerber Verlag, 2020.). Tem havido bastante trabalho em torno desse tipo...

AM: Então um dos aspectos, ou equívocos, que se evita ao lidar com a materialidade fotográfica é não encarar isto como mera representação?

EE: Precisamente, sim, é um objeto que existe num espaço e num tempo sociais e culturais, e que é usado. É por isso que precisamos colocar questões antropológicas em jogo [risos] porque a materialidade pode servir para provocar inquietações no tocante a categorias estéticas. Mas também podem, é claro, ter um efeito de confirmação, na medida em que as abordagens especializadas para explicar a fotografia de fato constituíam uma leitura material. Tem a impressão excelente e o culto do calótipo, esse tipo de abordagens. Isso é algo que sempre debati. Como disse, acho que materialidade é uma forma bem interessante para pensar. Por outro lado, temo que, hoje em dia, pode ter-se transformado um pouco em clichê: “Ah, temos que considerar a materialidade”, mas sem colocar analiticamente por que precisamos pensar em termos de materialidade em cada etapa. É claro que deveríamos, mas é preciso deixar claro para o que contribui em termos analíticos e de interpretação.

AM: Como uma revirada...

EE: Sim, uma revirada, sim, gostei! Mas acho que a consequência positiva da reflexão material é de fato sensibilizar arquivos, museus e galerias para o que fazem. Há muito menos tendência a jogar coisas fora porque, por exemplo, são consideradas duplicatas, em vez incorporarem o ponto de vista da cultura material sobre múltiplos desempenhos, múltiplos originais. Aqui no V&A, o lugar está completamente abarrotado de fotografias, milhões e milhões de fotografias, que não estão sob a curadoria do departamento de fotografias artísticas, contudo, fazem parte do ethos do museu. Acabamos de começar a ver quantas há e suas funções. Essa é uma das coisas que estou fazendo aqui no V&A, de novo um tipo de análise muito baseado na materialidade.7 7 Este projeto foi entretanto publicado como Edwards e Ravilious (2022). Acesso aberto em: https://www.uclpress.co.uk/products/192313.

Quanto a isso, gosto da noção de imagem epistêmica da historiadora das ciências Lorraine Daston.8 8 Em português, ver Daston, Lorraine. Org. de Tiago Santos Almeida. Historicidade e objetividade. São Paulo: LiberArs, 2017. Valores ganham desempenhos materiais de modos muito interessantes, algo visto através das esferas de influência e troca de fotografias “confiáveis” na disciplina emergente da antropologia. Pode-se considerar o mesmo para outras disciplinas: história da arte, geografia, arqueologia, geologia, por exemplo. Uma coisa realmente interessante que emergiu do nosso trabalho inicial com coleções, quarenta anos atrás, é que quase todos os museus na Europa, e muitos nos Estados Unidos, de fato têm as mesmas imagens para os anos de 1870 a 1890, ou seja, até a tradição do trabalho de campo e diferentes trajetórias nacionais de prática de campo permearem a produção fotográfica. A partir daí começa-se a ir em diferentes direções. Mas até então pode-se encarar os museus da Europa e as sociedades acadêmicas e de ensino científico da Europa como uma rede gigante de trocas, criando o que Bruno Latour denominou “centros de cálculo”.9 9 Em português, ver: Alzamora, Geane; Ziller, Joana; Coutinho, Francisco Angelo (orgs.). Dossiê Bruno Latour. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2021. Voltando a uma de suas perguntas iniciais, uma coisa que apreendemos ao olhar para a história dessas coleções, não era apenas o que representavam, mas como a disciplina emergente da antropologia correspondia a esta extraordinária rede fluida e dinâmica, através da qual circulavam imagens e objetos, parte integral dos processos de formação de conhecimento. Por causa disso começamos a trabalhar com o emprego de Bruno Latour da teoria de rede, mas cada vez mais me orientei (talvez seja uma outra revirada) para a de Tim Ingold (2011INGOLD, Tim. Being Alive: essays on movement, knowledge and description. Abingdon: Routledge, 2011., p. 63, 70), de malha...

AM: Malha?

EE: Malha, é, conjuntos muito enredados de relações onde as dinâmicas não são apenas os modos de conexão, mas estão nos próprios elos. Esses elos podem apresentar-se em múltiplas justaposições - imagine amassar uma rede de pesca nas mãos. Malha tornou-se um modelo bem influente na pesquisa atual em antropologia e fotografia, não apenas com material histórico, mas também em termos de refletir sobre o modo como as imagens contemporâneas operam na mídia digital. Como disse, comecei por trabalhar, junto com outras pessoas, pensando sobre redes, utilizando Bruno Latour, a sua teoria do ator-rede. Foi quando li um ensaio maravilho de Marilyn Strathern (1966STRATHERN, Marylin. Cutting the Network. Journal of the Royal Anthropological Institute, v. 2, n. 3, p. 517-535, 1966.) intitulado “Cutting the network” (“Cortando a rede”) que é sobre relações de parentesco e dimensões de responsabilidade. O ponto de Starthern quanto ao problema com rede é que a única decisão possível é quando largá-la, no momento em que deixa de ser relevante; assim, pode-se simplesmente negar a responsabilidade analítica por ela. Um modelo de malha é mais fortemente contido. Forma um meandro em si, e é muito mais difícil largá-lo, porque está tão envolvido em si, por assim dizer - aquela rede de pesca amassada na sua mão. Por isso considero uma maneira bem melhor para se pensar sobre fotografias atualmente, por causa dessa densidade do modelo, é tão complexo, aquele conjunto de relações. Penso que malha exprime tão melhor o que fotografia faz, em particular na era digital... E é muito mais difícil de largar, é muito mais difícil negar responsabilidade analítica. Há que se levar em conta todas as implicações, não se pode lidar apenas com uma pequena parcela e descartar o resto, não dá para fazer isso, do ponto de vista intelectual. Tem enormes consequências sobre como se reflete sobre o “contexto”.10 10 Discuto bastante sobre “contexto” em Edwards (2022), capítulo 6.

AM: Uma espécie de imbricação de diferentes tipos de materiais?

EE: Tudo, num certo nível, trata-se de uma formulação expandida da economia visual de Deborah Poole (1997POOLE, Deborah. Vision, Race and Modernity: A Visual Economy of the Andean Image World. Princeton: Princeton University Press, 1997.)... Que é outro modelo que utilizamos por longo tempo, e que ainda usamos. Mas acho que malha tomou a frente, uma espécie de perspectiva teórica “da onda”... [risos].

AM: Isso é ótimo, bom saber. A próxima pergunta foi formulada por um professor amigo meu, Mauricio Lissovsky (1958-2022): o estudo de vidas sociais de fotografias implicou atribuir-lhes um certo animismo, ou é uma abordagem histórica alternativa à história tradicional da fotografia?

EE: Acho que é as duas coisas. Com certeza é uma alternativa às histórias tradicionais da fotografia. E com certeza animismo é parte integrante disso. Para voltar ao que mencionei antes, trata-se do que as pessoas imaginam e desejam que as fotografias façam. Penso que as fotografias são propensas a ter faculdades animísticas, por causa do que são em termos ontológicos. Há quase uma conexão animística com o poder das fotografias de ancestrais, por exemplo, que está muito centrada nas ideias de rastro e índex. O rastro e o índex têm sido muito teorizados, criticamente, em fotografia. Embora as pessoas que recorrem às fotografias não empreguem essa linguagem, rastro e índex são aquilo que de fato lhes interessa, por causa do que as fotografias são. Aquele rastro de algo que estava lá, um grito ontológico: estava lá, coisa que os teóricos acharam tão perturbador. Ou seja, de muitas formas, um tipo de animismo é o que a maioria das pessoas deseja que as fotografias sejam. Por causa dessa ontologia que referi ainda agora, e por causa desse padrão de expectativa, do que as imagens deveriam fazer para elas. Volto o tempo todo a este ponto, mas é que é muito importante para o trabalho que fazemos atualmente. Em suma, com certeza penso que temos que encarar a sério uma concepção quase animística de fotografia; como antropólogos com certeza devemos fazer isso.

Seria muito interessante retomar teoricamente esta questão. Não quero dizer sucumbir novamente às teorias sobre animismo do século XIX, não teria utilidade. Mas acredito que precisamos encontrar o tipo de linguagens teóricas que funcionem para isso. Quando se lê teóricos como Victor Burgin ou Jean Baudrillard, as concepções deles de fato não deixam espaço para as possibilidades realistas das fotografias. É uma posição teórica, mas não corresponde ao que acontece etnograficamente. De novo, creio que essa é a razão por que a antropologia/etnografia se torna uma presença tão perturbadora no trabalho sobre fotografia. Acredito que também é a razão por que modelos de antropologia visual estão sendo lidos em outros domínios, de uma forma que, parece-me, não acontece com a maior parte do trabalho antropológico. Não necessariamente se reflete em termos de citações, mas várias pessoas disseram-me “Ah, seu trabalho me marcou tanto”; e podem ser historiadores e sociólogos, artistas, curadores, com frequência pessoas que normalmente mantêm certa distância dos textos da antropologia. Qual a razão disso? Oferece, acho, uma perspectiva bem diferente sobre coisas que se tornaram arraigadas. Também pode funcionar em outros sentidos, é preciso lembrar. No meu próprio caso, procedo a leituras abrangentes em teoria da história, história da ciência, teoria etnológica etc., de modo que o meu trabalho tem múltiplos quadros de referência ao mesmo tempo em que talvez ofereça múltiplos pontos de conexão. É difícil dizer. Nas leituras, a minha questão é sempre: o que acontece na interseção desta ideia com fotografia? Essa foi a maneira como abordei o texto de Strathern sobre redes que mencionei. Ou seja, com frequência a minha leitura sequer começa com o visual. Provavelmente ficaria chocada se soubesse o quão pouco leio sobre história formal da fotografia, porque grande parte me parece repetitiva, apenas um estudo de caso diferente, que pode ser interessante ou não. Estou sempre buscando por corpos de ideias que possam se intersectar com fotografia, e é aqui que entram os debates sobre rede e malha...

É transformador - uma revirada, na sua adorável expressão! Por exemplo, a questão da biografia social como modelo, usei muito, todos lemos Appadurai (1986APPADURAI, Arjun (ed.). The Social Life of Things. Cambridge: Cambridge University Press, 1986.) e Kopytoff, lá na década de 1980.11 11 Em português: Appadurai, Arjun. (ed). A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural. Niterói: Eduff, 2020. Não uso mais e a razão para ter abandonado é que acho um modelo linear demais para o tipo de trabalho que faço atualmente com fotografias. Funciona perfeitamente no caso de um objeto específico, uma canoa de uma ilha do Pacífico recolhida pelo capitão Cook que vai para uma coleção etnográfica, funciona perfeitamente para um quadro de Rembrandt que circula e termina no Rijksmuseum. Embora ainda possa caber utilizar a perspectiva biográfica para algumas fotografias, produzidas como trabalhos de arte e objetos preciosos - com certeza temos algumas assim aqui no V&A -, mas, como dizia, parece-me linear demais, não dá conta da complexidade na natureza multidimensional da fotografia e da nossa análise dela. É por isso que me orientei primeiro para a rede latouriana e depois para a malha de Ingold.

AM: Mas já ensaiara essa perspectiva em textos anteriores...

EE: Precisamente, mas ainda não tínhamos a nomenclatura de que dispomos agora, ganhou uma forma teórica, algo em que podemos nos ancorar. Outra coisa que acho muito interessante são trabalhos oriundos da teoria da história, sobre ideias de presença. Tenho procurado encontrar uma linguagem para presença na fotografia colonial que não necessariamente envolve agência. Para mim, agência sugere que as pessoas tinham liberdade cultural para agir de outro modo. Em situações coloniais, com frequência não tinham. Pode-se de fato, sim, cobrir isto sob o manto de opressão, mas pareceu-me que era realmente importante encontrar o vocabulário com o qual exprimir o ser social e a subjetividade, que dá conta do que aconteceu com as pessoas, o que atravessaram na vida e, sobretudo, experienciaram, que não reduz o sujeito à passividade, apesar do grau de opressão com que se confrontaram. Inicialmente escrevi sobre isso num ensaio intitulado “Facing History” (Edwards, 2016EDWARDS, Elizabeth. Facing History: Photography and the Challenge of Presence. 2016. Disponível em: https://www.academia.edu/34363133/Facing_History_.pdf.
https://www.academia.edu/34363133/Facing...
), mas de lá para cá desenvolvi o tema.12 12 Discuto mais aprofundadamente sobre a “presença” em Photographs and the Practice of History (Edwards, 2021b, chapter 5).

AM: Ótimo. Vamos a uma pergunta formulada por Marcos Lopes, curador do Museu Benjamin Constant, que tem uma grande coleção de fotografias: Quando nativos ou comunidades tradicionais veem e falam sobre fotografias muitas variáveis jogam um papel importante no impacto da imagem, como sensibilidade, subjetividade e o sentimento de pertença e identidade. Por exemplo, um indígena bororo brasileiro recentemente olhou para a fotografia da sua aldeia na década de 1930. Ele disse que essas imagens mostravam tanto seus ancestrais como ele próprio e que sentia falta de ser como os que estavam nas fotografias. Não lhe interessava autoria, materialidade ou trajetória das fotos. Como é que podemos levar em conta estas reações surpreendentes na sua análise sobre fotografia?

EE: De fato, já abordei isso com relação à presença, e também quando da pergunta anterior sobre animismo, mas podemos reunir tudo aqui. Primeiramente é sobre as expectativas quanto à fotografia. Fotografia opera coisas diferentes em espaços diferentes e nas comunidades nativas tradicionais, como disse, as pessoas querem que as fotografias façam determinadas coisas. Alison Brown e Laura Peers (2006BROWN, Alison; PEERS, Laura. Pictures Bring us Messages. Toronto: University of Toronto Press, 2006.) formulam isso no brilhante trabalho sobre a nação Kainai e a história do Canadá. Questões de autoria não têm o menor interesse, em muitos sentidos são apenas um assunto arquivístico, quase de história da arte, sobre procedência, ajuda-nos a enquadrar a fotografia historicamente, e com mais detalhe, mas não interessa às comunidades - e por que deveria? Materialidade provavelmente lhes interessa, mas não articulada nesses termos. A materialidade permite rastrear a fotografia, estar nas suas mãos, mesmo quando num iPhone, conectar-se com essa fotografia, com questões sobre pertencimento e identidade. Ou seja, a materialidade é importante, mas não necessariamente no modo como se escreve a respeito do ponto de vista de curadoria ou analiticamente, ou no olhar sobre história da antropologia, por exemplo. É preciso lembrar que há muitas histórias entremeadas e muitas leituras diferentes de materialidade. Foi por isso que referi ainda agora que estou um pouco preocupada com que se esteja tornando um tanto clichê. Penso que devemos destrinchar o que a materialidade de fato produz em diferentes situações. Às vezes é importante, às vezes, não.

Também penso que temos dificuldade em encontrar no nosso repositório de ferramentas teóricas a linguagem apropriada para lidar com respostas como as que seu colega descreveu. Como disse, a foto-teoria nem sempre se presta bem a dar conta da realidade dos desejos fotográficos. Esse é o nosso problema analítico. Do mesmo modo que autoria e intencionalidade, por exemplo, materialidade é uma categoria analítica que informa a análise. Mas não são ontológicas, e penso que materialidade e o desejo do rastro, do ancestral, é um desejo ontológico, não um desejo teórico, pelo que me parece que temos que simplesmente desenredar isso. O que é ontológico aqui? É o rastro. O poder do rastro dos ancestrais. Como disse antes, é o grito primordial da fotografia. Tais desejos eram intrínsecos a várias reações a fotografias que presenciei: estava lá, ele ou ela estava lá, portanto, estou aqui. Isto é algo muito, muito poderoso, que presenciei repetidamente nas mais diversas culturas, inclusive europeias, como resposta à imagem histórica. É materialidade em termos de curadoria - é uma impressão do século XIX ou uma cópia? Isso não tem a menor importância. Mas, como disse antes, também há formas de materialidade relevantes aqui.

De novo, em resposta à pergunta do seu colega, creio que é por isso que etnografias de práticas fotográficas são extremamente importantes, porque oferecem um quadro e ferramentas para entender o que a fotografia é e o que se espera dela em dada comunidade e em dado momento histórico. Como podemos incorporar estas respostas inesperadas à nossa análise de fotografia? Essa é uma “megaquestão”, à qual por acaso me dedico no momento. Escrevi um artigo sobre o assunto, que estou para reescrever para uma conferência em setembro, ainda não está publicado, e talvez nunca seja publicado [risos].13 13 Entretanto, publicado como Edwards (2021a). Indago como podemos usar ao mesmo tempo conceitos antropológicos e conceitos sobre fotografia, mas vindos das vozes de diferentes comunidades e povos. O que essas categorias trazem para a fotografia, como desafiam os nossos pressupostos teóricos e hierárquicos sobre fotografias? De certa forma, é mais uma variação de outorgar privilégio à voz nativa indígena. Mas acho que é particularmente relevante em fotografia como encontrar uma linguagem crítica que incorpore o efeito de realidade das fotografias, sem sucumbir analiticamente a um realismo ingênuo. Penso que precisamos de um novo realismo crítico. Na verdade, esse é um dos grandes desafios atuais.

Falamos sobre “fotografias globais”, mas o quadro teórico ainda soa muito euro-americano - para mim, pelo menos. Isto está evidentemente ligado aos debates atuais sobre “decolonização”. Mas não deveríamos usar de fato a teoria euro-americana para pôr fim às discussões sobre o que fotografia significa para aquelas pessoas que não partilham dos usos majoritários. Por exemplo, o modo como se recorreu a Foucault no tocante à fotografia colonial serviu para cortar um debate. O resultado, na verdade, foi o alijamento das pessoas que o debate pós-moderno pretendia empoderar. Precisamos de algo que desestabilize certas categorias pressupostas da análise fotográfica, porque, como em qualquer teoria, são oriundas de seus momentos históricos específicos, são muito localizadas geopoliticamente, por exemplo, Walter Benjamin ou Roland Barthes. Não é que sejam inúteis, não são, tanto podem restringir um debate como fomentá-lo. Em muitos sentidos, um texto teórico padrão que ainda me parece muito útil, e para retomar a questão da subjetividade do pertencimento, é A câmara clara, de Roland Barthes. Ainda o acho um dos melhores textos jamais escritos sobre fotografia, porque é sobre emoção, é sobre poesia, é sobre subjetividade, sobre história. Estas são de fato as categorias que encontramos antropologicamente, quando se trabalha com fotografias de pessoas, porque é o que as pessoas querem que sejam, para voltar ao que disse no início. Precisamos resgatar essa ontologia, como comentei. Tenho achado parte dos trabalhos recentes em torno de novas ontologias na história muito úteis nesse sentido, como, por exemplo o de Eelco Runia (2014RUNIA, Eelco. Moved by the Past: Discontinuity and Historical Mutation. New York: Columbia University Press, 2014.), buscar encontrar essa linguagem teórica. Algumas pessoas produzindo tais etnografias de fotografia têm trazido conceitualizações sobre o meio que podem oferecer não uma linguagem alternativa, mas uma forma e um panorama alternativos, em torno do que a fotografia é e o que produz.14 14 Ver http://www.ucl.ac.uk/anthroplogy/research/photodemos. E também Pinney et al. (2023). Permaneço todavia assustada com a facilidade com que nós todos, eu inclusa, sucumbiremos de novo a categorias ocidentais de história da arte, se não tivermos cuidado. [risos]

AM: E, por fim, como avalia o impacto de sua abordagem nos estudos de fotografia, sente que há algum tipo de resistência entre os antropólogos, historiadores da arte ou em estudos visuais?

EE: Na verdade, é difícil dizer. Com certeza houve resistências. Há resistências, nem tanto em história da arte, porque eram treinados para trabalhar com o visual e têm uma abertura bem maior para encarar diferentes possibilidades teóricas em torno da imagem. As resistências que encontro não são tanto resistências ao modo como abordo fotografia senão resistências quanto à relevância do visual em termos gerais, particularmente na história; embora haja algum trabalho de qualidade, a situação é bastante terrível, para ser franca. [risos]

Na antropologia, fotografias/fotografia ganharam aceitação, apesar de que, como sugeri antes, várias pessoas ainda digam “ah, sim, antropologia visual é muito importante” sem que imaginem qualquer possibilidade de praticá-la ou de correlacionar o potencial que detém com seus interesses de pesquisa específicos! Mas isso está mudando com a nova geração, que está fazendo um ótimo trabalho sobre culturas digitais etc. Ao longo da minha carreira, com certeza me defrontei com muita resistência. Primeiramente, a crença de que as fotografias não eram relevantes, ou, como disse, não eram “um objeto efetivo e uma fonte para a antropologia”. Lembro-me, há cerca de quarenta anos, de mostrar um conjunto maravilhoso de fotografias de antropologia colonial, tiradas por volta de 1915, para um notável especialista na área. Passou o olhar e disse “não têm interesse antropológico, podem ser interessantes para alguém da área que trabalhe sobre esse período, mas são despidas de interesse antropológico”. E disse isso na minha cara. “Ah, é?”, pensei comigo mesma, porque era muito jovem então, ahn! [risos]. Meu deus! Que tempos! Mas creio que as metodologias que desenvolvemos, em torno de biografia social, materialidade, malha, presença etc. demonstraram a capacidade de transitar por diversas disciplinas ao longo dos tempos, a exemplo da geografia...

AM: E da história…

EE: História - sim, embora a briga ainda seja árdua! No momento estou a editar um número especial que lida exatamente com os problemas que intersectam fotografia e os lugares comuns da prática historiográfica.15 15 Acabou por ser uma monografia em lugar de um número especial, Photographs and the Practice of History (Edwards, 2021b).

A história das ciências sintonizou-se muito com aquilo para que este tipo de discussões tanto contribuiu. Assim, é interessante perceber que o método da antropologia visual está aparecendo por toda parte. Muitas vezes achei que não era levada muito a sério na antropologia, o que fazia era muito marginalizado, percebo isso menos hoje em dia. Mas costumava sentir “Por que estou fazendo esse trabalho todo? Ninguém liga a mínima”. Costumava sentir que se fosse atropelada por um ônibus não haveria sequer um fragmento de tecido para mostrar que eu vivera! Mas não sinto mais isso. Olho para a nova geração global que faz um trabalho fantástico no mundo todo, com uma variedade enorme de questões diversas interessantes. Então acho que valeu a pena. E acho que tive alguma influência nisso.

Mas, voltando à sua pergunta, embora essa resistência certamente se esteja esvaindo, há uma segunda resistência com que me defrontei, e ainda me defronto, na antropologia. Defendo que o arquivo é um campo em si e que o que fazemos é um tipo de antropologia de campo, colocando questões etnográficas, embora colocando-as historicamente. O arquivo torna-se, para mim, um autêntico campo - e creio que qualquer pessoa que trabalha nas mesmas áreas que eu diria o mesmo. Considero o trabalho de Ann Laura Stoler (2009STOLER, Ann Laura. Along the Archival Grain: Epistemic Anxieties and Colonial Common Sense. Princeton, NJ: Princeton University Press, 2009.), e a discussão que traça em Along the Archival Grain, extremamente útil quanto a isso. O trabalho dela me dá coragem, exatamente porque encara os arquivos como um campo. Penso que a outra fonte de frustração e resistência, que mencionei antes, é a ideia de que a fotografia é uma área nebulosa e limitada. Sim, a fotografia tem sido o fio central de tudo o que fiz nos últimos 48 anos, mas, como várias outras pessoas, sempre a usei para abordar questões antropológicas bem mais amplas. Existe, todavia, este pressuposto de que, porque trabalho com fotografia, não sei sobre mais nada. Novamente, isso não faz o menor sentido. Como qualquer um que trabalha com fotografia pode dizer, é impossível entender a fotografia sem entender a malha de valores e pressupostos epistêmicos e hierarquias de materialidades. Estranhamente, penso que esse é um tipo de fragilidade do meu trabalho, que preciso estar muito bem informada sobre uma gama ampla, o que é difícil, implica uma quantidade enorme de leitura. Não tenho o privilégio de poder dizer “ah, bem, sou uma especialista em Nova Guiné e não sei absolutamente nada sobre o estreito de Torres”, que fica ao lado! Tenho que saber. Porque, em muitos sentidos, fotografia impregna tudo, a partir de cerca de 1850. Circula produzindo coisas diversas. E estão todas conectadas em suas malhas.

Uma das coisas com que trabalho no momento é o fluxo de imagens através das protodisciplinas do século XIX e os modos como fotografias foram saneadas e recodificadas no seio dos ambientes interdisciplinares do século XIX. Consequentemente, há que entender a história das ciências do século XIX, a tecnologia fotográfica, há que entender práticas comerciais e industriais. Há que entender tanta coisa para trabalhar com fotografia. Como digo, por vezes sinto isso como uma espécie de fraqueza, que espalhar-se por um território tão vasto nos torna vulneráveis a ataques, fica muito fácil cravar a faca! [risos]. Há que se trabalhar tanto!

Penso que esse sentimento é parte daquele problema de resistência. Voltamos ao aspecto da fotografia não ser central no pensamento que atravessa as questões antropológicas ou históricas, que é apenas um acréscimo a um aspecto ou outro. Por vezes, ainda acho isso muito frustrante. Contudo, também há alguns movimentos excelentes fora da minha disciplina. Uma boa quantidade de historiadores da arte é receptiva a essas formas de pensamento mais abrangentes, pessoas como Sarah James (2013JAMES, Sarah. Common Ground: German Photographic Cultures across the Iron Curtain. New Haven: Yale University Press, 2013.), ao escrever sobre a história social das exposições fotográficas da Alemanha Oriental, que coloca questões com uma formulação bem parecida, mas a respeito de material que é normalmente classificado como arte, ou produção estética de algum tipo. Acho esse trabalho muito interessante. Por estranho que pareça, percebo que tenho a reputação de ser muito contra a história da arte. [risos] As pessoas dizem “bem, não vai gostar desses comentários porque são sobre arte”. Isso não é verdade, o que tenho dificuldade é com a preocupação insistente com autor, autoria, com imagens individuais, concepção estética, ao passo que eu considero produções culturais, serialidade e circulação mais pertinentes para o que fotografia é. E desconfio muito do modo como, em particular, histórias estéticas da fotografia, se imiscuem no mercado de arte. Penso que boa parte da história canônica da fotografia é de fato escrita para o mercado de arte. É por causa disso que resisto tanto. Nos estudos visuais...

AM: É uma disciplina nova?

EE: De fato é uma disciplina nova, fazemos as coisas de modo diferente. Novamente acho que o problema, ter a reputação de ser difícil, é porque me recusei a dizer amém aos cânones da foto-teoria. Acho que o problema com algumas das áreas centrais da teoria fotográfica, que tem tido grande importância nos estudos visuais, é o modo como, outra vez, se tornaram um pouco clichê, todo mundo cita Foucault, com frequência sem tê-lo lido. Na verdade, gosto demais de A arqueologia do saber e de As palavras e as coisas. São livros completa e absolutamente brilhantes e ainda os uso. Mas numa quantidade enorme de casos de teoria fotográfica são citados como evidência em si. Não são, trata-se de uma ferramenta para refletir por meio de uma série de questões, uma série de propostas analíticas, e pode ser útil ou não, mas o problema é que muitíssimos trabalhos na área visual os usam como evidência e não como conjunto de ferramentas. Teoria não é evidência antropológica, não é evidência etnográfica, do modo como talvez gostaríamos que fosse. Bem verdade que autores teóricos, de Allan Sekula a Katja Silverman, colocam uma série de aspectos interessantes e úteis, mas muito é sobrestimado, porque carreia vários metaníveis de suposições, embora raramente lide de fato com o que fotografias significam para as pessoas no mundo. Presume um papel de metanível para a fotografia. Isso funciona num certo plano, mas nem sempre são as ferramentas adequadas para se aprofundar antropologicamente. Precisamos de uma outra linguagem, como dizia antes. É possivel que meu problema seja que, em muitos casos, e agora pareço uma velha chata, [risos] desconfio da teoria pela teoria. Há pessoas que reclamam que parte do meu trabalho é muito teórico, então não é que eu seja “antiteoria”, longe disso. Mas, para mim, nunca se trata de evidência, em vez disso, tento estimular questões para fazer com que fotografias funcionem de modos novos ou diferentes. Ou seja, no geral talvez haja um conjunto de resistências, de ambos os lados, e, como disse, encontrei modos mais proveitosos de trabalhar. Para mim, como comentei antes, leituras bem abrangentes, em áreas como teoria da história, filosofia da história, teoria etnográfica, teoria antropológica, história das ciências, e pensar sobre pontos de interseção, é fundamental. Por vezes a resposta é nada, [risos] ou que pertencem a planetas completamente diferentes. Mas, surpreendentemente, por vezes vem o pensamento “bem, é, na verdade se lidar com fotografias dessa maneira, na verdade funciona”. Foi assim que passei a me interessar por questões de presença, sobre o que falei antes. Uma certa quantidade de pessoas estão trabalhando com isso hoje em dia em antropologia, Haidy Geismar escreveu algo sobre uma presença, bem como Chris Morton.16 16 Número especial de Photographies, v. 8, n. 3, 2016 - editado por Christopher Morton e Haidy Geismar. Estamos pensando alinhados. Parece-me que isso retoma o ponto referido antes, sobre tentar encontrar uma linguagem teórica diferente, que permita provincializar a Europa, para empregar a expressão famosa de Dipesh Chakrabarty (2000). Trata-se de uma prática global, tem muitas e muitas manifestações, e está imbricada em muitas formas de desejo e animação e performance. A nossa tarefa como antropólogos é entender essas performances e animações. Ou seja, como repito sempre, precisamos encontrar uma linguagem teórica que nos permita pensar sobre isso de maneiras bem mais fluidas. É aqui que considero a antropologia tão importante, porque, na verdade, a antropologia tem mostrado bem mais criatividade sobre esse tema do que qualquer outra disciplina.

AM: Tenho que concordar. Penso que há toda uma nova geração de historiadores que estão muito mais ligados à perspectiva antropológica, em especial no que toca a história cultural...

EE: Sim, concordo. Apesar das resistências sobre que conversamos, as coisas estão andando. Nisto o trabalho de Chris Pinney (2005PINNEY, Christopher. Things Happen: Or, From What Moment Does that Object Come? In: MILLER, Daniel(ed.). Materiality. Durham, NC: Duke University Press, 2005.) tem sido extremamente importante. Achei, por exemplo, o ensaio dele sobre temporalidades muitíssimo útil para refletir.

AM: Penso como todas essas referências chegaram ao Brasil, ao longo das primeiras décadas do século XXI. Especialmente seus livros, entre eles Photographs Objects Histories ( Edwards, Hart, 2004EDWARDS, Elizabeth; HART, Janice (eds.). Photographs Objects Histories: On the materiality of images. London: Routledge, 2004. ), a introdução ao livro tornou-se muito famosa...

EE: De fato é. Embora eu própria diga que foi um livro inovador sobre materialidade. Mas perguntava antes sobre resistência - inacreditável hoje, mas tivemos grandes problemas com a revisão por pares deste livro - antropólogos, até mesmo antropólogos visuais, que não conseguiam ver, ou recusavam ver, o propósito do livro. Sabe que o livro ainda vende, com quase 15 anos? É bem incrível. Perdi a conta de quantas vezes o vi citado, perpassou fronteiras disciplinares e partes do livro foram traduzidas em várias línguas, grego, italiano, polonês...

AM: Por causa da grande variedade de imagens e modos de abordagem presentes no livro. Não apenas um tipo de metodologia...

EE: É, pode parecer maluco, mas tenho certa resistência a “metodologia visual”. Com certeza precisamos de metodologia, mas penso que às vezes, do modo que é apresentada, se torna uma espécie de “escolha e misture”, “bem, vou no psicanalítico, ou vou fazer no feminista”, como se fossem compartimentos estanques. Em muitos sentidos, acadêmicos de todas as disciplinas precisam desenvolver uma sensibilidade fluida em relação à imagem, e como se está cruzando com outras modalidades de dados. Em muitos sentidos, um dos problemas com que nos confrontamos foi extrair o visual. Como área de estudo separada. Fizemos isso porque era preciso para sermos levados a sério, como um exercício em essencialismo estratégico, dizer “ei, o visual é bem, bem importante’, então todos escrevemos um monte de coisas lindas sobre o visual. Mas, em muitos sentidos isso nunca me convenceu por inteiro. De novo, é aquela perspectiva antropológica integrada. Vejo o visual como apenas uma parte da malha da experiência cultural (e escrevi bastante sobre a imagem sensória),17 17 Ver Edwards, Gosden, Phillips (2006) e Edwards (2008, 2009). ter interesse por fotografias é ter interesse pela imagem impressa, pela imagem digital etc. É por isso que deve estar inteiramente centrado nas nossas antropologias, daquilo com que estejamos trabalhando.

Atualmente, estou bastante interessada no que acontece com a própria prática de história ou de antropologia na era das fotografias, até para pessoas sem interesse no visual, sobretudo historiadores. Porque como é que se pode imaginar história num mundo pós-fotográfico, ou num mundo inventado pós-fotográfico? A fotografia muda completamente a nossa relação com o passado. Vários pensadores, de Kracauer a Le Goff, levantaram esse aspecto, não tem nada de original. Mas penso que o relevante é que não teve nenhum impacto sobre as categorias da prática histórica, nenhum.18 Sempre costumava perguntar aos meus alunos de graduação, costumava dizer “Imaginem, digam-me, o que a Segunda Guerra Mundial parece e como a sentem se não tiverem fotografias? Sem fotografias do desembarque da Normandia, sem fotografias de Pearl Harbour, sem fotografias do Holocausto, sem fotografias de reparação, sem fotografias de propaganda, sem fotografias dos efeitos das bombas - vocês não têm nada, apenas alguns textos, nenhuma imagem”. A reação era sempre a mesma, todos os anos, e era incrível. Os alunos sentados ali, em silêncio total, com a boca aberta, até que eventualmente algum mais corajoso titubeava uma meia resposta. Nesse momento eu dizia: “não, vocês estão todos completamente certos, é inimaginável”. Um silêncio atônito com a boca aberta é a resposta correta. [risos] Então todos riam e relaxavam e começavam a pensar. Subitamente haviam se dado conta do poder das fotografias na formatação da disciplina, é inimaginável. Uma ausência que não podemos compreender, donde a importância da imagística visual em qualquer coisa que eles ou qualquer um de nós faz.

AM: Entrevista maravilhosa. Agradeço muito!

Referências

  • APPADURAI, Arjun (ed.). The Social Life of Things Cambridge: Cambridge University Press, 1986.
  • BANKS, Marcus; MORPHY, Howard (eds.). Rethinking Visual Anthropology New Haven: Yale University Press, 1997.
  • BÄRNIGHAUSEN, Julia; CARAFFA, Costanza; KLAMM, Stefanie; SCHNEIDER, Franka; WODTKE, Petra (eds.). Foto-objekte: Forschen in archäologischen, ethnologischen und kunsthistorischen Archiven Bielefeld: Kerber Verlag, 2020.
  • BARTHES, Roland. Camera Lucida: Reflections on Photography New York: Hill and Wang, 1981.
  • BOURDIEU, Pierre. Photography: A Middle Brow Art London: Polity Press, 1990.
  • BROWN, Alison; PEERS, Laura. Pictures Bring us Messages Toronto: University of Toronto Press, 2006.
  • BURGIN, Victor. Thinking Photography Basingstoke: Macmillan, 1982.
  • CHAKRABARTI, Dipesh. Provincializing Europe: postcolonial thought and historical difference Princeton, NJ: Princeton University Press, 2000.
  • COLLIER, John. Visual Anthropology: photography as a research method New York: Holt, Reinhart & Winston, 1967.
  • DEGER, Jennifer. Thick Photography. Journal of Material Culture, v. 21, n. 1, p. 111-132, 2016.
  • EDWARDS, Elizabeth. Photographs and the Sound of History. Visual Anthropology Review, v. 21, n. 1-2, p. 27-46, 2008.
  • EDWARDS, Elizabeth. Photographs and History: Emotion and Materiality. In: DUDLEY, Sandra (ed.). Museum Materialities London: Routledge, 2009.
  • EDWARDS, Elizabeth. The Camera as Historian Durham, NC: Duke University Press, 2012.
  • EDWARDS, Elizabeth. Photography’s default history is told as art - it shouldn’t be. The Conversation, 23 fev. 2015. Disponível em: https://theconversation.com/photographys-default-history-is-told-as-art-it-shouldnt-be-37734
    » https://theconversation.com/photographys-default-history-is-told-as-art-it-shouldnt-be-37734
  • EDWARDS, Elizabeth. Facing History: Photography and the Challenge of Presence. 2016. Disponível em: https://www.academia.edu/34363133/Facing_History_.pdf
    » https://www.academia.edu/34363133/Facing_History_.pdf
  • EDWARDS, Elizabeth. “Our Ancient Monuments”: photographs and the visibility the past. Visual Anthropology Review, v. 35, n. 1, p. 23-36, 2019.
  • EDWARDS, Elizabeth. Indigenous Photographies and Histories: considering some old problems - again. In: LIEN, Sigrid; NIELSSEN, Hilde (ed.). Adjusting the Lens: Indigenous Activism, Colonial Legacies and Photographic Heritage Vancouver: University of British Columbia Press, 2021a.
  • EDWARDS, Elizabeth. Photographs and the Practice of History: A Short Primer London: Bloomsbury, 2021b.
  • EDWARDS, Elizabeth; GOSDEN, Chris; PHILLIPS, Ruth (eds.). Sensible Objects: Colonialism, Material Culture and the Senses. Oxford: Berg, 2006.
  • EDWARDS, Elizabeth; HART, Janice (eds.). Photographs Objects Histories: On the materiality of images London: Routledge, 2004.
  • EDWARDS, Elizabeth; RAVILIOUS, Ella (eds.). What Photographs Do: the making and remaking of museum cultures London: UCL Press, 2022. Acesso aberto em:https://www.uclpress.co.uk/products/192313
    » https://www.uclpress.co.uk/products/192313
  • HOCKINGS, Paul (ed.). The Principles of Visual Anthropology New York: Mouton de Gruyter, 2003.
  • INGOLD, Tim. Being Alive: essays on movement, knowledge and description Abingdon: Routledge, 2011.
  • JAMES, Sarah. Common Ground: German Photographic Cultures across the Iron Curtain New Haven: Yale University Press, 2013.
  • MEAD, Margaret; BATESON, Gregory. Balinese Character New York: New York Academy of Sciences, 1942.
  • MITCHELL, William J. T. Picture Theory Chicago: University of Chicago Press, 1994.
  • PINNEY, Christopher. Photos of the Gods London: Reaktion, 2004.
  • PINNEY, Christopher. Things Happen: Or, From What Moment Does that Object Come? In: MILLER, Daniel(ed.). Materiality Durham, NC: Duke University Press, 2005.
  • PINNEY, Christopher et al., Citizens of Photography: The Camera and Political Imagination Durham, NC: Duke University Press, 2023.
  • POOLE, Deborah. Vision, Race and Modernity: A Visual Economy of the Andean Image World Princeton: Princeton University Press, 1997.
  • RUBY, Jay. Is an Ethnographic Film a Filmic Ethnography? Studies in the Anthropology of Visual Communication, v. 2, n. 2, p. 104-111, 1975.
  • RUNIA, Eelco. Moved by the Past: Discontinuity and Historical Mutation New York: Columbia University Press, 2014.
  • STOCKING, George. Victorian Anthropology New York: Free Press, 1987.
  • STOCKING, George. After Tylor: British Social Anthropology, 1888-1951 Madison: University of Wisconsin Press, 1995.
  • STOLER, Ann Laura. Along the Archival Grain: Epistemic Anxieties and Colonial Common Sense Princeton, NJ: Princeton University Press, 2009.
  • STRASSLER, Karen. Demanding Images: Democracy, Mediation and the Image Event in Indonesia Durham, NS: Duke University Press, 2020.
  • STRATHERN, Marylin. Cutting the Network. Journal of the Royal Anthropological Institute, v. 2, n. 3, p. 517-535, 1966.
  • TAGG, John. The Burden of Representation Basingstoke: Macmillan, 1988.
  • WALTON, Shireen. Photographic Truth in Motion: The Case of Iranian Photoblogs. Anthropology & Photography, n. 4, 2016. Disponível em:http://www.therai.org.uk/images/stories/photography/AnthandPhotoVol4.pdf
    » http://www.therai.org.uk/images/stories/photography/AnthandPhotoVol4.pdf
  • 1
    Edwards refere-se às “lanternas mágicas”, dispositivos de projeção luminosa comuns desde a segunda metade do século XIX até as primeiras duas décadas do século XX.
  • 2
    Ver também Banks e Morphy (1997).
  • 3
    Em português: Barthes, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
  • 4
    Disponível em: http://photoclec.dmu.ac.uk.
  • 5
    2016-2022.
  • 6
    Disponível em: https://tibet.prm.ox.ac.uk.
  • 7
    Este projeto foi entretanto publicado como Edwards e Ravilious (2022). Acesso aberto em: https://www.uclpress.co.uk/products/192313.
  • 8
    Em português, ver Daston, Lorraine. Org. de Tiago Santos Almeida. Historicidade e objetividade. São Paulo: LiberArs, 2017.
  • 9
    Em português, ver: Alzamora, Geane; Ziller, Joana; Coutinho, Francisco Angelo (orgs.). Dossiê Bruno Latour. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2021.
  • 10
    Discuto bastante sobre “contexto” em Edwards (2022), capítulo 6.
  • 11
    Em português: Appadurai, Arjun. (ed). A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural. Niterói: Eduff, 2020.
  • 12
    Discuto mais aprofundadamente sobre a “presença” em Photographs and the Practice of History (Edwards, 2021b, chapter 5).
  • 13
    Entretanto, publicado como Edwards (2021a).
  • 14
    Ver http://www.ucl.ac.uk/anthroplogy/research/photodemos. E também Pinney et al. (2023).
  • 15
    Acabou por ser uma monografia em lugar de um número especial, Photographs and the Practice of History (Edwards, 2021b).
  • 16
    Número especial de Photographies, v. 8, n. 3, 2016 - editado por Christopher Morton e Haidy Geismar.
  • 17
    Ver Edwards, Gosden, Phillips (2006) e Edwards (2008, 2009).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    12 Jan 2022
  • Aceito
    16 Jan 2023
EdUFF - Editora da UFF Instituto de História/Universidade Federal Fluminense, Rua Prof. Marcos Waldemar de Freitas Reis, Bloco O, sala 503, 24210-201, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil, tel:(21)2629-2920, (21)2629-2920 - Niterói - RJ - Brazil
E-mail: tempouff2013@gmail.com