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Bibliotecas positivistas, catálogos e outras listas: como pensam os livreiros e os algoritmos?

Positivist libraries, catalogs, and other lists: How the booksellers and algorithmics think?

Resumo:

O artigo analisa um conjunto de 22 catálogos de livreiros, publicados nas últimas décadas do século XIX, dedicados ao tema do positivismo. Essas listagens, às vezes chamadas de bibliotecas positivistas, permitem descrever como os livreiros no período pensavam o tema do positivismo e o mobilizavam em favor de suas vendas. Utilizando uma abordagem digital, notadamente a representação visual em forma de grafos, discutimos como os mais de 150 autores citados eram hierarquizados por esses agentes do mundo do livro, permitindo-nos falar em uma ordem dos livreiros. Analisamos também os impasses metodológicos envolvidos na aplicação dos grafos para compreender um conjunto de listagens, com vistas a contribuir para o debate do uso das tecnologias digitais na prática historiográfica.

Palavras-chave:
Bibliotecas positivistas; História digital; Redes

Abstract:

This article analyzes a set of 22 booksellers’ catalogs, published in the last decades of the 19th century, whose subject was the positivism. Sometimes called positivist libraries, these lists allow us to describe how booksellers, in the period, deal with the positivism and mobilized it in favor of their sales. Using a digital approach, notably the visual representation in the form of graphs, we discussed how the 150 authors cited in the catalogs were ranked by these agents of the book world, allowing us to speak in an order of booksellers. We also analyzed the methodological impasses involved in the application of graphs to understand a set of listings, contributing to the debate on the use of digital technologies in historiographical practice.

Keywords:
Positivist libraires; Digital history; Networks

“Biblioteca Positivista recebeu e expõe à venda A livraria de ‘Joaquim Alves Leite Sucessor’”

Assim começa a propaganda do livreiro, publicada nas páginas do jornal A Federação, em 7 de fevereiro de 1890. Abaixo da chamada principal, uma lista de vinte livros, encabeçada por sete obras de Auguste Comte. Cinco dias depois, a Alves Leite usou o mesmo título, mas com nove obras de Spencer abrindo a lista, seguidas por onze livros sobre arte militar (Figura 1). Nas semanas que se seguiram ao primeiro anúncio, a mesma lista foi publicada outras vezes, com algumas variações no título.1 1 Bibliotheca Positivista. Recebeu e expõe à venda. A Livraria de Joaquim Alves Leite sucessor […]. A Federação, Porto Alegre, 7 fev. 1890, n. 32, p.3. Bibliotheca Positivista. Obras de Spencer. Recebeu e expõe à venda. A Livraria de Joaquim Alves Leite sucessor […]. A Federação, Porto Alegre, 12 fev. 1890, n.36, p. 3. Ver também as edições do jornal A Federação, de 10 abr. 1890, 11 abr. 1890, 15 abr. 1890, 17 abr. 1890 e 18 abr. 1890. O livreiro procurava aproveitar o momento. Com a enorme visibilidade que os positivistas tinham angariado na recente Proclamação da República, as condições para a venda de livros positivistas não poderiam ser melhores, sobretudo em um jornal que se dizia um “órgão do Partido Republicano” e que tinha como editor de redação um positivista militante, o advogado e político Júlio de Castilhos (Rausch, Hohlfeldt, 2007RAUSCH, F. F.; HOHLFELDT, A. A campanha republicana nas páginas de “A Federação” (1884-1889). In: Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação da Região Sul, 8., Passo Fundo, RS. Anais... Passo Fundo: Intercom, 2007. Disponível em: Disponível em: http://www.intercom.org.br/papers/regionais/sul2007/resumos/R0051-2.pdf . Acesso em: 27 abr. 23.
http://www.intercom.org.br/papers/region...
; Silva, 2015SILVA, I. P. da. Júlio de Castilhos: dicionário da elite política republicana (1889-1930). Rio de Janeiro: CPDOC, 2015. Disponível em: Disponível em: https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/CASTILHOS,%20J%C3%BAlio%20de.pdf . Acesso em: 26 out. 2021.
https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files...
; Leite, 2016LEITE, C. R. S. da C. “A Federação”, um jornal que fez história. Observatório da Imprensa, n. 909, 27 jun. 2016. Disponível em:Disponível em:http://www.observatoriodaimprensa.com.br/memoria/federacao-um-jornal-que-fez-historia/ . Acesso em: 26 out. 2021.
http://www.observatoriodaimprensa.com.br...
).

Figura 1
Três catálogos de livreiros anunciando uma biblioteca positivista. Dois do sucessor do livreiro Joaquim Alves Leite, de Porto Alegre (à esquerda e à direita, na parte superior), publicados em 12/2/1890 e 07/02/1890, e, um terceiro (à direita, na parte inferior) do livreiro Serafim José Alves, do Rio de Janeiro, publicado em 26/02/1880Na livraria do editor Serafim José Alves: Biblioteca Positivista [...]. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 26 fev. 1880, n. 56, p. 6..

Ao longo das duas últimas décadas do século XIX, obras ligadas ao positivismo, notadamente as de Auguste Comte, figuraram em muitas propagandas de livros. Levantamentos em jornais de época indicam que, já em 1854, o livreiro Baptiste Louis Garnier oferecia obras do pensador francês no Rio de Janeiro.2 2 Conforme o suplemento do catálogo de livros de “direito, legislação, política ...” de B. L. Garnier, publicado no Diário do Rio de Janeiro, 19 jun. 1855. Mas, conforme se instala a crise do Império e os positivistas vão ganhando maior visibilidade nos debates nacionais, as obras ditas positivistas começam a ganhar maior destaque nos títulos e subseções dos catálogos publicados nos jornais. Ao longo das duas últimas décadas do século XIX, identificamos 22 catálogos com essas características entre os jornais catalogados na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.

Listagens de livros e autores são produzidas rotineiramente nas várias fases da circulação dos impressos. Elas aparecem como catálogos de obras oferecidas por editores, livreiros ou leiloeiros, como impressos expedidos em uma alfândega, como coleções de bibliotecas públicas ou privadas, ou, como patrimônio a ser dividido entre os herdeiros de um bibliófilo (Abreu, 2004ABREU, M. Impressão Régia do Rio de Janeiro: novas perspectivas. In: Seminário Brasileiro sobre Livro e História Editorial, 1., 2004, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 2004.; Villalta, 2005VILLALTA, L. C. A história do livro e da leitura no Brasil Colonial: balanço historiográfico e proposição de uma pesquisa sobre o Romance. Convergência Lusíada, v. 21, p. 165-185, 2005.; Darnton, 2009DARNTON, R. The business of Enlightenment: a publishing history of the “Encyclopédie”, 1775-1800. Cambridge: Harvard University Press, 2009.; Deaecto, 2011DEAECTO, M. O império dos livros. São Paulo: Edusp, 2011.; Bessone, 2014BESSONE, T. Palácio de destinos cruzados: bibliotecas, homens e livros no Rio de Janeiro, 1870-1920. São Paulo: Edusp, 2014.; Monteiro, 2018MONTEIRO, R. Edição e tradução de livros didáticos para a Academia Real Militar do Rio de Janeiro e sua circulação no mundo luso-brasileiro (1808-1833). In: Granja, L.; De Luca, T. (ed.). Suportes e mediadores: a circulação transatlântica dos impressos (1789-1914). Campinas: Editora da Unicamp, 2018. p. 111-140., 2022MONTEIRO, R. The market in periodicals for engineers in the late Brazilian Empire: Do economics really matter?In: Nabonnand, P.; Gispert, H.; Pfeiffer, J. (ed.). Circulation des mathématiques dans et par les journaux: histoire, territoires, publics. Londres: College Publications, 2023.). Na historiografia, elas têm sido usadas para atestar práticas de leitura de frações sociais ou movimentos de ideias, a própria existência de certas obras e a sua circulação, ou, para discutir as condições econômicas relativas a um determinado empreendimento editorial.

No caso em pauta, saber quais livros de Auguste Comte estavam disponíveis ao público leitor, no Brasil, em fins do século XIX, pode ser útil para debater certas questões que a historiografia tem levantado sobre a recepção e apropriação das obras comtianas (Castro, 1995CASTRO, C. Os militares e a República: um estudo sobre cultura e ação política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995., p. 64; Carvalho, 2009CARVALHO, J. M. de. A formação das almas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 138): as obras oferecidas pelos livreiros diziam respeito mais às fases científica ou religiosa de Auguste Comte? Em que medida essas categorizações se verificavam nas práticas de venda das obras? Podemos ir além e nos indagar também sobre o lugar que os livreiros instalados no Brasil dão aos livros de Comte e quais associações fazem ao tema do positivismo. Ou seja, o que é o positivismo, da perspectiva dos livreiros?

Listagens, como as apresentadas aqui, podem ser pensadas como uma tentativa de organização de um corpus, como também são as bibliografias e as práticas de citação. Na tipologia proposta por Jack Goody, os catálogos de livros podem ser vistos como listas de compras, “que servem como guia para ações futuras [... cujos] itens vão sendo riscados, mental ou fisicamente, à medida que lidamos com eles”, mas também como listas léxicas, que funcionam como “uma espécie de inventário de conceitos, um protodicionário ou enciclopédia embriônica”(Goody, 2012GOODY, J. A domesticação da mente selvagem. Petrópolis: Vozes, 2012., p. 92-93). Ou seja, nessa segunda possibilidade, elas formariam um conjunto de autores e obras considerados representantes de determinado tema, oferecidos em bloco aos leitores. Evidentemente que essa operação comercial e classificatória não é executada totalmente à revelia dos clientes, embora seja muito difícil saber o quanto oferta e demanda estão sincronizados. Seja como for, os livreiros contribuem para essa primeira grade interpretativa ao aproximar dois ou mais autores sob uma mesma categoria, uma operação costumeiramente associada às práticas privadas de leitura (Chartier, 1995CHARTIER, R. Cultura popular: revisitando um conceito historiográfico. Estudos Históricos, v. 8, n. 16, p. 179-192, 1995., p. 184).

Comparar padrões de organização em listagens não é tarefa fácil de executar manualmente, sobretudo quando as listas são extensas ou configuram um corpus muito diverso. Os 22 catálogos ou excertos aqui escolhidos produziram 389 citações a obras e uma lista de mais de 150 autores. Na falta de um tratamento computacional a este conjunto de dados, ficaríamos restritos a questões relativas à presença ou ausência de certos livros de Comte.

Com a recente aproximação do campo das tecnologias digitais ao campo da história, novas perspectivas para o tratamento desse tipo de fonte são possíveis, recolocando antigas perguntas em outros termos e possibilitando questões interditadas pelo volume do material (Moretti, 2011MORETTI, F. Network theory, plot analysis. Literary Lab - Pamphlet, n. 2, p. 42, 1 maio 2011.; Noiret, 2015NOIRET, S. História pública digital. Liinc em Revista, v. 11, n. 1, 2015. Disponível em:Disponível em:http://revista.ibict.br/liinc/article/view/3634 . Acesso em: 9 dez. 2019.
http://revista.ibict.br/liinc/article/vi...
). Essas obras aparecem do lado de quais outras? Há um corpus comum a essas listagens? Os recortes e enquadramentos das fontes agora são negociados não somente com questões historiográficas, mas também com os algoritmos e suas capacidades computacionais. É, portanto, na confluência das humanidades digitais, da história da edição e da história do positivismo no Brasil que este trabalho se situa.

Neste artigo, discutiremos em um primeiro momento como se deu a emergência da categoria positivismo nos catálogos dos livreiros brasileiros. Para tanto, mostraremos como o conceito biblioteca positivista foi inventado por Auguste Comte e, posteriormente, apropriado pelos livreiros no período.

A transmutação das fontes para um banco de dados e a sua posterior representação visual na forma de redes possibilitou resolver algumas das perguntas aqui colocadas, mas criou uma série de desafios metodológicos, desde a transposição dos dados, de suporte em suporte, até a leitura das representações gráficas. Este será o foco das duas seções seguintes. Indicaremos, sempre que possível, que tipo de implicações historiográficas a abordagem digital trouxe para o estudo dos catálogos aqui estudados.

Como corolário das duas seções, retomamos o problema da análise das listagens, procurando responder como os livreiros pensavam o positivismo. Por fim, discutimos o modo como representações visuais, como os grafos, podem incorporar dinâmicas temporais como argumento historiográfico.

Bibliotecas positivistas: emergência e conformação

A presença das obras de Auguste Comte nas prateleiras das livrarias e a constituição de um público leitor do positivismo, capaz de atrair a atenção dos livreiros, não são fenômenos perfeitamente síncronos. Embora Ivan Lins, em A história do positivismo no Brasil (Lins, 2009LINS, I. M. de B. História do positivismo no Brasil. Brasília: Senado Federal/Conselho Editorial, 2009., p. 26-29), demonstre que os primeiros contatos entre brasileiros e Auguste Comte se deram na década de 1830, as referências às obras do autor somente começaram a figurar nos catálogos e propagandas de jornais em 1855. Na verdade, o positivismo passa a constituir uma categoria organizadora nas estantes dos livreiros brasileiros quase cinquenta anos após os primeiros contatos. De fato, até onde as ferramentas de busca permitem averiguar nos jornais de época,3 3 Pesquisa feita na plataforma da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional (http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/), a partir dos nomes das obras do autor. A primeira menção a livros de Comte se deu em um catálogo de livros de direito e legislação política, no Diário do Rio de Janeiro, em 19 de junho de 1855, onde Garnier oferece o Système de politique positive de Auguste Comte. foi somente em 26 de fevereiro de 1880 que um livreiro utilizou o positivismo para agrupar um conjunto de obras. Nessa data, o editor Serafim José Alves ofereceu uma “Biblioteca positivista” (Figura 1, à direita, na parte inferior) aos leitores da Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro.

À primeira vista, a propaganda de Serafim José Alves parece estar organizada em dois blocos: o primeiro sobre “A ideia de Deus” e o segundo sobre “O principal dever do homem”. Mas o leitor logo se dá conta de que são títulos de obras que o editor resolveu destacar, da autoria do positivista francês Emile Littré, conhecido à época por seus dicionários e por prefaciar a terceira, quarta e quinta edições do Cours de philosophie positive de Auguste Comte. Além dessas duas obras, constam no catálogo os Pequenos ensaios positivistas de Miguel Lemos, uma peça de teatro chamada Os positivistas, sem autor, e a obra de Auguste Comte Do espírito positivo. [São livros?]

Às vezes, os livreiros seguiam a ideia comtiana de biblioteca. Em um leilão organizado na cidade do Rio de Janeiro, em 21 de junho de 1881Pequena e Linda Livraria […] Enéas Pontes encarregado por uma pessoa que se retira para Europa em comissão especial faz leilão. Catálogo. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 21 jun. 1881, n. 171, p. 4., Enéas Pontes organizou seus 204 lotes de livros e objetos em três blocos, o último chamado “Biblioteca positivista” (Figura 2). Além das muitas obras de Comte (lotes 173, 174, 177 e 191), o leiloeiro introduziu seus comentadores, como Littré e Rebecque (lotes 175, 176, e 182), entre outros autores que constam na lista original. Os únicos livros que não aparecem na biblioteca comtiana (Lewes, Etex e Andiffret) foram dispostos nos últimos lotes do leilão (lotes 196, 197 e 198), perto de alguns itens relativos ao mobiliário. Pontes, portanto, organiza seu catálogo emulando a lista de Comte. A Joaquim Alves Leite também trabalha de maneira similar (Figura 1, à direita, parte superior), começando pelas obras de Auguste Comte, depois seus comentadores, como André Poey, Stuart Mill e Robinet e, a seguir, acrescenta alguns autores da lista comtiana, como Fontenelle, Condorcet, Bossuet, Mollière, De Maistre e Audiffrant. Serafim José Alves (Figura 1, à direita, parte inferior), por sua vez, diferiu bastante das recomendações comtianas ao indicar autores desconhecidos ou que nunca constaram nas listas de Comte, como o brasileiro Miguel Lemos. Portanto, os catálogos vão sendo construídos entre uma leitura aguerrida e uma interpretação mais livre da proposta comtiana.

Figura 2
Trecho de uma biblioteca leiloada por Eneas Pontes, em 1881.

A escolha por tal classificação não foi aleatória. Serafim José Alves fazia referência a uma lista de livros, de mesmo nome, idealizada por Auguste Comte por volta dos anos 1850, e que circulava, à época, encartada em algumas de suas obras (Pickering, 1993PICKERING, M. Auguste Comte, an intellectual biography. v. 3Cambridge: Cambridge University Press, 1993., p. 511-515; Petit, 2018PETIT, A. De la bibliothèque du prolétaire au XIXe siècle à la bibliothèque positiviste. 2018. Disponível em:Disponível em:https://bai.hypotheses.org/1929 . Acesso em:29 out. 2021.
https://bai.hypotheses.org/1929...
). A lista proposta por Comte era composta por trinta volumes de poesia (a Ilíada, Virgílio, Dom Quixote, Molière, La Fontaine, Milton, Byron, Goethe, entre outros), trinta de ciências (principalmente de matemática, medicina e história natural), sessenta de história (sobre a história da França, Inglaterra, Itália e Espanha, e as civilizações antigas) e trinta obras chamadas de síntese (desde obras religiosas, como a Bíblia, o Alcorão e As confissões de Santo Agostinho, até filosóficas como de Descartes, Hume e os próprios trabalhos de Comte).

Os cabeçalhos das listas também sofriam variações em torno do tema positivismo e do seu autor mais conhecido. Além de “Biblioteca positivista”, os livreiros utilizavam títulos mais coletivos como “Obras positivistas”, “Obras filosóficas de Auguste Comte e de outros filósofos”, ou os nomes de obras e autores como “Auguste Comte”, “Coleção completa das publicações do Apostolado Positivista do Brasil”, ou “Cours de philosophie positive par Auguste Comte”.

Às vezes, os livreiros vão além, em suas estratégias de venda, incorporando sob o positivismo outros temas, autores e obras. Joaquim Alves Leite incluiu, em alguns de seus catálogos, tanto as obras de André Poey sobre o positivismo quanto aquelas que tratavam de questões meteorológicas (Comment on observe les nuages e Courants atmospheriques) e um romance (Folie amourese) (Figura 1, à direita, parte superior). O mesmo conjunto de obras às vezes era oferecido com enquadramentos distintos. A “Biblioteca positivista” de Joaquim Alves Leite foi oferecida novamente, em 27 de maio de 1890, mas com o título “Obras de ciências, educação e ensino”. Por outro lado, cinco dias depois, ele ofereceu uma “Biblioteca positivista” completamente adversa à de Comte, com obras de Spencer e artes militares, mas que parecia responder aos interesses dos alunos da Escola Militar de Porto Alegre (Figura 1, à esquerda).

Considerando essas primeiras comparações em torno dos títulos e conteúdos, há uma evidente tentativa, por parte dos livreiros, de conformar o dueto autor e obra. Mas o tema biblioteca positivista parece ser muito mais amplo e diverso que as referências propostas por Comte, como se o autor estivesse sendo descolado de seu nome próprio e associado a uma rede de obras interconectadas, não necessariamente de sua autoria. Sobre essa questão, comenta Foucault, em 1968:

nenhum livro pode existir por si mesmo; ele está sempre em uma relação de apoio e dependência em relação aos outros; é um ponto em uma rede; comporta um sistema de indicações que remetem - explicitamente ou não - a outros livros, textos ou frases [...] A constituição de uma obra completa ou de um opus supõe um certo número de escolhas teóricas que não é fácil de justificar nem mesmo de formular (Foucault, 2008FOUCAULT, M. Sobre a arqueologia das ciências: resposta ao Círculo de Espistemologia. In: Motta, M. B. da(ed.). Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. p. 82-118., p. 89).

O comentário de Foucault deve ser pensado como uma deriva de suas preocupações, em As palavras e as coisas, de 1966, com a gênese de certas epistemes e de seus estudos sobre as condições de funcionamento de práticas discursivas (Foucault, 2016FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2016.). É nesse contexto, em artigo de 1969, que o filósofo francês passa a analisar como o nome de um autor, em certo descolamento do nome civil, passa a representar todo um conjunto de discursos, seus modos de circulação e de funcionamento, fenômeno que ele passou a chamar de função-autor (Foucault, 2009FOUCAULT, M. O que é um autor? In: Motta, M. B. da(ed.). Estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. p. 264-298.). Chartier, no entanto, em resposta a Foucault, aponta que a emergência da função-autor deve ser pensada em paralelo à gênese dos direitos autorais, quando a associação das obras e teorias a seus autores passa a significar dividendos futuros, estabelecidos em contrato entre editores e autores (Chartier, 1999CHARTIER, R. Cultura popular: revisitando um conceito historiográfico. Estudos Históricos, v. 8, n. 16, p. 179-192, 1995.). O nome do autor passa a ter um valor de mercado que deve ser defendido.

Dessa perspectiva, as inovações no conceito biblioteca positivista, operadas pelos livreiros, acabam por ser um processo de redistribuição de capitais simbólicos, materializado em um maior ganho nas vendas, quando associam ao positivismo e a Comte um conjunto de obras não necessariamente de sua autoria. Ou seja, a emergência do positivismo como tema economicamente viável reorganiza a classificação corrente, arrastando para si outras temáticas, autores e obras, acrescentando certas oscilações à listagem comtiana. A estrutura classificatória se atualiza no processo histórico ao mesmo tempo em que faz referência a modelos mais estáveis.

Ginzburg, ao estudar o problema da transmissibilidade das tradições e crenças, numa tentativa aproximativa entre história e antropologia (Schwarcz, 1999SCHWARCZ, L. História e etnologia: Lévi-Strauss e os embates em região de fronteira. Revista de Antropologia, v. 42, n. 1-2, p. 199-222, 1999.), propõe uma espécie de negociação entre os aspectos diacrônicos e sincrônicos desse problema. Insiste que o trabalho historiográfico deveria focar nas “inovações culturais face ao conjunto comum de crenças, transmitidas por um grupo e articulada por indivíduos específicos” (Ginzburg, 2017GINZBURG, C. Conjunctive anomalies: a reflection on werewolves. Revista de Estudios Sociales, n. 35, v. 60, p. 110-118, 2017., p. 116). O problema não deixa de ser uma retradução daquele colocado por Braudel, na década de 1950, sobre as possibilidades de escrever uma história com uma temporalidade de maior duração em lugar de uma descrição fragmentada em eventos isolados (Braudel, 1965BRAUDEL, F. A longa duração. Revista de História, v. 30, n. 62, p. 261-294, 1965.).

Sendo assim, ao pensarmos o problema da reprodutibilidade das práticas de colecionismo, no contexto do positivismo no Brasil, seria importante tanto identificar padrões nas listagens quanto descrever o modo como os livreiros inovam sobre esses padrões. A transposição das listas para um banco de dados e o uso de ferramentas de visualização gráfica podem ajudar a delinear melhor esses padrões e inovações dentro do corpus.

Nós, nuvens e redes: construindo narrativas visuais

Os livreiros não seguem uma ordem alfabética, mas sempre começam suas listas com um ou dois autores mais centrais para uma temática escolhida, acrescentando depois outros nomes por associações mais ou menos livres, constituindo assim certas nuvens de nomes. É Comte o autor mais recorrente nas bibliotecas positivistas. Dos 22 catálogos ou seções aqui descritos, 15 começam com as suas obras. E, em seu entorno, os livreiros sempre dispõem obras de positivistas conhecidos e de comentadores, como se fosse preciso lê-los para chegar a Comte e ao positivismo. Os críticos do comtismo também aparecem com frequência: as listagens contêm autores de verve metafísica, como Victor Cousin (Simon, 1965SIMON, W. M. The “two cultures” in nineteenth-century France: Victor Cousin and Auguste Comte. Journal of the History of Ideas, v. 26, n. 1, p. 45-58, 1965.), também os dissidentes da Igreja Positivista na França, como Émile Littré (Gouhier, 1981GOUHIER, H. Émile Littré et la philosophie. Comptes-rendus des Séances de l’Année - Académie des Inscriptions et Belles-lettres, v. 125, n. 4, p. 606-615, 1981.; Heilbron, 2007HEILBRON, J. Sociologie et positivisme en France au XIXe siècle: les vicissitudes de la Société de Sociologie (1872-1874). Revue Française de Sociologie, v. 48, n. 2, p. 307, 2007.; Petit, 2016PETIT, A. Comte revu et corrigé: le cas Littré. Revue Européenne des Sciences Sociales, v. 54, n. 2, p. 69-88, 2016.).

Para captar e reconstruir visualmente este tipo de dinâmica de citação, é preciso ir além da contagem das citações ao autor, conduzindo as ferramentas computacionais a reproduzir a lógica observada nos catálogos, ou seja, colocar “o foco [do estudo] nas relações entre as entidades e nos padrões que emergem desse conjunto de relações” (Brughmans, 2013BRUGHMANS, T. Thinking through networks: a review of formal network methods in archaeology. Journal of Archaeological Method and Theory, v. 20, n. 4, p. 623-662, 2013., p. 625).

A historiografia alude a uma circulação dos livros positivistas em duas ondas: uma ortodoxa, religiosa, bastante centrada em Comte, seus últimos livros e nos líderes da Igreja Positivista, Miguel Lemos e Renato Teixeira; e uma não religiosa, às vezes mais cosmopolita, disputada por muitos comentadores, como Littré, na França, e, Benjamin Constant e Pereira Barreto no Brasil (Alonso, 1995ALONSO, A. O positivismo de Luís Pereira Barreto e o pensamento brasileiro no final do século XIX. Conferências do Instituto de Estudos Avançados da USP, p. 14, 28 abr. 1995., 1996ALONSO, A. De positivismo e de positivistas: interpretações do positivismo brasileiro. BIB, n. 42, p. 109-134, 1996.; Castro, 1995CASTRO, C. Os militares e a República: um estudo sobre cultura e ação política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.; Lemos, 1997LEMOS, R. Benjamin Constant: vida e obra. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 1997.; Carvalho, 2009CARVALHO, J. M. de. A formação das almas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.). Aqui, queremos saber quem os livreiros associam a Auguste Comte. São mais comuns os duetos Comte e Spencer, Comte e Littré, ou Littré e Spencer? Mais precisamente, da perspectiva dos livreiros, quais seriam as associações mais recorrentes dentro do corpus?

Foi pensando em problemas similares a estes que Henry Small (1973SMALL, H. Co-citation in the scientific literature: A new measure of the relationship between two documents. Journal of the American Society for Information Science and Technology, v. 24, p. 265-269, 1973.) introduziu, em 1973, a noção de cocitação nos estudos bibliométricos. Tal indicador nada mais é que o número de citações simultâneas de dois artigos em uma determinada obra. Modificando ligeiramente a ideia original de Small, Gingras (2010)GINGRAS, Y. Mapping the structure of the intellectual field using citation and co-citation analysis of correspondences. History of European Ideas, v. 36, n. 3, p. 330-339, 2010. aplicou, mais recentemente, o indicador para o conjunto de cartas de Mersenne, Oldenburg e Darwin, procurando reconstruir as redes de sociabilidade em torno desses personagens. Assim construído, o problema induz uma representação visual, chamada rede ou grafo das cocitações: os autores citados nos catálogos formam nuvens de pontos (nós), conectados por segmentos de reta (arestas), quando estão presentes em uma mesma lista (Figura 3). Tal rede, como qualquer outra, pode ser desenhada com a ajuda de uma plêiade de softwares que oferecem, cada um deles, algoritmos específicos para representá-la. É preciso saber, antes de tudo, se tão variadas ferramentas produzem instrumentos de leitura iguais, ou, pelo menos, homólogos.

Figura 3
Rede de citações dos autores das bibliotecas positivistas, considerando como critério de conexão a presença simultânea (cocitação) em um mesmo catálogo. Os subagrupamentos ou nuvens, em cada uma das quatro redes, representam um catálogo. Ao centro, catálogos que possuem mais pontos em comum. Nas representações, cocitações mais recorrentes são representadas por arestas mais espessas, enquanto autores mais conectados têm o tamanho dos nós aumentado. Em amarelo, Adolphe Ganot, um dos autores dos catálogos.

Certos fenômenos visuais são esperados em todas as representações, já de partida: como dois autores de um mesmo catálogo estão sempre conectados na rede por uma aresta, cada listagem aparecerá invariavelmente representada como uma nuvem interconectada de pontos. Elas eventualmente compartilham autores com outras nuvens da rede, caso eles estejam nas respectivas listagens (Figura 3). Personagens mais recorrentes nas listas, com mais conexões, são colocados mais ao centro do grafo. É possível escolher o tamanho do nó, conforme a quantidade de conexões que ele tem na rede. Assim, uma hierarquia visual do centro para as bordas organiza as informações, tendo Comte no meio da rede, quase sempre sendo um ponto comum a essas nuvens.4 4 É importante observar que Comte não está presente em todos os catálogos. Não é, portanto, ponto comum a todas as nuvens que formam a rede de cocitação.

Se o historiador procura representações inequívocas produzidas pelas ferramentas digitais, não as irá encontrar. Observando os grafos produzidos pelo software de visualização, concluímos que os algoritmos oferecidos não funcionam da mesma maneira. Sempre há nuvens de pontos, mas acomodadas espacialmente de modos diversos. O que faz com que os mesmos dados produzam representações distintas? O software oferece uma variedade de representações possíveis e não esconde as potencialidades de interação com as representações visuais: “Bem-vindo a este tutorial avançado. Ele te ensinará a fina arte do desenho de uma rede no Gephi: como usar algoritmos que espalham os nós dentro de um espaço gráfico.”5 5 “Welcome to this advanced tutorial. It will teach you the fine art of network layout in Gephi: how to use algorithms that place the nodes inside the graphic space.” Gephi Tutorial Layouts. Disponível em: https://gephi.org/tutorials/gephi-tutorial-layouts.pdf. Acesso em: 14 fev. 2022.

O pesquisador não pode, portanto, se lançar em um projeto de história digital sem localizar, com alguma precisão, os fundamentos dos algoritmos, suas agências, impenetrabilidades e normativas (Ziewitz, 2016ZIEWITZ, M. Governing algorithms: Myth, mess, and methods. Science, Technology, & Human Values, v. 41, n. 1, p. 3-16, 2016.). Os grafos são uma nova mediação do banco de dados construído sobre as fontes. Eles colapsam uma série de listagens de livros em uma única imagem que deverá ser decriptada para verter-se em história. Ou seja, para que as redes sejam úteis ao trato histórico, será preciso controlar melhor a interpretação, indo e vindo entre a representação visual, a base de dados e as listagens publicadas nos jornais. Em sendo assim, as imagens não são representações literais de uma interpretação prévia dos catálogos, mas produzem novas questões sobre eles. A interpretação se modela ao passo que se produzem as imagens (Drucker, 2020DRUCKER, J. Visualization and interpretation: humanistic approaches to display. Cambridge, MA: The MIT Press, 2020.).

Para se tomar um exemplo, catálogos como o publicado pela Livraria Fauchon & Cia., em 3 de maio de 1892 (região I, em azul, Figura 3), e pela Livraria O Globo, em 18 de março de 1890 (região II, em vermelho, Figura 3), têm a maioria de seus pontos espalhados na borda da representação. Seus autores têm baixa ocorrência no corpus e, por conseguinte, estão muito pouco conectados ao resto da rede. De fato, o catálogo de Fauchon, voltado a engenheiros, oferece obras de geometria, álgebra, astronomia e análise matemática, o que não é muito usual nas outras listas. Na listagem da Livraria O Globo, com exceção de Comte, Spencer, Ganot e Flamarion, todos os outros autores não reaparecem nos outros catálogos. Além disso, Auguste Comte (ao centro dos grafos) e Adolphe Ganot (1804-1887) (indicado em amarelo) são os únicos autores comuns a esses dois catálogos.

A rede construída acaba funcionando como uma imagem do todo, capaz de apontar na série de catálogos algumas inovações ou “erros conjuntivos”, para usar ainda a terminologia de Ginzburg (2017)GINZBURG, C. Conjunctive anomalies: a reflection on werewolves. Revista de Estudios Sociales, n. 35, v. 60, p. 110-118, 2017.. Alguns de seus algoritmos, como o Force Atlas, constroem os grafos repelindo agrupamentos de autores muito distintos. Por isso, além de serem jogados nas bordas, eles explicitam a quase ausência de pontos compartilhados pelos dois catálogos citados: Comte, ao centro, misturado ao agrupamento de autores mais recorrentes; e Adolphe Ganot (Figura 3, parte A, em amarelo), entre as duas nuvens, na fronteira da representação. Outros algoritmos, como o Fruchterman Reingold, marcam menos essas diferenças entre catálogos, espalhando mais homogeneamente os autores em uma região circular, deixando pequenos espaços entre eles (Figura 3, parte C). Portanto, os algoritmos propõem narrativas visuais às redes construídas.

Dois outros catálogos (Joaquim Alves, 12 fev. 1890Bibliotheca Positivista. Recebeu e expõe à venda. A Livraria de Joaquim Alves Leite sucessor […]. A Federação, Porto Alegre, 7 fev. 1890, n. 32, p. 3., e Livraria do Globo, 24 ago. 1891Livros à venda na Livraria do Globo. […]. A Federação, Porto Alegre, 18 mar. 1890, n. 64, p. 3.) estão ainda mais distantes do centro da rede, no extremo da fronteira da representação. São justamente eles que não citam Comte (nuvens V e VI, Figura 3). A razão para a ocorrência está na construção da base de dados: procurou-se por citações a obras de Comte nos jornais, foram separadas aquelas que apareciam em catálogos, mantendo somente as que davam destaque ao positivismo ou a Comte, sobretudo se enunciavam o tema biblioteca positivista. Joaquim Alves chama a sua listagem de “Biblioteca positivista” (Figura 1) e a Livraria do Globo de “Obras positivistas”. Da perspectiva do historiador, a presença desses dois catálogos no corpus está devidamente explicada. Mas os algoritmos, ao colocá-los nas bordas do grafo, vão em outra direção.

Mais próximos ao centro da representação estão os catálogos da livraria João Martins, de 5 de dezembro de 1884, e o do leiloeiro Enéas Pontes, de 21 de junho de 1881 (nuvens III e IV, respectivamente, na Figura 3). Embora o catálogo do leiloeiro apresente um número maior de autores comuns à listagem original de Comte, e ele chame a sua coleção de “Biblioteca positivista”, o algoritmo indica que muitos deles não aparecem com frequência nas prateleiras dos livreiros. Nesse sentido, o conceito parece se despregar de sua gênese em Comte. Basta aos livreiros que comentadores, como Spencer, Miguel Lemos, ou, Teixeira Mendes, estejam nas listas para que elas possam ser vendidas como tais.

Ao organizar os dados procurando padrões, marcando diferenças, os algoritmos colocam em dúvida o recorte produzido quando da leitura dos jornais. Usam-se as categorias do período, preservando variações e divergências dentro do corpus, ou, recorta-se, construindo um corpus mais homogêneo? É preciso, então, estabelecer uma negociação mais fina entre a interpretação histórica e as pistas deixadas pelo algoritmo.

Em primeiro lugar, reconheçamos que, a depender da visualização e do algoritmo utilizados, a pergunta do recorte dificilmente seria colocada. Os ruídos e as invenções aparecem quando experimentamos várias visualizações, que são executadas com certa facilidade, porque, uma vez feita a transposição dos dados em tabelas legíveis para o software, ele refaz as imagens ao apertar dos botões. Quanto ao critério de entrada no corpus, vemos que a narrativa visual, sozinha, não resolve o problema. Ao contrário, pode excluir documentos relevantes. Assim, o historiador terá que tomar decisões, considerando os impactos dessas escolhas para a sua interpretação. De todo modo, tendo um software para carregar uma grande quantidade de informações, o projeto de estudar as permanências e as variações, dentro de um corpus, torna-se possível para volumes cada vez maiores de listas. O dilema do recorte decorrente da capacidade de trabalho do historiador é menor. Nesse sentido, ferramentas digitais, como banco de dados e redes, acabam por privilegiar uma temporalidade longa para o problema das práticas de colecionismo.

Pensar em redes: entre diacronias e sincronias

Muitos trabalhos recentes, que tratam do uso das ferramentas digitais na construção de bancos de dados históricos, têm se preocupado com a questão da agência desses novos instrumentos no fazer historiográfico (Brasil, Nascimento, 2020BRASIL, E.; NASCIMENTO, L. F. História digital: reflexões a partir da hemeroteca digital brasileira e do uso de CAQDAS na reelaboração da pesquisa histórica. Estudos Históricos, v. 33, n. 69, p. 196-219, 2020.; Rodrigues, 2020RODRIGUES, A. Humanidades digitais e diáspora africana: questões éticas e metodológicas na elaboração de uma base de dados sobre a população escravizada de Mariana (século XVIII). Estudos Históricos, v. 33, n. 69, p. 64-87, 2020.). Como vimos, uma abordagem digital permite lidar com grandes volumes de documentos, propondo a seriação e o cruzamento de dados, antes impossíveis. Mas, da mineração nos arquivos e grandes plataformas digitais à implementação de um banco de dados, as fontes seriadas acabam passando por um processo de uniformização, que enquadra eventos em categorias uniformes, condição quase incontornável da análise de grandes volumes de informação, materializados em tabelas e gráficos padronizados. A prática historiográfica induz continuidades, sobretudo se ela aspira a um argumento de longa duração (Braudel, 1965BRAUDEL, F. A longa duração. Revista de História, v. 30, n. 62, p. 261-294, 1965.).

Dentro da história da estatística, lugar por excelência da construção e manuseio das categorias, o fenômeno se materializa em torno de duas posições: a nominalista, que assume como certa a disruptura entre nome e objetos, perpetuando a uniformização e o encapsulamento de acontecimentos diferentes em uma mesma categoria, e a realista, que entende as classificações como entes previamente existentes à nomeação, que devem ser descobertos. Considerando o debate feito até aqui, a hipótese mais plausível a se trabalhar é a de que um objeto passa a existir ao mesmo tempo em que as categorias que o conformam são inventadas, um nominalismo dinâmico, para falar nos termos propostos por Hacking (1986)HACKING, I. Making up people. In: Heller, T.; Sosna, M.; Wellbery, D. (ed.). Reconstructing individualism: Autonomy, individuality, and the Self in Western thought. Stanford: Stanford University Press, 1986. p. 222-236.. No caso aqui estudado, a entrada ou não de um catálogo na série de fontes recolhidas, a sua classificação como uma biblioteca positivista, ou, em termos mais modestos, a constituição de um corpus de referência sobre o positivismo, se dá na mediação entre as enunciações e apropriações, à época, pelos livreiros, os recortes contemporâneos operados pelo historiador e os algoritmos, uma das características do que se tem chamado de história digital (Brasil, Nascimento, 2020RODRIGUES, A. Humanidades digitais e diáspora africana: questões éticas e metodológicas na elaboração de uma base de dados sobre a população escravizada de Mariana (século XVIII). Estudos Históricos, v. 33, n. 69, p. 64-87, 2020.).

Importante enfatizar que, em sendo um algoritmo uma receita estruturada para executar uma tarefa, a separação entre as ferramentas computacionais e o historiador não está completamente demarcada: o historiador escolhe qual ênfase dará às fontes, manipula imagens, muda cores e grafias para ressaltar um fenômeno. Portanto, a tarefa não seria recusar os novos instrumentos e suas sincronias subjacentes, mas estender a crítica cotidiana dos documentos às mediações criadas no trato dos instrumentos digitais. Mais que isso, o historiador pode fazer intervenções mais conscientes nas lógicas de funcionamento dos algoritmos, não reificando as construções metodológicas, mas ajustando-as a seu favor, e, na medida do possível, mantendo-as à vista.

No caso em tela, podemos manipular as condições de construção das redes de maneira a reproduzir melhor as dinâmicas que visualizamos nas análises da documentação até aqui. Como vimos, os livreiros dispõem os títulos seguindo algum critério mais ou menos calculado de proximidade. Não parece bastar estar na mesma lista, mas em determinadas regiões do catálogo. Na rede de autores citados, isto equivaleria a estipular que dois nós sejam conectados somente quando os dois autores que os representam estejam lado a lado no catálogo. Esse critério é mais restritivo que o primeiro, porque não basta estar na mesma lista, é preciso ser vizinho contíguo.

Assim sendo, vê-se que a morfologia do grafo é completamente mudada. Os catálogos agora não mais serão representados por nuvens, mas varais onde são dispostos os autores (Figura 4). Desaparecem as nuvens de pontos bem delineadas, nas fronteiras. A questão, nesse caso, é saber se há trechos parecidos entre os varais, ou seja, se os livreiros usam estratégias semelhantes na hora de dispor seus livros, lado a lado, aos leitores. Nessa nova estratégia, os catálogos com autores que não se repetem continuam sendo jogados nas bordas da representação. O algoritmo escolhido tende a expelir aquilo que não se repete, ou os grupos mais diferentes. Mas, agora, a distância espacial na representação procura emular a distância em que os livros aparecem nas listagens.

Figura 4
Rede dos autores citados nas bibliotecas positivistas, considerando a ordem enunciada pelos livreiros nos catálogos. Nesse tipo de representação, as linhas representam catálogos que se encontram quando oferecem um ou mais autores em comum. Na parte inferior, a região com mais repetições é reproduzida em destaque. Trechos dos catálogos que se repetem com mais frequência são reproduzidos por linhas mais espessas. A escala de cores, do vermelho ao azul, indica o período de ocorrência dos autores nos catálogos: em vermelho, aqueles que aparecem somente antes, e, em azul, depois de 1889; em creme e cinza, aqueles autores com presença similar nos dois períodos, como Comte, Miguel Lemos e Spencer.

As bibliotecas positivistas, antes e depois de 1889

Sabemos, das primeiras representações (Figura 3), que Victor Cousin e Comte ocorrem simultaneamente e com alguma regularidade nos catálogos. Ambos são figuras de referência para a filosofia francesa que circulava nas prateleiras dos livreiros no Brasil (Simon, 1965SIMON, W. M. The “two cultures” in nineteenth-century France: Victor Cousin and Auguste Comte. Journal of the History of Ideas, v. 26, n. 1, p. 45-58, 1965.; Canhada, 2020CANHADA, J. O discurso e a história: a filosofia no Brasil no século XIX. São Paulo: Edições Loyola, 2020.). Comte escreve sua evolução da humanidade em termos das ciências, defendendo certo empirismo, enquanto Cousin pensa essas mudanças em termos metafísicos, psicológicos, o que às vezes tende a ser visto na historiografia como os primeiros passos, no contexto francês, da oposição psicologia versus sociologia. Numa primeira leitura, esse fato pode sugerir um uso profano da categoria pelos livreiros brasileiros, que misturavam a Comte os seus críticos e seus contrários. Mas na nova representação (Figura 4), os livreiros mantêm alguma distância entre Cousin, Comte e seus comentadores. A mistura é controlada.

São três catálogos, publicados em 1884, pela Livraria do Povo e o livreiro João Martins, onde aparecem os dois autores. Em um deles, Comte é disposto no início da listagem cujo título é simplesmente “Livros”. Nos outros dois, Comte é apresentado em destaque, no cabeçalho, puxando outros autores de filosofia:

Livros baratíssimos sobre filosofia positiva, por Auguste Comte, e de outros célebres filósofos; obras importantíssimas sobre política; o jornal de viagens e aventuras de terra e mar; o povo ilustrado; novíssimos e soberbos romances, à venda na Livraria do Povo (Gazeta de Notícias, 14 jul. 1884Livraria Cruz Coutinho [...]. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 3 jul. 1893, n. 183, p. 4., n. 196, p. 4).

Livros baratíssimos. Importantes obras de engenharia e matemática, dos mais célebres autores, e sendo muitas delas em extremo raras; obras filosóficas de Auguste Comte e outros, lindos romances, esplendidas poesias, etc., etc. Tudo por preços baratíssimos. Na Livraria do Povo (Gazeta de Notícias, 6 out. 1884Livraria Cruz Coutinho [...]. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 3 jul. 1893, n. 183, p. 4., n. 280, p. 4).

No interior dos catálogos, as seções têm por título “Cours de Philosophie Positive par Auguste Comte” e “Obras filosóficas de Auguste Comte e outros filósofos”. Dentro delas, o livreiro oferece obras de Cousin sobre Locke e Kant, além de seus compêndios mais gerais, como os Fragments des philosophie moderne, Premiers essais de philosophie e L’histoire de la philosophie Ao lado de Cousin, os estudos sobre as Cruzadas, os jesuítas, e o papel das mulheres nas revoluções, do historiador anticlerical francês Jules Michelet (1798-1874). Em torno do dueto Cousin-Michelet, vemos o americano J. W. Draper (1811-1892) e seu livro Conflitos da ciência com a religião, uma crítica das relações ciência e religião, também eminentemente anticlerical (Numbers, 1985). Para além desses, o livro M. V. Cousin e seus adversários ou Exame das doutrinas filosóficas em conflito no século XIX do abade Roques, e A razão filosófica e a razão católica, do padre Ventura de Raulica.

Os livreiros fazem de Comte e o positivismo porta de entrada para vender “outros filósofos”, como enfatiza um dos títulos de seção. Aproveitam a ocasião para apresentar aos leitores um conjunto de obras que tratam das relações entre ciência e religião, tema caro aos positivistas, mas também aos interessados na crítica ao poderio exercido pela Igreja católica no Segundo Império. O positivismo se constituiu, em muitos momentos, em posição crítica, de revisão e até mesmo de suplantação do catolicismo, construindo uma nova maneira de pensar a religião (Carvalho, 2009CARVALHO, J. M. de. A formação das almas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.).

No conjunto de fontes estudadas, o fenômeno não parece ser muito amplo. O emaranhado de autores em torno de Victor Cousin foi construído majoritariamente a partir dos três catálogos que acabamos de apresentar, restritos a 1884. Assim, a organização dos dados de todas as listagens em um único grafo pode eclipsar a dinâmica temporal, dando a entender que o fenômeno é mais longo do que, de fato, ele é. Se olharmos, no entanto, a citação desses autores ao passo dos marcos temporais do período, somos levados a postergar o encerramento da questão. Enquanto as obras de Comte são citadas de maneira equilibrada antes e após 1889, Victor Cousin e Emille Littré tem citação restrita ao período anterior a 1889. Spencer, por sua vez, tem representação ligeiramente maior na República (Tabela 1).

Tabela 1
Citações a obras de alguns autores presentes no conjunto de catálogos estudados antes e depois da Proclamação da República

Além disso, a Igreja positivista entra nas disputas em torno do legado de Comte mudando sensivelmente o perfil dos autores ligados ao positivismo, depois de 1889. Ela edita um volumoso conjunto de livretos sobre o tema e vende, inclusive, obras de autores ligados à sua hermenêutica. Um dos catálogos do corpus estudado é, na verdade, uma listagem de obras positivistas, oferecidas em 21 de julho de 1898, por Teixeira Mendes à Biblioteca Pública do Estado do Maranhão. O intermediador da doação foi o capitão Gomes de Castro, um dos líderes do Grupo Maranhense de Ação Positivista. Dias antes, o jornal local anuncia que Gomes Castro dá aulas sobre o positivismo e vende obras positivistas.6 6 Conforme nota do A Pacotilha, 18 jul. 1898, p. 3. Não à toa, Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes aparecem nas listagens, sobretudo após 1889.

Para visualizar o problema no conjunto dos 22 catálogos, uma escala de cores (passando do vermelho, ao cinza, e, depois, ao azul) foi introduzida para indicar, respectivamente, a porcentagem de obras citadas antes e após a Proclamação da República (Figura 4). O tempo no grafo se organiza de sudeste (autores com maiores citações antes de 1889, em vermelho) a noroeste (autores posteriores a 1889, em azul). Em uma posição intermediária, vemos Auguste Comte e Spencer, com toda a sua obra, e, depois, Miguel Lemos. No banco de dados, são seus Pequenos ensaios positivistas, de 1877, que mais são citados. Emile Littré, com o seu A ideia de Deus segundo a filosofia positiva, e, Luiz Pereira Barreto, com o seu Positivismo e teologia, de 1880, despontam como autores dessa primeira fase. Por fim, Stuart Mill e Draper, entre esses autores mais oferecidos pelos livreiros, e o grupo da filosofia metafísica, representado por Cousin. Essas seriam as linhas gerais do que se chamou de biblioteca positivista, na dinâmica temporal do período, segundo os interesses dos livreiros. Considerando o retrato de fins do século XIX, descrito por Ângela Alonso, de uma oposição entre duas filosofias da história representadas por Spencer e Comte, o que os livreiros ofereciam não estava muito longe daquilo que os leitores procuravam (Alonso, 1995ALONSO, A. O positivismo de Luís Pereira Barreto e o pensamento brasileiro no final do século XIX. Conferências do Instituto de Estudos Avançados da USP, p. 14, 28 abr. 1995.).

Do tempo na representação visual

A variação do tempo nas representações visuais não é um dado de natureza e precisa ser problematizada. Ela depende evidentemente do desenvolvimento, do acesso e da popularização dessas ferramentas entre historiadores, como também dos problemas colocados pela área. Na historiografia, a discussão das temporalidades e de sua presença nas narrativas visuais, como tabelas, cartografias e gráficos, parece ter sido uma das preocupações de uma história dita “quantitativa”, que nasce entre os anos 1950 e 1970, dentro da Escola dos Annales (Burke, 1991BURKE, P. A Escola dos Annales (1929-1989): a Revolução Francesa da historiografia. São Paulo: Editora Unesp, 1991.). Defendendo temporalidades longas como marca identitária do trabalho do historiador, Braudel se ressente no seu famoso ensaio “A longa duração”, de 1958, do uso de gravuras que não possibilitem uma comparação temporal.

Divirto-me, ao ver num mapa a repartição das residências dos empregados de uma grande empresa. Mas se não tiver um mapa anterior da repartição, se a distância cronológica entre os dados não for suficiente para permitir inscrever tudo num verdadeiro movimento, onde está o problema, sem o qual um inquérito é esforço perdido? (Braudel, 1965BRAUDEL, F. A longa duração. Revista de História, v. 30, n. 62, p. 261-294, 1965., p. 276).

Não é à toa que, no mesmo ano, Febvre e Martin lançam mão de tabelas comparativas e de cartografias para demonstrar que, no início do século XVI, se deu o aparecimento do livro impresso (Febvre, Martin, 2017FEBVRE, L.; MARTIN, H.-J. L’Apparition du livre. Paris: Albin Michel, 1958. [Edição bras.: O aparecimento do livro. São Paulo: Edusp, 2017.], p. 272-289, 364): ao passo que os anos avançam nas colunas da tabela, o número de livros publicados se multiplica; conforme percorremos o território europeu, diferentes marcações gráficas indicam a difusão das tecnologias de impressão (Figura 5).

Figura 5
Tabela e cartografia utilizada por Febvre e Martin para demonstrar o aparecimento do livro em fins do século XV na Europa, em versão original do livro de Febvre e Martin, de 1958.

São modos diferentes de pensar o tempo na representação visual. Nas tabelas, a variação do tempo se dá conforme os olhos percorrem a linearidade das colunas, linguagem comum presente nas retas numeradas dos gráficos em forma de barras ou de linhas, produzidos atualmente por softwares de edição de planilhas, encontrados na maioria dos computadores pessoais.

No caso das cartografias, a passagem do tempo é marcada por três camadas de inscrições gráficas (pontos, círculos cheios, e círculos vazios), cada uma associada a uma década. Mas Febvre e Martin produzem duas cartografias. Uma primeira, para descrever o período até 1480, marcando os últimos dez anos, onde se vê o aparecimento de muitas imprensas no norte da Itália, e uma segunda, indicando a difusão da tecnologia em toda a Europa. A narrativa visual, feita em duas imagens, estabelece as temporalidades do fenômeno: do interior da atual Alemanha, para o norte da Itália, e depois para toda a Europa.

Figura 6
Grafos de cocitação produzidos nos trabalhos de Henri Small, em 1973, e Yves Gingras em 2010.

Não é diferente no caso dos grafos. No trabalho seminal de Henri Small sobre redes de cocitação, de 1976, o tempo é obliterado na representação visual (Figura 6, à esquerda). No caso do estudo de Gingras sobre as cartas de Mersenne, Oldenburg e Darwin, a dinâmica temporal é marcada na produção serial de tabelas e nas imagens das redes. Os recortes temporais são escolhidos a favor de uma hipótese historiográfica e as cores são utilizadas para discriminar o tipo de relação que Darwin havia estabelecido com os personagens presentes em sua correspondência. No argumento de Gingras, de 1821 a 1831, período anterior à sua viagem no Beagle, prevalece na correspondência darwiniana a sua família (em vermelho, na representação ao centro, Figura 6). De 1859 a 1867, período posterior à publicação de A origem das espécies, a correspondência é tomada por uma rede de naturalistas (em azul, na representação à direita, Figura 6), a quem Darwin irá recorrer para difundir sua obra mais importante.

Assim, na ausência de uma reta orientada, de uma seta do tempo, a narrativa visual demanda não raro mais do que uma representação dos eventos para que um processo de maior duração seja descrito. Portanto, é preciso produzir a variação do tempo na imagem, seja usando uma reta orientada ou uma escala de marcações gráficas, de objetos ou cores, seja construindo uma seriação de imagens, como em um filme. E esta não é uma questão nova, como vemos na discussão em Braudel, Febvre e Martin. Embora ela se acentue com a disponibilidade, cada vez maior, de ferramentas de produção de esquemas gráficos para analisar sincronicamente grandes volumes de dados. Aqui, recusamos o uso da seriação para indicar a variação do tempo em uma mesma representação visual. A dinâmica temporal é representada na escala de cores, do azul ao vermelho.

Considerações finais: o que podem os algoritmos?

Se, por um lado, os algoritmos nos levam a defender a existência de um núcleo de autores de referência para o positivismo nas últimas décadas do XIX, por outro lado não nos deixam ignorar o caráter instável e descontínuo da própria categoria biblioteca positivista. Os algoritmos são certamente ferramentas úteis para identificar autores e grupos mais isolados, ou, conjuntos de autores mais centrais no corpus. Por outro lado, contribuem para certas instabilidades na leitura das fontes, induzindo leituras distintas em relação à condição de isolamento que alguns autores possuem em relação aos catálogos, ou, conjuntos de autores, em relação ao corpus completo.

Essas entonações presentes nos grafos nos fazem lembrar também que essas redes são produto de uma série de decisões procedimentais tanto dos livreiros, que ajudam a conformar o tema do positivismo e o nome de Comte a uma rede ampla de títulos e temas, apontando para aspectos bem mundanos, economicamente interessados, da emergência de um discurso, quanto do pesquisador e do programador, que condicionam a representação e as interpretações, ao fazer recortes no corpus, ao introduzir cores nas imagens, ao escolher algoritmos. Assim, a possibilidade de lidar com uma grande massa de dados, trazida pelo tratamento digital das fontes, não ameniza a tarefa do historiador de interpretar as fontes, conforme os enquadramentos embutidos na representação, de maneira consciente ou inconsciente.

Agradecimentos

O autor agradece aos pareceristas pelas sugestões que muito contribuíram para a versão final desse texto, a Ivan da Costa Marques e Luis Ferla, pelas sugestões bibliográficas sobre agenciamento de algoritmos, e a Fernando Atique e seus alunos e alunas da disciplina “Conexões, redes e fluxos e suas escritas historiográficas” do PPGH da Unifesp, onde alguns dos argumentos deste artigo foram postos à prova pela primeira vez.

Catálogos analisados

  • Na livraria do editor Serafim José Alves: Biblioteca Positivista [...]. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 26 fev. 1880, n. 56, p. 6.
  • Pequena e Linda Livraria […] Enéas Pontes encarregado por uma pessoa que se retira para Europa em comissão especial faz leilão. Catálogo. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 21 jun. 1881, n. 171, p. 4.
  • Livros Baratíssimos. […] Tudo se encontra no Treme Terra, Livraria do Povo. […]. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 9 abr.1883, n. 99, p. 4.
  • Livros Baratíssimos. [...] à venda na Livraria do Povo […]. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 14 jul. 1884, n. 196, p. 4.
  • Livros Baratíssimos. […] Na Livraria do Povo. […]. Gazeta de Notícias, 6 out. 1884, n. 280, p. 4.
  • Livros […] à venda na livraria do João Martins Ribeiro. Jornal do Commercio, 5 dez. 1884, n. 338, p. 5.
  • Nesta typographia se diz quem vende, ainda novas, e a preços commodos as seguintes obras […]. Pacotilha - Jornal da Tarde, Maranhão, 14 mar. 1885, n. 63, p. 1.
  • Livros [...] na rua da Carioca, n. 8. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 13 nov. 1887, n. 315, p. 5.
  • H. Spencer [...] Vende-se na Livraria Globo. A Federação, Porto Alegre, 31 ago. 1889, p.3.
  • Livros Baratíssimos. Exclusivamente à venda só na Livraria do Povo. […]. Gazeta de Notícias, 9 set. 1889, n. 252, p. 4.
  • Bibliotheca Positivista. Recebeu e expõe à venda. A Livraria de Joaquim Alves Leite sucessor […]. A Federação, Porto Alegre, 7 fev. 1890, n. 32, p. 3.
  • Bibliotheca Positivista. Obras de Spencer. Recebeu e expõe à venda. A Livraria de Joaquim Alves Leite sucessor […]. A Federação, Porto Alegre, 12 fev. 1890, n. 36, p. 3.
  • Livros à venda na Livraria do Globo. […]. A Federação, Porto Alegre, 18 mar. 1890, n. 64, p. 3.
  • Obras de Sciencias, Educação e Ensino. Recebeu e expõe à venda. A Livraria de Joaquim Alves Leite sucessor […]. A Federação, Porto Alegre, 27 maio 1890, n. 119, p. 3.
  • Grande liquidação de livros [...]. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 24 ago. 1891, n. 235, p. 8.
  • Acha-se à venda na Livraria Encyclopedica - Fauchon & C. [...]. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 3 maio 1892, n. 123, p. 4.
  • Livraria Cruz Coutinho [...]. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 3 jul. 1893, n. 183, p. 4.
  • Livraria Cruz Coutinho [...]. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 27 nov. 1894, n. 330, p. 6.
  • A começar de amanhã o Capitão Gomes [...]. A Pacotilha, Maranhão, 18 jul. 1898, n. 169, p. 3.
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  • 1
    Bibliotheca Positivista. Recebeu e expõe à venda. A Livraria de Joaquim Alves Leite sucessor […]. A Federação, Porto Alegre, 7 fev. 1890, n. 32, p.3. Bibliotheca Positivista. Obras de Spencer. Recebeu e expõe à venda. A Livraria de Joaquim Alves Leite sucessor […]. A Federação, Porto Alegre, 12 fev. 1890, n.36, p. 3. Ver também as edições do jornal A Federação, de 10 abr. 1890, 11 abr. 1890, 15 abr. 1890, 17 abr. 1890 e 18 abr. 1890.
  • 2
    Conforme o suplemento do catálogo de livros de “direito, legislação, política ...” de B. L. Garnier, publicado no Diário do Rio de Janeiro, 19 jun. 1855.
  • 3
    Pesquisa feita na plataforma da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional (http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/), a partir dos nomes das obras do autor. A primeira menção a livros de Comte se deu em um catálogo de livros de direito e legislação política, no Diário do Rio de Janeiro, em 19 de junho de 1855, onde Garnier oferece o Système de politique positive de Auguste Comte.
  • 4
    É importante observar que Comte não está presente em todos os catálogos. Não é, portanto, ponto comum a todas as nuvens que formam a rede de cocitação.
  • 5
    “Welcome to this advanced tutorial. It will teach you the fine art of network layout in Gephi: how to use algorithms that place the nodes inside the graphic space.” Gephi Tutorial Layouts. Disponível em: https://gephi.org/tutorials/gephi-tutorial-layouts.pdf. Acesso em: 14 fev. 2022.
  • 6
    Conforme nota do A Pacotilha, 18 jul. 1898, p. 3.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    16 Mar 2022
  • Aceito
    02 Jun 2022
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