Acessibilidade / Reportar erro

“Nós, que presidimos a magistratura”: discursos e ações de ouvidores e desembargadores no processo de Independência em Pernambuco (1817-1822)

“We, who preside over the judiciary”: speeches and actions of magistrates in the Independence process in Pernambuco (1817-1822)

Resumo:

A magistratura constituiu um elemento importante na estrutura do império português, sobretudo do ponto de vista político porque, além dos cargos na estrutura judiciária, magistrados ocuparam vários postos em conselhos e outras instituições administrativas. Após a instalação da corte joanina no Rio de Janeiro, o número de postos de magistratura na América portuguesa cresceu exponencialmente. Considerando que os magistrados foram atores importantes nos processos que caracterizaram a crise do Antigo Regime na América ibérica e durante o processo de independência do Brasil, o objetivo deste artigo é analisar algumas das práticas e discursos postos em debate por ouvidores e desembargadores que passaram por Pernambuco entre 1817 e 1822. Discutiremos o papel e a importância atribuída aos magistrados nos eventos daquele período e como projetaram a importância da função para a estrutura política constitucional que se abria.

Palavras-chave:
Magistrados; Pernambuco (1817-1822); Independência do Brasil

Abstract:

The judiciary constituted an important element in the structure of the Portuguese empire, especially from a political point of view, because in addition to positions in the judicial structure, magistrates occupied various positions in councils and other administrative institutions. After the installation of the Joanine court in Rio de Janeiro, the number of magistracy posts in Portuguese America grew exponentially. Considering that magistrates were important actors in the processes that characterized the Old Regime crisis in Iberian America and during the independence process in Brazil, the objective of this article is to analyze some of the practices and speeches put up for debate by ombudsmen and judges who passed through Pernambuco between 1817 and 1822. We will discuss the role and importance attributed to magistrates in the events of that period and how they projected the importance of the function for the constitutional political structure that was opening.

Keywords:
Magistrates; Pernambuco (1817-1822); Independence of Brazil

É significativo o avanço das discussões sobre os processos de independência nas Américas, especialmente no Brasil. Além de novas leituras do ponto de vista político e social e a inclusão de novas dimensões espaciais e temporais, outros atores foram trazidos ao debate, como escravizados, mulheres e militares - só para citar alguns exemplos -, responsáveis por alargar a compreensão sobre os movimentos de independência e seus participantes (Neves, 2020NEVES, Lúcia Bastos. Os esquecidos no processo de Independência: uma história a se fazer. Revista Almanack, n. 25, p. 1-44, 2020., p. 1-44; Oliveira, Pimenta, 2022OLIVEIRA, Cecília Salles; PIMENTA, João Paulo(org.). Dicionário da Independência do Brasil: história, memória e historiografia. São Paulo: Edusp; BBM, 2022.). No entanto, um dos elementos ainda pouco trabalhados pela historiografia brasileira é a atuação e o posicionamento dos magistrados nos eventos decorrentes da crise do Antigo Regime na América portuguesa, embora estivessem presentes em todo o processo, posicionando-se e interpretando os acontecimentos, mediando negociações, sugerindo medidas e tomando decisões.

Em Pernambuco, entre o início da Revolução de 1817 e a atuação da primeira Junta Governativa da província, eleita em outubro de 1821, presidida por Gervásio Pires Ferreira, vários magistrados passaram pela localidade, exercendo as funções de ouvidores das comarcas do Recife, Olinda e Sertão, juízes de fora das vilas do Recife e Goiana, e após fevereiro de 1821, desembargadores da recém-criada Relação de Pernambuco. Além do exercício das funções judiciárias, como o julgamento de causas processuais nos âmbitos civil e criminal, esses magistrados construíram alianças com as elites locais, elemento que já vem sendo debatido pela historiografia (Lara, 2006LARA, Silvia. Senhores da régia jurisdição: o particular e o público na vila de S. Salvador dos Campos dos Goytacazes na segunda metade do século XVIII. In: LARA, Silvia; MENDONÇA, Joseli Nunes(org.). Direitos e justiças no Brasil: ensaios de história social. Campinas: Editora da Unicamp, 2006. p. 59-99., p. 59-99; Schwartz, 2011SCHWARTZ, Stuart. Burocracia e sociedade no Brasil colonial: o Tribunal Superior da Bahia e seus desembargadores, 1609-1751. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.; Mello, 2015MELLO, Isabele de Matos. Magistrados a serviço do rei: os ouvidores e a administração da justiça na comarca do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2015.; Atallah, 2016ATALLAH, Claudia Azeredo. Da justiça em nome d’El Rey: justiça, ouvidores e Inconfidência no centro-sul da América portuguesa. Rio de Janeiro: Eduerj, 2016.; Valim, 2018VALIM, Patrícia. O Tribunal da Relação da Bahia no final do século XVIII: politização da justiça e cultura jurídica na Conjuração Baiana de 1798. Tempo, Niterói, v. 24, n. 1, p. 117-139, 2018., p. 117-139). O objetivo deste texto é analisar a atuação desses magistrados que fixaram residência em Pernambuco e assumiram posições em eventos como a Revolução de 1817 e o início do debate constitucional.

Os ouvidores e desembargadores tomaram partido nos embates travados pelos pernambucanos contra as autoridades da Coroa, mas também souberam dialogar com elas, mantendo a negociação como prática. Ambos estavam munidos da autoridade que lhes cabia como representantes do monarca, no exercício de uma função importante na relação entre os súditos e o rei: a administração da justiça. Por causa disso, tiveram sua importância reconhecida para a manutenção da ordem na conjuntura de mudanças que se iniciaram após a Revolução do Porto (1820). Esses magistrados apresentaram leituras e interpretações sobre os eventos vivenciados, em especial sobre as apropriações do debate constitucional pelos pernambucanos, colocando-se como intérpretes e mediadores dessas discussões.

Pernambuco no governo joanino: revolução e magistratura letrada

A magistratura na América portuguesa foi assumindo cada vez mais importância no âmbito político a partir da instalação da família real no Rio de Janeiro (1808). O príncipe dom João instituiu na cidade uma parte expressiva do aparato jurídico do império português existente em Lisboa. Os magistrados atuantes no Desembargo do Paço, Casa de Suplicação e a Mesa de Consciência e Ordens formavam, para além da burocracia institucional, um grupo de colaboradores e conselheiros dos monarcas portugueses (Cardim, 2005CARDIM, Pedro. “Administração” e “governo”: uma reflexão sobre o vocabulário do Antigo Regime. In: BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia Amaral (org.). Modos de governar: ideias e práticas políticas no império português, sécs. XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2005. p. 45-68., p. 45-68; Hespanha, 2016HESPANHA, António Manuel. Fazer um império com palavras. In: BARRETO, Ângela Xavier; SILVA, Cristina Nogueira(org.). O governo dos outros: poder e diferença no Império português. Lisboa: ICS - Imprensa de Ciências Sociais, 2016. p. 67-100., p. 67-100; Bicalho; Monteiro, 2018BICALHO, Maria Fernanda; MONTEIRO, Nuno Gonçalo. As instituições civis da monarquia portuguesa na Idade Moderna. In: BARRETO, Ângela Xavier; PALOMO, Federico; STUMPF, Roberta. Monarquias ibéricas em perspectiva comparada (séculos XVI-XVIII): dinâmicas imperiais e circulação de modelos político-administrativos. Lisboa: ICS - Imprensa de Ciências Sociais, 2018. p. 209-236., p. 209-236). O príncipe recorria a homens ligados a essas instituições, em busca de conselhos, na intenção de buscar a estabilidade de seu governo (Neves, 2011NEVES, Lúcia Bastos. O governo de d. João: tensões entre ideias liberais e as práticas do Antigo Regime. In: CARVALHO, José Murilo; CAMPOS, Adriana Pereira (org.). Perspectivas da cidadania no Brasil Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. p. 203-226., p. 203-226). A corte joanina desenvolveu uma certa ciência da necessidade de aumentar o número de juízes de fora nas vilas e criar mais comarcas nas capitanias, estabelecendo ouvidores. Para Maria Odila Dias, esses magistrados foram colocados para coordenar os interesses locais com os do Rio de Janeiro (Dias, 1972DIAS, Maria Odila Leite Silva. A interiorização da metrópole. In: MOTA, Carlos Guilherme (org.). 1822: Dimensões. São Paulo: Perspectiva, 1972. p. 160-184., p. 183). Segundo Arno Wehling, ao aumentar o quadro da magistratura, a Coroa buscava “ampliar a presença do Estado no Brasil”. Essas ações foram importantes para eliminar, ou ao menos diminuir “a parcialidade e precariedade da administração da justiça” (Wehling, 2019ZERMEÑO PADILHA, Guillermo. História, experiência e modernidade na América ibérica, 1750-1850. Almanack Braziliense, São Paulo, n. 7, p. 5-22, 2008., p. 221).

Essa ampliação do número de magistrados favoreceu os interesses de diversos grupos locais, pois atendia à demanda daqueles que ansiavam por autoridades para mediar conflitos e colocou membros de importantes famílias das vilas e termos em cargos. Já era evidente, desde o século XVIII, o maior número de nascidos na América portuguesa em cargos de magistratura. No governo joanino, mais homens alcançaram esses postos, mas também em funções como escrivães, juízes ordinários e outros cargos menores que, embora não os nobilitassem, de certa forma, atendiam ao interesse de muitos grupos, pois aumentavam sua importância e reforçavam a legitimidade e poder que constituíram nas diversas localidades.

A Capitania de Pernambuco foi um dos territórios que mais recebeu atenção da corte joanina no âmbito do aumento do número de magistrados. Desde a última década do século XVIII, as câmaras das vilas de Recife, Olinda, Igarassu e Sirinhaém solicitaram a criação de um Tribunal da Relação no território. Os primeiros pedidos iniciaram ainda no século XVII, mas foram intensificados a partir de 1793. Em 1802, o Conselho Ultramarino negou a instalação da instituição, argumentando, entre outros motivos, a proximidade da Capitania com a Relação da Bahia, mas apontou a necessidade de colocar juízes de fora nas vilas pernambucanas para melhorar a administração da justiça (Silva, 2021SILVA, Jeffrey Aislan de Souza.O Tribunal da Relação de Pernambuco: conflitos, governança e atuação política dos magistrados (1798-1822). Tese (Doutorado em História), Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2021., p. 37-79).

A chegada de Caetano Pinto de Miranda Montenegro, nomeado para administrar Pernambuco, foi diretamente responsável pelo aumento da estrutura administrativa no governo joanino. Durante sua gestão (1804-1817), o governador solicitou a divisão da comarca de Pernambuco duas vezes. Suas solicitações foram atendidas e ocasionaram o desmembramento da circunscrição, o que possibilitou a criação da comarca do Sertão (1810) e das comarcas de Recife e Olinda (1815) (Silva, 2021SILVA, Jeffrey Aislan de Souza.O Tribunal da Relação de Pernambuco: conflitos, governança e atuação política dos magistrados (1798-1822). Tese (Doutorado em História), Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2021., p. 80-113).

Essas ações foram tomadas mediante o interesse expressado tanto pelo governador quanto pela corte em melhorar e promover celeridade na administração da justiça. Em pouco tempo, o número de magistrados letrados atuantes no território que compreendia a comarca de Pernambuco passou de dois - um ouvidor para administrar a comarca e um juiz de fora para as vilas de Recife e Olinda - para cinco, sendo um ouvidor situado em cada comarca (Sertão, Recife e Olinda), um juiz de fora na vila de Goiana, a partir de 1808, e um juiz de fora na vila do Recife (Silva, 2021SILVA, Jeffrey Aislan de Souza.O Tribunal da Relação de Pernambuco: conflitos, governança e atuação política dos magistrados (1798-1822). Tese (Doutorado em História), Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2021., p. 79-113).

Ao fixarem residência em Pernambuco, esses magistrados foram testemunhas das insatisfações anunciadas pelos pernambucanos diante das exigências políticas e econômicas impostas pela corte joanina, responsáveis pelo estopim da Revolução de 1817. Iniciado em 6 de março, o movimento, embora tenha alcançado significativo apoio popular, não durou muito. Contudo, o impacto promovido pela ação dos pernambucanos foi expressivo.1 1 Embora o movimento tenha sido de curta duração, as ideias e o caráter de radicalidade dos pernambucanos permearam o século XIX, inspirando outros movimentos. Sobre o receio de ações semelhantes à Revolução de 1817 em Pernambuco, ver: Silva (2021, p. 188-236). Sobre os movimentos e revoltas no século XIX com pautas semelhantes a 1817, ver: Dantas (2011). Sobre presença da Revolução no discurso político de autoridades do império, ver: Andrade (2021) e Villalta (2017). Por meio da união de clérigos, comerciantes importantes, magistrados, militares e diversas outras autoridades locais, levantaram-se contra a Coroa e chegaram a construir um projeto de organização política pautada em valores constitucionais (Villalta, 2003VILLALTA, Luiz Carlos. Pernambuco, 1817 - encruzilhada de desencontros do Império luso-brasileiro: notas sobre as ideias de pátria, país e nação. Revista USP, São Paulo, n. 58, p. 58-91, jun.-ago. 2003., p. 58-91; Continentino, 2017CONTINENTINO, Marcelo Casseb. Tempos de Constituição: perspectivas e paradoxos da Lei Orgânica da Revolução Republicana de 1817. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, a. 178(475), p. 15-42, set.-dez. 2017., p. 15-42).

Durante a Revolução, o ouvidor da comarca de Olinda desde 1815, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado, nascido na capitania de São Paulo, foi acusado de ser um dos líderes da insurgência, de colaborar na elaboração do projeto de Constituição, de ser autor de proclamações e de atuar como conselheiro e membro de instituições criadas pelos revolucionários.2 2 Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. Documentos Históricos, Revolução de 1817, v. CVI, p. 134. Os outros dois magistrados atuantes em Pernambuco, Francisco Affonso Ferreira, ouvidor da comarca do Recife, e José da Cruz Ferreira, ouvidor da comarca do Sertão, também foram implicados no movimento. Affonso Ferreira, filho de membros da açucarocracia pernambucana, foi acusado pelo intendente de polícia do Rio de Janeiro, Paulo Fernandes Viana, de tomar serviço no governo revolucionário e não defender a Coroa em nenhum momento, ainda que depois, pela força, cedesse à pressão.3 3 Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro. Documentos Históricos, Revolução de 1817, v. CII, p. 25. O governador Luís do Rego Barreto, que assumiu a administração de Pernambuco em junho de 1817, após o fim do movimento, em 14 de março de 1818, afirmou que o ouvidor José da Cruz Ferreira também atuou ao lado dos revolucionários. Fez requerimento para ser empregado no “serviço da pátria” e teria aceitado ser membro do Colégio Supremo de Justiça e assessor do juiz da polícia, além de ter escrito “quintilhas para se cantar em honra da pátria”.4 4 Transcrição de Carta de Luís do Rego Barreto. Recife, 14 mar. 1818. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 299, p. 269, abr.-jun. 1973.

Em 1818, já estavam localizados em Pernambuco os novos ouvidores das comarcas de Recife e Olinda, Antero José da Maia e Silva e Venâncio Bernardino de Uchôa, respectivamente. Maia e Uchôa eram portugueses e chegavam para substituir magistrados que, a julgar pelas acusações de participação na Revolução de 1817, construíram fortes relações com os pernambucanos. É provável que, para a administração joanina, decidir lotar magistrados portugueses em Pernambuco dificultaria o estreitamento dos laços entre os ouvidores e as elites locais e impediria, ou ao menos diminuiria a força das relações construídas entre eles.

Contudo, o governador Luís do Rego Barreto, durante sua administração, encaminhou diversos ofícios apontando críticas sobre a conduta dos novos ouvidores, especialmente após a chegada das notícias sobre o movimento constitucional português em Pernambuco. Em 22 de dezembro de 1820, Luís do Rego afirmou que o ouvidor Antero José da Maia era apoiador e defensor daqueles que desejavam “uma mudança à lisbonense”, ou seja, dos favoráveis às ideias constitucionais. O ouvidor da comarca de Olinda incitava as milícias contra sua autoridade, e ambos, além de espalharem “papéis públicos” que o caluniaram, atuavam para fomentar desobediência e persuadir as pessoas contra os princípios e a “tranquilidade” que ele tentava impor na província. Pedia a retirada imediata dos dois magistrados de Pernambuco.5 5 Transcrição de Cartas de Luís do Rego Barreto endereçadas a Tomás Antônio de Villanova Portugal. Recife, 22 dez. 1820. Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, Recife, v. LII, p. 179, 1979; Recife, 10 jan. 1821. Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, Recife, v. LII, p. 183, 1979.

Ao longo de 1821, após a adesão do movimento constitucional português pelo rei dom João VI, a relação entre os ouvidores e o governador Luís do Rego foi caracterizada por aproximações e distanciamentos. A partir de fevereiro de 1821, o governador argumentou que o ouvidor o ajudou com suas “ideias liberais” na condução da província, elucidando dúvidas e atuando de forma “justa”, prestando-lhe serviço de ministro e amigo.6 6 Arquivo Histórico Ultramarino. Avulsos de Pernambuco. 2 abr. 1821, caixa 282, documento 19220, f. 02-03. Em 12 de abril de 1821, Luís do Rego ficou ciente de uma importante decisão tomada pelo governo joanino, que, em tese, teria grande impacto para a estrutura administrativa de Pernambuco, a criação de um Tribunal da Relação na vila do Recife, por decisão expedida pelo rei em 6 de fevereiro de 1821 (Silva, 2021SILVA, Jeffrey Aislan de Souza.O Tribunal da Relação de Pernambuco: conflitos, governança e atuação política dos magistrados (1798-1822). Tese (Doutorado em História), Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2021., p. 188-199).

Após a chegada da notícia da instalação do tribunal, o governador solicitou que Antero José da Maia permanecesse em Pernambuco, pois sua atuação estava causando “grande bem”, se vendo inclusive disposto a esquecer os “mal-entendidos” ocorridos no passado.7 7 Arquivo Público de Pernambuco. Fundo Correspondência Para a Corte. 12 abr. 1821, códice 25. p. 159-160. No entanto, a boa relação entre eles não durou muito. Em junho de 1821, o governador argumentou que o ouvidor tinha a intenção de comprometê-lo, pois escondia informações importantes que deveriam ser passadas a ele, o incitava a utilizar a força além do necessário contra seus adversários políticos, era insolente com as suas deliberações, atuava com desrespeito e “incivilidade”, além de espalhar propostas escritas para desacreditá-lo perante os pernambucanos.8 8 Arquivo Histórico Ultramarino. Avulsos de Pernambuco. 25 de jun. 1821, caixa 282, documento 19251, f. 02-04.

Antero José da Maia e Venâncio Bernardino de Uchôa ainda atuaram no diálogo entre o governo de Luís do Rego Barreto e a Junta de Goiana, formada em 29 de agosto de 1821, em oposição ao governador. Os Levantados de Goiana, liderados por Francisco de Paula Gomes dos Santos, exigiam a saída imediata do governador. A Junta tentou atrair o ouvidor Antero José da Maia para seu lado, enquanto Luís do Rego convocava o ouvidor da comarca de Olinda, Uchôa, que tinha jurisdição sobre a vila de Goiana, para dialogar com Paula Gomes e seus aliados. Uchôa estaria “encarregado de propor medidas de pacificação” (Silva, 2021SILVA, Jeffrey Aislan de Souza.O Tribunal da Relação de Pernambuco: conflitos, governança e atuação política dos magistrados (1798-1822). Tese (Doutorado em História), Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2021., p. 236-242).

O clima de instabilidade só diminuiu após a chegada de decretos expedidos pelo rei e pelas Cortes de Lisboa que exigiam a demissão imediata do governador Luís do Rego Barreto. No mesmo dia de sua partida, 26 de outubro de 1821, foram dados os encaminhamentos para a formação da primeira Junta Constitucional de Pernambuco. A Junta de Governo eleita foi composta pelo comerciante Gervásio Pires Ferreira, um participante de 1817, como presidente, o cônego Manuel Inácio de Carvalho, o tenente-coronel Antônio José Vitorino Borges da Fonseca, além de Felipe Neri Ferreira, Joaquim José Miranda e o comerciante e traficante de escravizados Bento José da Costa (Silva, 2021SILVA, Jeffrey Aislan de Souza.O Tribunal da Relação de Pernambuco: conflitos, governança e atuação política dos magistrados (1798-1822). Tese (Doutorado em História), Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2021., p. 243).

Como argumentamos, os magistrados se situaram como uma influência importante durante o governo joanino. Cecília Salles Oliveira nos mostra que o Intendente de Polícia da corte, Paulo Fernandes Viana, que também era desembargador do Paço, aliado a comerciantes de grosso trato, traficantes de africanos e fazendeiros do Rio de Janeiro, utilizou-se do cargo para favorecer aliados e aumentar seu patrimônio. Sua saída da função, em 1821, foi uma reivindicação de outros grupos econômicos da província, que almejavam mudança de práticas e mais participação política e econômica (Oliveira, 2020OLIVEIRA, Cecília Salles. Astúcia liberal: relações de mercado e projetos políticos no Rio de Janeiro, 1820-1824. São Paulo: USP-Capes, Intermeios, 2020., p. 95-101).

Ao analisar as disputas políticas no processo de independência no Rio de Janeiro, Lúcia Bastos Neves nos mostra que ambos os grupos que rivalizavam em projetos e ações políticas em torno do príncipe dom Pedro eram compostos por magistrados de carreira, como José Clemente Pereira, juiz de fora da câmara do Rio de Janeiro, e os desembargadores Bernardo José da Gama e José da Silva Lisboa, entre outros (Neves, 2003NEVES, Lúcia Bastos. Corcundas e constitucionais: a cultura política da Independência. Rio de Janeiro: Revan; Faperj, 2003., p. 285-353). Nas demais províncias, onde o processo de formação das Juntas Governativas também foi bastante acirrado, os magistrados também tiveram uma significativa atuação. No Ceará, por exemplo, Adriano José Leal foi juiz de fora da vila de Fortaleza, ouvidor interino da comarca do Ceará e fez parte da Junta de Governo Provisório. José Leal foi um dos participantes do Levante Constitucionalista, ocorrido em novembro de 1821, contra o governador Francisco Alberto Rubim, resultando na instalação da Junta Administrativa da província. Tornou-se vice-presidente da Junta, em 3 de novembro de 1821 (Araújo, 2018ARAÚJO, Reginaldo Alves. A parte do partido: relações de poder e política na formação do Estado Nacional Brasileiro, na província do Ceará (1821-1841). Tese (Doutorado em História), Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2018.).

Foi também junto aos magistrados que dom João VI procurou se aconselhar sobre suas ações em relação à situação de Portugal e o início do movimento constitucional, como José Albano Fragoso, desembargador da Casa de Suplicação do Brasil, como também ao ministro e desembargador do Paço, e um de seus aliados mais próximos, Tomás Antônio de Villanova Portugal (Alexandre, 1993ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos do Império: questão nacional e questão colonial na crise do Antigo Regime português. Lisboa: Afrontamento, 1993., p. 490-508). O estopim do movimento constitucional português e os debates políticos que decorreram nas Cortes de Lisboa nos anos de 1821-1822 também contaram com a expressiva participação de magistrados e formados em leis e cânones, muitos deles eleitos por províncias brasileiras, como Pedro de Araújo Lima por Pernambuco e Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado, que após solto graças à extinção do Tribunal de Alçada, responsável por investigar as atuações dos líderes da Revolução de 1817, foi eleito pela província de São Paulo. Em Portugal, Manoel Fernandes Tomás e Manoel Borges Carneiro, ambos desembargadores do Tribunal da Relação do Porto, tiveram atividade legislativa expressiva, atuando em discussões importantes sobre os rumos políticos e administrativos do império constitucional português, como a extinção dos tribunais superiores instalados pela corte joanina no Rio de Janeiro, em 1808 (Silva, 2021SILVA, Jeffrey Aislan de Souza.O Tribunal da Relação de Pernambuco: conflitos, governança e atuação política dos magistrados (1798-1822). Tese (Doutorado em História), Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2021., p. 288-286).

A atuação dos magistrados no contexto da crise do Antigo Regime, caracterizada, entre outros motivos, pelo início do movimento constitucional nos espaços ibéricos e ibero-americanos, não se resume apenas à aproximação que esses homens desenvolveram com as elites e a política. Na estrutura dos impérios ibéricos, os magistrados eram reconhecidos enquanto indivíduos dotados da prudência e da jurisdição (iurisdictio), ou seja, do poder de dizer o direito. Como argumenta Carlos Garriga, graças ao amparo de uma tradição jurisdicional e pluralista, que ainda vigorava naquele contexto de crise e início dos movimentos constitucionais, os magistrados, homens vistos como conhecedores da ordem jurídica, eram tidos como capazes de conduzir à conciliação das diferenças de acordo com regras e instruções ajustadas às leis vigentes. O caráter pluralista da jurisdição possibilitava aos ouvidores e desembargadores considerar regras, condutas e princípios que não estavam presentes nas codificações e manuais, mas que eram igualmente válidos (Garriga, 2015GARRIGA, Carlos. Iudex perfectus. Ordre traditionnel et justice de juges dans l’Europe du ius commune (Couronne de Castille, XVe-XVIIIe siècle). Histoire des justices en Europe. Annales de la Ville de Toulouse, 2015, p. 79-99., p. 79-99). Isso fazia com que a decisão de se aliar a esses homens estabelecesse legitimidade às ações dos grupos que estavam no poder.

Andréa Slemian argumenta que, no início dos movimentos constitucionais, os magistrados foram vistos como representantes e reprodutores da ordem social e política do Antigo Regime, e identificados como reprodutores de valores “antigos e despóticos” (Slemian, 2012SLEMIAN, Andréa. A administração da justiça como um problema: de Cádis aos primórdios do Império do Brasil. In: BERBEL, Márcia Regina; OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles (org.). A experiência constitucional de Cádis: Espanha, Portugal e Brasil. São Paulo: Alameda , 2012, p. 251-283., p. 251). Aos olhos de muitos, essa identificação poderia ser um elemento positivo. A crise do Antigo Regime abriu um novo horizonte de expectativas aos brasileiros, trazendo questões e conceitos carregados de processos sociais e políticos (Koselleck, 2020KOSELLECK, Reinhart. A historiografia constitucional e a história dos conceitos. In: KOSELLECK, Reinhart. História dos conceitos: estudos sobre a semântica e a pragmática da linguagem política e social. Rio de Janeiro: Contraponto, 2020. p. 413-455., p. 413), novos aprendizados e a possibilidade de reestruturação do contexto social que conheciam e na qual estavam amparados. A chegada dos movimentos constitucionais à América portuguesa após a Revolução do Porto ocorreu diante da “ausência de regras e condutas previamente dadas e repetíveis”, o que promoveu amplas reivindicações, apropriações e conflitos envolvendo a ideia de Constituição (Koselleck, 2020KOSELLECK, Reinhart. A historiografia constitucional e a história dos conceitos. In: KOSELLECK, Reinhart. História dos conceitos: estudos sobre a semântica e a pragmática da linguagem política e social. Rio de Janeiro: Contraponto, 2020. p. 413-455., p. 415). A aliança com os magistrados, reconhecidos na estrutura social como prudentes, que agiam a partir do estudo e meditação (Hespanha, 2016HESPANHA, António Manuel. Fazer um império com palavras. In: BARRETO, Ângela Xavier; SILVA, Cristina Nogueira(org.). O governo dos outros: poder e diferença no Império português. Lisboa: ICS - Imprensa de Ciências Sociais, 2016. p. 67-100., p. 263-335), foi vista como uma possibilidade de reação à conjuntura de mudanças que se apresentavam. O diálogo com a magistratura constituía-se como um elemento da experiência, do “passado presente” dos pernambucanos, e a partir dessa ligação com o que poderia ser reconhecido e compreendido (Zermeño Padilha, 2008ZERMEÑO PADILHA, Guillermo. História, experiência e modernidade na América ibérica, 1750-1850. Almanack Braziliense, São Paulo, n. 7, p. 5-22, 2008., p. 10), teriam o amparo necessário para legitimar suas decisões e ações e impedir ou ao menos retardar mudanças bruscas na estrutura política e social que conheciam.

Essa compreensão é evidente em vários momentos, tanto expressada pelos magistrados como por outras autoridades. Os indivíduos são amarrados a teias de significado que eles mesmos teceram (Geertz, 2008GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008., p. 4). O ouvidor Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado, ao justificar sua participação na Revolução de 1817, alegou que havia recebido uma carta informando que “a capital se encontrava em grande desassossego, e não a podiam tranquilizar sem o concurso das autoridades civis [...] e lhe rogavam que por bem da humanidade e do serviço público viesse com sua presença para tranquilizar a cidade”. Ele partiu para Olinda com o intuito de prestar “o maior serviço que podia fazer a Sua Majestade”, trabalhando para “sossegar o motim, já inspirando ao general conselhos mais saudáveis”,9 9 Perguntas a Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva. In: Outros documentos sobre a Revolução Pernambucana de 1817, e sobre a administração de Luiz do Rego (copiados do arquivo público). Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, t. XXX, p. 113-114, 1867. assumindo um papel de diálogo, pacificação e reflexão. A participação de Andrada Machado, assim como a relação dos outros ouvidores em Pernambuco com a Revolução, demonstra que os idealizadores do movimento viam os magistrados como contribuintes valiosos para o projeto.

Luís do Rego Barreto, ao aderir ao movimento constitucional com o objetivo de manter seu posto como governador e capitão-general de Pernambuco, enfatizou os “relevantes serviços” prestados pelo ouvidor Antero José da Maia, que o estava auxiliando “poderosamente em seus conselhos, mostrando sempre o mais dedicado aferro à causa da nossa Regeneração”.10 10 Arquivo Histórico Ultramarino. Avulsos de Pernambuco. 02 abr. 1821, caixa 282, documento 19220, f. 03-07. Em outro momento, alegou que o ministro estava sendo “fiel ao desempenho de seus deveres, e unido cordialmente a mim para a manutenção da boa ordem, e paz na província.”11 11 Arquivo Público de Pernambuco. 12 abr. 1821. Fundo Correspondência para a Corte, Códice 25, p. 159-160. Ao designar magistrados para intermediar as negociações entre seu governo e a Junta de Goiana, Luís do Rego esperava que o conhecimento e habilidade de articulação do ouvidor Venâncio Bernardino de Uchôa, que tinha jurisdição sobre a vila de Goiana devido às inspeções realizadas anualmente na localidade, pudessem dissuadir os aliados da Junta ou enfraquecer a coesão dos rebeldes.

Discursos e práticas dos magistrados nos tempos da Independência

A dificuldade inicial da primeira Junta de Governo de Pernambuco, eleita em outubro de 1821, foi de estabilizar a situação social e política do território. Logo nos primeiros dias de governo, ocorreram conflitos militares na vila do Recife e hostilidades entre brasileiros e portugueses (Mello, 2014MELLO, Evaldo Cabral. A outra independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824. São Paulo: Editora 34, 2014., p. 70-75). Em 24 de dezembro de 1821, desembarcou no porto do Recife o comandante das Armas enviado pelas Cortes de Lisboa, José Maria de Moura. As Cortes de Lisboa, ao determinarem a possibilidade de criação de Juntas Governativas nas províncias, estabeleceram uma divisão de poderes, cabendo às Juntas o governo civil. Mas as forças militares estariam subordinadas a uma pessoa indicada diretamente por elas. Ao tomar ciência da situação de Pernambuco, o militar escreveu ao secretário de Estado da Guerra e às Cortes. O que se destaca em seu relato é a importância que ele coloca à falta de magistrados em Pernambuco.

Segundo Moura, a povoação estava em “estado convulsivo” e, para acalmá-la, havia a necessidade de mais força militar. Argumentou que moradores das vilas estavam perseguindo famílias portuguesas, chamando-as de “pulsas e corcundas”. Para ele, era fundamental reforçar a magistratura da província com “ministros inteiros e constitucionais, que trabalhem assiduamente” pelo sossego público, agindo contra os “fautores de motins, insultos e [...] ideias sinistras que se tem propagado pelo povo”. Traçou um quadro bem preciso sobre a situação dos magistrados em atuação. Argumentou que o juiz de fora de Recife estava doente, o que atrasava a “formação das causas criminais”. Qualificou o ouvidor Antero José da Maia como “hábil, inteiro e probo”, mas que acumulava muito trabalho, pois coordenava “diversas repartições”. O ouvidor de Olinda, Venâncio Bernardino de Uchôa estava suspenso de seu cargo e preso, questão da qual trataremos mais a frente, e o ouvidor da comarca do Sertão estava distante demais para ser chamado.12 12 Arquivo Histórico Ultramarino. Avulsos de Pernambuco. 14 jan. 1822, caixa 284, documento 19468, f. 01-02.

Para o govenador das Armas, como não havia magistrados para formar processo contra os réus presos, muitos acabavam ficando impunes, mesmo que detidos por alguns dias nas cadeias. Como o “caso presente desta província” era “extraordinário”, exigiam também “providências extraordinárias”. Recomendou a criação de lugares de juízes de fora nas vilas de Sirinhaém e Cabo, e a nomeação de novos ouvidores para Recife e Olinda. Além dessas medidas, julgou “que seria necessário formar quanto antes a Relação desta província, [e] nomear extraordinária e provisoriamente um Intendente de Polícia d’entre os desembargadores da Relação”.13 13 Arquivo Histórico Ultramarino. Avulsos de Pernambuco. 14 jan. 1822, caixa 284, documento 19468, f. 02.

Como constatado por outras fontes, o quadro arquitetado pelo governador das Armas sobre a magistratura era bastante preciso. Os ouvidores da comarca do Recife, função de Antero José da Maia, também ficavam responsáveis por outros cargos administrativos, o que, de certa forma, diminuía a atenção dedicada às questões criminais e de ordem pública.14 14 Deputado da Junta da Fazenda e juiz executor dos Reais Direitos, provedor da Saúde, intendente de Polícia, presidente da Mesa da Inspeção do Açúcar e do Algodão, juiz das Justificações de Índia e Mina, juiz relator da Junta de Justiça, ouvidor da Alfândega e das causas dos homens do mar e superintendente da Décima dos Prédios Urbanos. Arquivo Público de Pernambuco. Fundo de correspondência para a corte. 13 abr. 1814. Códice 17. p. 194. A partir de 1821, o ouvidor Antero José da Maia também assumiu a presidência da Junta da Fazenda de Pernambuco. O ouvidor Venâncio Bernardino de Uchôa estava suspenso do cargo por decisão da Junta Governativa, acusado de ainda estar exercendo “as funções de seu cargo”, após ser demitido graças ao clamor “geral dos povos da sua comarca”. Foi determinado que se o ministro continuasse a exercer a função, fosse autuado, preso e remetido ao Soberano Congresso.15 15 Atas do Conselho de Governo de Pernambuco, Sessão de 15 nov. 1821. In: Pernambuco, Arquivo Público. Atas do Conselho de Governo de Pernambuco (1821-1834). Recife: Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco/Cepe, 1997, p. 50.

Em sessão de 10 de dezembro, o Conselho da província informou haver denúncias efetuadas pelo capitão-mor de Olinda, Antônio José Quaresma e por Antônio José Fernandes Nobre, de que Uchôa estaria “por fora revolucionando os povos do interior contra a causa da Constituição e contra este Governo”. Ambos decidiram pela prisão do magistrado, embora alguns militares tenham apontado a necessidade de recorrer às Bases da Constituição, para saberem como agir. O parecer do presidente da Junta, Gervásio Pires Ferreira, foi favorável à imediata prisão de Uchôa. Alegou que as denúncias por crime de Lesa-Nação, aliadas aos “sentimentos anticonstitucionais, que o ouvidor desenvolveu no tempo do ex-general” Luís do Rego Barreto, faria com que Uchôa não obedecesse ao mandado de comparecer às sessões do governo. Solicitaram que os capitães-mores de Pau d’Alho e Limoeiro cercassem sua residência e o conduzissem preso ao Recife.16 16 Atas do Conselho de Governo de Pernambuco, Sessão de 10 dez. 1821. In: Pernambuco. Atas do Conselho de Governo, p. 59-60.

A leitura que Moura fez da importância da magistratura para a construção de uma estabilidade política e social em Pernambuco era condizente com o entendimento que a sociedade de Antigo Regime ibérico instituía sobre os magistrados, como observamos acima. Contudo, Moura trouxe alguns elementos novos, como apontar a necessidade de instalar imediatamente a Relação de Pernambuco e a necessidade da indicação de magistrados “inteiros e constitucionais”. O debate sobre a importância da Constituição e dos valores constitucionais tomou caráter significativo em vários aspectos da vida política e jurídica daquele contexto. Como argumentam Garriga e Slemian, é inegável que o surgimento da “cultura constitucional” tenha tido “um papel central na politização dos movimentos” (Garriga; Slemian, 2013GARRIGA, Carlos; SLEMIAN, Andréa. Em trajes brasileiros: justiça e constituição na América ibérica (c. 1750-1850). Revista de História, São Paulo, n. 169, p. 181-221, jul.-dez. 2013., p. 185). O próprio ouvidor Antero José da Maia se posicionou sobre a questão.

Em missiva encaminhada ao Rio de Janeiro, onde apresentava um relato sobre Pernambuco após a tentativa de assassinato contra o governador Luís do Rego Barreto, em 21 julho de 1821 (Silva, 2021SILVA, Jeffrey Aislan de Souza.O Tribunal da Relação de Pernambuco: conflitos, governança e atuação política dos magistrados (1798-1822). Tese (Doutorado em História), Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2021., p. 221-236), o ouvidor argumentou que os pernambucanos interpretavam os eventos políticos de forma errônea. Havia um grupo de “ignorantes e mal-intencionados” que tinham em mente que a Constituição “era um vel para abrir suas maldades” e achavam poderem “impunemente dizer e fazer o que quisessem”, imaginando governos “ao seu bel-prazer”. “Esta [era] a origem das desordens que desgraçadamente se tem pregado”. Argumentou que “o mal-entendido liberalismo constitucional fez desenvolver as paixões, e as facções apareceram em toda a sua extensão”. Além disso, “neste estado de coisas, não ter a Constituição estabelecido ainda a forma de governo do Brasil” agravava a situação, e pedia assim providências para “atalhar o mal deste país”.17 17 Arquivo Histórico Ultramarino. Avulsos de Pernambuco. 31 jul. 1821, caixa 283, doc. 19271, f. 02-03.

A missiva nos indica que Antero José da Maia estava atualizado sobre o debate constitucional em curso no universo ibero-americano. Os conceitos, como “constituição”, ao adentrarem no universo mental dos indivíduos, eram alvos de disputas de interpretação porque produziam expectativas reais. Como argumenta Koselleck, “quanto mais gerais os conceitos, mais partidos podem servir-se deles”, desenvolvendo um “litígio em torno da interpretação política” e de seus empregos. Assim, são reivindicados de diferentes maneiras. Nesse sentido, a Constituição foi apropriada pelas diversas facções políticas, das elites às camadas populares, de acordo com seus interesses e anseios, tanto para manter privilégios e formas de distinção, como para ascensão social e busca de melhorias de vida, abrindo “critérios futuros do desejável” (Koselleck, 2006KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora PUC-Rio, 2006., p. 299-303).

O conceito movimentou diferentes leituras e interpretações que partiam de interesses distintos, onde grupos e indivíduos evocavam-no para satisfazer seus interesses, o que, para o ouvidor, seria uma forma errada de interpretação. Para o magistrado, a origem das desordens estaria fincada justamente nesse elemento, ou seja, nos múltiplos entendimentos desenvolvidos sobre os conceitos e categorias em debate. Ainda aponta que a falta da Constituição, ainda não definida e estabelecida, agravava a situação política do Brasil e de Pernambuco, abrindo um caminho para mais incertezas.

Os diversos entendimentos sobre a cultura constitucional que emergiram no contexto de crise do Antigo Regime abriram distintos horizontes de expectativas, situando-se como um coeficiente temporal de mudança que incutiria para o projeto de futuro almejado. Para o ouvidor, a falta da Constituição e a indefinição dos rumos do constitucionalismo do império abria espaço para o uso indiscriminado do termo e a sucessiva apropriação de todos os grupos, que a utilizavam “ao seu bel prazer”, para “impunemente dizer e fazer o que quisessem”, achando que, estando abaixo da argumentação do constitucionalismo, estariam resguardados.

Garriga e Slemian apontam que “falar em constitucionalismo” envolve a compreensão de um universo cultural “acerca de concepções e práticas institucionais”, que, de certa forma, é mediado por “jogos de interesses e disputas na seara política” (Garriga; Slemian, 2013GARRIGA, Carlos; SLEMIAN, Andréa. Em trajes brasileiros: justiça e constituição na América ibérica (c. 1750-1850). Revista de História, São Paulo, n. 169, p. 181-221, jul.-dez. 2013., p. 185-186). A interpretação do ouvidor Antero José da Maia partia da compreensão de que a entrada da Constituição em vigor estabeleceria um entendimento político, de certa forma unívoco, de como agir e interpretar os valores em debate, e ele, como magistrado, imbuído da iurisdictio, conseguiria conduzir a forma correta de interpretação dos vocábulos em discussão. Pelo discurso do ouvidor Maia, percebe-se sua disposição aos valores constitucionais, como requereu o governador das Armas de Pernambuco, mas aliado à sua leitura do mundo como um magistrado.

Como argumentamos acima, o entendimento de que os magistrados conseguiam instruir e conduzir processos políticos era compartilhado socialmente, como manifestado nos relatos de Andrada Machado, na Revolução de 1817, e por Luís do Rego, em 1821. Essa leitura pode ter motivado a ação da Junta Governativa em conduzir investigações sobre a conduta do ouvidor Venâncio Bernardino de Uchôa. Como mostramos, Uchôa estava afastado do cargo e era acusado de expressar “sentimentos anticonstitucionais”. Segundo as determinações das Cortes dadas às Juntas Governativas das províncias, elas poderiam suspender magistrados, mesmo que provisoriamente (Alexandre, 1993ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos do Império: questão nacional e questão colonial na crise do Antigo Regime português. Lisboa: Afrontamento, 1993., p. 580-583). É necessário salientar a complexidade da decisão da Junta em suspender um magistrado por um crime que não fazia parte da legislação, visto que a Constituição ainda estava longe de ser aprovada e de entrar em vigor. O que a Junta temia era que os supostos “sentimentos” do ouvidor influenciassem a população, aumentando a instabilidade e os conflitos em Pernambuco.

Naquele momento, entre dezembro de 1821 e janeiro de 1822, chegaram a Pernambuco os primeiros desembargadores nomeados para o Tribunal da Relação, que começaria a funcionar em 13 de agosto de 1822.18 18 Sobre o processo de instalação do Tribunal da Relação de Pernambuco, ver: Silva (2022, p. 741-763). Entre eles, estava o desembargador aposentado do Tribunal da Relação da Bahia, e recém-empossado na Relação de Pernambuco, Antônio José Osório de Pina Leitão. Tratado pela Junta Governativa como Osório, o magistrado, nomeado para o cargo de ouvidor-geral do Crime19 19 Ao ouvidor-geral do Crime cabia receber ações criminais novas ou recursos de sentenças advindas dos foros inferiores, mas também poderia avocar para si processos e querelas de ouvidores, juízes de fora e ordinários, em um raio de quinze léguas. Coleção Leis do Brasil. Regimento da Relação do Maranhão. 13 maio 1812. Biblioteca da Câmara dos Deputados, p. 20-24. da futura Relação, foi rapidamente inserido no serviço da justiça. Em 12 de abril de 1822, talvez seguindo as recomendações do governador das Armas, foi nomeado juiz de Polícia pelo Governo Provisório.20 20 Atas do Conselho de Governo de Pernambuco, Sessão de 12 abr. 1822, p. 96. Assim que chegou a Pernambuco, a Junta lhe atribuiu a função de investigar as denúncias contra as ações de Venâncio Bernardino de Uchôa.

Na condução da devassa, Osório requereu testemunhas e, pouco mais de um mês depois, apresentou conclusões. Para o desembargador, o relato de três testemunhas apontava que Uchôa era dotado de sentimentos anticonstitucionais, mas não havia provas convincentes de que ele “se arvorasse em Chefe de partido anticonstitucional, como arguem”.21 21 Atas do Conselho de Governo de Pernambuco, Sessão de 18 jan. 1822, p. 71. Ou seja, o ouvidor expressava sentimentos contrários à Constituição e ao novo regime político, mas não comandava grupos que propagavam essas ideias. Uchôa, em sua própria defesa, argumentou que a questão não era caso de prisão, e requeria sua imediata libertação. E de fato, nem as Bases da Constituição Portuguesa, aprovadas por dom João VI, em fevereiro de 1821, estabeleciam uma forma de agir diante daquela situação. Considerando a segurança do ministro e principalmente “sua oposição ao sistema constitucional”, o “estado melindroso” das vilas de Recife e Olinda e a capacidade do ouvidor de ser “perigoso à causa Sagrada da Constituição”, os membros da Junta, Bento José da Costa, Joaquim José de Miranda, Felipe Neri e Gervásio Pires Ferreira foram favoráveis a seu envio imediato a Lisboa, para ser, na intenção deles, julgado pelo Soberano Congresso.22 22 Atas do Conselho de Governo de Pernambuco, Sessão de 18 jan. 1822, p. 72.

Os sentimentos anticonstitucionais do ouvidor Uchôa, relatados por testemunhas, tornaram-se empecilhos à sua permanência em Pernambuco. A decisão da Junta Governativa de Pernambuco deixa claro que a presença de “magistrados constitucionais”, ou seja, que expressassem os valores políticos dos novos tempos, não era importante apenas para o governador das Armas. Como argumenta Fernando Martínez, houve discussão sobre a escolha dos juízes e demais magistrados que atuariam sob a nova conjuntura constitucional espanhola. No debate da Constituição de Cádiz, surgiu a compreensão de que, para haver consolidação do sistema constitucional, não era suficiente a depuração daqueles que colaboraram com o regime de dom José I. Segundo o autor, o modelo de administração da justiça seguiu baseado na qualidade e conduta dos magistrados, mas eles e os que quisessem se candidatar às funções de Estado deveriam, mediante provas, evidenciar sua sintonia com o regime constitucional (Martínez-Pérez, 2006, p. 169-205). Esse entendimento, de certa forma, também foi expresso pelos membros da Junta, que temiam a possibilidade da influência de Uchôa perante a população de Pernambuco.

É provável que as autoridades tivessem ciência da participação de magistrados na condução de eventos naquele contexto, não só no Brasil, mas também nas outras regiões da América ibérica. Como argumentou João Paulo Pimenta, a América portuguesa era permeada por influências de outros Estados, circulação de pessoas, mercadorias, ideias e informações, o que conjugava a população e os territórios a outras realidades do “sistema mundial”, elementos que poderiam exercer influências nos contextos locais (Pimenta, 2017PIMENTA, João Paulo. Tempo e espaço das independências: a inserção do Brasil no mundo ocidental (1780-1830). São Paulo: Intermeios, 2017., p. 22-31). Na América espanhola, a participação dos magistrados nos conflitos iniciados a partir da formação das primeiras Juntas, ainda em 1808, foram de extrema importância. Atuaram fortalecendo os grupos opositores à Coroa e, em outros locais, desestabilizando esses grupos e dissuadindo ações contra o poder monárquico e colonial. Estar ou não ao lado daqueles que lutaram por abertura e mais espaço de participação e decisão política, ou até mesmo pela emancipação da Coroa espanhola, estava, entre outros fatores, relacionado às ligações que os magistrados constituíram - familiares, comerciais ou de propriedade fundiária - nas localidades onde estavam fixados (Fischer, 2006, p. 149-164; Puente Brunke, 2017PUENTE BRUNKE, José de la. La Real Audiencia de Lima en el proceso de la Independencia del Perú. In: DUVE, Thomas (coord.). Actas del XIX Congreso del Instituto Internacional de Historia del Derecho Indiano. Madrid: Dykinson, 2017. v. 2, p. 983-998., p. 983-998; Martín-Blázquez, 2017MARTÍN BLÁZQUEZ, Francisco Miguel. Los últimos altos magistrados de la Real Audiencia de México y sus reacciones ante la coyuntura histórica de la independencia (1808-1824). Tese (Doctorado en Humanidades y Ciencias Sociales), Universidad Francisco de Vitoria, Madrid, 2017.).

Para além do entendimento da importância da magistratura no contexto do Antigo Regime, era importante situar o grupo diante dos desafios da conjuntura constitucional que se abria, como propôs o desembargador Lucas Antônio Monteiro de Barros, nomeado chanceler, ou seja, o presidente do Tribunal da Relação de Pernambuco. Monteiro de Barros era um magistrado experiente, desembargador extravagante da Casa de Suplicação do Rio de Janeiro, e, por isso, nomeado pelo rei para conduzir a Relação de Pernambuco. Membro de importante família de Minas Gerais, também foi eleito deputado às Cortes. Mas, com a deputação mineira, recusou-se a seguir para Lisboa e também retardou sua presença em Pernambuco para conduzir o Tribunal, desembarcando em Recife quase um mês após o início do funcionamento da instituição, em 13 de agosto de 1822, sob a presidência do citado desembargador Osório (Silva, 2021SILVA, Jeffrey Aislan de Souza.O Tribunal da Relação de Pernambuco: conflitos, governança e atuação política dos magistrados (1798-1822). Tese (Doutorado em História), Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2021., p. 253-263, 355-359).

O desembargador tomou posse como chanceler da Relação de Pernambuco na tarde de 7 de setembro de 1822, diante da presença de algumas das principais autoridades da província, proferiu um discurso de posse, depois publicado no jornal Segarrega, que era conduzido pela Junta Governativa presidida por Gervásio Pires Ferreira. Em sua fala, o magistrado apontou sua surpresa diante da indicação do rei para presidir o Tribunal, mas aceitou porque sabia que seria auxiliado por “beneméritos magistrados”. Monteiro de Barros aproveitou a ocasião para expressar seus sentimentos de vinculação à ordem constitucional que emergia na conjuntura de independência do Brasil, mas reafirmou a importância que os magistrados deveriam ter na condução da nova estrutura política. Argumentou que só os ministros sem moral haveriam de ter “aversão ao sistema constitucional”, que cercaria as arbitrariedades e os obrigaria a respeitar a lei, a fixarem-se no limite do honesto e do justo. Para ele,

o fim da sociedade civil é não só equilibrar, mas sujeitar, e fazer depender a força física, da força moral; a lei é a única base dessa força moral: ela tem estabelecido os únicos meios, de que o cidadão possa usar para defender seus direitos, e vingar as suas ofensas; depositário da Lei, devemos ter a observância dela dar a cada um, o que é seu, sem que sejamos movidos por sórdidos interesses, ou por força de respeitos humanos; estimemos mais a felicidade pública do que a nossa.

[...] nós, que presidimos a Magistratura, devemos considerar-nos como medianeiros da paz entre os Cidadãos; devemos ser cheios do espírito de integridade para manter a justiça, impedir as vexações, e fazer com que, em todas as famílias reine o espírito da paz, e a tranquilidade, devemos procurar a sabedoria necessária para discernir a verdade da mentira, e devemos finalmente, ter consciência inabalável para resistir às solicitações dos poderosos.23 23 Discurso recitado na instalação da Relação pelo seu digníssimo chanceler. Segarrega, Pernambuco, n. 18, 24 set. 1822, p. 3-4.

Os argumentos de Monteiro de Barros nos chamam a atenção, em primeiro lugar, pela linguagem política, visto que o magistrado incorporou termos e conceitos que emergiram na conjuntura constitucional. Como nos lembra Koselleck, embora os acontecimentos e experiências não se resumam às articulações linguísticas, os eventos e mudanças não são possíveis nem transmitidos sem mudanças na linguagem (Koselleck, 2006KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora PUC-Rio, 2006., p. 267). O desembargador trazia um elemento importante, a lei como ato efetivo para a concretização do direito. No entanto, longe de apresentar um modelo jurídico constitucional que se afastasse de uma “justiça de juízes”, Monteiro de Barros promoveu uma união dos dois elementos e, assim, apresentou um exemplo de organização constitucional onde a magistratura continuaria tendo importância significativa.

Os magistrados, como “medianeiros”, deveriam buscar a paz entre os cidadãos através da sabedoria, meditação e discernimento para construir uma “consciência inabalável”. Mesmo sob a tutela de um sistema constitucional e “depositários da Lei”, caberia a eles ter a “observância” de interpretar a lei para fazer com que ela estabeleça “a cada um, o que é seu”. Lucas Antônio Monteiro de Barros apresentava aos pernambucanos a permanência de um sistema jurisdicional, pautado em uma “justiça de juízes”, mas estruturado em uma nova linguagem política. Como argumentam Garriga e Slemian, a perpetuação dessa tradição jurídica nos espaços ibero-americanos dependeu de “atos voluntários”. Ou seja, de pessoas com a intenção de se inserirem no “jogo político” a partir da tentativa de continuidade de um sistema que os privilegia, e que construíram uma “simbiose na conversão das situações e interesses em novos enunciados normativos” (Garriga; Slemian, 2013GARRIGA, Carlos. Iudex perfectus. Ordre traditionnel et justice de juges dans l’Europe du ius commune (Couronne de Castille, XVe-XVIIIe siècle). Histoire des justices en Europe. Annales de la Ville de Toulouse, 2015, p. 79-99., p. 188).

Para Monteiro de Barros, que apresentava seu discurso em uma província atravessada por conflitos políticos e sociais, os magistrados seriam mais do que intérpretes do direito. Tornavam-se defensores e mantenedores da Constituição, garantindo os direitos dos cidadãos. Nesse ponto, ele tentava instruir os pernambucanos a repousar no conhecimento e mediação da magistratura, mantendo assim a relevância destes. O ministro sabia que independente da facção política, já naquele momento, o apreço aos valores constitucionais unia os locais, embora os utilizassem para reafirmar seus interesses, como já havia pontuado o ouvidor Maia, um ano antes. Mas o discurso do desembargador poderia animá-los a depositarem seus horizontes de expectativas na conjuntura em construção e sob o discernimento e sabedoria daqueles que presidiam a magistratura.

Considerações finais

A magistratura, assim como o bacharelismo, desempenhou um papel de grande importância no processo de formação do Estado brasileiro, conforme amplamente analisado pela historiografia, atuando na construção da realidade institucional do Estado brasileiro e na construção de sua cultura jurídica. Nosso objetivo foi apresentar uma contribuição a esse debate, mostrando como os magistrados atuaram e desenvolverem suas percepções sobre o contexto político vivenciado no início do século XIX, diante das mudanças de caráter político que estavam em ascensão naquela conjuntura.

A importância social e política construída em torno dos magistrados no período colonial, de certa forma, deu condição para esses homens atuarem, assim como serem requisitados para conduzirem ou ao menos ajudarem na discussão e tomada de decisões, como os ouvidores ao serem chamados para atuar na Revolução de 1817, ou auxiliar com ideias e instruções o governador Luís do Rego Barreto, como também mediar conflitos entre seu governo e a Junta de Goiana. Como vimos, eles mesmos tinham consciência da importância que exerciam na sociedade. Sabiam da necessidade de vinculação ao sistema político constitucional em construção, como requisitado pelo governador das Armas de Pernambuco. Mas, como visto nos argumentos de Antero José da Maia e Lucas Antônio Monteiro de Barros, diante de um contexto político em aberto, que poderia limitar suas atuações e o papel que exerciam social e politicamente, procuraram se adequar às leituras dos novos tempos, onde se colocaram como aqueles que poderiam conduzir a mediação com o sistema constitucional em formação.

Referências

  • ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos do Império: questão nacional e questão colonial na crise do Antigo Regime português Lisboa: Afrontamento, 1993.
  • ANDRADE, Breno Gontijo. A Revolução de 1817: discursos, esquecimentos e lembranças Divinópolis: Gulliver, 2021.
  • ARAÚJO, Reginaldo Alves. A parte do partido: relações de poder e política na formação do Estado Nacional Brasileiro, na província do Ceará (1821-1841) Tese (Doutorado em História), Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2018.
  • ATALLAH, Claudia Azeredo. Da justiça em nome d’El Rey: justiça, ouvidores e Inconfidência no centro-sul da América portuguesa Rio de Janeiro: Eduerj, 2016.
  • BICALHO, Maria Fernanda; MONTEIRO, Nuno Gonçalo. As instituições civis da monarquia portuguesa na Idade Moderna. In: BARRETO, Ângela Xavier; PALOMO, Federico; STUMPF, Roberta. Monarquias ibéricas em perspectiva comparada (séculos XVI-XVIII): dinâmicas imperiais e circulação de modelos político-administrativos Lisboa: ICS - Imprensa de Ciências Sociais, 2018. p. 209-236.
  • CARDIM, Pedro. “Administração” e “governo”: uma reflexão sobre o vocabulário do Antigo Regime. In: BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia Amaral (org.). Modos de governar: ideias e práticas políticas no império português, sécs. XVI-XIX São Paulo: Alameda, 2005. p. 45-68.
  • CONTINENTINO, Marcelo Casseb. Tempos de Constituição: perspectivas e paradoxos da Lei Orgânica da Revolução Republicana de 1817. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, a. 178(475), p. 15-42, set.-dez. 2017.
  • DANTAS, Mônica Duarte (org.). Revoltas, motins, revoluções: homens livres pobres e libertos no Brasil do século XIX São Paulo: Alameda, 2011.
  • DIAS, Maria Odila Leite Silva. A interiorização da metrópole. In: MOTA, Carlos Guilherme (org.). 1822: Dimensões São Paulo: Perspectiva, 1972. p. 160-184.
  • FISHER, John R. Redes de poder en el virreinato del Perú, 1776-1824: los burócratas. Revista de Indias, v. LXVI, n. 236, p. 149-164, 2006.
  • GARRIGA, Carlos. Iudex perfectus. Ordre traditionnel et justice de juges dans l’Europe du ius commune (Couronne de Castille, XVe-XVIIIe siècle). Histoire des justices en Europe. Annales de la Ville de Toulouse, 2015, p. 79-99.
  • GARRIGA, Carlos; SLEMIAN, Andréa. Em trajes brasileiros: justiça e constituição na América ibérica (c. 1750-1850). Revista de História, São Paulo, n. 169, p. 181-221, jul.-dez. 2013.
  • GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas Rio de Janeiro: LTC, 2008.
  • HESPANHA, António Manuel. Fazer um império com palavras. In: BARRETO, Ângela Xavier; SILVA, Cristina Nogueira(org.). O governo dos outros: poder e diferença no Império português Lisboa: ICS - Imprensa de Ciências Sociais, 2016. p. 67-100.
  • KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos Rio de Janeiro: Contraponto; Editora PUC-Rio, 2006.
  • KOSELLECK, Reinhart. A historiografia constitucional e a história dos conceitos. In: KOSELLECK, Reinhart. História dos conceitos: estudos sobre a semântica e a pragmática da linguagem política e social Rio de Janeiro: Contraponto, 2020. p. 413-455.
  • LARA, Silvia. Senhores da régia jurisdição: o particular e o público na vila de S. Salvador dos Campos dos Goytacazes na segunda metade do século XVIII. In: LARA, Silvia; MENDONÇA, Joseli Nunes(org.). Direitos e justiças no Brasil: ensaios de história social Campinas: Editora da Unicamp, 2006. p. 59-99.
  • MARTÍN BLÁZQUEZ, Francisco Miguel. Los últimos altos magistrados de la Real Audiencia de México y sus reacciones ante la coyuntura histórica de la independencia (1808-1824) Tese (Doctorado en Humanidades y Ciencias Sociales), Universidad Francisco de Vitoria, Madrid, 2017.
  • MARTÍNEZ PÉREZ, Fernando. La constitucionalización de la justicia (1810-1823). In: LORENTE SARIÑENA, Marta. De justicia de jueces a justicia de leyes: hacia la España de 1870 Madrid: Consejo General de Poder Judicial/Centro de Documentación Judicial, 2006. p. 169-208.
  • MELLO, Evaldo Cabral. A outra independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824 São Paulo: Editora 34, 2014.
  • MELLO, Isabele de Matos. Magistrados a serviço do rei: os ouvidores e a administração da justiça na comarca do Rio de Janeiro Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2015.
  • NEVES, Lúcia Bastos. Corcundas e constitucionais: a cultura política da Independência Rio de Janeiro: Revan; Faperj, 2003.
  • NEVES, Lúcia Bastos. O governo de d. João: tensões entre ideias liberais e as práticas do Antigo Regime. In: CARVALHO, José Murilo; CAMPOS, Adriana Pereira (org.). Perspectivas da cidadania no Brasil Império Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. p. 203-226.
  • NEVES, Lúcia Bastos. Os esquecidos no processo de Independência: uma história a se fazer. Revista Almanack, n. 25, p. 1-44, 2020.
  • OLIVEIRA, Cecília Salles. Astúcia liberal: relações de mercado e projetos políticos no Rio de Janeiro, 1820-1824 São Paulo: USP-Capes, Intermeios, 2020.
  • OLIVEIRA, Cecília Salles; PIMENTA, João Paulo(org.). Dicionário da Independência do Brasil: história, memória e historiografia São Paulo: Edusp; BBM, 2022.
  • PERNAMBUCO, Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano. Atas do Conselho de Governo de Pernambuco (1821-1834) Recife: Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco/Cepe, 1997.
  • PIMENTA, João Paulo. Tempo e espaço das independências: a inserção do Brasil no mundo ocidental (1780-1830). São Paulo: Intermeios, 2017.
  • PUENTE BRUNKE, José de la. La Real Audiencia de Lima en el proceso de la Independencia del Perú. In: DUVE, Thomas (coord.). Actas del XIX Congreso del Instituto Internacional de Historia del Derecho Indiano Madrid: Dykinson, 2017. v. 2, p. 983-998.
  • SCHWARTZ, Stuart. Burocracia e sociedade no Brasil colonial: o Tribunal Superior da Bahia e seus desembargadores, 1609-1751 São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
  • SLEMIAN, Andréa. Vida política em tempos de crise, Rio de Janeiro (1808-1824) São Paulo: Hucitec, 2006.
  • SLEMIAN, Andréa. A administração da justiça como um problema: de Cádis aos primórdios do Império do Brasil. In: BERBEL, Márcia Regina; OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles (org.). A experiência constitucional de Cádis: Espanha, Portugal e Brasil São Paulo: Alameda , 2012, p. 251-283.
  • SILVA, Jeffrey Aislan de Souza.O Tribunal da Relação de Pernambuco: conflitos, governança e atuação política dos magistrados (1798-1822) Tese (Doutorado em História), Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2021.
  • SILVA, Jeffrey Aislan de Souza. Instituir um tribunal “em tempos de crise”: a instalação do Tribunal da Relação de Pernambuco entre conflitos e projetos de Justiça (1821-1822). Topoi, Rio de Janeiro, v. 23, n. 51, p. 741-763, 2022.
  • VALIM, Patrícia. O Tribunal da Relação da Bahia no final do século XVIII: politização da justiça e cultura jurídica na Conjuração Baiana de 1798. Tempo, Niterói, v. 24, n. 1, p. 117-139, 2018.
  • VILLALTA, Luiz Carlos. Pernambuco, 1817 - encruzilhada de desencontros do Império luso-brasileiro: notas sobre as ideias de pátria, país e nação. Revista USP, São Paulo, n. 58, p. 58-91, jun.-ago. 2003.
  • VILLALTA, Luiz Carlos. Os contrarrevolucionários de 1817 e suas apropriações da história: “os perigos das Revoluções”. História, São Paulo, v. 36, p. 1-33, 2017.
  • WEHLING, Arno. Estado, governo e administração no Brasil Joanino. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 436, p. 75-93, 2007.
  • WEHLING, Arno. A aclamação de d. João VI - o rei e o reino reconfigurar a corte/(re)construir o Estado: o horizonte de expectativas no Brasil do Reino Unido. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 479, p. 13-48, jan.-abr. 2019.
  • ZERMEÑO PADILHA, Guillermo. História, experiência e modernidade na América ibérica, 1750-1850. Almanack Braziliense, São Paulo, n. 7, p. 5-22, 2008.
  • 1
    Embora o movimento tenha sido de curta duração, as ideias e o caráter de radicalidade dos pernambucanos permearam o século XIX, inspirando outros movimentos. Sobre o receio de ações semelhantes à Revolução de 1817 em Pernambuco, ver: Silva (2021, p. 188-236). Sobre os movimentos e revoltas no século XIX com pautas semelhantes a 1817, ver: Dantas (2011). Sobre presença da Revolução no discurso político de autoridades do império, ver: Andrade (2021) e Villalta (2017).
  • 2
    Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. Documentos Históricos, Revolução de 1817, v. CVI, p. 134.
  • 3
    Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro. Documentos Históricos, Revolução de 1817, v. CII, p. 25.
  • 4
    Transcrição de Carta de Luís do Rego Barreto. Recife, 14 mar. 1818. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 299, p. 269, abr.-jun. 1973.
  • 5
    Transcrição de Cartas de Luís do Rego Barreto endereçadas a Tomás Antônio de Villanova Portugal. Recife, 22 dez. 1820. Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, Recife, v. LII, p. 179, 1979; Recife, 10 jan. 1821. Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, Recife, v. LII, p. 183, 1979.
  • 6
    Arquivo Histórico Ultramarino. Avulsos de Pernambuco. 2 abr. 1821, caixa 282, documento 19220, f. 02-03.
  • 7
    Arquivo Público de Pernambuco. Fundo Correspondência Para a Corte. 12 abr. 1821, códice 25. p. 159-160.
  • 8
    Arquivo Histórico Ultramarino. Avulsos de Pernambuco. 25 de jun. 1821, caixa 282, documento 19251, f. 02-04.
  • 9
    Perguntas a Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva. In: Outros documentos sobre a Revolução Pernambucana de 1817, e sobre a administração de Luiz do Rego (copiados do arquivo público). Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, t. XXX, p. 113-114, 1867.
  • 10
    Arquivo Histórico Ultramarino. Avulsos de Pernambuco. 02 abr. 1821, caixa 282, documento 19220, f. 03-07.
  • 11
    Arquivo Público de Pernambuco. 12 abr. 1821. Fundo Correspondência para a Corte, Códice 25, p. 159-160.
  • 12
    Arquivo Histórico Ultramarino. Avulsos de Pernambuco. 14 jan. 1822, caixa 284, documento 19468, f. 01-02.
  • 13
    Arquivo Histórico Ultramarino. Avulsos de Pernambuco. 14 jan. 1822, caixa 284, documento 19468, f. 02.
  • 14
    Deputado da Junta da Fazenda e juiz executor dos Reais Direitos, provedor da Saúde, intendente de Polícia, presidente da Mesa da Inspeção do Açúcar e do Algodão, juiz das Justificações de Índia e Mina, juiz relator da Junta de Justiça, ouvidor da Alfândega e das causas dos homens do mar e superintendente da Décima dos Prédios Urbanos. Arquivo Público de Pernambuco. Fundo de correspondência para a corte. 13 abr. 1814. Códice 17. p. 194. A partir de 1821, o ouvidor Antero José da Maia também assumiu a presidência da Junta da Fazenda de Pernambuco.
  • 15
    Atas do Conselho de Governo de Pernambuco, Sessão de 15 nov. 1821. In: Pernambuco, Arquivo Público. Atas do Conselho de Governo de Pernambuco (1821-1834). Recife: Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco/Cepe, 1997, p. 50.
  • 16
    Atas do Conselho de Governo de Pernambuco, Sessão de 10 dez. 1821. In: Pernambuco. Atas do Conselho de Governo, p. 59-60.
  • 17
    Arquivo Histórico Ultramarino. Avulsos de Pernambuco. 31 jul. 1821, caixa 283, doc. 19271, f. 02-03.
  • 18
    Sobre o processo de instalação do Tribunal da Relação de Pernambuco, ver: Silva (2022, p. 741-763).
  • 19
    Ao ouvidor-geral do Crime cabia receber ações criminais novas ou recursos de sentenças advindas dos foros inferiores, mas também poderia avocar para si processos e querelas de ouvidores, juízes de fora e ordinários, em um raio de quinze léguas. Coleção Leis do Brasil. Regimento da Relação do Maranhão. 13 maio 1812. Biblioteca da Câmara dos Deputados, p. 20-24.
  • 20
    Atas do Conselho de Governo de Pernambuco, Sessão de 12 abr. 1822, p. 96.
  • 21
    Atas do Conselho de Governo de Pernambuco, Sessão de 18 jan. 1822, p. 71.
  • 22
    Atas do Conselho de Governo de Pernambuco, Sessão de 18 jan. 1822, p. 72.
  • 23
    Discurso recitado na instalação da Relação pelo seu digníssimo chanceler. Segarrega, Pernambuco, n. 18, 24 set. 1822, p. 3-4.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    15 Jan 2023
  • Aceito
    12 Jul 2023
EdUFF - Editora da UFF Instituto de História/Universidade Federal Fluminense, Rua Prof. Marcos Waldemar de Freitas Reis, Bloco O, sala 503, 24210-201, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil, tel:(21)2629-2920, (21)2629-2920 - Niterói - RJ - Brazil
E-mail: tempouff2013@gmail.com