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Cartilagem Articular e Osteoartrose

ARTIGO DE REVISÃO

Cartilagem articular e osteoartrose

Márcia Uchôa of Rezende; Arnaldo José Hernandez; Gilberto Luís Camanho; Marco Martins Amatuzzi

INTRODUÇÃO

A degeneração da cartilagem articular de causa principalmente mecânica é hoje uma das maiores preocupações dos ortopedistas.

A dificuldade em estabelecer modelos experimentais de artrose e a constante observação de fenômenos artrósicos secundários em patologias tipicamente ortopédicas como as seqüelas de fraturas e as instabilidades articulares, tem aproximado muito o cirurgião ortopedista do estudo da cartilagem e sua fisiologia.

A objetividade de nossa especialidade torna difícil e desconfortável este interesse e esta proximidade, pois o estudo da biologia, da estrutura da cartilagem e de sua degeneração é baseado em conceitos pouco habituais ao nosso hábito literário, porém, o conhecimento da fisiopatologia da osteoartrose tem demonstrado que uma solução biológica esta muito próxima, especialmente nos casos iniciais. O uso de drogas sistêmicas ou intra-articulares, de forma terapêutica ou preventiva, já faz parte do nosso arsenal .

A intenção deste artigo de revisão é trazer ao ortopedista, de forma resumida e objetiva, o estado da arte do estudo da fisiologia da cartilagem e da fisiopatologia da osteoartrose.

A CARTILAGEM ARTICULAR NORMAL

Sabe-se que a cartilagem articular é um tecido avascular, esparsamente celular, cujas características bioquímicas refletem principalmente a composição da matriz extracelular (Lanzer & Komenda, 1990). Esta é hiperhidratada (conteúdo de água variando de 66 a 80%), com 20-34% de sólidos dos quais, 5-6% são componentes inorgânicos (principalmente hidroxiapatita) e do restante orgânico, 48-62% é formado por colágeno tipo II e 22-38% por proteoglicanas. A rigidez e elasticidade do tecido são resultado da relativa incompressibilidade das moléculas de proteoglicanas. Os espessos feixes de fibras colágenas subjacentes e paralelas a superfície articular formam uma "pele" e provavelmente servem não somente como uma camada limitadora mas também para a distribuição de forças de compressão. As fibras da camada basal da cartilagem ficam perpendiculares à superfície e servem como âncora fixando a cartilagem descalcificada à zona calcificada e talvez ao osso subcondral. Na zonas intermediárias as fibras se dispõem mais ao acaso. As fibras oblíquas provavelmente assistem na resistência a tensões. (Brandt e Mankin, 1993)

No metabolismo normal da cartilagem o condrócito dirige a reciclagem dos componentes da matriz (provável mediação enzimática) para satisfazer as necessidades internas de remodelação. No tecido adulto normal a homeostase da matriz é balanceada de forma a não haver nem perda, nem ganho de tecido. Estes processos são controlados por uma variedade de proteínas denominadas de fatores de crescimento e citocinas. (Pelletier e cols., 1993)

Fatores de crescimento [Insulin-like growth factor-1 (IGF-1) e Transforming growth factor-beta (TGF-b)] estimulam a síntese de agrecan (espécie predominante de proteglicana) e de colágeno. Podem modular as vias anabólicas e catabólicas do metabolismo do condrócito (Ex: podem aumentar a síntese de proteglicana) (Morales, 1990).

Proteases ácidas, glicosidases e sulfatases (= enzimas celulares autolíticas, principalmente as lisossômicas) mediam a degradação de proteglicanas (Ehrlich, 1985).

As citocinas tais como a interleucina-1 (IL-1), a interleucina-6 (IL-6) e o fator de necrose tumoral a (FNT-a) estimulam a degradação da matriz. A IL-1 é uma proteína de baixo peso molecular produzida por células mononucleares da sinóvia e pelo próprio condrócito, mediam a liberação de colagenase e proteases degradadoras de proteglicanas pelo condrócito. IL-1 estimula a síntese e liberação de estromelisina, que por sua vez é capaz de ativar a pró-colagenase dentro da cartilagem. O fator de necrose tumoral (FNT) tem atividade similar mas seu efeito sobre condrócitos é menos potente que o da IL-1. O papel da IL-6 na osteoartrose ainda não é bem definido. Sabe-se que in vivo ativam linfócitos B e T o que pode contribuir para as alterações da sinóvia encontradas na osteoartose (Pelletier e cols., 1993).

A cartilagem possui inibidores teciduais de metaloproteases que inibem as atividades da colagenase e estromelisina.(Dean e Woessner, 1985)

A CARTILAGEM ARTICULAR PATOLÓGICA - OSTEOARTROSE

Na osteoartrose, quer primária ou secundária, a cartilagem é o tecido com maiores aberrações do normal. Entre as alterações morfológicas, a cartilagem articular perde sua natureza homogênea e é rompida e fragmentada, com fibrilação, fissuras e ulcerações. Às vezes com o avanço da patologia, não resta nenhuma cartilagem e áreas de osso subcondral ficam expostas. Coloração histoquímica da matriz para proteoglicanas é desigual e a linha de separação entre a cartilagem calcificada e a zona radial é invadida por capilares. Forma-se clones de células (Moskowitz, 1973 e Muir, 1977). Osteófitos são encapados por cartilagem hialina e fibrocartilagem recém formadas mostrando grande irregularidade na sua estrutura (Marshall, 1969).

Entre as alterações metabólicas sabe-se que as taxas de síntese e de secreção de enzimas degradadoras de matriz pelos condrócitos estão aumentadas. A atividade enzimática lisossômica e extralisossômica estão aumentadas várias vezes. Estas enzimas são as metaloproteases (colagenase, estromelisina e gelatinase) e hialuronidase que levam a: degradação dos agregados e perda de proteglicanas da matriz; clivagem de ácido hialurônico e de condroitina 6-sulfato; produção de proteglicanas incapazes de agregar; degradação do colágeno tipo II; degradação do arcabouço protéico da proteoglicana, ativação de outras enzimas tais como pro-estromelisina (degrada a matriz) e estromelisina, que ativa a colagenase que por sua vez destroi o colágeno o qual é, aparentemente, o fator principal na progressão da patologia e na destruição final da superfície (Ryu e cols., 1984 e Pelletier e cols., 1993).

A IL-1 é considerada como o primeiro agente para a degradação da matriz cartilaginosa uma vez que estimula a síntese e a secreção de várias enzimas degradativas na cartilagem inclusive colagenase latente, estromelisina latente, gelatinase latente e ativador tecidual de plasminogênio.(Pelletier e cols., 1993)

No início da osteoartrose há aumento da síntese de proteglicanas, colágeno, proteínas não colágenas, hialuronato, e ácido desoxiribonucleico (ADN) (Ryu e cols, 1984), indicando replicação celular e justificando os clones de condrócitos observados histologicamente (Marshall, 1969; Moskowitz, 1973; Muir, 1977). Mais adiante, a síntese de colágeno e proteoglicana continuam a aumentar em proporção à gravidade da lesão. Com a gravidade da doença a síntese de proteglicana cai significativamente, isto é, o condrócito "falha" (Mankin, 1971).

A FISIOPATOLOGIA DA OSTEOARTROSE SECUNDÁRIA

O ortopedista está habituado a tratar com a osteoartrose secundária ,que quase sempre é decorrente de desvios de eixo ou é de causa pós-traumática.

O modelo experimental de meniscectomia parcial em coelhos (Moskowitz, 1973), bem como o modelo canino de lesão do ligamento cruzado anterior (Marshall, 1969; Pond-Nuki, 1973; Muir, 1977) permitiram o estudo das alterações precoces da artrose secundária e o conhecimento de que a primeira alteração é o aumento do conteúdo de água da cartilagem, Não se sabe a causa desta hiperhidratação, mas se deve a uma falha nos restritores elásticos da trama de colágeno, permitindo que a proteglicana (hidrofílica), edemacie além do normal. Com a hiperhidratação da cartilagem, as proteglicanas são mais facilmente extraídas da matriz e há uma perda da orientação do colágeno próximo à superfície e afastamento anormal entre as fibras. Com isso, há uma perda da rigidez e elasticidade à compressão. As recém sintetizadas proteglicanas têm em sua composição maior proporção de condroitina sulfato e menor de querato-sulfato (McDevitt e cols., 1974). A agregação de proteglicana está prejudicada (McDevitt e Muir, 1976). Todas estas alterações ocorrem antes da fibrilação ou qualquer outra alteração morfológica ser evidente e enquanto a concentração de proteglicana é normal ou até aumentada (o que explica a diminuição generalizada de rigidez que ocorre nas áreas adjacentes as de fibrilação) (Kempson e cols., 1971). Com a progressão da patologia, desenvolvem-se ulcerações focais da cartilagem. A perda de proteglicana, a piora na agregação das mesmas, a persistência de anormalidades na composição da glicosaminoglicanas e a diminuição de cadeias longas de condroitina-sulfato são encontradas. À medida que a perda de proteglicana aumenta, o conteúdo de água que inicialmente é grande, cai abaixo do normal.

A destruição da estrutura cartilaginosa e conseqüente exposição do osso subcondral alimentam o ciclo vicioso que encontramos nos pacientes portadores de osteoartrose.

A FUNÇÃO DO HYALURONAN NAS ARTICULAÇÕES

funções estruturais e lubrificadoras

Hyaluronan (AH), nome alternativo para ácido hialurônico, que descreve a molécula do ácido independentemente do seu estado de dissociação do radical carboxila, nas articulações é sintetizado pelos condrócitos da cartilagem e pelos fibroblastos da camada sinovial conhecidos por células B. O AH sintetizado pelos primeiros se integra na matriz cartilaginosa enquanto que o AH do sinoviócito é liberado na cavidade articular (Abatangelo e Reagan, 1995).

A importância do AH na cartilagem articular está realcionada à manutenção da estrutura do agrecan. As moléculas de proteoglicanas (agrecan) se ligam a cadeias de AH formando agregados grandes de peso molecular de até 108 Da. Estas macromoléculas são depositadas na rede de colágeno. A integridade dos agregados de proteglicanas são diretamente relacionados à integridade do AH. Embora a concentração de AH na cartilagem aumente com a idade, seu peso molecular é reduzido o que leva a menores agregados de proteoglicanas. Como as moléculas recém sintetizadas de AH mostram poucas alterações com a idade supõe-se que haja uma quebra extracelular da molécula com a idade. Similarmente, na osteoartrose (OA), o AH é despolimerizado com conseqüente ruptura de agregados de proteoglicanas e conseqüente deterioração das propriedades mecânicas do tecido (Abatangelo e Reagan, 1995).

O AH com peso molecular de até alguns milhares de daltons está presente no líquido sinovial normal em concentrações de 2 a 4 mg/ml (Balazs e Denlinger, 1993). A combinação entre o alto peso molecular e a concentração elevada resultam numa solução altamente viscoelástica com funções de lubrificação e de absorção de choque sob altas forças de cizalhamento (Bothner e Wik, 1987). Um importante elemento na fisiopatologia da OA é a perda das propriedades viscoelásticas do líqüido sinovial devido à diminuição da concentração de do tamanho molecular do AH (Balazs, 1974). A viscoelasticidade diminuída do líqüido sinovial aumenta a susceptibilidade da cartilagem às lesões por sobrecarga (Pelletier e Martel-Pelletier, 1993). Assim, fica claro que as propriedades viscoelásticas do líqüido sinovial, devido ao AH, exercem uma função no estado da articulação saudável e patológica.

CONCLUSÃO

O conhecimento da fisiologia da cartilagem e da fisiopatologia da osteoartrose deverá, sem dúvida alguma auxiliar o ortopedista atuar de forma mais consciente na prevenção e na terapêutica precoce.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Maio 2007
  • Data do Fascículo
    Jun 2000
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