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Estimulação elétrica neuromuscular na reversão da ossificação heterotópica

Resumos

A ossificação heterotópica é uma complicação freqüente após a lesão medular. Os avanços graduais no campo da fisiopatologia, reabilitação e novos métodos de tratamento são uma esperança para a reversão do quadro clínico do lesado medular num futuro próximo. O objetivo desse estudo é avaliar a resposta da ossificação heterotópica das articulações coxo femorais à estimulação elétrica neuromuscular em pacientes tetraplégicos após trauma raquimedular. Seis pacientes foram submetidos à estimulação elétrica neuromuscular por um período médio de 16,6 meses, sendo avaliados radiologicamente. Foi identificada a melhora radiológica em dois pacientes e a não progressão do quadro nos demais. A estimulação elétrica neuromuscular em lesados medulares pode ser um método válido no tratamento da ossificação heterotópica e prevenção de sua progressão.

Ossificação heterotópica; Traumatismos da medula espinhal; Estimulação elétrica


Heterotropic ossification is a common complication after spinal cord injury. Gradual advancements in the physiopathology and rehabilitation fields, and new treatment methods are a hope for the recovery of the clinical picture of injured individuals in the near future. The objective of this study was to evaluate the heterotropic ossification response of the thigh-femoral joints to neuromuscular electric stimulation in tetraplegic patients after rachial-medullar trauma. Six patients were submitted to neuromuscular electric stimulation for an average period of 16.6 months, being evaluated for X-ray imaging. Improvements on X-ray images were identified in two patients and the non-progression of the picture was observed in the remaining patients. Neuromuscular electric stimulation in spinal cord-injured individuals could be a useful method for treating heterotropic ossification and related progression prevention.

Ossification heterotopic; Spinal cord injuries; Electric stimulation


ARTIGO ORIGINAL

Estimulação elétrica neuromuscular na reversão da ossificação heterotópica

Daniel Bechara Jacob FerreiraI; Henrique Cambraia LippeltI; Alberto Cliquet JúniorII

IMédico residente do Departamento de Ortopedia e Traumatologia

IIProfessor Titular do Departamento de Ortopedia e Traumatologia

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Alberto Cliquet Júnior D.O.T. - F.C.M. - UNICAMP - Caixa Postal 6011 Cep 13083-970 - Campinas - São Paulo E-mail: cliquet@fcm.unicamp.br

RESUMO

A ossificação heterotópica é uma complicação freqüente após a lesão medular. Os avanços graduais no campo da fisiopatologia, reabilitação e novos métodos de tratamento são uma esperança para a reversão do quadro clínico do lesado medular num futuro próximo. O objetivo desse estudo é avaliar a resposta da ossificação heterotópica das articulações coxo femorais à estimulação elétrica neuromuscular em pacientes tetraplégicos após trauma raquimedular. Seis pacientes foram submetidos à estimulação elétrica neuromuscular por um período médio de 16,6 meses, sendo avaliados radiologicamente. Foi identificada a melhora radiológica em dois pacientes e a não progressão do quadro nos demais. A estimulação elétrica neuromuscular em lesados medulares pode ser um método válido no tratamento da ossificação heterotópica e prevenção de sua progressão.

Descritores: Ossificação heterotópica; Traumatismos da medula espinhal; Estimulação elétrica.

INTRODUÇÃO

Segundo a Organização Mundial da Saúde, o trauma é a principal causa de morte e incapacidade para pacientes jovens na atualidade. Apesar de campanhas de prevenção, ele ainda atinge níveis elevados sendo muitas vezes associado a lesões da medula espinhal. Isso traz conseqüências devastadoras, principalmente do ponto de vista econômico e emocional para essa parcela da população que geralmente se encontra economicamente ativa(1).

O progresso gradual alcançado tanto no manejo inicial do politraumatizado quanto no melhor entendimento da fisiopatologia da lesão medular, com protocolos de reabilitação, terapia gênica e pesquisas na utilização de células tronco para substituição do tecido medular lesado, tem contribuído para a recuperação funcional dos pacientes, com possibilidade de reversão da lesão num futuro próximo(2,3).

Para que esta recuperação e reabilitação sejam otimizadas, é necessário que se previnam as complicações advindas da lesão medular. Uma das complicações mais comuns é a ossificação heterotópica (OH), com incidência de 40 a 50% nesses pacientes, sendo que em 10 a 20% desse grupo desenvolvem uma forma mais grave podendo necessitar de tratamento cirúrgico(4). Cerca de 3 a 8% evoluem para anquilose(5).

A etiologia da OH é ainda controversa. Uma das teorias se baseia na produção de proteínas morfogenéticas do osso (BMPs) que irão atuar em células mesenquimais primitivas capazes de se diferenciar em osteoblastos acarretando em produção óssea ectópica(6).

O tratamento para a OH citado na literatura é dividido em métodos profiláticos e terapêuticos como: bisfosfonados, indometacina, radioterapia e cirurgia(4,7).

Os bisfosfonados atuam inibindo a precipitação de fosfato de cálcio, bloqueando sua tranformação em hidroxiapatita. O EHDP é um dos mais utilizados, devendo ser administrado na dosagem de 20mg/kg/dia por um período de seis meses(7).

A indometacina é utilizada como um método profilático atuando na inibição da síntese de prostaglandinas. Seu uso mais comum é após a realização de procedimentos cirúrgicos, como artroplastia total de quadril, na dosagem de 25mg três vezes ao dia por seis semanas(8).

A radioterapia tem sido usada mais recentemente como tratamento primário na OH precoce em pacientes lesados medulares. Resultados de trabalhos atuais têm mostrado a não progressão do quadro na maioria dos pacientes(9). Ela previne a transformação de células precursoras em células formadoras de tecido ósseo, em doses baixas de 200 cGy ao dia por cinco dias(10).

Cirurgia é indicada para reposicionamento do membro e ganho de mobilidade articular, de preferência nos primeiros seis meses pós-instalação do quadro(11).

Atualmente diversos projetos de pesquisa estão sendo desenvolvidos quanto ao uso de estimulação elétrica neuromuscular (EENM) em pacientes que iniciam a restauração da marcha(12). O objetivo do estudo é avaliar o impacto da EENM como mais uma opção terapêutica em pacientes tetraplégicos visando a reversão da OH na articulação do quadril.

MATERIAS E MÉTODOS

Foram avaliados vinte e um pacientes tetraplégicos admitidos no laboratório de Biomecânica e Reabilitação do Aparelho Loco-motor do Hospital das Clínicas da UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas).

Em relação aos aspectos éticos da pesquisa, o estudo atendeu às normas do Comitê Ético sobre Experiências Humanas desta instituição, sendo assinado o termo de consentimento livre e esclarecimento aos participantes.

Todos os pacientes foram submetidos à avaliação radiológica de bacia (incidências ântero - posterior e Lauenstein) pré-estimulação elétrica neuromuscular sendo divididos em grupos quanto à presença ou não de ossificação heterotópica nos quadris, dividida em graus I, II, III ou IV, utilizando-se a classificação de Brooker(13).

Os pacientes foram submetidos a um programa de estimulação elétrica neuromuscular.

Sistema de estimulação neuromuscular: Foi utilizado um estimulador elétrico de 4 canais para contração do quadríceps. Os parâmetros de estimulação foram: onda monofásica bipolar, ciclo de trabalho 4/12, freqüência de 25 Hz, duração de um trem de pulso de 300 µs, amplitude de até 250V (carga de 1 kW).

Programa de treinamento: Cada paciente participou de um programa de treinamento que consistiu em sessões de estimulação elétrica neuromuscular de vinte minutos duas vezes por semana.

A avaliação do programa foi realizada no grupo de pacientes que apresentou OH nos raios X iniciais e que participaram de pelo menos 12 meses do programa de estimulação, perfazendo um total de 6 pacientes.

Após o período de treinamento esses pacientes foram reavaliados do ponto de vista radiológico, comparando-se os raios X de bacia (ântero - posterior + Lauenstein) iniciais com os realizados após o programa de estimulação.

RESULTADOS

A idade média dos pacientes foi de 31,7 anos, variando de 20 a 58 anos.

Quanto à avaliação e classificação neurológica do trauma raquimedular, segundo a American Spine Injury Association (ASIA), 81% dos pacientes foram classificados como grau A, 14,3% como grau B e 4,7% como grau C (Figura 1).


O mecanismo de trauma mais comum foi acidente de trânsito com 52,4% dos casos (42,8% automóvel, 9,6% motocicleta). Em segundo lugar está o mergulho de água rasa com 23,8%, acompanhado pelo ferimento por arma de fogo (FAF) 14,2%, queda de altura 4,8% e atropelamento 4,8% (Figura 2).


Dos 21 pacientes admitidos pelo laboratório, 13 deles (61,9%) apresentaram ossificação heterotópica aos raios X iniciais.

Utilizando-se a classificação de Brooker, 71,41% dos pacientes foram graduados em tipo I, 7,15% em tipo II, 14,29% em tipo III e 7,15% em tipo IV (Figura 3).


O tempo de EENM dos pacientes que atenderam aos critérios de comparação variou de 12 a 32 meses, dando uma média de 16,66 meses.

Entre os 6 pacientes avaliados, foi identificada melhora radiológica em dois pacientes e nos demais não houve melhora, porém, também não houve progressão do quadro (Figura 4).


DISCUSSÃO

A idade média dos pacientes obtida no estudo está de acordo com a literatura. Observou-se que o trauma raquimedular incide na faixa etária da população economicamente ativa, trazendo grande impacto social e econômico(1).

A classificação neurológica do trauma raquimedular (ASIA) dos pacientes e os mecanismos de trauma: acidente automobilístico e FAF, foram compatíveis com a média citada na literatura(1,14). Houve apenas discreta diferença, na comparação, quanto ao mergulho em águas rasas e queda de altura(1).

A incidência de OH na avaliação radiológica inicial dos pacientes também foi condizente com a referência utilizada(15).

Mesmo sendo pequeno o número de pacientes avaliados, o tempo de seguimento e o de estimulação elétrica neuromuscular são um dos maiores da literatura. A não progressão do quadro nos demais indivíduos é um fato a ser considerado, podendo a EENM ser um fator de proteção contra o aparecimento da ossificação heterotópica. Um fator ainda a ser levado em consideração é de que uma melhora ainda mais significativa do quadro seja diretamente relacionada ao tempo de estimulação, sendo assim, um seguimento mais prolongado poderia demonstrar resultados ainda mais promissores.

CONCLUSÃO

O presente trabalho sugere que a estimulação elétrica neuromuscular em pacientes tetraplégicos com ossificação heterotópica pode ser um método de tratamento profilático e terapêutico, podendo contribuir para a sua regressão ou prevenindo o seu desenvolvimento.

Aceitando como válido o programa de EENM na reabilitação e manutenção da mobilidade articular, deve-se levar em consideração que melhores resultados poderiam ser obtidos com um tempo de tratamento mais prolongado, sendo fundamental a adesão completa do paciente ao tratamento proposto.

AGRADECIMENTOS

Os autores são gratos pelo apoio dado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Trabalho recebido em: 11/08/05 aprovado em 19/08/05

Trabalho realizado no Departamento de Ortopedia e Traumatologia (D.O.T.) - Faculdade de Ciências Médicas (F.C.M.) - Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

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  • Endereço para correspondência:

    Alberto Cliquet Júnior
    D.O.T. - F.C.M. - UNICAMP - Caixa Postal 6011
    Cep 13083-970 - Campinas - São Paulo
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jul 2006
    • Data do Fascículo
      2006

    Histórico

    • Recebido
      11 Ago 2005
    • Aceito
      19 Ago 2005
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