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Estudo anatômico do nervo isquiático em cadáveres: determinação de parâmetros de segurança para a via de acesso póstero-lateral do quadril

Resumos

A preferência dos ortopedistas pela via de acesso póstero-lateral do quadril demanda maior atenção e refinamento da técnica cirúrgica, a fim de diminuir complicações intra e pós-operatórias, principalmente iatrogênicas. Embora o déficit neurológico pós artroplastia de quadril seja uma complicação incomum (cerca de 1%), quase 80% desses casos relacionam-se ao nervo isquiático ou a uma de suas divisões. O objetivo desse estudo foi determinar parâmetros de segurança para a via de acesso póstero-lateral do quadril, visando diminuir a incidência de lesão iatrogênica dos nervos isquiático, tibial ou fibular, uma vez que tal assunto ainda não foi abordado pela literatura. Vinte quadris de cadáveres humanos foram estudados e a menor distância entre o limite lateral do n. isquiático e a inserção do m. piriforme foi 27 mm (aferida sob a margem distal desse músculo), bem como a mínima distância entre o limite lateral do n. isquiático e a inserção femoral do m. quadrado da coxa foi 20mm (aferida sobre a margem proximal desse músculo). A determinação desses parâmetros deixa o ortopedista mais seguro para avançar posterior e distalmente pela via de acesso póstero-lateral, mas não minimiza o cuidado com a dissecção e a importância do emprego de técnica cirúrgica apurada.

Anatomia; Quadril; Nervo ciático


Orthopaedic doctors' preference for the posterolateral access of the hip demands further attention and improvement of the surgical technique in order to reduce per- and postoperative complications rates, especially the iatrogenic ones. Although neurological deficit post hip arthroplasty is an uncommon complication (about 1% of the cases), almost 80% of these cases are correlated to the ischiatic nerve or to one of its divisions. The objective of this study was to establish safety parameters for the posterolateral access of the hip, aiming to reduce the incidence rate of iatrogenic injuries of the ischiatic, tibial or fibular nerves, since this subject has not been addressed by literature so far. Twenty human cadavers' hips were studied and the shortest distance between the lateral end of the ischiatic nerve and the insertion of the quadratus muscle of the thigh was 2 mm (measured over this muscle's proximal edge). The establishment of such parameters provides orthopaedic surgeons with more confidence to go posterior and distally through the posterolateral access, but does not minimizes the level of care required to dissection and the importance of using a fine surgical technique.

Anatomy; Hip; Sciatic nerve


ARTIGO ORIGINAL

Estudo anatômico do nervo isquiático em cadáveres: determinação de parâmetros de segurança para a via de acesso póstero-lateral do quadril

Leandro Luis AulettaI; Bárbara de Oliveira ManoelII; Maurício Leal Dias MongonIII; Mauro Duarte CaronIV

IMédico Ortopedista do Departamento de Ortopedia e Traumatologia do Hospital de Clínicas da Universidade Estadual de Campinas (DOT/HC UNICAMP)

IIMédica Ortopedista do DOT/HC UNICAMP

IIIMédico Ortopedista e Membro do Grupo do Quadril do DOT/HC UNICAMP

IVMestre em Ortopedia e Chefe do Grupo do Quadril do DOT/HC UNICAMP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Rua Tessália Vieira de Camargo, 126 Cidade Universitária Zeferino Vaz Barão Geraldo Campinas, SP, Brasil CEP 13083-970, Caixa Postal 6111 Email: leandro_auletta@hotmail.com

RESUMO

A preferência dos ortopedistas pela via de acesso póstero-lateral do quadril demanda maior atenção e refinamento da técnica cirúrgica, a fim de diminuir complicações intra e pós-operatórias, principalmente iatrogênicas. Embora o déficit neurológico pós artroplastia de quadril seja uma complicação incomum (cerca de 1%), quase 80% desses casos relacionam-se ao nervo isquiático ou a uma de suas divisões. O objetivo desse estudo foi determinar parâmetros de segurança para a via de acesso póstero-lateral do quadril, visando diminuir a incidência de lesão iatrogênica dos nervos isquiático, tibial ou fibular, uma vez que tal assunto ainda não foi abordado pela literatura. Vinte quadris de cadáveres humanos foram estudados e a menor distância entre o limite lateral do n. isquiático e a inserção do m. piriforme foi 27 mm (aferida sob a margem distal desse músculo), bem como a mínima distância entre o limite lateral do n. isquiático e a inserção femoral do m. quadrado da coxa foi 20mm (aferida sobre a margem proximal desse músculo). A determinação desses parâmetros deixa o ortopedista mais seguro para avançar posterior e distalmente pela via de acesso póstero-lateral, mas não minimiza o cuidado com a dissecção e a importância do emprego de técnica cirúrgica apurada.

Descritores: Anatomia; Quadril/cirurgia; Nervo ciático.

INTRODUÇÃO

Desde que a artroplastia do quadril popularizou-se, no final da década de 1960, paralisias e parestesias dos nervos isquiático e fibular são consideradas complicações raras, historicamente relatadas com uma freqüência entre 0,5% e 2,0%(1,2,3). Embora pouco prevalentes e com bom prognóstico pós-operatório, essas alterações neurológicas permanecem como objeto de estudos, posto que a observação de medidas simples pela equipe cirúrgica, como limitar o alongamento do membro operado em até quatro centímetros ou adotar métodos intra-operatórios de monitorização neural, podem relacionar-se a diminuição da ocorrência dessas complicações(4).

Em uma série de 3126 artroplastias de quadril, foram identificados apenas 53 casos de neuropatia no membro inferior ipsilateral ao procedimento cirúrgico(5). A origem da neuropatia permaneceu não explicada em 57% desses casos, entretanto há uma tendência a relacionar a causa dessa neuropatia com a técnica cirúrgica empregada e a particularidades anatômicas dos pacientes.

Segundo Schmalzried et al(6) a prevalência de déficit neurológico pós artroplastia de quadril é de aproximadamente 1% (0,08% - 7,6%), sendo quase 80% desses casos relacionados ao nervo isquiático ou a uma de suas divisões (n. isquiático: 27,2%, n. tibial: 0,4%, n. fibular: 51,9%). Os fatores de risco identificados foram sexo feminino, artroplastias de revisão e artroplastias por displasia do desenvolvimento do quadril.

Entre os pacientes que apresentam déficit neurológico pós-operatório, aproximadamente 15% evoluem com diminuição de força que incapacita a deambulação, associada ou não a parestesia permanente(6).

A via de acesso póstero-lateral do quadril é a mais utilizada por cirurgiões ortopedistas para a realização de artroplastias do quadril(7), podendo-se inferir relação entre a execução dessa via e a ocorrência de lesão do n. isquiático. E, a despeito dos estudos já realizados até o momento abordarem a freqüência de lesões nervosas nessa população, não há descrição objetiva de margens anatômicas de segurança, ou seja, de distâncias que, quando respeitadas, representassem incidências baixas ou nulas de lesão iatrogênica do nervo.

Apreciando a aparente relação entre lesão nervosa e via de acesso, o objetivo do presente estudo foi avaliar parâmetros anatômicos em cadáveres e determinar uma zona de segurança para o acesso póstero-lateral do quadril, de maneira a diminuir a incidência e a prevalência de lesões no nervo isquiático durante o procedimento cirúrgico.

MATERIAL E MÉTODO

No Laboratório de Anatomia, 20 quadris de cadáveres humanos masculinos e femininos foram dissecados através da via de acesso posterior em livro aberto* * Via de acesso posterior em livro aberto: A incisão na pele forma um "‡", em que o traço transversal proximal é feito entre o promontório sacral e um ponto três centímetros proximal ao grande trocânter (na mesma linha desse) e o traço transversal distal é feito entre o nível da quinta vértebra sacral e um ponto dois centímetros proximal ao pequeno trocânter; a incisão longitudinal é feita perpendicularmente às outras duas, sobre a borda posterior da diáfise proximal do fêmur ( Figura 1). Pele e tecido celular subcutâneo são rebatidos medial e lateralmente; os mm. glúteo máximo e glúteo médio são desinseridos do fêmur e rebatidos medialmente, atingindo-se o plano em que há as estruturas de interesse no estudo. (Figura 1), identificando-se e isolando o nervo isquiático e suas divisões proximalmente, bem como a inserção femoral dos músculos piriforme, gêmeo superior, obturador externo, gêmeo inferior e quadrado da coxa.


Aferiu-se a distância entre o limite lateral da emergência do n. isquiático sob o m. piriforme e a inserção femoral do tendão do mesmo, que chamaremos distância isquiático-piriforme (DIP) - Figura 2, e a distância entre o limite lateral do n. isquiático sobre a margem proximal do m. quadrado da coxa e a inserção femoral do mesmo músculo, que chamaremos de distância isquiático-quadrado da coxa (DIQ) (Figura 3).



As distâncias foram aferidas por todos os autores em momentos diferentes e os resultados apresentados referem-se à média aritmética simples entre os quatro valores. Paquímetro Mitutoya foi utilizado para a realização das medidas.

RESULTADOS

A distância isquiático-piriforme foi em média de 39 mm (desvio padrão = 6,74, mediana = 37, moda = 37), variando entre 27 e 54 mm, enquanto a distância isquiático-quadrado da coxa foi em média de 29,35 mm (desvio padrão = 4,66, mediana = 30, moda = 30), variando entre 20 e 38 mm. As medidas obtidas encontram-se na Tabela 1.

DISCUSSÃO

A opção de uma via de acesso mais segura, ou seja, com menor risco de complicações pós-operatórias tem sido discutida(8), entretanto um estudo que comparou a via de acesso póstero-lateral e via de acesso lateral não mostrou diferença significativa na ocorrência de lesão do nervo isquiático(8). Outros parâmetros, como marcha em Trendelenburg pós-operatória, também não foram significativamente diferentes.

Na prática clínica, a via de acesso póstero-lateral é a preferida pelos cirurgiões de quadril, o que é justificado pela não necessidade de desinserir o m. glúteo médio e por um melhor acesso ao acetábulo, facilitando a colocação do componente acetabular das próteses ou de material de osteossíntese.

As inserções femorais dos mm. piriforme e quadrado da coxa da coxa foram escolhidas por serem parâmetros de fácil visualização no intra-operatório, de maneira que uma vez respeitadas as distâncias de 27 mm (a partir do m. piriforme - numa linha reta sobre sua margem inferior) e de 20 mm (a partir do m. quadrado da coxa - numa linha reta sobre sua margem proximal), o risco de lesão do n. ciático seria minimizado.

CONCLUSÃO

O conhecimento de margens de segurança para o acesso póstero-lateral do quadril em relação ao nervo isquiático deixa o ortopedista que se dispõe a realizar artroplastias do quadril ou cirurgias como osteossíntese de fraturas do acetábulo (por essa mesma via), mais seguro para avançar posterior e distalmente. Baseado no estudo, realizado em cadáveres formolizados, pode-se concluir que a distância mínima obtida como parâmetro de segurança para evitar lesões iatrogênicas do nervo isquiático seriam 27 mm (com média de 39 mm) da inserção do músculo piriforme e 20 mm (com média de 29,35 mm) da inserção do músculo quadrado da coxa, frisando que esses determinantes (inserções do piriforme e quadrado da coxa) foram escolhidos por serem de fácil localização e identificação intra-operatória na via póstero-lateral do quadril.

Entretanto, técnica cirúrgica apurada e dissecção cuidadosa ainda são a chave para evitar lesões nervosas iatrogênicas, uma vez que existem variações anatômicas individuais.

Artigo recebido em 25/06/07

aprovado em 26/09/07

Trabalho realizado pelo Departamento de Ortopedia e Traumatologia no Departamento de Anatomia do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP.

  • 1. Johnson NA, Pellicci PM, Tsairis P, Salvati EA. Nerve injury in total hip arthroplasty. Clin Orthop Relat Res. 1983;(170):214-22.
  • 2. Solheim LF, Hagen R. Femoral and sciatic neuropathies after total hip arthroplasty. Acta Orthop Scand. 1978;51:531-4.
  • 3. Weber ER, Daube JR, Coventry MB. Peripheral neuropathies associated with total hip arthroplasty. J. Bone Joint Surg Am. 1976;58:66-9.
  • 4. Edwards BN, Tullos HS, Noble PC. Contributory factors and etiology sciatic nerve palsy in total hip arthroplasty. Clin Orthop Relat Res. 1987;(218):136-41.
  • 5. Schmalzried TP, Amstutz HC, Dorey FJ. Nerve palsy associated with total hip replacement. J Bone Joint Surg Am 1991;73:1074-80.
  • 6. Schmalzried TP, Noordin S, Amstutz HC. Update on nerve palsy associated with total hip replacement. Clin Orthop Relat Res. 1997;(344):188-206.
  • 7. Franco JS, Lourenço, PRB, Delocco FO. Vias de acesso cirúrgico ao quadril. In: Pardini Junior AG, Souza JMG, organizadores. Clínica Ortopédica. Rio de Janeiro: Médici; 2001. p.949-71.
  • 8. Jolles BM, Bogoch ER. Surgical approach for total hip arthroplasty: direct lateral or posterior? J Rheumatol 2004;31:1790-6.
  • Endereço para correspondência:
    Rua Tessália Vieira de Camargo, 126
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    Via de acesso posterior em livro aberto: A incisão na pele forma um "‡", em que o traço transversal proximal é feito entre o promontório sacral e um ponto três centímetros proximal ao grande trocânter (na mesma linha desse) e o traço transversal distal é feito entre o nível da quinta vértebra sacral e um ponto dois centímetros proximal ao pequeno trocânter; a incisão longitudinal é feita perpendicularmente às outras duas, sobre a borda posterior da diáfise proximal do fêmur (
    Figura 1). Pele e tecido celular subcutâneo são rebatidos medial e lateralmente; os mm. glúteo máximo e glúteo médio são desinseridos do fêmur e rebatidos medialmente, atingindo-se o plano em que há as estruturas de interesse no estudo.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Nov 2008
    • Data do Fascículo
      2008
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