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Discriminação de rendimentos por gênero: uma comparação entre o Brasil e os Estados Unidos

Resumos

Este trabalho compara as diferenças de rendimentos entre os homens e as mulheres no Brasil e nos Estados Unidos, utilizando a decomposição de Oaxaca. O rendimento médio das mulheres, no Brasil, era equivalente a 68% do rendimento dos homens em 1981, mas em 1996 já equivalia a 80%. Nos EUA, essa razão era de 66% em 1981 e passou para 78% em 1996. No Brasil, as características das mulheres são superiores às dos homens e a diferença salarial ocorre devido a um menor rendimento associado à idade das mulheres. Nos EUA, as características dos homens e das mulheres são similares e o retorno à idade também explica grande parte do diferencial de salários. Isto pode ocorrer se a idade das mulheres não refletir sua experiência no mercado de trabalho, devido a suas decisões de fecundidade, e algumas evidências são mostradas neste sentido.

mulheres; mercado de trabalho; Brasil-EUA; diferencial de salários


This paper compares the male and female earnings differentials in Brazil and in the United States, using Oaxaca's methodology. Female wages were equivalent to 68% of male wages in 1981, and to 80% in 1996. In the USA, this ratio was 66% in 1981 and 78% in 1996. In Brazil, female characteristics alone would cause a positive earnings differential, but these are counter-weighted by the lower returns to age. In the USA, male and female characteristics are similar and the return to age also explains a substantial part of the earnings gap. This could happen if female age does not accurately reflect labor market experience, due to fertility decisions, and some evidence is provided confirming this hypothesis.

female; labor market; Brazil-USA; earnings differentials


ARTIGOS

Discriminação de rendimentos por gênero: uma comparação entre o Brasil e os Estados Unidos* * Agradecemos os comentários de um parecerista anônimo.

Ana Carolina GiubertiI; Naércio Menezes-FilhoII

IProfessora do Departamento de Economia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Mestre pela Universidade de São Paulo

IIIBMEC-SP e Universidade de São Paulo

RESUMO

Este trabalho compara as diferenças de rendimentos entre os homens e as mulheres no Brasil e nos Estados Unidos, utilizando a decomposição de Oaxaca. O rendimento médio das mulheres, no Brasil, era equivalente a 68% do rendimento dos homens em 1981, mas em 1996 já equivalia a 80%. Nos EUA, essa razão era de 66% em 1981 e passou para 78% em 1996. No Brasil, as características das mulheres são superiores às dos homens e a diferença salarial ocorre devido a um menor rendimento associado à idade das mulheres. Nos EUA, as características dos homens e das mulheres são similares e o retorno à idade também explica grande parte do diferencial de salários. Isto pode ocorrer se a idade das mulheres não refletir sua experiência no mercado de trabalho, devido a suas decisões de fecundidade, e algumas evidências são mostradas neste sentido.

Palavras-chave: mulheres, mercado de trabalho, Brasil-EUA, diferencial de salários.

ABSTRACT

This paper compares the male and female earnings differentials in Brazil and in the United States, using Oaxaca's methodology. Female wages were equivalent to 68% of male wages in 1981, and to 80% in 1996. In the USA, this ratio was 66% in 1981 and 78% in 1996. In Brazil, female characteristics alone would cause a positive earnings differential, but these are counter-weighted by the lower returns to age. In the USA, male and female characteristics are similar and the return to age also explains a substantial part of the earnings gap. This could happen if female age does not accurately reflect labor market experience, due to fertility decisions, and some evidence is provided confirming this hypothesis.

Key words: female, labor market, Brazil-USA, earnings differentials.

JEL classification: J31.

1 INTRODUÇÃO

A participação das mulheres no mercado de trabalho aumentou após a Segunda Guerra Mundial, principalmente após a década de 1970. Hoje, no Brasil, elas representam aproximadamente 41% da população economicamente ativa, e recebem, em média, pouco mais da metade do salário dos homens (60,7%).1 1 Dados obtidos da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) de 1999 no site do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) - www.ibge.gov.br Nos Estados Unidos, as mulheres inseridas no mercado de trabalho representam 47% do total e também recebem pouco mais da metade do salário dos homens (60%).2 2 Dados obtidos da Current Population Survey (CPS) de março de 2000 no site do Bureau of Labor Estatistics (BLS) - www.bls.census.gov Esta similaridade entre os dois países chama a atenção, principalmente devido ao diferente grau de desenvolvimento de cada um, explicitado pelos distintos números em relação à economia e a qualidade de vida.3 3 Em 1999, a renda per capita do Brasil era de R$ 5.861 (US$ 3.181 a dólar de dezembro de 1999), enquanto que a dos EUA era de US$ 33.951.

A diferença de rendimentos entre homens e mulheres poderia ser explicada pelas diferenças entre as características médias destes dois grupos, como experiência, idade, educação e setor de trabalho. Porém, essas características geralmente explicam apenas parte dessa diferença, sendo o restante atribuído a um componente residual associado à discriminação. Cavalieri e Fernandes (1998) mostram, em seu estudo pioneiro realizado para o Brasil, que os salários dos homens eram, em média, 58,38% maiores que os das mulheres em 1989. Além disso, constatam que, quando controles são adicionados para tentar explicar esse diferencial, ele permanece constante.

Utilizando dados dos Estados Unidos para os anos de 1979 e 1995, Altonji e Blank (1999) concluem que o diferencial de rendimentos entre homens e mulheres reduziu-se, entre esses dois anos, de 45,7% para 28,6%, sendo que a diferença atribuída às características também apresenta uma redução de 12,6% para 7,6%. Constatam, assim, que há pouca diferença entre as características dos homens e das mulheres em 1995, restando a parte não explicada (discriminação) como responsável pela maior parte da diferença. Além disso, verificam que os retornos à educação e à experiência são um pouco menores para as mulheres.

Leme e Wajnman (2000), estudando as coortes de 1952 e de 1962, observadas entre os anos de 1977 e 1997, concluem, por meio de uma análise de decomposição, que nas duas coortes o diferencial de salários ocorre principalmente devido à discriminação. A diferença encontrada entre os salários dos homens e das mulheres na coorte de 1952 é de 38%, enquanto que na de 1962 é de 21%. Contudo, se apenas as características determinassem os salários, os homens ganhariam 21% (nascidos em 1952) e 18,3% (nascidos em 1962) a menos do que as mulheres. Entretanto, as autoras ressaltam que o componente de discriminação pode estar sendo superestimado devido à má captação de atributos produtivos por parte das variáveis de escolaridade e idade, por exemplo, ou subestimado, devido a certos tipos de discriminação, como a cultural (que pode afetar a escolaridade das mulheres) e a alocativa (que afeta o setor e a ocupação em que as mulheres se encontram).

Assim, dentro deste panorama, surge o interesse de se comparar, de modo consistente, o diferencial de rendimentos entre os homens e as mulheres no Brasil e nos Estados Unidos, procurando estabelecer se os fatores que determinam esse diferencial são os mesmos para os dois países. Esta é a proposta deste trabalho, que para tanto utiliza dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) e da Current Population Survey (CPS) para os anos de 1981, 1988 e 1996.

2 VARIÁVEIS SELECIONADAS E MÉTODO DE ANÁLISE

2.1 As variáveis selecionadas

Como o objetivo deste artigo é a comparação, de modo consistente, entre os dois países, os dados utilizados envolvem os mesmos anos (1981, 1988 e 1996) e as mesmas variáveis, tanto para o Brasil quanto para os Estados Unidos. Para o Brasil utilizou-se uma subamostra das PNADs (Pesquisas Nacionais de Amostra Domiciliares), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), enquanto que para os EUA a subamostra foi retirada das CPS (Current Population Survey), realizada pelo Bureau of Labor Statistics (BLS). Ambas as subamostras são compostas por indivíduos em idade economicamente ativa, entre 18 e 64 anos, e que possuam renda positiva.

Como variáveis explicativas foram selecionadas: idade, ramo de atividade, ocupação, região de residência, jornada de trabalho (meio período - até 20 horas semanais)4 4 A variável jornada de trabalho foi incluída na regressão para capturar possíveis não-linearidades na relação entre salários e horas de trabalho, como aquelas causadas pelo pagamento de horas-extras, por exemplo. e anos de estudo que o indivíduo possui.5 5 Infelizmente, os dados dos EUA não incluem a variável "posição na ocupação", que foi, portanto, excluída da análise. A renda dos trabalhadores brasileiros foi transformada em dólar, ao valor corrente da época, e em seguida dividida pelo número de horas trabalhadas, de modo que o resultado final fosse o mesmo que o informado pela CPS para os trabalhadores americanos, ou seja, o salário recebido por hora trabalhada. Os valores foram então deflacionados6 6 Para deflacionar os salários utilizou-se o Consumer Price Index (CPI) obtido no site do Bureau of Labor Statistcs (BLS) www.bls.gov e trazidos para valores nominais em dólares de 1996.

A variável "ramo de atividade" foi dividida em dez categorias: agrícola, indústria de transformação, indústria da construção, outras atividades industriais, comércio de mercadorias, prestação de serviços, transporte e comunicação, social, administração pública e outras atividades. Já as ocupações dividem-se em: executivos, administradores e gerentes; especialidades profissionais, técnicos e ocupações de suporte relacionadas; vendas; suporte administrativo; atividades de precisão, manual e de reparo; operadores de máquinas, montadores e inspetores; ocupações relacionadas ao transporte e a materiais de transporte; limpadores de equipamentos, ajudantes, handlers; serviço doméstico privado; outros serviços, incluindo proteção; e ocupações agrícolas e de extração (forestry e fishing).

2.2 O método de análise

Nosso exercício estatístico visa explicar parte da diferença no salário médio entre os homens e as mulheres nos dois países por meio de variáveis como jornada de trabalho, região de residência, idade, ocupação e educação, como se segue:

Esse modelo será estimado com as observações das PNADs e dos CPSs, já descritas no início do trabalho. Nosso intuito é decompor a diferença média em um componente derivado de diferenças nas características observáveis entre os trabalhadores homens e mulheres e outro derivado de retornos a estas características, conforme o método de Oaxaca (ver Oaxaca e Ransom, 1994, por exemplo). Suponha que a equação acima tenha sido estimada para os dois grupos:

Fazendo a subtração simples das duas equações podemos chegar em:

Portanto:

Ou seja:

Onde:

Assim, o primeiro termo da decomposição reflete a diferença induzida pela diferença entre as constantes das regressões, o segundo reflete as diferenças nos retornos de cada gênero (avaliado nas características médias de um dos gêneros) e o terceiro se deve ao componente que reflete diferenças entre as características médias dos dois gêneros, como, por exemplo, o fato de as mulheres terem uma melhor média educacional. É o que chamamos de componente explicado.7 7 Como a amostra de mulheres que trabalham não é aleatória, as estimativas podem sofrer viés de seleção. Entretanto, a ausência de uma variável que pudesse identificar a equação de participação e ser plausivelmente excluída da equação de salários fez com que deixássemos esta questão para ser tratada em trabalho futuro.

3 DESCRIÇÃO DOS DADOS

As Tabelas 1 e 2 mostram a evolução do salário médio de mulheres e homens e da razão entre eles, ao longo dos anos estudados. Pode-se verificar que tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos as mulheres ganham menos que os homens, mas que essa diferença reduziu-se ao longo do tempo. O salário das mulheres no Brasil era equivalente a 68% do salário dos homens em 1981, mas em 1996 já equivalia a 80%. Nos EUA, essa razão que era de 66% em 1981 passou para 78%. Assim, a diferença de rendimentos entre os gêneros é ligeiramente maior nos EUA.

Voltando às principais características que poderiam explicar essa diferença de salários, começamos pela educação. Como mostram as tabelas a seguir, as mulheres possuem mais anos de estudos que os homens, nos dois anos estudados e nos dois países. Apesar de a diferença ser pequena para o Brasil e menor ainda para os EUA, o teste de diferença de médias rejeita a hipótese nula de que essas diferenças sejam estatisticamente iguais a zero. Deste modo, a educação deveria contar a favor das mulheres, ou seja, se os salários fossem determinados apenas pelos anos de estudo, as mulheres deveriam receber, em média, mais que os homens. A educação, desse modo, não ajuda a explicar a diferença de salário em favor dos homens.

Tabela 3

Tabela 4

O setor em que os indivíduos trabalham também influi no salário recebido, como mostram as Tabelas 5 e 6, e a concentração de mulheres em setores que pagam menos poderia explicar parte do diferencial de salários. O salário médio do homem no setor de "comércio de mercadorias" em 1996 é de US$ 11,5/hora, enquanto que no setor de "outras atividades industriais" é de US$ 16,3/hora. Já para as mulheres, esses valores são US$ 8,3/hora e US$ 14,1/hora, respectivamente. Assim, observa-se que além das diferenças entre os setores (a mulher possui um salário maior no setor de outras atividades industriais) existem diferenças de salários entre os gêneros dentro dos mesmos (a mulher recebe menos do que o homem em ambos os setores). De fato, a diferença de rendimentos favorece os homens na maioria dos ramos de atividade nos dois países. A exceção é o setor de construção no Brasil, no qual as mulheres ganham mais que os homens. Porém, este setor emprega muita mão-de-obra de baixa qualificação (pedreiros, ajudantes etc.), principalmente na construção propriamente dita, e esta mão-de-obra é quase, na sua totalidade, composta por homens. As mulheres, em sua maioria, exercem cargos que requerem maior qualificação e tendem a ter uma remuneração maior.

Além da indústria da construção, pode-se constatar, pelas tabelas acima, que o salário da mulher é igual ou até maior que o salário dos homens em outros ramos de atividade. No Brasil, os ramos em que isto ocorre correspondem a "outras atividades industriais" nos anos de 1988 e 1996, ao setor de "transporte e comunicação" em todos os anos, ao setor de "administração pública" em todos os anos e o de "outras atividades" no ano de 1996. Nos EUA, isso ocorre apenas no setor agrícola em 1996.

A ocupação do indivíduo, obviamente, também influi no salário recebido, e a concentração de mulheres em ocupações que pagam menos também poderia explicar parte do diferencial de salários. Como demonstram as Tabelas 7 e 8, as mulheres recebem um salário menor do que o dos homens na maioria das ocupações, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos. Na ocupação "executivos, administradores e gerentes", por exemplo, a média de rendimentos das mulheres é de US$ 5,28 para as brasileiras e de US$ 15,95 para as americanas, enquanto que os brasileiros recebem, em média, US$ 8,14 e os americanos US$ 20,62.

No Brasil, as exceções em relação à razão de rendimentos mulher/homem aparecem nas ocupações relacionadas ao "transporte e a materiais de transporte", em todos os anos, na ocupação de "operadores de máquinas, montadores e inspetores", em 1996, e na ocupação de "limpadores, ajudantes e handlers", em 1981 e 1996, nas quais a mulher possui, em média, um salário maior. Já nos Estados Unidos, a mulher recebe, em média, um salário igual ao do homem nas ocupações de "serviço doméstico privado", em todos os anos, e nas ocupações ligadas à agricultura, em 1981.8 8 Apesar da média para a mulher ser inferior à do homem, o teste de médias não rejeita a hipótese nula de que essas médias sejam iguais. Nas ocupações ligadas à agricultura, a mulher brasileira também apresenta uma média de rendimentos maior que a do homem, em 1996, e essa diferença é estatisticamente diferente de zero. Novamente aqui o que pode estar ocorrendo é que, dentro da ocupação ligada à agricultura, as mulheres podem estar exercendo cargos com maior remuneração em vez de apenas trabalharem como lavradoras.

4 DECOMPOSIÇÃO DO DIFERENCIAL

Foram realizadas duas decomposições diferentes, tanto para o Brasil quanto para os EUA, e para todos os anos utilizados na pesquisa - 1981, 1988 e 1996 -, seguindo o procedimento descrito no item 2.2. A primeira decomposição inclui como variáveis explicativas: escolaridade, a idade, a idade ao quadrado e as variáveis indicadoras de região e de jornada de trabalho (se trabalha meio período ou não). A segunda decomposição inclui, além destas, as variáveis referentes ao ramo de atividade ao qual o indivíduo pertence e à sua ocupação.

A decomposição feita sem a inclusão das variáveis de ramo de atividade e ocupação reporta o que pode ser chamado de diferencial bruto, sendo que a diferença devido a estas duas características passa a ser incluída na constante. Quando elas são incluídas, pode-se analisar qual a diferença existente entre o salário de homens e mulheres que estão dentro do mesmo grupo de ocupação ou ramo de atividade. Contudo, pode existir discriminação não só dentro da ocupação (ramo de atividade) como também na forma como a mulher se insere no mercado de trabalho. Argumenta-se que existe discriminação entre as ocupações (ramo de atividade) e que as mulheres tendem a se empregar em ocupações (ramo de atividade) de menor remuneração.9 9 O trabalho de Ometto, Hoffmann e Alves (1999) consideram a existência desse tipo de discriminação na decomposição que fazem para São Paulo e Pernambuco e concluem que para São Paulo a discriminação ocupacional, na forma de inserção das mulheres no mercado, explica a maior parte da diferença de renda entre homens e mulheres. Daí a decisão de fazermos duas decomposições, uma com e outra sem essas características, a fim de analisarmos as diferenças entre elas.

O resultado dessas decomposições, que estão nas tabelas que se seguem, confirma que existe diferença de salários entre mulheres e homens tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos e que essa diferença pende em favor dos homens. Constata também o primeiro resultado esperado e destacado no final da seção anterior: essa diferença diminui ao longo do tempo. Além disso, sua magnitude é semelhante entre os dois países e parece estar caminhando para um mesmo valor. Em 1981 e 1988 a diferença de rendimentos é maior no Brasil - as mulheres ganham 39,6% e 33,9%, respectivamente, a menos que os homens, contra 38,6% e 31,4% nos EUA - mas em 1996 o diferencial é maior nos EUA - 23% contra 17% no Brasil. A queda no diferencial ao longo desse período é de aproximadamente 57% para o Brasil e 40% para os EUA. Isto mostra que apesar da grande distância que separa os dois países em termos econômicos e de desenvolvimento eles se assemelham quando se trata de discriminação entre os gêneros no mercado de trabalho, ainda que no Brasil a queda seja mais acentuada.

Os resultados encontrados na primeira decomposição dizem que se os salários de homens e mulheres no Brasil fossem estabelecidos apenas com base nas características de cada um as mulheres ganhariam mais do que os homens, e essa diferença cresceria entre os anos pesquisados. Em 1981 as características determinam um diferencial de 18% em favor das mulheres, em 1988, de 21% e em 1996, de 22%. Contudo, a diferença devido aos coeficientes, componente associado à discriminação, atua no sentido de aumentar a diferença total em favor dos homens, e ele é de tal magnitude que anula o efeito das características, fazendo com que o resultado final confirme a existência de discriminação contra as mulheres (Tabela 9).

Já nos Estados Unidos, a diferença de salários é explicada tanto pela diferença imputada às características como pela atribuída aos coeficientes, exceto para 1996, ano em que as características contribuem para reduzir a diferença. No entanto, as características explicam apenas uma pequena parte desse diferencial, sendo que mais da metade é explicada pelos coeficientes. Ambos os componentes se reduzem ao longo do tempo: em 1981, de uma diferença total de 38,6%, as mulheres ganhavam 2,5% a menos que os homens por causa das suas características, mais 36% por causa da discriminação. Em 1996 esses valores correspondiam a 0,4%, em favor das mulheres, mais 23,5% pela discriminação, de um total de 23% (Tabela 10).

De todas as características incluídas, as que mais se destacam na explicação do diferencial existente no Brasil são a educação e a idade. Para o Brasil, se apenas a educação determinasse os salários, as mulheres ganhariam, em média, em 1996, 18% a mais do que os homens, enquanto que pela idade elas ganhariam 1,2% a menos (Tabela 9). Nos Estados Unidos, tais valores corresponderiam a 1,7% para a educação e 0,2% para a idade (Tabela 10).

A jornada de trabalho é a característica que mais contribui para explicar a diferença de salários para os EUA, uma vez que determina um ganho de 1,9% a menos para as mulheres em 1981, 2,1% em 1988 e 1,4% em 1996. No caso do Brasil, a jornada contribui para a redução do diferencial: em 1981, a jornada de trabalho determinava um ganho de 2,5% a mais para as mulheres e de 5,6% em 1996.

Contudo, os valores de maior expressão para explicar a diferença de rendimentos entre os gêneros encontram-se nos coeficientes. Tanto no Brasil quanto nos EUA, a educação, a idade e a constante são as que apresentam as maiores magnitudes. Assim, mulheres da mesma idade dos homens recebiam, no Brasil, 28,7% a menos do que eles no ano de 1996, e nos EUA, 44,7%. Em relação à educação, mulheres com o mesmo número de anos de estudo que os homens ganhavam 28,9% a mais nos EUA e 0,8% a menos no Brasil. Vale destacar que no Brasil, para os anos de 1981 e 1988, as mulheres com o mesmo tempo de educação dos homens recebiam 5,1% e 5,4% a mais, respectivamente.

Já o termo constante, que se refere à diferença entre mulheres e homens na educação mais baixa (zero ano de estudos), na menor idade (17 anos), na região omitida (Norte no Brasil e Nordeste nos EUA) e no período integral de trabalho, apresenta uma queda acentuada no Brasil, contribuindo para a queda do diferencial ao longo desses anos. A contribuição do termo constante passa de - 0,410 em 1981 para - 0,093 em 1996. Nos Estados Unidos, ele passa de 0,171 em 1981 para 0,410 em 1996, também contribuindo para a queda da diferença de rendimentos (Tabelas 9 e 10). No entanto, deve-se ressaltar que o valor calculado para o intercepto é sensível à categoria omitida: quanto menor for o efeito dessa categoria sobre o salário do indivíduo, menor será o valor calculado para o intercepto. Além disso, uma alteração na categoria omitida também leva a diferentes valores para o intercepto.

A segunda decomposição, cujos resultados estão nas Tabelas 11 e 12, inclui as variáveis "ramos de atividade" e "ocupação". A variável "ramos de atividade", que no Brasil contribuía para aumentar o diferencial (-5,2%) em 1981, passou a contribuir para diminuí-lo (2,2%) em 1996. A mudança no modo como essa variável afeta o diferencial permite-nos verificar um movimento entre os ramos de atividade, no qual as mulheres estão saindo das atividades que pagam menos para aquelas que pagam salários melhores. Entretanto, a ocupação das mulheres possui um efeito distinto: contribui para aumentar o diferencial de rendimentos. Em 1996, a ocupação em que a mulher se encontrava era responsável por um salário 7% menor. Para os EUA, a situação era inversa nesse mesmo ano: a ocupação contribuía para que as mulheres ganhassem, em média, 1,9% a mais do que os homens, enquanto que o ramo de atividade contribuía para um ganho 2,6% menor.

Com relação à parte do diferencial atribuída à discriminação, no Brasil temos que dentro da mesma ocupação as mulheres recebiam em média 12,6% a menos do que os homens, no ano de 1996. O ramo de atividade ao qual ela pertencia responderia por apenas 0,2% do diferencial a favor dos homens. Vale ressaltar que nos anos anteriores os coeficientes associados aos ramos de atividade determinavam um salário, para mulheres, 13,9% e 9,3% maior, em 1981 e 1988, respectivamente. Já nos EUA, as mulheres recebiam menos do que os homens tanto dentro da mesma ocupação quanto dentro do mesmo ramo de atividade. Em relação às outras variáveis - educação, idade, região e jornada de trabalho -, sua importância na explicação do diferencial manteve-se constante.

Nesse ponto retomamos a discussão acerca da possível discriminação no modo como as mulheres se inserem no mercado de trabalho. Ou seja, advoga-se que parte do diferencial atribuído às características da ocupação e do ramo de atividade estaria captando também uma parcela da discriminação, sendo esta então subestimada pelos coeficientes, pois as mulheres tenderiam a se ocupar em atividades com menor remuneração (ver Ometto, Hoffman e Alves, 1999 e Leme e Wajnman, 2000).

Já Barros, Corseuil, Santos e Firpo (2001), num estudo sobre as conseqüências das diferenças salariais por gênero sobre o bem-estar, não atribuem à estrutura ocupacional a diferença existente entre os salários de homens e mulheres. Por meio de exercícios contrafactuais não paramétricos, os autores fazem três simulações atribuindo características como salário horário médio, jornada de trabalho e estrutura ocupacional dos homens e das mulheres, e verificam que se as mulheres fossem contratadas sob a mesma forma que os homens, não necessariamente estariam numa situação melhor.

Longe de esgotar a discussão, os resultados aqui apresentados com relação aos ramos de atividade mostram que se essa discriminação alocativa existir (o que é muito provável, uma vez que não é difícil encontrar profissões e atividades da economia reconhecidas como tipicamente masculinas ou femininas), ela deve estar diminuindo, pois o sinal associado à característica do ramo de atividade passou de negativo para positivo, ou seja, as mulheres estariam se dirigindo para os setores de melhor remuneração.

Por último, destaca-se a variável idade, que entra nas decomposições na forma quadrática, e cujo efeito encontra-se principalmente nos coeficientes. A idade é incluída nesse modelo como uma aproximação para a experiência do indivíduo. Dada a existência de um ciclo de vida da mulher, que faria com ela saísse do mercado de trabalho por um tempo, quando se casasse e tivesse filhos, para então retornar mais tarde, quando estes estivessem criados, a idade não estaria captando corretamente a experiência da mulher no mercado de trabalho. Desse modo, uma mulher com a mesma idade que um homem teria uma experiência menor, o que explicaria o fato dela receber menos. A discriminação estaria sendo, portanto, superestimada.

Para tentar lidar com este fato, uma terceira decomposição foi realizada, acrescentando-se às demais variáveis uma variável de experiência, que indica há quantos meses o indivíduo está no atual emprego, disponível apenas para o Brasil e para o ano de 1996. Esta decomposição foi feita com o intuito apenas indicativo de qual a relevância da experiência para a explicação da diferença de rendimentos, e como a diferença atribuída à idade (usada como "proxy" para a experiência) modificar-se-ia com a sua inclusão.

A Tabela 13 mostra que as mulheres possuem, em média, 18 meses a menos de experiência que os homens, fazendo com que o resultado esperado seja de que a experiência contribua para explicar a diferença de rendimentos em favor dos homens.

A Tabela 14 exibe os resultados das decomposições, para o Brasil, no ano de 1996, com e sem a inclusão da variável experiência. Como esperado, se isolássemos apenas a experiência para determinar os salários, as mulheres receberiam, em média, 1,6% a menos que os homens, por terem menos experiência no trabalho. Já a discriminação faria com que mulheres com o mesmo tempo de experiência recebessem, em média, 1,2% a menos. Além disso, o coeficiente da idade, que antes provocava uma redução de 24,5% nos salários femininos em relação ao dos homens, diminui ligeiramente, passando a reduzir 21,8%.

Com isso, têm-se evidências de que a idade não capta corretamente a experiência das mulheres no mercado de trabalho. Contudo, deve-se levar em conta que a variável utilizada informa apenas há quanto tempo o indivíduo está no emprego atual, não levando em consideração a possível experiência anterior do indivíduo em outros empregos. Assim, uma pessoa que está no mercado de trabalho há 10 anos, por exemplo, mas que está na empresa atual há apenas um mês, é considerada como tendo apenas essa experiência de um mês, o que torna o resultado não muito condizente com o que acontece no mercado. De qualquer modo, esse resultado é importante no sentido de indicar a necessidade de uma melhor mensuração para a experiência do indivíduo.

5 CONCLUSÕES

Neste artigo foi feita uma comparação do diferencial de salários entre homens e mulheres no Brasil e nos EUA, utilizando dados para o mesmo período e variáveis construídas segundo a mesma classificação e metodologia. Os resultados aqui apresentados reforçam os de outros trabalhos realizados, ao constatar a presença de um componente da diferença de rendimentos entre os gêneros que não é explicada pela característica dos indivíduos, o que viria a caracterizar a discriminação sofrida pelas mulheres no mercado de trabalho, tanto brasileiro quanto americano.

Para o Brasil, foi destacado o fato de as características das mulheres determinarem, por si só, um diferencial de salários a seu favor em todos os anos analisados. Isto nos leva a concluir que a diferença salarial existente é devida aos coeficientes que quantificam a discriminação. Para os Estados Unidos, tanto as características quanto os coeficientes explicam o diferencial a favor dos homens. Em ambos os países essa diferença vem se reduzindo ao longo do tempo, tanto por parte das características quanto por parte da discriminação.

No Brasil, a educação contribui fortemente para a redução da diferença de rendimentos, mas o retorno à idade explica grande parte dos diferenciais de salários a favor os homens. Isto reforça o argumento de que a idade das mulheres não reflete sua experiência no mercado de trabalho, devido ao seu ciclo de vida. A ocupação e o ramo de atividade explicam, em parte, a diferença de rendimentos, mas também apresentam um forte componente de discriminação, principalmente no Brasil.

Recebido em março de 2003. Aceito em março de 2005

  • Altonji, J. G.; Blank, R. M. Race and gender in the labor market. Handbook of Labor Economics, v. 3, p. 3143-3259, 1999.
  • Barros, R. P.; Corseuil, C. H.; Santos, D. D. dos; Firpo, S. P. Inserção no mercado de trabalho: diferenças por sexo e conseqüências sobre o bem-estar. IPEA, 2001. Mimeografado.
  • Cavalieri, C. H.; Fernandes, R. Diferenciais de salários por gênero e cor: uma comparação entre as regiões brasileiras Revista de Economia Política, v. 18, n. 1(69), p. 158-175, janeiro-março/1998.
  • Leme, M. C. S.; Wajnman, S. Tendências de coorte nos diferenciais de rendimentos por sexo. In: Henriques, R. (org.), Desigualdade e pobreza no Brasil. IPEA, 2000.
  • Ometto; Hoffmann; Alves. Participação da mulher no mercado de trabalho: discriminação em PE e SP. Revista Brasileira de Economia, v. 53, n. 3, p. 287-322, jul./set. 1999.
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    Agradecemos os comentários de um parecerista anônimo.
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    Dados obtidos da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) de 1999 no site do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) -
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    Dados obtidos da
    Current Population Survey (CPS) de março de 2000 no site do
    Bureau of Labor Estatistics (BLS) -
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    Em 1999, a renda
    per capita do Brasil era de R$ 5.861 (US$ 3.181 a dólar de dezembro de 1999), enquanto que a dos EUA era de US$ 33.951.
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    A variável jornada de trabalho foi incluída na regressão para capturar possíveis não-linearidades na relação entre salários e horas de trabalho, como aquelas causadas pelo pagamento de horas-extras, por exemplo.
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    Infelizmente, os dados dos EUA não incluem a variável "posição na ocupação", que foi, portanto, excluída da análise.
  • 6
    Para deflacionar os salários utilizou-se o
    Consumer Price Index (CPI) obtido no site do
    Bureau of Labor Statistcs (BLS)
  • 7
    Como a amostra de mulheres que trabalham não é aleatória, as estimativas podem sofrer viés de seleção. Entretanto, a ausência de uma variável que pudesse identificar a equação de participação e ser plausivelmente excluída da equação de salários fez com que deixássemos esta questão para ser tratada em trabalho futuro.
  • 8
    Apesar da média para a mulher ser inferior à do homem, o teste de médias não rejeita a hipótese nula de que essas médias sejam iguais.
  • 9
    O trabalho de Ometto, Hoffmann e Alves (1999) consideram a existência desse tipo de discriminação na decomposição que fazem para São Paulo e Pernambuco e concluem que para São Paulo a discriminação ocupacional, na forma de inserção das mulheres no mercado, explica a maior parte da diferença de renda entre homens e mulheres.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Fev 2006
    • Data do Fascículo
      Set 2005

    Histórico

    • Aceito
      Mar 2005
    • Recebido
      Mar 2003
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