Acessibilidade / Reportar erro

Pouca saúde, muita saúva, os males do Brasil são... Discurso médico-sanitário e interpretação do país

Not enough health, too many ants, this is what ails Brazil... Medical-sanitarian discourse and the interpretation of Brazil

Resumos

O objetivo deste artigo é, primeiro, apontar o papel central e prolongado dos registros e textos médico-higienistas e do movimento pelo saneamento do Brasil, das três primeiras décadas do século XX, na reconstrução da identidade nacional a partir da identificação da doença como elemento distintivo da condição de ser brasileiro e, segundo, sublinhar sua forte presença em textos fundamentais da chamada fase de institucionalização das ciências sociais no Brasil, marcada pela criação dos cursos universitários de sociologia e antropologia.

Higienismo; Saúde Pública; Pensamento Social Brasileiro; Ciências Sociais


The purpose of this article is twofold: first, to point out the central and enduring role played by medical-hygienist notations and texts and by the sanitarian movement in Brazil, between 1900 and 1930, in the reconstruction of national identity on the basis of the identification of disease as a distinctive element in the condition of being Brazilian; and second, to underscore their marked presence in the fundamental texts of the so-called phase of institutionalization of the social sciences in Brazil, which witnessed the creation of university programs in sociology and anthropology.

Public Health; Social Sciences; Hygienism; Medical Sanitarian Discourse


ARTIGO

ARTICLE

Nísia Trindade Lima 1
Gilberto Hochman 1

Pouca saúde, muita saúva, os males do Brasil são... Discurso médico-sanitário e interpretação do país

Not enough health, too many ants, this is what ails Brazil... Medical-sanitarian discourse and the interpretation of Brazil

1 Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz, Av. Brasil 4.365, Manguinhos, 21045-900 Rio de Janeiro, RJ Hochman@fiocruz.br Lima@fiocruz.br

Abstract The purpose of this article is twofold: first, to point out the central and enduring role played by medical-hygienist notations and texts and by the sanitarian movement in Brazil, between 1900 and 1930, in the reconstruction of national identity on the basis of the identification of disease as a distinctive element in the condition of being Brazilian; and second, to underscore their marked presence in the fundamental texts of the so-called phase of institutionalization of the social sciences in Brazil, which witnessed the creation of university programs in sociology and anthropology.

Key words Public Health; Social Sciences; Hygienism; Medical Sanitarian Discourse

Resumo O objetivo deste artigo é, primeiro, apontar o papel central e prolongado dos registros e textos médico-higienistas e do movimento pelo saneamento do Brasil, das três primeiras décadas do século XX, na reconstrução da identidade nacional a partir da identificação da doença como elemento distintivo da condição de ser brasileiro e, segundo, sublinhar sua forte presença em textos fundamentais da chamada fase de institucionalização das ciências sociais no Brasil, marcada pela criação dos cursos universitários de sociologia e antropologia.

Palavras-chave Higienismo; Saúde Pública; Pensamento Social Brasileiro; Ciências Sociais

Com a frase que dá título a este trabalho, Macunaíma assinou o livro de visitas do Instituto Butantã que, segundo o irreverente personagem de Mário de Andrade, era o orgulho dos paulistas. O escritor estabelecia diálogo em torno da preguiça como expressão do modo de ser dos brasileiros e reportava-se também à força que a imagem da doença teve na composição dos retratos do Brasil em que se acentuavam seus males de origem.

Neste artigo pretendemos argumentar que os textos dos higienistas das três primeiras décadas do século XX ultrapassaram os limites do debate sobre saúde e informaram representações mais amplas sobre a sociedade. Reportamo-nos especialmente à visibilidade do movimento pró-saneamento durante a Primeira República, com a construção de imagens fortes sobre o Brasil e os brasileiros, e à influência do diagnóstico sobre a nação feito pelos higienistas em textos literários e de divulgação. É sobre a presença desta versão sobre o Brasil doente que concentramos nossa atenção.

Nossa hipótese é que o movimento pelo saneamento teve um papel central e prolongado na reconstrução da identidade nacional a partir da identificação da doença como elemento distintivo da condição de ser brasileiro. Trata-se, em suma, de uma reflexão em torno de um diálogo muitas vezes implícito entre as matrizes da saúde pública e conhecidas teses do pensamento social e político brasileiro; ou melhor, de perceber como uma perspectiva médico-higienista da sociedade brasileira transforma-se numa questão da cultura e da política, compartilhada por diferentes intelectuais e outros atores sociais.

Tal perspectiva guarda forte relação com as matrizes dualistas de reflexão sobre o Brasil, que apontam não apenas para os contrastes, mas para as lacunas, para as ausências. No Brasil, a ciência do início do século XX e, ainda, a ciência social institucionalizada a partir dos anos 30 podem ser consideradas as linguagens, por excelência, do processo de construção nacional. Constitutiva da matriz dualista, a ciência buscava identificar os sintomas de nossa cultura, submetendo-os ao espelho crítico de um outro civilizado, constituindo-se, enfim, em um instrumento do projeto modernizador que nos garantiria uma almejada sintonia com o progresso. O Brasil foi pensado pelas suas ausências e o homem brasileiro como atrasado, indolente, doente e resistente aos projetos de mudança.

Neste artigo, procuraremos, em primeiro lugar, discutir a presença de tais discursos e o seu elo com as ciências sociais no processo de deslocamento de teses marcadas pelo fatalismo de cunho biologizante. O foco recairá sobre os textos dos médicos-higienistas, sua campanha pelo saneamento do Brasil e influência sobre intelectuais do período. Parte expressiva do trabalho é dedicada a focalizar o debate paradigmático em torno do personagem Jeca Tatu, criado pelo escritor paulista Monteiro Lobato. Discutimos, a seguir, a importância dos registros médico-sanitários e do pensamento higienista no debate sobre as resistências culturais à mudança, de forte presença nos textos iniciais da chamada fase de institucionalização das ciências sociais no Brasil, fase caracterizada pela criação dos cursos universitários de ciências sociais.

O pensamento médico-higienista e o debate sobre natureza, doença e raça

A referência aos males do Brasil é tema constante em diversos momentos de nossa história intelectual. Da condenação à civilização proclamada por Euclides da Cunha à melancolia identificada por Paulo Prado, poucos foram os autores que não usaram tonalidades cinzas e negativas para retratar o país.

Para alguns, como Tavares Bastos e Manoel Bonfim, o traço negativo radicava-se na herança ibérica com sua tradição estadista e pouco propensa à iniciativa individual. Para outros, na composição étnica da população onde predominavam raças ditas inferiores e mestiços consistiam os principais obstáculos. Questões como raça e herança colonial assumem crescente importância nas controvérsias que marcam as três últimas décadas do século XIX e as três primeiras décadas do século XX.

O deslocamento da ênfase do que seriam as mazelas do Brasil - herança colonial, composição étnica da população, ausência do poder público nas áreas de educação e saúde, entre outros diagnósticos que se sucederam ao longo desse período - revela a persistência do tema das bases sobre as quais construir uma nação. Tal percepção tem por estrutura básica descobrir uma dicotomia que operaria como causa das crises, traçar sua formação no passado e, em alguns casos, propor a alternativa política para a sua superação (Santos, 1978). As visões sobre as mazelas do Brasil se dão dentro de um enquadramento dualista habitado por pares indissociáveis tais como litoral-sertão, saúde-doença e moderno-atrasado.

Entre essas formas de refletir sobre os dilemas da nação brasileira, o movimento pela reforma da saúde pública e pelo saneamento rural, que tanta visibilidade adquiriu durante as duas últimas décadas da Primeira República, teve um papel decisivo no debate mais amplo sobre interpretações, dilemas e rumos da sociedade brasileira.

A importância de teses originárias do pensamento higienista em ensaios sobre as sociedades pode ser verificado em diferentes contextos nacionais, como demonstram estudos relativos ao advento do pastorismo na França e as concepções sobre higidez, doença e processos terapêuticos no Estados Unidos da América em sua relação com aspectos da cultura daquela sociedade (Breeden, 1988; Murard e Zylberman, 1985). No caso brasileiro, a higiene, entre outros discursos de base científica, teve forte presença nas interpretações sobre os dilemas e as alternativas colocadas para a construção da nação. A idéia de males não apresenta, dessa forma, apenas uma analogia com o discurso médico, mas trata-se de uma alusão às doenças como obstáculo ao progresso ou à civilização.

O movimento pela reforma da saúde pública nas duas últimas décadas da Primeira República foi caracterizado por Castro Santos (1985; 1987) como um dos elementos mais importantes no processo de construção de uma ideologia da nacionalidade, com impactos relevantes na formação do Estado brasileiro. Essa percepção tem sido incorporada por vários trabalhos que abordaram direta ou indiretamente o tema, e constitui, a nosso juízo, o ponto de partida para qualquer reflexão sobre saúde pública no Brasil republicano (Albuquerque et al., 1991; Britto, 1995; Hochman, 1998; Lima e Britto, 1996; Lima e Hochman, 1996).

No Brasil da década de 1910, a intensificação do debate sobre saúde e saneamento acontece no contexto do surgimento de inúmeros movimentos de caráter nacionalista. De fato, o período correspondente à Primeira Guerra Mundial e ao imediato pós-guerra foi, no exterior e no Brasil, marcado por uma intensa atuação de movimentos nacionalistas, que pretendiam descobrir, afirmar e reclamar os princípios da nacionalidade e realizá-los através do Estado (Joll, 1982; Hobsbawm, 1991). Além disso, há inúmeras indicações de como as guerras - em geral problemas de alistamento, de recrutamento e derrotas militares - favorecem debates e polêmicas sobre determinismo e melhoria racial, nos quais o debate sobre as condições de saúde tiveram um papel relevante.1 1 Existem vários exemplos internacionais. Um dos exemplos mais citados foi o impacto causado pela mobilização e fracasso das tropas britânicas na Guerra dos Boers, no grande debate da Inglaterra eduardiana sobre as condições físicas da raça, que iria culminar com o National Health Insurance Act de 1911. Ver Porter (1991, 1993).

A guerra na Europa também gerou problemas de imigração, higiene, controle sanitário das importações e exportações etc. Várias conferências internacionais foram organizadas para discutir e criar regras e estratégias de controle sanitário, que tinham sérias implicações para um país exportador de matérias-primas e receptor de imigrantes, como o Brasil. A Primeira Guerra foi, igualmente, um marco no que se refere à mortalidade da população civil e de tropas, devido às condições sanitárias nos campos de batalha da Europa. Seu término foi acompanhado pela pandemia da gripe espanhola, cujo impacto, inclusive no Brasil, pode ser avaliado pelas estimativas que apontam 30 milhões de mortes em todos os continentes, entre março de 1918 e janeiro de 1919 (cf. Patterson e Pyle, 1991).

No caso brasileiro, movimentos como a Liga de Defesa Nacional e a Liga Nacionalista vislumbraram diversos caminhos para a recuperação e/ou fundação da nacionalidade: saúde, educação, civismo e valores nacionais, serviço militar obrigatório etc. (Skidmore, 1989; Oliveira, 1990). Um desses movimentos, a Liga Pró- Saneamento do Brasil, fundada em 11/2/1918, e liderada pelo médico e inspetor-sanitário Belisário Penna, no primeiro aniversário da morte de Oswaldo Cruz, pretendia alertar as elites políticas e intelectuais para a precariedade das condições sanitárias e obter apoio para uma ação pública efetiva de saneamento no interior do país ou, como ficou consagrado, para o saneamento dos sertões. Em um contexto no qual prosperava a idéia de salvação nacional, o sanitarismo encontrava-se sintonizado com as tendências gerais das correntes nacionalistas brasileiras, sendo tributário das observações de Euclides da Cunha sobre o sertão e os sertanejos (Castro Santos, 1985; 1987; Oliveira, 1990).

Cabe assinalar quatro eventos significativos e fundantes do movimento sanitarista. Primeiro, o impacto público da divulgação, também em 1916, do relatório da expedição médico-científica do Instituto Oswaldo Cruz, chefiada por Belisário Penna e Arthur Neiva, ao interior do Brasil, em 1912, que revelava um país com uma população desconhecida, atrasada, doente, improdutiva e abandonada, e sem nenhuma identificação com a pátria (Albuquerque et al., 1991; Penna e Neiva, 1916).2 2 O Instituto Oswaldo Cruz sucedeu o Instituto Soroterápico, criado em 1900, na Capital Federal, durante a epidemia de peste bubônica. Na gestão do cientista Oswaldo Cruz (1903-1917), tornou-se um importante centro de pesquisas e de formação de profissionais especializados em saúde pública. Foi dirigido até 1917 por Oswaldo Cruz, e por Carlos Chagas até 1934. Sobre o papel desse instituto na ciência brasileira, ver Benchimol (1990); Benchimol e Teixeira (1993); Chagas Filho (1993); Luz (1982); Schwartzman (1979); e Stepan (1976). Segundo, a enorme repercussão de um discurso - tomado como inaugurador do movimento pelo saneamento do Brasil - de Miguel Pereira, pronunciado em outubro de 1916, caracterizando o país como um imenso hospital. Terceiro, a repercussão dos artigos de Penna sobre saúde e saneamento, publicados no jornal Correio da Manhã, entre 1916 e 1917, e depois reunidos em 1918, sob o título de O saneamento do Brasil. Por último, a própria atuação da Liga Pró-Saneamento, entre 1918 e 1920, período em que se inicia a implementação da reforma dos serviços de saúde federais.

No que se refere a emblemática frase de Miguel Pereira que fazia parte de um discurso muito citado, pouco conhecido, do qual destaco o trecho principal: [...] fora do Rio ou de São Paulo, capitais mais ou menos saneadas, e de algumas ou outras cidades em que a previdência superintende a higiene, o Brasil é ainda um imenso hospital. Num impressionante arroubo de oratória já perorou na câmara ilustre parlamentar que, se fosse mister, iria ele, de montanha em montanha, despertar os caboclos desses sertões. Em chegando a tal extremo de zelo patriótico uma grande decepção acolheria sua generosa e nobre iniciativa. Parte, e parte ponderável, dessa brava gente não se levantaria; inválidos, exangues, esgotados pela ancilostomíase e pela malária; estropiados e arrasados pela moléstia de Chagas; corroídos pela sífilis e pela lepra; devastados pelo alcoolismo; chupados pela fome, ignorantes, abandonados, sem ideal e sem letras ou não poderiam estes tristes deslembrados se erguer da sua modorra ao apelo tonitruante de trombeta guerreira, [...] ou quando, como espectros, se levantassem, não poderiam compreender por que a Pátria, que lhes negou a esmola do alfabeto, lhes pede agora a vida e nas mãos lhes punha, antes do livro redentor, a arma defensiva (Pereira, 1922).

O discurso, uma saudação ao professor Aloysio de Castro, diretor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (FMRJ), foi feito no contexto de um debate de cunho nacionalista, em torno do recrutamento e serviço militar obrigatórios, e dialogava com a pregação de Olavo Bilac, direcionada para os estudantes de direito e medicina.3 3 Para o debate em torno das Forças Armadas e do serviço militar obrigatório no Brasil, no contexto da Primeira Guerra Mundial, ver Carvalho (1985) e Oliveira (1990). Miguel Pereira, professor da FMRJ e presidente da Academia Nacional de Medicina (ANM), criticava a ingenuidade e a ignorância sobre o Brasil de um deputado federal mineiro, que declarara estar disposto, em caso de invasão, a ir aos sertões e convocar os caboclos para defender o país. Lembrava que foi justamente no estado natal desse deputado, na cidade de Lassance, que Carlos Chagas, em 1909, havia descoberto a doença que leva o seu nome - mal de Chagas -, uma doença que idiotizava e deformava milhões de brasileiros, tornando-os imprestáveis tanto para o trabalho quanto para servir à pátria. A realidade sanitário-educacional no interior do país desmentia a retórica romântico-ufanista sobre o caboclo e o sertanejo.

Pereira havia se inspirado no relatório da expedição científica organizada pelo Instituto Oswaldo Cruz, em 1912, que, chefiada por Belisário Penna e Artur Neiva, percorreu o norte da Bahia, sudoeste de Pernambuco, sul do Pará, cruzando Goiás de norte a sul.4 4 Percorrendo o Brasil nas duas primeiras décadas do século XX, as expedições científicas do Instituto Oswaldo Cruz destacaram-se na produção de conhecimentos sobre a incidência de doenças, alimentando de informações o debate dos problemas nacionais. Estiveram intimamente associadas à construção de ferrovias, às avaliações da viabilidade de utilização de potencial econômico de rios, como o São Francisco, e aos trabalhos da Inspetoria de Obras contra as Secas (Albuquerque et al., 1991; Lima, 1999). Esse relatório foi peça fundamental para um diagnóstico, ou melhor, para uma redescoberta do Brasil, que mobilizou intelectuais e políticos, e impulsionou a campanha pelo saneamento. Além disso, o retrato do país apresentado nesse documento foi comentado e reproduzido em jornais e em debates acadêmicos e parlamentares, tendo convencido parte da opinião pública ao seu cruel diagnóstico.

Ao percorrer durante sete meses uma extensa área onde predominavam regiões periodicamente assoladas pela seca, visando à elaboração de estudo preliminar para a construção de açudes pelo Governo federal, a expedição realizou amplo levantamento, inclusive fotográfico, das condições climáticas, socioeconômicas e nosológicas (Albuquerque et al., 1991). O relatório ressaltava a necessidade de ações profiláticas que impedissem a associação perversa entre disponibilidade de água e foco de doenças, especialmente a malária. Continha também informações sobre clima, fauna e flora, registrando, em detalhes, as doenças que afetavam os habitantes daquelas regiões, suas condições de vida e suas atividades econômicas, além de apresentar sugestões às autoridades públicas (Penna e Neiva, 1916).

Um argumento importante do relatório é que se estava diante de uma população abandonada e esquecida que, mesmo vitimada por doenças, ainda poderia, em algumas regiões, como constataram em certas localidades da Bahia e de Pernambuco, apresentar-se robusta e resistente. De qualquer forma o cenário geral era descrito como dantesco, sendo alarmante o número de portadores da doença de Chagas, especialmente em Goiás. Os médicos Belisário Penna e Artur Neiva ressaltam o contraste entre o que observaram e relataram e a retórica romântica sobre o caboclo e o sertanejo, descrevendo o povo como ignorante, abandonado, isolado, com instrumentos primitivos de trabalho, desconhecendo o uso da moeda, tradicionalista e refratário ao progresso. Esse quadro de isolamento era responsável pela ausência de qualquer sentimento de identidade nacional. Desconheciam qualquer símbolo ou referência nacional, ou melhor, [...] a única bandeira que conhecem é a do divino (Penna e Neiva, 1916).5 5 A referência e grande influência foi a obra de Euclides da Cunha, Os sertões, de 1902. Nela, sobressaem-se elementos de força e de fragilidade - o sertanejo é um forte, mas é também rude e carente de civilização. Os sertões também destaca a importância do conhecimento empírico do país, fundamental nos textos e reflexões do movimento sanitarista. Ver Castro Santos (1985; 1987); Lima e Hochman (1996) e Lima (1999).

A ausência absoluta de qualquer identificação com o Brasil era acentuada, de acordo com Penna e Neiva, pelo abandono por parte do Governo federal, presente apenas para extrair recursos de uma população que quase não os possuía (Penna e Neiva, 1916). Apesar da descrição da população, no relatório, muitas vezes, assemelhar-se a uma imagem negativa corrente no período, a grande mudança está na atribuição de responsabilidade pela apatia e pelo atraso. Seria o governo e a doença, e não mais a natureza, a raça ou o próprio indivíduo, os grandes culpados pelo abandono da população à sua própria sorte. As autoridades públicas, em todos os níveis, são apontadas como as verdadeiras responsáveis pela situação vigente no interior do país, cujo abandono deixa como legado as endemias rurais e suas funestas conseqüências. No auge da repercussão de seu relatório, Arthur Neiva relembrava que tinha encontrado as populações dos geraes [...] vivendo ao Deus dará [...] (Neiva, 1917).

Em um primeiro movimento de qualificação, o termo sertões passa a ser sinônimo de abandono, ausência de identidade nacional e difusão de doenças endêmicas. O movimento sanitarista classificou o isolamento do sertanejo, destacado por Euclides da Cunha, como um estado de abandono da população rural pelas autoridades governamentais. Esse diagnóstico não só embasava demandas por ações positivas do governo em matéria de saneamento e saúde pública e pelo aumento da presença do poder público em vastas áreas desassistidas do país como, também, apresentava a possibilidade de conformar uma identidade de ser brasileiro distinta daquela fornecida pela doença. Nesse diagnóstico, os sertões continham um grande hospital: eram ao mesmo tempo abandono e doença.

Esse esforço de (re)conhecer o Brasil buscava descartar tanto a visão ufanista (Oliveira, 1990), quanto o pessimismo derivado dos determinismos climático, físico e racial que condenavam o país à barbárie e que levavam ao debate sobre miscigenação e imigração (Castro Santos, 1985; Skidmore, 1989). O diagnóstico de um povo doente significava que, em lugar da resignação, da condenação ao atraso eterno, seria possível recuperá-lo, através de ações de higiene e saneamento, fundadas no conhecimento médico e implementadas pelas autoridades públicas. Não bastava ter encontrado este [...] povo que ainda há de vir (Penna e Neiva, 1916), era urgente transformar esses estranhos habitantes do Brasil em brasileiros. A medicina, aliada ao poder público, era instrumento fundamental para operar essa transformação. A ciência, em especial a medicina, propiciaria um alívio para intelectuais, que, até então, não enxergavam alternativas para um país que parecia condenado, dada sua composição racial.6 6 A sensação de alívio oferecida pela ciência médica foi bem destacada por um dos que melhor expressou as angústias dessa geração de intelectuais: Respiramos hoje com mais desafogo. O laboratório dá-nos o argumento por que ansiamos. Firmados nele contraporemos à condenação sociológica de Le Bon a voz mais alta da biologia (Lobato, 1957b). Para mais detalhes, ver Lima e Hochman (1996).

Os sertões, para a campanha pelo saneamento, era mais uma categoria social e política do que geográfica.7 7 Apesar de não fazer menção às relações entre sertões e saúde pública, desenvolvidas nos anos de 1910, utilizamos como referência a revisão sobre as diferenças existentes na categoria sertões em Amado (1995). Sua localização espacial dependeria da existência do binômio abandono e doença. Na verdade, os sertões do Brasil não estariam tão longe assim daqueles a quem se demandavam medidas de saneamento, nem seriam apenas uma referência simbólica ou geográfica ao interior do país. Na instigante percepção de Afrânio Peixoto, os "sertões do Brasil" começavam no fim da avenida Central (hoje Rio Branco).8 8 O texto de Peixoto é o seguinte: [...] Se raros escapam à doença, muitos têm duas ou mais infestações [...]Vêem-se, muitas vezes, confrangido e alarmado, nas nossas escolas públicas crianças a bater os dentes com o calafrio das sezões [...] E isto, não nos "confins do Brasil", aqui no Distrito Federal, em Guaratiba, Jacarepaguá, na Tijuca [...] Porque, não nos iludamos, o "nosso sertão" começa para os lados da Avenida. (Peixoto, 1922, ênfases nossas). Não coincidentemente, essa citação, que teve enorme repercussão, é parte de um discurso de Afrânio Peixoto em homenagem a Miguel Pereira em 19/5/1918. De forma semelhante, um importante divulgador da campanha, Monteiro Lobato, enfatizava mais a periferia dos núcleos urbanos como alvo prioritário de uma campanha de saneamento (Lobato, 1957b).

A campanha pelo saneamento do Brasil sensibilizou progressivamente nomes expressivos das elites intelectuais e políticas do país e teve como um dos marcos mais significativos a criação da Liga Pró-Saneamento do Brasil, em fevereiro de 1918, em sessão pública na Sociedade Nacional de Agricultura. A leitura da ata da fundação e de seu órgão oficial, a revista Saúde, demonstra o interesse em reunir nomes expressivos nos meios militares, entre os engenheiros, médicos e advogados, além de parlamentares e do próprio presidente da República, Wenceslau Braz, que ocupou o cargo de presidente honorário. Nomes como os de Miguel Couto, Carlos Chagas, Juliano Moreira, Rodrigues Alves, Clóvis Bevilacqua, Epitácio Pessoa, Pedro Lessa, Aloysio de Castro e Miguel Calmon constituíam o conselho supremo da associação. Um dado interessante consiste na formação de delegações regionais em vários estados e na designação do então coronel Cândido Rondon para presidir a delegação de Mato Grosso (Saúde, 1918, no 1).

Se o foco central dos higienistas era a presença da doença como o grande obstáculo a ser superado, ela aparece, como indicamos, fortemente articulada com o tema da natureza, do clima e da raça. Na discussão sobre identidade nacional é freqüente a constatação da fragilidade do homem diante da natureza tropical. Esse contraste e a idéia de uma inadequação entre o ambiente natural, o homem e a cultura européia são temas constantes do pensamento social no Brasil. Poucos textos são tão eloqüentes a esse respeito como o trecho de Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda.

O recurso a uma espécie de teoria da natureza brasileira, atribua-se a ela ou não primazia nas explicações sobre o país, é uma constante no pensamento social brasileiro e de seu diálogo com as teorias européias originárias da história natural e das concepções higienistas. A idéia do homem americano como um ser fraco e submisso à natureza é uma das principais na Histoire Naturelle de L'hommme, de Buffon, e das que mais influenciou a ciência e a literatura brasileiras de fins do século XIX e início do século XX (Ventura, 1991).9 9 Não é nosso objetivo discutir as diversas representações da natureza brasileira no período em questão. Certamente a visão de uma natureza maravilhosa é uma das mais expressivas na literatura nacional e remonta às primeiras visões do "paraíso", para utilizar a imagem cunhada por Sérgio Buarque de Holanda.

Ainda que portando diferenças e ambigüidades, no diálogo que os cientistas e médicos higienistas travam em fins da década de 1910 com as interpretações ufanista e romântica sobre a natureza e o homem brasileiros, ganha destaque a idéia do sertão como sinônimo de doença e, também, de uma natureza agressiva ao homem. O sertão aparece quase como uma natureza de difícil domesticação e, mais uma vez, isto tem por referência a quase totalidade do território. Um artigo do educador Carneiro Leão, participante do movimento pelo saneamento dos sertões, é elucidativo: Não eram somente as terras infernais da Amazônia, onde o cearense ou o caboclo de aço às vezes mal chegava e a malária o dizimava em poucas horas, que infelicitavam o povo brasileiro.

Mesmo os sertões mais saudáveis do Nordeste e do Sul eram verdadeiros matadouros. E foi para o Brasil inteiro um espanto e revelação dolorosa. Se toda a gente supunha os sertões brasileiros sanatórios miraculosos, a cujos ares nem a própria tuberculose resistia (Saúde, 1918).

A hostilidade da natureza foi ainda lembrada em muitos outros textos e, no caso do discurso higienista, aparece com freqüência o contraste entre a exuberância dos elementos naturais e a fragilidade do homem. Nessa perspectiva, a higiene é apontada como conhecimento e conjunto de práticas capazes de fazer a mediação entre o estado natural e a civilização. Artigo de Monteiro Lobato na revista Saúde, órgão da Liga Pró-Saneamento do Brasil, contém afirmações elucidativas sobre este ponto. Reportando-se ao que via como degeneração do homem, pergunta o escritor paulista: Por que degenera ele justamente onde por impulsão ambiente, deveria altear-se ao apogeu? Por que na Amazônia, onde tudo alcança o máximo, só ele dá de si o mínimo?

E como resposta: O Homem com o civilizar-se, afastou-se da natureza. Desrespeitou-a, infringiu-lhe as leis. A conseqüência disso foi o enfraquecimento (Saúde, 1918).

A grande ameaça nas zonas tropicais para este homem enfraquecido pela civilização se encontraria na multiplicação da fauna diminuta dos insetos e vermes e da fauna invisível dos microorganismos. O discurso mais comum parece ser o que atribui à natureza de países tropicais como o Brasil uma efervescência de vida, tal como aparece na citação de Gilberto Freyre: [...] no homem e nas sementes que ele planta, nas casas que edifica, nos animais que cria para seu uso e subsistência, nos arquivos e bibliotecas que organiza para sua cultura intelectual, nos produtos úteis ou de beleza que saem de suas mãos, - em tudo se metem larvas, vermes, insetos, - roendo papel (Freyre, 1978).

A ciência representaria uma alternativa face a essa profusão de incômodas formas de vida; uma defesa artificial diante da falha da defesa natural de homens enfraquecidos pelo processo civilizatório. Muitas outras referências a um ambiente quase infernal - onde proliferam insetos, vermes - podem ser encontradas em artigos na imprensa, textos literários e ensaios sociais. A associação entre natureza tropical e doença mereceu atenção, entre outros intelectuais, de Rui Barbosa que, com seu estilo característico, afirmou em discurso de homenagem póstuma a Oswaldo Cruz: Se Deus não nos suscitasse a missão de Oswaldo Cruz, o Brasil teria o mesmo sol com a mesma exuberância de maravilhas, mas o sol com o impaludismo, com a febre amarela, com a doença do barbeiro (Barbosa, 1917).

Entre os médicos higienistas, mesmo após o advento da bacteriologia, o debate sobre a influência do clima na nosologia brasileira continuou intenso. Nas primeiras décadas do século XX, quando ganha força a idéia da raça e do clima como moinhos de vento a ocultarem as verdadeiras razões para as doenças que assolavam o país (Peixoto, 1918), explicações climáticas continuam a ser apontadas, por exemplo, em relatos de viagens de médicos e cientistas.

Também para os médicos higienistas e cientistas dedicados à saúde pública no Brasil, o debate sobre a natureza não se resume à questão das doenças. Uma forte idéia é a que identifica uma espécie de fase intermediária entre o selvagem e o civilizado. O primeiro, mais próximo à natureza, teria uma vida mais saudável e harmoniosa, o segundo, que identificam com freqüência ao caboclo, revela uma relação puramente predatória com a natureza, além de artefatos culturais e comportamentos sociais que indicariam imprevidência. Isto naturalmente traria um impacto sobre a saúde desse homem que deixara a vida selvagem mas não poderia ser considerado um civilizado. Entre outros textos, o já citado relatório da viagem de Belisário Penna e Arthur Neiva refere-se em mais de uma passagem a doenças que apareceriam à medida em que uma civilização atrasada iria substituindo uma condição social primitiva (Penna e Neiva, 1916).

O segundo moinho de vento - a raça - foi tema de muitos textos de fundamentação higienista. Torna-se necessário discernir duas questões a ele relacionadas: o papel de determinações de natureza racial, ou étnica, na transmissão e desenvolvimento de doenças, e aquela que vem recebendo mais atenção por parte dos estudiosos do pensamento social brasileiro - a importância do debate sobre inferioridade racial nos projetos para constituir a nacionalidade.

O estabelecimento de padrões imunológicos distintos pelos grupos humanos, levando em conta diferenças de natureza étnica, é tema da maior relevância e atualidade, sendo objeto de estudos nas áreas da medicina e de genética de populações. Desse debate não surgiram explicações fundamentadas necessariamente em preconceitos raciais, mas, num contexto em que a idéia da inferioridade racial das populações indígena e negra encontrava-se legitimada pela ciência da época, pode-se compreender a impossibilidade de dissociá-lo de suas fortes implicações políticas e ideológicas.10 10 Não queremos com isto dizer que os debates científicos atuais no campo da genética não tenham implicações, ou sofram influência de perspectivas ideológicas. Apenas, num contexto em que é mais difícil se legitimar propostas calcadas em idéias de inferioridade racial, certamente o debate se torna mais complexo. Além disso, merece destaque a mobilização de certos grupos étnicos demandando políticas e pesquisas em doenças que os afetam com mais intensidade. Sobre o debate científico contemporâneo em torno do conceito de raça ver o artigo de Santos (1996).

Dentre as doenças que mais ocuparam a atenção dos higienistas brasileiros durante o século XIX e a primeira metade do século XX, a febre amarela e a ancilostomose foram aquelas em que as respostas imunológicas estiveram relacionadas à origem racial das populações (Chalhoub, 1996; Edler, 1999). No caso da ancilostomose, a influência das origens raciais no processo de transmissão e adoecimento foi proposta durante o século XIX; contudo, não se estabeleceram ilações tão fortes como ocorreu com a febre amarela. O conhecimento médico da época não apresentava grau mínimo de consenso sobre suas causas e ficava difícil estabelecer até mesmo o diagnóstico. Muitas vezes, identificava-se a doença por um dos seus sintomas mais característicos - a geofagia. Para aqueles que propuseram a existência de um agente patogênico específico, refutando explicações climáticas, raciológicas ou comportamentais, a demonstração da existência de um parasito intestinal como causa da doença só podia ser feita, na época, através de autópsias que geralmente só eram admitidas se fossem utilizados cadáveres de escravos ou de indigentes.

Os médicos higienistas que aderiram à campanha do saneamento rural refutaram as relações entre as doenças cujo combate priorizavam - malária, ancilostomose e doença de Chagas - e a origem racial da população. Enfaticamente argumentavam que todos poderiam contrair a doença, que não respeitava limites de raça ou condição social. Um de seus mais ativos militantes afirmava que o estrangeiro no Brasil era nacionalizado através da doença e, se o trabalhador nacional seguisse os preceitos de higiene apresentaria a mesma vitalidade falsamente atribuída ao estrangeiro, como se fosse uma condição natural (Penna, 1918). Estar doente ou ser saudável não eram dons da natureza.11 11 Isto não significa dizer que estivessem ausentes discussões sobre a base racial de algumas doenças e mesmo preconceitos raciais na discussão sobre os focos de origem das epidemias. Durante a epidemia de gripe espanhola, por exemplo, Fontenelle (1919) discutia a "verdadeira " origem geográfica da doença e, ao atribui-la à Ásia, chegava a afirmar: Nada de bom nos vem do Oriente.

A literatura sobre o tema indica que dificilmente se poderia falar de pensamento social brasileiro e da presença do discurso higienista, sem referência à noção de raça na elaboração de interpretações sobre o Brasil.12 12 Sobre a centralidade da questão racial no pensamento social brasileiro conferir livro organizado por Maio & Santos (1996). Idéias de inferioridade racial compõem um quadro explicativo sobre o país. Especialmente na segunda metade do século XIX, vê-se a expressiva influência, entre as elites políticas e intelectuais, das teorias européias sobre inferioridade racial. Para alguns intelectuais, os obstáculos representados pela base racial eram insuperáveis. Sob a influência de teóricos como Gobineau, Agassiz e Le Bon, apontavam um programa intenso de imigração como única saída favorável. Dentre as diversas correntes, destacavam-se os que afirmavam uma saída "mais otimista", encontrando-a num processo progressivo de "branqueamento" do Brasil. Em quaisquer dessas versões, é possível identificar como diagnóstico comum aquele que via o principal problema da nacionalidade no povo que, no limite, deveria ser substituído (Carvalho, 1998; Lima e Hochman, 1996; Skidmore, 1989).13 13 Manoel Bonfim e Alberto Torres foram dois autores que, no início do século XX, representaram posição dissonante desse tom fatalista e de condenação da nacionalidade pelas características étnicas do povo brasileiro. Ambos enfatizaram dimensões culturais e políticas do passado nacional e de organização da sociedade. Também apontaram alternativas para o país: no caso de Alberto Torres (1933; 1982), a revisão do princípio federalista e o incentivo à pequena propriedade rural, e de Manuel Bonfim (1995 [1905]), um amplo projeto educacional.

A despeito de persistirem estereótipos e afirmações em que idéias associadas a diferenças raciais aparecem, pode-se afirmar o claro predomínio de um discurso que começava a refutar a atribuição de inferioridade étnica à população brasileira. O próprio recurso à noção de raça revela muita imprecisão e, muitas vezes, o termo parece indicar o conjunto do povo brasileiro, observado de um ponto de vista biológico. A integração dos sertões à civilização do litoral, por meio de políticas de saúde e educação, representaria uma alternativa para o país. O grande problema encontrava-se nas doenças e a solução era possível com os recursos da ciência.

Não havia nos meios intelectuais e no círculo mais restrito da elite médica do período, consenso com respeito à questão racial. Percebe-se, no entanto, desde fins da década de 1910, maior ênfase atribuída às possibilidades de construção da nacionalidade no Brasil, contando com sua base étnica, e as políticas para as áreas de educação e saúde (Castro Santos, 1985; 1987; Skidmore, 1989). O país, visto por muitos como "condenado pela raça", poderia ser absolvido com os recursos mobilizados no saneamento.

Um discurso dos mais expressivos sobre a idéia-força do saneamento e sua importância nas representações sobre a sociedade brasileira não está num texto de higienista, mas no prefácio de Casa-grande & senzala (1978). O texto de Gilberto Freyre dispensa comentários mais longos: Vi uma vez, depois de quase três anos de ausência de Brasil, um bando de marinheiros nacionais - mulatos e cafuzos - descendo não me lembro se do São Paulo ou do Minas pela neve mole do Brooklin. Deram-se a impressão de caricaturas de homens e veio-me à lembrança a frase de um viajante inglês ou americano que acabara de ler sobre o Brasil: "the fearfully mongrel aspect of population". A miscigenação resultava naquilo. Faltou-me quem me dissesse, então, como em 1929, Roquette-Pinto aos arianistas do Congresso Brasileiro de Eugenia, que não eram simplesmente mulatos ou cafuzos os indivíduos que eu julgava representarem o Brasil, mas mulatos ou cafuzos doentes.

A força retórica do texto de Gilberto Freyre e sua importância como testemunho da influência das teses higienistas no debate sobre natureza, raça e cultura não elimina a presença de outras teses que, seguindo a perspectiva de esboçar retratos do Brasil, associam à idéia da doença como traço distintivo da identidade nacional os argumentos que acentuam os obstáculos derivados da mestiçagem, da inferioridade racial e da herança colonial vista como predominantemente negativa. Este é o caso de Retrato do Brasil, de Paulo Prado, publicado originalmente em 1926: População sem nome, exausta pela verminose, pelo impaludismo e pela sífilis, tocando dois ou três quilômetros quadrados a cada indivíduo, sem nenhum ou pouco apego ao solo nutridor; país pobre sem o auxílio humano, ou arruinado pela exploração apressada, tumultuária e incompetente de suas riquezas minerais; cultura agrícola e pastoril limitada e atrasada, não suspeitando das formidáveis possibilidades das suas águas, das suas matas, dos seus campos e praias; povoadores mestiçados, sumindo-se o índio diante do europeu e do negro, para a tirania nos centros litorâneos do mulato e da mulata; clima amolecedor de energias, próprio para a "vida de balanço"; hipertrofia do patriotismo indolente que se contentava em admirar as belezas naturais, "as mais extraordinárias do mundo", como se fossem obras do homem; ao lado de um entusiasmo fácil, denegrimento desanimado e estéril (Prado, 1997).

No texto de Paulo Prado, cobiça, melancolia e romantismo formam a tríade pessimista que orienta sua visão sobre o Brasil. A crítica ao ufanismo retoma temas que pareciam superados pelo discurso dos reformadores da saúde e da educação. Essa forma negativa de analisar o passado e o presente da sociedade brasileira não se restringe a um contexto histórico determinado, estando, como se sabe, muito presente no debate contemporâneo sobre os rumos do desenvolvimento ou da modernização na sociedade brasileira.

O diagnóstico médico-higienista sobre o Brasil teve conseqüências importantes. O movimento pela reforma da saúde pode ter seus impactos avaliados pelo seu legado mais concreto: a reorganização e a ampliação dos serviços sanitários federais nos anos 20 a partir da criação do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP). Porém, sua influência sobre as interpretações sobre o Brasil e os brasileiros superou seus resultados institucionais. O debate em torno do personagem Jeca Tatu, criado pelo escritor paulista Monteiro Lobato, nos permite melhor avaliar essas influências e representações sobre os contrastes sociais e as imagens da sociedade brasileira.

Jeca Tatu e a representação do brasileiro

Representação caricatural do brasileiro ou vingança de fazendeiro arruinado, conforme a denúncia de Sérgio Milliet (1981), a trajetória do personagem Jeca Tatu, criado por Monteiro Lobato, resume as mudanças verificadas na compreensão do escritor paulista sobre o que acreditava ser os males do Brasil, e também o debate intelectual que envolveu diferentes autores preocupados com o tema dos contrastes sociais existentes no país.

Muito antes de Monteiro Lobato, viajantes, cronistas e escritores haviam se debruçado sobre as condições de vida e os tipos humanos de áreas rurais. Isolamento, ignorância e ociosidade são os termos mais comuns citados pelos autores de relatos de viagens, contos e crônicas. Ao mesmo tempo, percebe-se a dificuldade, tanto no desenho como na literatura, em consolidar uma representação "das linhas psico-físicas do brasileiro" (Cascudo, 1920) quer através de texto, quer através de imagem. Afinal, grandes distâncias geográficas e socioculturais separavam a população das diferentes regiões, especialmente no que se refere aos trabalhadores das áreas rurais. No entanto, com muita freqüência, naqueles textos, a despeito das diferenças quanto à posse da terra e às condições de vida e trabalho, entre, por exemplo, sertanejos do Nordeste, caucheiros do Norte e caipiras do vale do Paraíba, as semelhanças evidenciam-se nas descrições dos hábitos, da casa, e das crenças religiosas (Bernucci, 1995).

Os modos de representação variam intensamente no que se refere à valorização positiva ou negativa do homem e da vida no interior, desde a afirmação de elementos como força, autenticidade e comunhão com a natureza, bastante enaltecidos na literatura romântica, até o retrato negativo e sombrio que aparece em vários textos de Saint-Hilaire a Monteiro Lobato e, até mesmo de Euclides da Cunha, apesar da conhecida imagem do sertanejo como um forte, cunhada pelo autor de Os sertões. Outra forma de representar o tipo rural consiste na versão satírica esboçada mais fortemente pelo modernismo. Leopoldo Bernucci observa que "estas três maneiras de representar o tipo rural eqüivalem a três tendências estéticas em nossa literatura: a romântica, a (neo)naturalista e a modernista" (Bernucci, 1995). Para os autores românticos, elementos como autenticidade e proximidade da natureza consistem nos mais valorizados; já nas representações (neo) naturalista e modernista o tema da preguiça aparece como o grande elemento distintivo, por mais que pudesse variar o diagnóstico sobre suas causas. E, a partir de tal referência, cria-se a moldura onde se esboça o retrato ou caricatura do homem rural brasileiro.

Nas representações românticas sobre o caipira, a adaptação ao ambiente, a força e a virilidade são elementos acentuados, especialmente em imagens sobre caçadas. A literatura regionalista paulista, tanto em fase anterior como em época contemporânea à obra de Lobato, descrevia o caipira como homem forte, matreiro e independente. Da mesma forma, ele aparece no quadro Caipiras negaceando, de Almeida Jr., que mostra dois caipiras caçando: figuras fortes, olhares vivos e espertos, revelando pleno domínio da natureza (Ribeiro, 1993).

A caracterização do caipira como indolente, imprevidente e parasita - um "piolho da terra" - alcança seu ponto máximo nos textos de Monteiro Lobato. No artigo "Velha praga", o escritor paulista denuncia a atividade predatória do caboclo, responsável pela destruição da mata com suas queimadas. Sobressai o caráter nômade e a imprevidência desse homem rústico: Este funesto parasita da terra é o cabloco, espécie de homem baldio, semi-nômade, inadaptável à civilização, mas que vive à beira dela na penumbra das zonas fronteiriças à medida que o progresso vem chegando com a via férrea, o italiano, o arado, a valorização da propriedade, vai ele refugindo em silêncio, com o seu cachorro, o seu pilão, o pica-pau e o isqueiro, de modo a sempre conservar-se fronteiriço, mudo e sorna (Lobato, 1957a).

Em Urupês completa-se o retrato do caboclo que passa, então, a se chamar Jeca Tatu. Nesse artigo, Lobato define o Jeca como "um piraquara do Paraíba", a quem nada põe de pé. Diante de problemas no sítio do qual era agregado ou de grandes mudanças na vida política nacional, fosse a abolição da escravidão ou a proclamação da República, o caboclo continuava "de cócoras, a modorrar" (idem).

Com sua retórica contundente e numa crítica à literatura romântica, Monteiro Lobato afirma: Pobre Jeca Tatu! Como és bonito no romance e feio na realidade! Para Lobato, a ciência e as viagens ao interior do Brasil teriam revelado um outro indígena e um outro sertanejo muito distantes dos idealizados pela escrita de José de Alencar. Morrera Peri: Esboroou-se o balsâmico indianismo de Alencar ao advento dos Rondons que, ao invés de imaginarem índios num gabinete, com reminiscências de Chateaubriand [...] metem-se a palmilhar os sertões de Winchester em punho (idem).

Uma frase preciosa resume a imagem que o escritor faz de Jeca: "Não paga a pena". Segundo Lobato, todo o inconsciente filosofar do caboclo grulha nessa palavra atravessada de fatalismo e modorra. Nada paga a pena. Nem culturas, nem comodidades. De qualquer jeito se vive (idem).

A idéia de que o caboclo indolente e parasitário poderia sofrer profunda transformação e tornar-se um agente de mudança social e modernização passa a ser defendida por Monteiro Lobato após o contato com as propostas e os intelectuais que participaram da campanha em prol do saneamento do Brasil, no período que se estende de 1916 a 1920. No mesmo ano de 1918 em que Belisário Penna publicou Saneamento do Brasil, Monteiro Lobato lançou Problema vital, que reúne série de artigos sobre o tema do saneamento divulgados originalmente em O Estado de São Paulo, entre os quais um dedicado à ressurreição do Jeca Tatu.

A regeneração ou ressurreição do Jeca Tatu inscreve-se numa nova perspectiva do autor de Urupês olhar para o problema da integração do homem do interior. O diagnóstico sobre a preguiça do caboclo mudara; às doenças, reveladas à nação através dos relatórios das viagens dos cientistas do Instituto Oswaldo Cruz ao interior, cabia a responsabilidade pela situação de miséria e indigência em que se encontrava o caboclo. A frase que sintetiza essa espécie de "conversão" de Lobato ao ideário sanitarista é bastante conhecida e serve de epígrafe para o livro: O Jeca não é assim: está assim.14 14 Na 2 a edição de Urupês, Monteiro Lobato incluiu nota explicativa em que pedia desculpas ao Jeca Tatu: E aqui aproveito o lance para implorar perdão ao pobre Jeca. Eu ignorava que eras assim, meu Tatu, por motivos de doença. Hoje é com piedade infinita que te encara quem, naquele tempo, só via em ti um mamparreiro de marca. Perdoas?

A ressurreição do Jeca Tatu é narrada na forma de uma parábola dirigida às crianças. Ao passar a acreditar na ciência médica e a seguir suas prescrições, o personagem transforma-se. Livre da opilação e, como conseqüência, do estado de permanente desânimo, torna-se produtivo e, em pouco tempo, um próspero fazendeiro, competindo com seu vizinho italiano e, rapidamente, ultrapassando-o (cf. Lima e Hochman, 1996). Mais do que isso: modernizou sua propriedade, introduziu novas lavouras e tecnologia e aprendeu a falar inglês. Ao fim da história, um ensinamento moral: Jeca Tatu transformara-se não apenas num homem rico, mas em incansável educador sanitário que transmitia a seus empregados todos os conhecimentos que aprendera. Morreu muito idoso, sem glórias, mas consciente de que havia cumprido sua missão (Lobato, 1957b).

Muitos elementos poderiam ser destacados da narrativa de Lobato, entre eles, a comparação da produtividade do trabalhador nacional sadio com a do imigrante italiano; a defesa enfática da modernização da agricultura como alternativa para o país; o fazendeiro norte-americano como modelo e a atribuição de uma responsabilidade social ao novo "empresário rural". De particular importância é o fato de a ressurreição do Jeca Tatu implicar a superação da mentalidade tradicional do caboclo, que não se interessava mais em trabalhar apenas para viver.

A força de Jeca Tatu encontra-se precisamente na perda de sua referência específica ao agregado ou trabalhador rural improdutivo, quando ganha a dimensão de símbolo nacional. Percebe-se em textos de Lobato e de outros intelectuais a auto-identificação com o personagem que passa a ser visto como expressão de autenticidade e representação simbólica da nação. Daí a denúncia de Oswald de Andrade (1981) contra os que queriam "liquidar com o Jeca Tatu". Há alguma coisa de Jeca nesse intelectual que se sente à semelhança do sertanejo de Euclides, um "estrangeiro na própria terra".

Intenso debate envolveu a figura de Jeca Tatu, desde os primeiros textos escritos por Monteiro Lobato. Como observa André Campos (1986), o que se discutia fundamentalmente era o papel da questão racial na construção da nacionalidade e as possibilidades de modernização do país. O artigo "Velha praga" foi transcrito em sessenta jornais e provocou muita controvérsia (cf. Campos, 1986) que se acentuou após a conferência de Rui sobre a questão social e política no Brasil. Se é verdade que o intelectual baiano (Barbosa, 1981) promovera a consagração do autor de Urupês, não é menos verdadeiro que seu texto questionava a representação do Brasil como um país de Jecas-Tatus. Vale a pena transcrever trecho daquela conferência: Mas, senhores, se é isso o que eles vêem, será isto, realmente, o que nós somos? Não seria o povo brasileiro mais do que esse espécimen do caboclo mais desasnado, que não se sabe ter de pé, nem mesmo se senta, conjunto de todos os estigmas da calaçaria e estupidez, cujo voto se compre com um rolete de fumo, uma andaina de sarjão e uma vez de aguardente?

Muitas vezes a contraposição de tipos humanos parece realçar as diferenças entre o sertanejo fortalecido pela hostilidade do meio e o caipira paulista descrito por Monteiro Lobato. Mas o que com freqüência se faz é aproximar os dois brasileiros, o que fica muito bem ilustrado pelo texto de Luiz da Câmara Cascudo (1920) em que este ressalta: Não quer dizer que o sertanejo, lutando contra os elementos, arrostando as longas caminhadas sob um sol de fogo, entrando destemido nas matas amazônicas, seja literalmente um Jeca-Tatu. Porém, quem viaja e quem vê pelo sertão o fatalismo do sertanejo, a limitação de sua agricultura, a instintiva desconfiança pela civilização, a sua habitual indolência que o faz esquecer a rude lição das secas e nada (enceleirar) nos anos de inverno, a sua palestra, a sua ignorância política, enfim, os remédios populares, a ingênua crendice dos curandeiros e das mezinhas verá a imensa verdade das páginas vivas do Urupês.

Um debate implícito com Lobato, em torno da fábula da preguiça, pode ser visto na abordagem dos modernistas paulistas. As relações entre eles e Monteiro Lobato foram, como se sabe, bastante tensas e, por vezes, inamistosas, e marcadas originalmente pela crítica à exposição de Anita Malfatti, em 1917, e à Semana de Arte Moderna de 1922. Não seria possível reconstituir a totalidade das divergências que envolveram o autor de Urupês e os intelectuais participantes da Semana de 1922. O anti-modernismo de Lobato foi, por exemplo, duramente criticado por Sérgio Milliet (1981). Já Oswald de Andrade (1981), em artigo publicado na década de 1940, lastimava que o escritor, em virtude de suas atitudes, não fosse reconhecido como uma das expressões do modernismo. Ao falar desse movimento, por seu turno, Lobato (1957c) abrigava-se na identidade de Jeca Tatu, um intelectual Jeca, crítico diante do que apontava como "macaquices" dos modernistas.

Não pretendo tratar especificamente dessas polêmicas que envolveram os intelectuais paulistas. O ponto que quero observar aqui, no que concerne aos modernistas, consiste no fato de Macunaíma poder ser lido como uma crítica na forma de sátira, à condenação do homem brasileiro por sua miscigenação e indolência. A sensualidade e o aspecto lúdico, que inclusive encontram expressão numa palavra comum - brincar - figuram entre as principais qualidades realçadas na narrativa. O brado "Ai, que preguiça" proferido a todo momento pelo herói criado por Mário de Andrade, reforçava a idéia de que nem toda a conquista valia esforço que se fizesse excessivo; nem tudo "pagava a pena" ("Ter de trabucar, ele herói...", Andrade, 1988).

O próprio discurso sanitarista endossado por Lobato seria alvo da ironia de Mário de Andrade na célebre frase: Pouca saúde e muita saúva..., expressando a intensa propaganda em torno de dois temas - campanhas sanitárias e combate à praga representada pelas formigas - que mereceram, como se sabe, espaço privilegiado em artigos e contos de Monteiro de Lobato. Para Macunaíma, o herói "sem nenhum caráter", a frase aparecia como um dístico das campanhas a serem realizadas pela "gente útil do país", os paulistas. O personagem a explica como reação à possibilidade de um retorno do Brasil à situação colonial, tal como ressalta na carta dirigida às amazonas "Icamiabas": Porém, senhoras minhas! Inda tanto nos sobra, por este grandioso país, de doenças e insetos, por cuidar!... Tudo vai num descalabro sem comedimento, estamos corroídos pelo morbo e pelos miriápodes! Em breve seremos novamente uma colônia da Inglaterra ou da América do Norte!... Por isso e para eterna lembrança destes paulistas, que são a única gente útil do país, e por isso chamados de Locomotivas, nos demos ao trabalho de metrificarmos um dístico, em que se encerram os segredos de tanta desgraça: "Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são".

Este dístico é que houvemos por bem escrever no livro de Visitantes Ilustres do Instituto Butantã, quando foi da nossa visita a esse estabelecimento famoso na Europa (idem, 1988).

O tema se repete ao fim da narrativa de Mário de Andrade, onde se acentua a aproximação entre Macunaíma e o ideal dos reformadores; também o herói teria desistido de brincar no país de pouca saúde e muita saúva e decidido virar constelação: Diziam que um professor naturalmente alemão andou falando por aí por causa da perna só da Ursa maior que ela é o saci... não é não ! Saci inda pára neste mundo espalhando fogueira e traçando crina de bagual.... A Ursa Maior é Macunaíma. É mesmo o herói capenga que de tanto penar na terra sem saúde e com muita saúva, se aborreceu de tudo, foi-se embora e banza solitário no campo vasto do céu.

Não há, nesse caso, qualquer compromisso em retratar com fidelidade um tipo social específico, como Lobato afirma tentar fazer com o seu Jeca Tatu. Em Macunaíma, também não há intenção de delimitar espaço geográfico ou tempo em que se desenvolve a narrativa; trata-se de uma alegoria sobre a identidade nacional, em que a fábula da preguiça alcança expressão positiva e heróica.

Para Mário de Andrade, não se tratava também de transformar o herói, de lhe atribuir um caráter específico, de alterar suas características básicas. Mesmo com mentalidade primitiva era possível a Macunaíma lidar com a máquina e com os demais artefatos da sociedade moderna; transitar pela floresta, pela mata e pela cidade.

Em sua dimensão simbólica representativa do homem brasileiro, ou em sua feição mais concreta de caricatura do caipira, o Jeca não morreria nos anos seguintes à publicação de Macunaíma. De retrato bucólico, de paciente de ações médico-sanitárias, de objeto de admiração, identidade ou repulsa pelos intelectuais, de personagem de filmes humorísticos, ele se transformaria em objeto de pesquisa das novas perspectivas do trabalho sociológico. O ideal de ressurreição de Jeca Tatu será transformado, pelos trabalhos sociológicos que se desenvolvem sob a égide da Escola Livre de Sociologia e Política e Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de São Paulo (USP), em projeto de assimilação do trabalhador rural, de superação das resistências culturais ao processo de mudança social então em curso.

Jeca Tatu revisitado pela sociologia acadêmica

É com base no conceito de cultura rústica, proposto pelo sociólogo Emílio Willems, que Jeca Tatu será revisitado por toda uma linha de investigações que tem lugar nos primeiros cursos de ciências sociais criados na década de 1930, em São Paulo. A passagem a seguir sintetiza a continuidade da compreensão sobre as dificuldades de projetos de modernização como conseqüência das resistências das populações afastadas dos centros urbanos civilizados: Se for traçada uma reta, no mapa do Brasil, ligando a cidade de São Paulo às cabeceiras do Xingu, no planalto matogrossense, encontra-se, ladeando essa linha, uma série de agrupamentos humanos culturalmente muito heterogêneos. Numa extremidade está a metrópole moderna representando um tipo de civilização urbana que se está rapidamente difundindo em todas as zonas da Terra onde entrou a cultura ocidental [...].

Prosseguindo pela reta encontram-se, já bem mais distante do ponto de partida, populações caboclas cuja vida parece decorrer em um mundo diferente do nosso. Pouco ou nada as liga ao mercado urbano. Não dependem dele e o uso que fazem do dinheiro é muito restrito [...]. Geralmente se é impiedoso com essas populações; aplicam-se-lhes epítetos como "atrasados", "indolentes" [...]. Se se perguntar a um de seus indivíduos se conhece o nome do presidente da República, ele não entenderá bem o sentido da nossa pergunta. Pouco ou nada se incomodarão com o nosso conselho de curar ou evitar a anquilostomíase. Embora falem português não parece fácil entender-se com eles (Willems, 1944).

Um dos pontos centrais destacados por Emílio Willems é a ausência de um sistema de entendimentos comuns que possa servir de base à civilização urbana e à multiplicidade das culturas sertanejas. O tema da distância cultural é enfatizado pelo autor que caracteriza o Brasil como um aglomerado de culturas diversas que se localizam na mesma fronteira política. Permanece, assim, em cena o tema recorrente dos obstáculos à construção da nacionalidade no país.15 15 Cultura é definida por Willems como "sistema de entendimentos comuns" (Willems, 1944).

Um texto chave para compreendermos a posição de Willems é "o problema rural brasileiro do ponto de vista antropológico" em que o sociólogo defende programa de intervenção política nas "culturas sertanejas", baseado em especialistas de diferentes áreas e com forte peso das ciências sociais. O trabalho foi publicado pela Secretaria da Agricultura, Indústria e Comércio do Estado de São Paulo e, ao longo da argumentação apresentada, é inegável a defesa do sentido político dos estudos de comunidades rurais, quer de imigrantes, quer as comunidades de "caboclos" ou "sertanejos".

A idéia de cultura sertaneja, cultura cabocla ou cultura rústica, termos que se alternam nos textos de Emílio Willems, apresenta diferenças em relação ao de cultura de folk. No conceito de cultura cabocla, o contato interétnico representa importante papel, como podemos ver no seguinte trecho: Quase todos os países latino-americanos têm suas culturas caboclas. Na África e na Oceania se encontram culturas primitivas ou semi-primitivas e os contatos que se estabelecem entre elas e os civilizadores brancos podem ser comparados - mutatis mutandis - aos contatos que ligam a civilização litorânea no Brasil às culturas sertanejas (Willems, 1944).

A definição de cultura cabocla e suas diferenças em relação às tradicionais culturas camponesas européias referiam-se também ao nomadismo e à idéia do uso predatório da terra e dos recursos naturais: O esgotamento das terras, associado a técnicas extensivas e a uma pressão demográfica relativa leva necessariamente ao semi-nomadismo e desapego à gleba, traço cultural esse que contrasta com a sedentariedade absoluta dos camponeses europeus (idem).

O caboclo - designação que, de início, indicaria predominantemente o contato interétnico do branco português com o indígena - passa a se referir a um modo de vida: o "modo de vida caipira". A organização econômica do caboclo típico é pré-capitalista e, segundo o sociólogo, a única possível em determinadas circunstâncias.

O problema das populações sertanejas encontrava-se no estágio pré-capitalista em que viviam, nas palavras de Willems, uma "existência vegetativa e autosuficiente". Tratava-se de propor intervenção em suas formas de vida que suscitasse novas necessidades e as integrasse à economia de mercado. Apenas o conhecimento oriundo das ciências sociais permitiria uma ação orientada no sentido de alterar práticas culturais de forma congruente com o meio em que se inseriam. A desconsideração face a esse universo cultural mais amplo poderia, no limite, gerar situações de miséria diante das quais seria "mil vezes preferível" a "existência vegetativa" das populações sertanejas, por mais que elas afrontassem o "espírito capitalista" (Willems, 1944).16 16 De acordo com Willems (1944), a condição das populações sertanejas seria preferível "à verdadeira miséria, por exemplo, daqueles 300.000 lavradores norte-americanos cuja sorte nos descreveu John Steinbeck em As vinhas da ira.

Muitos dos erros cometidos na tentativa de desenvolver ações pedagógicas junto a populações sertanejas são atribuídos a medidas que consideravam inadequadamente seu contexto cultural. Retoma o tema da "escola de alfabetização" como um exemplo do que não se deveria fazer; apesar de o sociólogo não utilizar o termo, a idéia é que sua introdução provocaria um efeito anômico, pouco contribuindo para integrar a cultura sertaneja numa economia competitiva e em padrões de consumo e de vida considerados civilizados. O reformador sempre seria colocado diante de problemas extremamente complexos e os especialistas, que geralmente desenvolviam ações junto a essas populações, focalizavam um traço cultural ou o enxerto de uma inovação, não observando que o êxito dependeria da proporção em que outros elementos culturais pudessem ser substituídos (Willems, 1944).

Willems considera que um dos elementos básicos, o regime de trabalho, está quase sempre associado a concepções do tempo, à alimentação, à organização da família, à religião e às atividades recreativas. Defende, por fim, a presença de cientistas sociais nos processos de mudança dirigida, além dos tradicionais especialistas envolvidos em projetos para as populações caboclas: médicos sanitaristas, agrônomos, educadores e economistas: [...] os observadores são quase sempre especialistas interessados, por exemplo, em curar a maleita, em difundir o cultivo da batatinha, em implantar hábitos profiláticos contra a ancilostomíase, em estudar as possibilidades do crédito ou da organização de cooperativas, os processos básicos passam despercebidos.

E, em outra passagem: Para os médicos, o caboclo é um doente e um subalimentado; para o educador todo "mal" reside no analfabetismo; o agrônomo verifica a inexistência de conhecimentos "racionais" de agricultura; os economistas dão pela falta de crédito, de mercados e meios de comunicação; os moralistas desejam erradicar certos vícios e assim por diante.

Esses especialistas não poderiam ignorar o papel das ciências sociais, especialmente da sociologia e da antropologia, às quais se poderiam associar a ecologia, a demografia e a psicologia social, na elaboração de planos científicos voltados à análise cultural e à organização do processo de transição para uma sociedade moderna.

Dois deveriam ser os parâmetros nos processos de mudança dirigida entre essas populações: a "interrupção do processo multissecular de transmissão tradicional", seguida da substituição do antigo patrimônio por um novo, ajustado ao sistema econômico moderno; e a articulação do patrimônio cultural assim construído ao meio a que se deveria ajustar. Eles deveriam orientar ações de que constituiria exemplo um plano de criação de internato agrícola, que estava em vias de ser fundado em São Paulo, e merece destaque no texto. Do ponto de vista de Emílio Willems, a proposta tinha aspectos positivos, mas deveria ser acompanhada de outras medidas que de fato garantissem uma mudança de mentalidade através da interrupção do processo "multissecular de transmissão tradicional". A idéia era afastar o educando de seu meio original, garantindo assim o corte com a experiência anterior. O retorno à comunidade poderia trazer, todavia, os antigos constrangimentos da cultura tradicional, muito reforçados pela família e pelas relações vicinais.

O imigrante representava o tipo social que mais facilmente assimilaria os elementos considerados necessários à adaptação ao "sistema econômico moderno", pois o que se desejava evitar eram retrocessos após o retorno do educando a seu meio de origem. Tratava-se de impedir o "acaboclamento cultural desse novo tipo de povoador-modelo", o que só seria possível aliando à ação educacional outras formas de intervenção organizada". Estudos sociológicos e antropológicos cumpririam nesse aspecto importante papel e se poderia seguir o exemplo dos Estados Unidos, onde especialistas em sociologia rural cooperavam com departamentos técnicos e administrativos do governo federal e dos governos estaduais na busca de solução para os problemas rurais.

O debate sobre processos de mudança sociocultural e o enfoque de possibilidades de manifestação de anomia entre as populações sertanejas acompanham outros estudos que se desenvolveram, ao menos em parte, sob inspiração dos trabalhos de Emílio Willems. Este é o caso das posições de Florestan Fernandes em torno do dualismo litoral/interior abordado especialmente na análise crítica do relatório da viagem empreendida por um médico ao vale do Tocantins, entre 1934 e 1938. Trata-se da viagem de Júlio Paternostro, médico do Serviço de Febre Amarela da Fundação Rockefeller, a regiões percorridas pela expedição Penna e Neiva em 1912. A viagem de Paternostro fora apresentada, e assim figurava na Coleção Brasiliana, como mais um momento de "redescoberta do Brasil" e de denúncia das precárias condições de vida no interior.

Em Um retrato do Brasil, Florestan Fernandes (1979) apoia-se naquele documento para discutir o significado da oposição entre litoral e sertão e indicar a necessidade de pesquisas feitas por especialistas sobre as populações e relações sociais no interior do país. Ressalta o fato de o trabalho de Paternostro ser um trabalho "interessado", motivado pelas convicções socialistas do médico, o que conferia um caráter de denúncia ao livro, que via como aspecto positivo, a despeito de apontar simplificações, omissões e superficialidade no tratamento de algumas questões.

Conformados pela tradição, milhares de indivíduos viviam a vida dos séculos XVIII ou XIX e, no contato entre o civilizado do litoral e o homem sertanejo, o "pária da civilização", como o chamou Paternostro, as atitudes variavam da simpatia à rejeição, mas eram marcadas por inegável etnocentrismo. E numa frase de forte apelo simbólico, Florestan afirma que a realidade cultural do Brasil é e será ainda durante alguns anos a descrita por Euclides da Cunha em Os sertões (Fernandes, 1979).

Falar em sertão e em antagonismo entre litoral e interior implica, na perspectiva de Florestan Fernandes, perceber as resistências à modernização e a necessidade de um papel ativo do cientista social no processo de "mudança dirigida" reclamado. Tratava-se, em síntese, de defender a adoção pelo governo e pelas administrações locais de técnicas sociais, informadas por trabalhos de especialistas da área de ciências sociais, capazes de subsidiar uma política de controle e orientação, na medida do possível, dos processos sociais. O sociólogo afirma que o problema da intervenção e do controle sobre processos sociais era constitutivo das ciências sociais que, em suas palavras, nasceram e desenvolveram-se, sob o signo de Augusto Comte ou sob o signo de Karl Marx - com o duplo propósito do conhecimento exato da realidade social; e de seu domínio pelo homem.

Enfoque distinto para a abordagem dos temas dos contrastes culturais e da modernização da sociedade brasileira nos é apresentado por Antônio Cândido (1971). Em Os parceiros do Rio Bonito, esse autor discute as transformações nos meios de vida e padrões de sociabilidade do caipira paulista tradicional, relacionando-as às mudanças socioculturais que acompanharam os processos de urbanização e industrialização no estado de São Paulo. Abandonando a intenção original de investigar o impacto do processo de mudança nas manifestações folclóricas, mais precisamente no cururu, dança típica da região pesquisada, o sociólogo acabou desenhando um novo retrato de nosso conhecido personagem Jeca Tatu.17 17 Em Os parceiros do Rio Bonito, Antônio Cândido analisa os dados coligidos em estudo de campo realizado no município de Bofete, durante o ano de 1948. O sociólogo retornou à localidade em 1954, confrontando os novos dados com os obtidos no primeiro momento da pesquisa (cf. Cândido, 1971).

O conceito de cultura rústica baliza a análise do autor, que acentua a necessidade de distingui-lo de folk-culture, pois, se em ambos trata-se do tema do isolamento relativo e da incorporação e reinterpretação de traços culturais, que vão se alterando ao longo do contínuo rural-urbano, cultura rústica indica um padrão específico de contato interétnico e cultural. Entende, dessa forma, que: No caso brasileiro, rústico se traduz praticamente por caboclo no uso dos estudiosos, sendo provavelmente Emílio Willems o primeiro a utilizar de modo coerente a expressão cultura cabocla; e com efeito aquele termo exprime as modalidades étnicas e culturais do referido contato do português com o novo meio (Cândido, 1971).

Assim como nos trabalhos de Emílio Willems, a análise de Antônio Cândido aproxima a cultura cabocla do caipira à existência nômade ou semi-nômade, associada ao processo de conquista dos sertões. O fato teria suas raízes históricas no fenômeno das entradas e bandeiras pois a expansão geográfica dos paulistas, nos séculos XVI, XVII e XVIII, teria resultado não apenas na incorporação do território às terras da Coroa portuguesa na América, mas na definição de certos tipos de cultura e vida social, condicionados em grande parte por aquele grande fenômeno de mobilidade (Cândido, 1944).

Segundo esse argumento, o homem rústico do interior paulista teria herdado do bandeirante a esquivança, o laconismo, a rusticidade e, como corolário da grande mobilidade e dos padrões mínimos de vida, o espírito de aventura: [...] na habitação, na dieta, no caráter do caipira, gravou-se para sempre o provisório da aventura (idem). A principal característica dessa cultura cabocla consistia na rusticidade, resultado do encontro de padrões culturais europeus com os de "sociedades primitivas", modelando esses últimos, em grande parte, o modo de ser das populações caipiras (idem).

A dieta alimentar resultaria dessa vida nômade e apresentava sensível semelhança com a dos bandeirantes, conforme a descrição de Alfredo Ellis em Raça de gigantes. O leite, o trigo e a carne de vaca seriam itens muito raros e a caça, atividade caipira por excelência. Segundo Cândido, nela se "desenvolvia a extraordinária capacidade de ajustamento ao meio, herdada do índio". Também na habitação a provisoriedade estava gravada. A casa, um abrigo de palha sobre paredes de pau a pique, recebia o nome de "rancho", indicando o caráter de pouso que tinha para o morador.

O sociólogo não se detém muito a explicar como uma característica cuja origem histórica remontava ao bandeirismo e a um certo padrão de povoamento se cristalizara, mais preocupado que estava com o processo de mudança nas áreas tradicionais de São Paulo, como efeito da industrialização e da urbanização. Tratava-se também de pensar como traços culturais vistos como garantidores de "equilíbrio ecológico", portanto funcionais ao modo de vida caipira, se comportariam nas novas condições de organização social. Por conseguinte, não resta dúvidas ao autor que a cultura caipira ou cabocla - caracterizada por relativa independência em relação aos núcleos urbanos, disponibilidade de terras, trabalho doméstico, auxílio vicinal e acentuado tempo disponível para as atividades de lazer - representava um padrão adaptativo às condições do meio: Tendo conseguido elaborar formas de equilíbrio ecológico e social, o caipira se apegou a elas como expressão da sua própria razão de ser, enquanto tipo de cultura e sociabilidade. Daí o atraso que feriu a atenção de Saint-Hilaire e criou tantos estereótipos, fixados sinteticamente de maneira injusta, brilhante e caricatural, já neste século, no Jeca Tatu de Monteiro Lobato (idem).

O estereótipo da indolência explicava-se pela organização da cultura, tanto em termos biológicos, e daí a importância dos estudos da alimentação, como sociais, em torno de padrões mínimos, daí resultando uma margem de lazer maior.18 18 Devemos compreender a falada indolência do caipira como recurso de adaptação a um nível biótico precário, no qual as carências de dieta e higidez impediam atividade mais intensa, mas que se ajustavam ao ritmo econômico e eram corrigidas em parte pela organização social (Cândido, 1971). Esses padrões trariam dificuldades para a adaptação posterior a novos ritmos de trabalho e a eles também se somavam características da saúde e da nutrição, apontadas muitas vezes como causas únicas.19 19 Entre as fontes utilizadas por Cândido referidas às condições de higiene rural e nutrição, destacam-se, respectivamente os estudos de Castro (1936) e Pessoa (1949). Deve-se ainda notar que o papel da nutrição no desenvolvimento social brasileiro adquiria sensível importância, no contexto em que Antônio Cândido escreveu seu trabalho, em grande parte devido à repercussão dos trabalhos de Josué de Castro, sobretudo Geografia da fome, publicado em 1956. Antônio Cândido estabelece aqui um diálogo com a interpretação higienista que atribuía à doença responsabilidade pela apatia e mesmo indolência do Jeca. Ao comparar as explicações do movimento do saneamento rural, apropriadas e reelaboradas por Monteiro Lobato, às defendidas pelo sociólogo é possível constatar um tom menos otimista que se acentua no trabalho de Antônio Cândido. A preguiça - que voltava a ser percebida como um dado não contingente, como um traço cultural do caipira - passaria a ser explicada pela estabilização de sua vida em termos biológicos e sociais em torno de padrões mínimos (Cândido, 1971). Assiste-se, dessa forma, a uma nova inversão da célebre frase de Monteiro Lobato: o Jeca não "estava assim", ele realmente "era assim", dados os padrões culturais que organizavam a sua vida social, uma vida "mínima".

Apesar de Antônio Cândido não se referir à idéia de espírito ou mentalidade capitalista - algo, como vimos, presente nos trabalhos de Willems -, creio ser possível pensar nesse tema como pano de fundo de seu trabalho. Ele cita inclusive artigo publicado em jornal, no qual o autor afirma que o Jeca não é vadio, simplesmente não é ambicioso nem previdente (Cândido, 1971). Tal condição aparece simbolicamente reforçada pelas origens históricas, reais ou míticas,20 20 O argumento de natureza histórica desenvolvido por Antônio Cândido associa bandeirismo e cultura cabocla ou caipira. Em nenhum momento ele se refere ao caráter mítico de tal explicação. Tal referência é, portanto, de nossa inteira responsabilidade (cf. Lima, 1999). que explicariam o sentido de independência do caipira e que o teriam colocado à margem de relações escravistas ou servis. Por isso, surgiam expressões como a registrada por Antônio Cândido - "sino é para italiano" -, que procurava dar expressão étnica a duas tradições culturais diversas: a do imigrante europeu formado secularmente nos padrões de dependência senhorial; a do caipira, herdeiro da aventura de desbravamento e posse franca dos sertões.

As relações de trabalho e a propalada preguiça não poderiam ser dissociadas da estrutura fundiária, pois expulso das posses, nunca legalizadas, o Jeca persistia como agregado, ou "buscava sertão novo, onde tudo recomeçaria" (Cândido, 1971). Apenas a partir das décadas de 1940 e 1950 sua incorporação à vida das cidades se teria tornado apreciável (idem). Em seu estudo, Antônio Cândido, ao procurar responder à pergunta de como se comportou a cultura caipira ante os fatores de desequilíbrio representados pelo latifúndio produtivo comercializado, o desenvolvimento urbano e o imigrante, chega à conclusão de que "há resistência variável da cultura caipira segundo as formas de ocupação da terra, regime de trabalho e situação legal. Onde há concentração de sitiantes e ausência de latifúndio, vemos permanecerem com mais integridade as relações vicinais e o sentimento local."

Apesar da idéia corrente do isolamento das culturas sertanejas, Antônio Cândido oferece indícios de que tal condição seria reforçada, no caso dos parceiros do Rio Bonito, pelo avanço da civilização urbana. Tradicionalmente, a estrutura fundamental da sociabilidade caipira era o bairro - "agrupamento de algumas ou muitas famílias, mais ou menos vinculadas pelo sentimento de localidade, pela vivência, pelas práticas de auxílio mútuo e pelas atividades lúdico-religiosas". Poucas frases seriam tão expressivas dessa realidade do que "o bairro é uma naçãozinha", registrada pelo sociólogo no curso de sua pesquisa, indicando a consciência de pertencimento e identidade dos moradores.

No bairro caipira é que se deveria buscar, de acordo com o autor, o sentido de autonomia atribuído por Oliveira Vianna ao poder centralizador do grande domínio rural e à independência do fazendeiro. O sentido sociológico da autarquia econômico-social não deveria ser buscado no latifúndio, "largamente aberto às influências externas, graças à sua própria situação de estrutura líder, e sim no bairro caipira, nas unidades fundamentais de povoamento, da cultura e da sociabilidade, inteiramente voltados sobre si mesmos."

Esse padrão de sociabilidade sofre profunda alteração no processo de transição da economia de subsistência para a economia capitalista, quando cada vez mais a vida social do caipira se fecharia no bloco familiar, implicando a perda das relações vicinais e dos laços organizados em torno do bairro. Antônio Cândido descreve-a como crise econômica, crise no padrão de vida e também crise sociocultural; percebendo-a como anomia, uma vez que: [...] a sua vida anterior comportava ritmo diverso, que não era estritamente determinado.... pelas necessidades econômicas mais elementares, de que depende a própria sobrevivência. A par do trabalho agrícola, ocupava-se também com a vida comemorativa, a vida mágico-religiosa, a caça, a pesca, a coleta, as práticas de solidariedade vicinal... este conjunto de circunstâncias favorecia tanto o melhor ajustamento ecológico possível a uma situação alimentar medíocre, quanto à integração social mais plena.

Em face da civilização urbana, a situação de equilíbrio ecológico da vida tradicional do caipira teria sido desestruturada, o que se faria sentir em diversos aspectos, sendo a alimentação um dos mais relevantes. A monotonia da dieta - composta basicamente por feijão, arroz, farinha e pouquíssima carne (mesmo a caça era rara) - é acentuada pelo autor que descreve, com detalhes, o cardápio semanal de um grupo de parceiros.21 21 Sobre alimentação em áreas rurais brasileiras, ver Samuel Pessoa (1949), utilizado como fonte em Cândido (1971).

Os moradores do grupo estudado eram antigos proprietários ou, na maior parte, descendentes de sitiantes e fazendeiros, originários, portanto, de camadas estáveis da sociedade caipira tradicional. Viviam, dessa forma, [...] a aventura da degradação econômica motivada pela subdivisão da herança, a impossibilidade de provar legalmente os direitos territoriais, a concentração do latifúndio que, na ascensão do café, interferiu por bem e por mal na economia dos sítios e na estrutura dos bairros.

Dividindo com outros cientistas sociais a preocupação de não fazer estudos por diletantismo, Antônio Cândido conclui seu trabalho com enfática defesa da reforma agrária, entendendo que em regiões relativamente populosas como São Paulo, o latifúndio improdutivo representaria sério obstáculo ao "progresso econômico e à estabilização da população rural."

A leitura de Os parceiros do Rio Bonito traz, entre outras contribuições, a possibilidade de explicações alternativas ao assinalado nos trabalhos de Emílio Willems e Florestan Fernandes como "resistências à mudança sociocultural". Percebe-se claramente uma atenção mais acentuada aos problemas decorrentes do processo de transformações econômicas porque passava o estado de São Paulo e às contradições subjacentes a um desenvolvimento econômico que não estaria alterando de forma significativa o problema do acesso à terra.

Poderiam ser citados outros trabalhos contemporâneos a essa investigação, que também se dedicaram a analisar aspectos das chamadas sociedades rústicas naquele estado, com destaque para o livro de Maria Sylvia Carvalho Franco (1974) e a linha de investigações sobre campesinato e messianismo desenvolvidas por Maria Isaura Pereira de Queiroz (1965; 1973).

Desse conjunto de trabalhos, pode-se concluir a continuidade do debate em torno de Jeca Tatu, visto agora a partir do conceito de cultura rústica e de importantes reflexões sobre a camada social intermediária, constituída por trabalhadores pobres e livres, em relação aos pólos clássicos de dominação e subordinação. Os "homens de saco e botija", como sugestivamente Oliveira Vianna os havia denominado na década de 1920.

O diálogo, muitas vezes implícito, com as interpretações oferecidas pelo movimento sanitarista da Primeira República está presente na produção sociológica sobre o Brasil. É possível também verificar a importância de registros médico-sanitários como fontes de pesquisa, o que pode ser exemplificado pelo recurso de Florestan Fernandes ao relatório de viagem do médico Júlio Paternostro e pela importância da obra Problemas brasileiros de higiene rural, de Samuel Pessoa, na pesquisa que resultou em Os parceiros do Rio Bonito.

As ciências sociais em sua fase de institucionalização universitária, no período que se estende aproximadamente de 1933 a 1964, mantiveram uma agenda de pesquisa em que o tema dos contrastes sociais e culturais da sociedade brasileira - os dois ou os muitos Brasis - continuaram em destaque. Da mesma forma, continuou em pauta o tema das possibilidades e das resistências à modernização, em uma nova versão do debate intelectual sobre progresso e civilização que envolveu os intelectuais de fins do século XIX e três primeiras décadas do século XX. Refletindo sobre os conceitos de cultura rústica e de resistências culturais à mudança social, verificamos a continuidade do estranhamento dos intelectuais diante de tantos Jecas-Tatus, resistentes aos conselhos dos diferentes especialistas para tratar a ancilostomose, racionalizar o trabalho e mudar seus hábitos mais arraigados e que, embora falando português, pareciam viver em uma outra sociedade.

Notas

  • Albuquerque M et al. 1991. A ciência a caminho da roça. Imagens das expedições científicas do Instituto Oswaldo Cruz ao interior do Brasil (1903-1911) Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo Cruz.
  • Amado J 1995. Região, sertão, nação. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 8, n. 15:145-151.
  • Andrade M 1988. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter, 25a ed. Itatiaia, Belo Horizonte. (Coleção Buriti n. 41).
  • Andrade O 1981 [1943]. Carta a Monteiro Lobato. Ciência e Trópico, v. 9, n. 2:195-202. Massangana/Fundação Joaquim Nabuco, Recife.
  • Barbosa R 1981 [1919]. A questão social e política do Brasil. Ciência e Trópico, v. 9, n. 2:171-178. Massangana/Fundação Joaquim Nabuco, Recife.
  • Barbosa R 1917. Oswaldo Cruz. Revista do Brasil, v. 5, n. 19, ano II:271-321.
  • Benchimol J (ed.) 1990. Manguinhos: do sonho à vida - a ciência na Belle Époque Casa de Oswaldo Cruz/ Fiocruz, Rio de Janeiro.
  • Benchimol J & Teixeira, LA 1993. Cobras, lagartos & outros bichos: uma história comparada dos Institutos Oswaldo Cruz e Butantan Editora UFRJ, Rio de Janeiro.
  • Bernucci L 1995. A imitação dos sentidos: prógonos contemporâneos e epígonos de Euclides da Cunha Universidade de São Paulo, São Paulo.
  • Bonfim M 1993 [1905]. A América Latina: males de origem Topbooks, Rio de Janeiro.
  • Breeden JO 1988. Disease as a factor in Southern distinctiveness, pp. 1-28. In T Savitt e H Young (eds.), Disease and distinctiveness in the American South The University of Tennesse Press, Knoxville.
  • Britto N 1995. Oswaldo Cruz, a construção de um mito da ciência brasileira Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro.
  • Campos AV 1986. A República do pica-pau amarelo. Uma leitura de Monteiro Lobato Martins Fontes, São Paulo.
  • Cândido A 1996. Um instaurador. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 30, ano 11:6-8.
  • Cândido A 1971 [1964]. Os parceiros do Rio Bonito. Estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida, 2a ed. Livraria Duas Cidades, Rio de Janeiro.
  • Cândido A 1949. Sociologia, ensino e estudo. Sociologia, v. XI, n. 3.
  • Carneiro Leão A 1918. Educação higiênica e saneamento. Saúde, v. 1, n. 1, s.p.
  • Carvalho JM 1999. Brasil: nações imaginadas, pp. 233-268. In JM de Carvalho, Pontos e bordados. Escritos de história e política Editora da UFMG, Belo Horizonte.
  • Carvalho JM 1985. As forças armadas na Primeira República: O poder desestabilizador, pp. 183-234. In B. Fausto (org.), O Brasil republicano. Sociedade e instituições (1889-1930), 3a ed. Difel, São Paulo.
  • Carvalho JM 1988. Brasil: nações imaginadas. In Pontos e bordados - escritos de história e política Editora UFMG, Belo Horizonte.
  • Cascudo C 1920. A humanidade de Jeca Tatu. Revista do Brasil, n. 57:84-85, São Paulo.
  • Castro J 1936. Alimentação e raça Civilização Brasileira, Rio de Janeiro.
  • Castro Santos LA 1987. Power, ideology and public health in Brazil (1889-1930) Tese de doutorado. Harvard University, Cambridge.
  • Castro Santos LA 1985. O pensamento sanitarista na Primeira República: uma ideologia de construção da nacionalidade. Dados - Revista de Ciências Sociais, n. 28:193-210.
  • Chagas Filho C 1993. Meu pai Casa de Oswaldo Cruz/ Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro.
  • Chalhoub S 1996. Cidades febris Companhia das Letras, São Paulo.
  • Cunha E 1966 [1902]. Os sertões: Campanha de Canudos Aguillar, São Paulo.
  • Edler FC 1999. A constituição da medicina tropical no Brasil oitocentista: da climatologia à parasitologia médica Tese de doutorado. Instituto de Medicina Social/UERJ, Rio de Janeiro
  • Fernandes F 1979. Mudanças sociais no Brasil, 3a ed. Difel, São Paulo.
  • Fontenelle JP 1919. Comentário médico-higiênico sobre a epidemia da influenza malígna. Saúde, v. II:1-46.
  • Franco MSC 1974. Homens livres na ordem escravocrata, 3a ed. Kairós Livraria Editora, São Paulo.
  • Freyre G 1978 [1933]. Casa-grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal José Olympio, Rio de Janeiro.
  • Hobsbawm E 1991. Nações e nacionalismo desde 1870 Paz e Terra, Rio de Janeiro.
  • Hochman G 1998. A era do saneamento. As bases da política de saúde pública no Brasil Hucitec-ANPOCS, São Paulo.
  • Holanda SB 1996 [1936]. Raízes do Brasil, 26a ed., 2a reimpressão. Companhia das Letras, São Paulo.
  • Joll J. 1982. A Europa desde 1870 Publicações Dom Quixote, Lisboa.
  • Lima NT 1999. Um sertão chamado Brasil. Intelectuais e representações da identidade nacional. Iuperj-Revan, Rio de Janeiro.
  • Lima NT & Britto N 1996. Salud y nación: propuesta para el saneamento rural. Un estúdio de la revista Saúde (1918-1919). In M Cueto (ed.), Salud, cultura y sociedad en América Latina: nuevas perspectivas históricas Instituto de Estudos Peruanos-Organização Pan-Americana de Saúde. Lima.
  • Lima NT & Hochman G 1996. Condenado pela raça, absolvido pela medicina: o Brasil descoberto pelo Movimento Sanitarista da Primeira República, pp. 23-40. In MC Maio & RV Santos (eds.), Raça, ciência e sociedade FCBB-Editora Fiocruz, Rio de Janeiro.
  • Lobato M 1957a. Urupês Obras completas de Monteiro Lobato, 1a série, literatura geral, 9a ed. v. 1. Brasiliense, São Paulo.
  • Lobato M 1957b. Mr. Slang e o Brasil e problema vital Obras completas de Monteiro Lobato, 1a série, literatura geral, 8a ed. v. 8. Brasiliense, São Paulo.
  • Lobato M 1957c. Idéias de Jeca Tatu Obras completas de Monteiro Lobato, 1a série, literatura geral, 8a ed. v. 4. Brasiliense, São Paulo.
  • Lobato M 1918. Saneamento e higiene: as novas possibilidades das zonas cálidas. Saúde, ano 1, n. 1, s.p.
  • Luz MT 1982. Medicina e ordem política brasileira: políticas e instituições de saúde (1850-1930) Graal, Rio de Janeiro.
  • Maio MC & Santos RV 1996. Raça, ciência e sociedade FCCBB/Editora Fiocruz, Rio de Janeiro.
  • Milliet S 1981 [1946]. Jeca Tatu é uma vingança. Ciência e Trópico, v. 9, n. 2:231-38. Massangana/Fundação Joaquim Nabuco, Recife.
  • Murard L & Zylberman P 1985. La raison de l'expert ou l'hygiène comme science sociale appliquée. Archives European of Sociology, v. XXVI, pp. 58-89.
  • Neiva A 1917. Discursos pronunciados no banquete que lhe foi oferecido a 18 de novembro de 1916 no Rio de Janeiro. Tipografia Besnard Frerés, Rio de Janeiro.
  • Oliveira LL 1990. A questão nacional na Primeira República Brasiliense/CNPq, São Paulo.
  • Patterson HD e Peyle GF 1991. The geography and mortality of 1918 influenza pandemic. Bulletin of the History of Medicine, vol. 65, no 1:4-21.
  • Peixoto A 1918. Moinhos de vento. Saúde, n. 1, s.p.
  • Peixoto A 1922. Discurso pronunciado no banquete oferecido ao prof. Miguel Pereira, em 19 de maio de 1918, pp. 29-37. In P Leão et al. (eds.), Afrânio versus Afrânio Tipografia "Jeronimo Silva", Niterói.
  • Penna B 1919. Discurso na sede da Sociedade Nacional de Agricultura. Saúde, n. 2, s.p.
  • Penna B 1918. Saneamento do Brasil Editora dos Tribunais, Rio de Janeiro.
  • Penna B 1918a. Oswaldo Cruz, Saúde, ano 1, n. 1, s.p.
  • Penna B & Neiva A 1916. Viagem científica pelo norte da Bahia, sudoeste de Pernambuco, sul do Piauí e de norte a sul de Goiás. Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, v. 8, n. 30:74-224.
  • Pereira M 1922 [1916]. "O Brasil é ainda um imenso hospital" - Discurso pronunciado pelo professor Miguel Pereira por ocasião do regresso do professor Aloysio de Castro, da República Argentina, em outubro de 1916. Revista de Medicina. Vol, VII, no 21:3-7. Centro Acadêmico Oswaldo Cruz-Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo.
  • Pessoa SB 1949. Problemas brasileiros de higiene rural Trabalho laureado pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e pela Sociedade de Gastroenterologia e Nutrição de São Paulo.
  • Porter D 1991. Enemies of the race: biologism, environmentalism and public health, pp. 159-178. In Edwardian England. Victorian Studies, n. 34:159-178.
  • Porter D 1993. Public health, pp. 1.231-1.261. In WF Bynum & R Porter (eds.), Companion Encyclopedia of The History of Medicine Routledge, Londres.
  • Prado P 1997 [1926]. Retrato do Brasil Companhia das Letras, São Paulo.
  • Queiroz MIP 1973. O campesinato brasileiro: ensaios sobre civilização e grupos rústicos no Brasil Vozes, Petrópolis.
  • Queiroz MIP 1965. O messianismo no Brasil e no mundo Alfa-Ômega, São Paulo.
  • Ribeiro MRS 1993. História sem fim... Inventário da saúde pública: São Paulo 1880-1930 Unesp, São Paulo.
  • Saúde 1918-1919. Órgão da Liga Pró-Saneamento do Brasil.
  • Santos RV 1996. Da morfologia às moléculas, de raça a população: trajetórias conceituais em antropologia física no Século XX. In MC Maio & RV Santos (orgs.), Raça, ciência e sociedade FCCBB/Editora Fiocruz, Rio de Janeiro.
  • Santos WG 1978. Ordem burguesa e liberalismo político Duas Cidades, São Paulo.
  • Schwartzman, S 1979. Formação da comunidade científica no Brasil Nacional/Finep, São Paulo.
  • Skidmore TE 1989. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro Paz e Terra, Rio de Janeiro.
  • Stepan N 1976. Gênese e evolução da ciência no Brasil Rio de Janeiro. Artenova/Fiocruz,
  • Torres A 1982 [1914]. A organização nacional Companhia Editora Nacional/UnB, Brasília. (Coleção Temas Brasileiros).
  • Torres A 1933 [1914]. O problema nacional brasileiro: introdução a um programa de organização nacional Companhia Editora Nacional, São Paulo.
  • Ventura R 1991. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil: 1870-1914 Companhia das Letras, São Paulo.
  • Willems E 1961. Uma vila brasileira. Tradição e transição, 2a ed. Difel, São Paulo.
  • Willems 1944. O problema rural brasileiro visto do ponto de vista antropológico Secretaria de Agricultura, Indústria e Comércio do Estado de São Paulo, São Paulo.
  • 1
    Existem vários exemplos internacionais. Um dos exemplos mais citados foi o impacto causado pela mobilização e fracasso das tropas britânicas na Guerra dos Boers, no grande debate da Inglaterra eduardiana sobre as condições físicas da raça, que iria culminar com o National Health Insurance Act de 1911. Ver Porter (1991, 1993).
  • 2
    O Instituto Oswaldo Cruz sucedeu o Instituto Soroterápico, criado em 1900, na Capital Federal, durante a epidemia de peste bubônica. Na gestão do cientista Oswaldo Cruz (1903-1917), tornou-se um importante centro de pesquisas e de formação de profissionais especializados em saúde pública. Foi dirigido até 1917 por Oswaldo Cruz, e por Carlos Chagas até 1934. Sobre o papel desse instituto na ciência brasileira, ver Benchimol (1990); Benchimol e Teixeira (1993); Chagas Filho (1993); Luz (1982); Schwartzman (1979); e Stepan (1976).
  • 3
    Para o debate em torno das Forças Armadas e do serviço militar obrigatório no Brasil, no contexto da Primeira Guerra Mundial, ver Carvalho (1985) e Oliveira (1990).
  • 4
    Percorrendo o Brasil nas duas primeiras décadas do século XX, as expedições científicas do Instituto Oswaldo Cruz destacaram-se na produção de conhecimentos sobre a incidência de doenças, alimentando de informações o debate dos problemas nacionais. Estiveram intimamente associadas à construção de ferrovias, às avaliações da viabilidade de utilização de potencial econômico de rios, como o São Francisco, e aos trabalhos da Inspetoria de Obras contra as Secas (Albuquerque
    et al., 1991; Lima, 1999).
  • 5
    A referência e grande influência foi a obra de Euclides da Cunha,
    Os sertões, de 1902. Nela, sobressaem-se elementos de força e de fragilidade - o sertanejo é um forte, mas é também rude e carente de civilização.
    Os sertões também destaca a importância do conhecimento empírico do país, fundamental nos textos e reflexões do movimento sanitarista. Ver Castro Santos (1985; 1987); Lima e Hochman (1996) e Lima (1999).
  • 6
    A sensação de alívio oferecida pela ciência médica foi bem destacada por um dos que melhor expressou as angústias dessa geração de intelectuais:
    Respiramos hoje com mais desafogo. O laboratório dá-nos o argumento por que ansiamos. Firmados nele contraporemos à condenação sociológica de Le Bon a voz mais alta da biologia (Lobato, 1957b). Para mais detalhes, ver Lima e Hochman (1996).
  • 7
    Apesar de não fazer menção às relações entre sertões e saúde pública, desenvolvidas nos anos de 1910, utilizamos como referência a revisão sobre as diferenças existentes na categoria sertões em Amado (1995).
  • 8
    O texto de Peixoto é o seguinte:
    [...] Se raros escapam à doença, muitos têm duas ou mais infestações [...]Vêem-se, muitas vezes, confrangido e alarmado, nas nossas escolas públicas crianças a bater os dentes com o calafrio das sezões [...] E isto, não nos "confins do Brasil", aqui no Distrito Federal, em Guaratiba, Jacarepaguá, na Tijuca [...] Porque, não nos iludamos, o "nosso sertão" começa para os lados da Avenida. (Peixoto, 1922, ênfases nossas). Não coincidentemente, essa citação, que teve enorme repercussão, é parte de um discurso de Afrânio Peixoto em homenagem a Miguel Pereira em 19/5/1918. De forma semelhante, um importante divulgador da campanha, Monteiro Lobato, enfatizava mais a periferia dos núcleos urbanos como alvo prioritário de uma campanha de saneamento (Lobato, 1957b).
  • 9
    Não é nosso objetivo discutir as diversas representações da natureza brasileira no período em questão. Certamente a visão de uma natureza maravilhosa é uma das mais expressivas na literatura nacional e remonta às primeiras visões do "paraíso", para utilizar a imagem cunhada por Sérgio Buarque de Holanda.
  • 10
    Não queremos com isto dizer que os debates científicos atuais no campo da genética não tenham implicações, ou sofram influência de perspectivas ideológicas. Apenas, num contexto em que é mais difícil se legitimar propostas calcadas em idéias de inferioridade racial, certamente o debate se torna mais complexo. Além disso, merece destaque a mobilização de certos grupos étnicos demandando políticas e pesquisas em doenças que os afetam com mais intensidade. Sobre o debate científico contemporâneo em torno do conceito de raça ver o artigo de Santos (1996).
  • 11
    Isto não significa dizer que estivessem ausentes discussões sobre a base racial de algumas doenças e mesmo preconceitos raciais na discussão sobre os focos de origem das epidemias. Durante a epidemia de gripe espanhola, por exemplo, Fontenelle (1919) discutia a "verdadeira " origem geográfica da doença e, ao atribui-la à Ásia, chegava a afirmar:
    Nada de bom nos vem do Oriente.
  • 12
    Sobre a centralidade da questão racial no pensamento social brasileiro conferir livro organizado por Maio & Santos (1996).
  • 13
    Manoel Bonfim e Alberto Torres foram dois autores que, no início do século XX, representaram posição dissonante desse tom fatalista e de condenação da nacionalidade pelas características étnicas do povo brasileiro. Ambos enfatizaram dimensões culturais e políticas do passado nacional e de organização da sociedade. Também apontaram alternativas para o país: no caso de Alberto Torres (1933; 1982), a revisão do princípio federalista e o incentivo à pequena propriedade rural, e de Manuel Bonfim (1995 [1905]), um amplo projeto educacional.
  • 14
    Na 2
    a edição de
    Urupês, Monteiro Lobato incluiu nota explicativa em que pedia desculpas ao Jeca Tatu:
    E aqui aproveito o lance para implorar perdão ao pobre Jeca. Eu ignorava que eras assim, meu Tatu, por motivos de doença. Hoje é com piedade infinita que te encara quem, naquele tempo, só via em ti um mamparreiro de marca. Perdoas?
  • 15
    Cultura é definida por Willems como "sistema de entendimentos comuns" (Willems, 1944).
  • 16
    De acordo com Willems (1944), a condição das populações sertanejas seria preferível "à verdadeira miséria, por exemplo, daqueles 300.000 lavradores norte-americanos cuja sorte nos descreveu John Steinbeck em
    As vinhas da ira.
  • 17
    Em
    Os parceiros do Rio Bonito, Antônio Cândido analisa os dados coligidos em estudo de campo realizado no município de Bofete, durante o ano de 1948. O sociólogo retornou à localidade em 1954, confrontando os novos dados com os obtidos no primeiro momento da pesquisa (cf. Cândido, 1971).
  • 18
    Devemos compreender a falada indolência do caipira como
    recurso de adaptação a um nível biótico precário, no qual as carências de dieta e higidez impediam atividade mais intensa, mas que se ajustavam ao ritmo econômico e eram corrigidas em parte pela organização social (Cândido, 1971).
  • 19
    Entre as fontes utilizadas por Cândido referidas às condições de higiene rural e nutrição, destacam-se, respectivamente os estudos de Castro (1936) e Pessoa (1949). Deve-se ainda notar que o papel da nutrição no desenvolvimento social brasileiro adquiria sensível importância, no contexto em que Antônio Cândido escreveu seu trabalho, em grande parte devido à repercussão dos trabalhos de Josué de Castro, sobretudo
    Geografia da fome, publicado em 1956.
  • 20
    O argumento de natureza histórica desenvolvido por Antônio Cândido associa bandeirismo e cultura cabocla ou caipira. Em nenhum momento ele se refere ao caráter mítico de tal explicação. Tal referência é, portanto, de nossa inteira responsabilidade (cf. Lima, 1999).
  • 21
    Sobre alimentação em áreas rurais brasileiras, ver Samuel Pessoa (1949), utilizado como fonte em Cândido (1971).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Jul 2007
    • Data do Fascículo
      2000
    ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Av. Brasil, 4036 - sala 700 Manguinhos, 21040-361 Rio de Janeiro RJ - Brazil, Tel.: +55 21 3882-9153 / 3882-9151 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
    E-mail: cienciasaudecoletiva@fiocruz.br