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Protagonismo e subjetividade: a construção coletiva no campo da saúde mental

Protagonism and subjectivity: collective construction in the field of mental health

Resumos

O artigo reflete sobre as origens e as bases históricas e conceituais da produção de subjetividade do sujeito considerado louco. Analisa a importância do conceito de alienação mental na formação do lugar social da loucura na sociedade moderna e, com ele, a constituição de um sujeito alienado, incapaz de subjetividade e de desejo: um não-sujeito da loucura "medicalizada". Em continuidade, após uma elaboração sobre a genealogia da subjetividade, reflete sobre as práticas atuais no campo da saúde mental que têm como proposta a construção coletiva do sujeito da loucura, não mais como sujeito alienado, mas como protagonista, isto é, de uma nova relação social com a loucura.

Saúde mental; Loucura; Subjetividade


This paper is a reflection on the origins as well as conceptual and historical bases of the production of subjectivity by the subject that is considered insane. The importance of the concept of mental alienation in the shaping of the social place of insanity in modern society is analyzed in parallel with the constitution of an alienated subject, incapable of subjectivity or desire: a non-subject of medicalized insanity. Then, after an elaboration about the genealogy of subjectivity, a reflection is presented on the current practices in the field of mental health that aim at the collective construction of the subject of insanity no longer as an alienated subject but as a protagonist, which means a new social relationship with insanity.

Mental health; Insanity; Subjectivity


ARTIGO

ARTICLE

Eduardo Henrique Guimarães Torre 1

Paulo Amarante 1

Protagonismo e subjetividade: a construção coletiva no campo da saúde mental

Protagonism and subjectivity: collective construction in the field of mental health

1 Departamento de Administração e Planejamento, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. Av. Leopoldo Bulhões, 1.480/7o andar - 21041-210 - Manguinhos - Rio de Janeiro - RJ. cebes@manguinhos.ensp. fiocruz.br

Abstract This paper is a reflection on the origins as well as conceptual and historical bases of the production of subjectivity by the subject that is considered insane. The importance of the concept of mental alienation in the shaping of the social place of insanity in modern society is analyzed in parallel with the constitution of an alienated subject, incapable of subjectivity or desire: a non-subject of medicalized insanity. Then, after an elaboration about the genealogy of subjectivity, a reflection is presented on the current practices in the field of mental health that aim at the collective construction of the subject of insanity no longer as an alienated subject but as a protagonist, which means a new social relationship with insanity.

Key words Mental health, Insanity, Subjectivity

Resumo O artigo reflete sobre as origens e as bases históricas e conceituais da produção de subjetividade do sujeito considerado louco. Analisa a importância do conceito de alienação mental na formação do lugar social da loucura na sociedade moderna e, com ele, a constituição de um sujeito alienado, incapaz de subjetividade e de desejo: um não-sujeito da loucura "medicalizada". Em continuidade, após uma elaboração sobre a genealogia da subjetividade, reflete sobre as práticas atuais no campo da saúde mental que têm como proposta a construção coletiva do sujeito da loucura, não mais como sujeito alienado, mas como protagonista, isto é, de uma nova relação social com a loucura.

Palavras-chave Saúde mental, Loucura, Subjetividade

I - A alienação mental ou o não-sujeito da loucura "psiquiatrizada"

A história da loucura nos séculos XVIII e XIX é quase sinônimo da história de sua captura pelos conceitos de alienação e, mais tarde, de doença mental. Esse processo tem seu significado vinculado à criação de um novo modelo de homem ou de um novo sujeito na modernidade. Essa nova noção de sujeito se funda no surgimento da idéia de indivíduo e se concretiza na consolidação do sujeito do conhecimento cartesiano, pautado na racionalidade científica que se torna hegemônica como método de produção de conhecimento. Fazendo emergir um pensamento mecanicista, baseado nos princípios de causalidade e previsibilidade, esta racionalidade permite o surgimento de um sujeito da Razão. A loucura se torna seu contraponto: é capturada como sujeito da desrazão.

Analisar a história da loucura remete à analise de como a modernidade se constitui como forma de pensamento e organização social e como ela forja uma forma de lidar com a loucura como fenômeno humano e social. Em outras palavras, uma análise da forma da produção de saberes e de exercício do poder sobre os sujeitos que constitui a modernidade.

O indivíduo, fundado e reconstruído por elementos distintos em diferentes momentos, pelo cartesianismo, pelo liberalismo, pela Revolução Francesa, pelo iluminismo, pelas ciências humanas, cria uma nova noção de sujeito que funda a nova experiência de homem, ligada à interioridade, ao individualismo e, fundamentalmente, à norma. O sistema capitalista precisa de indivíduos para funcionar, ou de um modo-indivíduo de subjetividade: ...um mesmo modo de subjetivação, presente desde pelo menos o século XVIII, quando ganha força "o indivíduo" como dominância de expressão da subjetividade. Este modo, composto também por linhas diversas - o liberalismo político ascendente; o romantismo valorizador das expressões de "cada um"; o êxodo de grande parte da população do campo para a cidade e a instauração de uma nova utilização do corpo nas relações de trabalho; a mudança nas relações entre o domínio público e o privado; a criação de novos equipamentos sociais, difusores de ideais da burguesia ascendente, etc. - passa a se apresentar em diferentes práticas sociais produzindo objetos e sujeitos conforme este modo. Desta forma, encontraremos diferentes saberes recortados por este "modo-indivíduo" (Benevides, 1993).

Com a criação do "modo-indivíduo", uma nova forma de exercício de poder passa a ser constituída; poder não mais centrado unicamente no Estado, mas articulado a ele de várias maneiras, materializando-se em práticas, instituições e saberes. Essa forma de exercício do poder, denominado de disciplina ou poder disciplinar (Foucault, 1983) é uma forma de controle que funciona por um processo contínuo de normatização, imposição de normas aos corpos dos indivíduos, que são modelados para se tornarem produtivos. Através da sua grande estratégia, o confinamento, o poder disciplinar fabrica indivíduos eficientes e produtivos e faz o sistema funcionar, determinando a produção ou a exclusão: O indivíduo não cessa de passar de um espaço fechado a outro, cada um com suas leis: primeiro a família, depois a escola, (...) depois a caserna, (...) depois a fábrica, de vez em quando o hospital, eventualmente a prisão, que é o meio de confinamento por excelência (Deleuze, 1992).

O conceito de alienação

A experiência individual e coletiva que se tem de um fenômeno é uma produção social e histórica, como os discursos sobre um objeto ou fato o são. No caso da doença mental, isto é ainda mais claro, pois a partir da criação do hospício, a loucura torna-se verdade médica (Birman, 1978). Michel Foucault, a partir de História da loucura na idade clássica (1978) inverte a explicação científica das reorganizações institucionais, demonstrando como as instituições surgem de necessidades sociais e não de descobertas científicas ou do aprimoramento do conhecimento; o asilo seria o a priori da psiquiatria, e não o contrário. Através do princípio do confinamento e do ideal da normatização do sujeito louco no asilo é produzida uma nova experiência do fenômeno da loucura.

No processo de apropriação da loucura pela medicina o conceito de alienação tem um papel estratégico, no momento em que torna-se sinônimo de erro; algo não mais da ordem do sobrenatural, de uma natureza estranha à razão, mas uma desordem desta. A alienação é entendida como um distúrbio das paixões humanas, que incapacita o sujeito de partilhar do pacto social.

Alienado é o que está fora de si, fora da realidade, é o que tem alterada a sua possibilidade de juízo. Através do conceito de alienação o modo de relacionamento da sociedade para com a loucura passa a ser profundamente intermediado por uma ciência que, num primeiro momento, Philippe Pinel define como o alienismo. Se o alienado é incapaz do juízo, incapaz da verdade, é, por extensão, perigoso, para si e para os demais. O principal autor da clínica psiquiátrica, Emil Kraepelin, considera em seu mais importante livro, publicado em 1905, que todo alienado constitui, de algum modo, um perigo para seus circunstantes, porém, em especial, para si próprio (Kraepelin, 1988).

No contexto imediatamente posterior à Revolução Francesa, em que Pinel dá início à transformação do hospital de Bicêtre, em 1793, a elaboração do conceito de alienação possibilita a manutenção do internamento do louco, na medida em que ele já era um dos habitantes do antigo "hospital" que, com a revolução, seria extinto. Isso ocorre na medida em que o internamento deixa de ter uma natureza filantrópica ou jurídico-política, tal qual no período absolutista, e passa a ter o caráter de tratamento. Se a alienação é um distúrbio das paixões, o seu tratamento torna-se a reeducação moral, ou tratamento moral, como prefere Pinel. Somente após um processo pedagógico-disciplinar realizado no interior do hospício, o alienado pode recobrar a razão e, assim, tornar-se sujeito de direito, tornar-se cidadão. Para ser livre, entende-se, é necessário fazer escolhas, desejar e decidir, atributos impossíveis para um alienado. Mas, essa exclusão da cidadania não caracteriza uma violência ao direito do alienado, na medida em que seu internamento é de natureza terapêutica, e não significa perda de direitos. Nesse sentido, o direito maior do alienado é o de receber um tratamento. Para os reformadores de então, trata-se de um processo de inclusão ao direito a um tratamento.

A institucionalização da loucura torna-se, enfim, uma regra geral, um princípio universal. Pinel fundamenta com as seguintes palavras esta necessidade imperiosa de institucionalização: Em geral é tão agradável, para um doente, estar no seio da família e aí receber os cuidados e as consolações de uma amizade tenra e indulgente, que enuncio penosamente uma verdade triste, mas constatada pela experiência repetida, qual seja, a absoluta necessidade de confiar os alienados a mãos estrangeiras e de isolá-los de seus parentes (apud Castel, 1978). Conclui ainda que o caráter particular da alienação exige um conjunto de medidas que só podem ser reunidas num estabelecimento exclusivamente consagrado à mesma.

A argumentação de Pinel a favor da institucionalização tem como base dois pontos fundamentais relacionados ao conceito de isolamento. Por um lado, no princípio do hospital como lugar de exame, em que isolar é o a priori do conhecer, tal qual no método da Botânica de Lineu, explicitado por Pinel em seu Traité médico-philosophique sur l'aliénation mentale ou la manie como o método mais adequado à ciência. Por outro lado, o isolamento é terapêutico pois a instituição passa a ser organizada de forma a afastar as influências maléficas, morbígenas, que causam e agravam a alienação: a instituição é o instrumento de cura.

O isolamento, semelhante ao estado in vitro, afasta as influências maléficas e a contaminação. O afastamento serve para identificar diferenças entre os objetos. Distinguir os "mansos" dos "agitados", os "melancólicos" dos "sórdidos" e "imundos", os "suicidas", ou seja, esquadrinhar cada tipo classificável, evitando que sua convivência agrave seu estado. O hospício, através do isolamento terapêutico, permite a possibilidade da cura e do conhecimento da loucura a um só tempo. O isolamento é ao mesmo tempo um ato terapêutico (tratamento moral e cura), epistemológico (ato de conhecimento) e social (louco perigoso, sujeito irracional).

Essas operações, como princípios teóricos e atos institucionais propiciam um método; fazem "ver" diferente a figura do louco, agora um "alienado mental", produzem uma visibilidade específica sobre a loucura, construindo um estar louco e um ser louco diferente, no qual o tratamento fundamental é regrar novamente, "dobrar o alienado à razão", numa espécie de ortopedia da alma. Surge o mundo correcional, no qual a disciplina proporciona um retorno à razão. O conceito de "alienação" produz um lugar para o louco, excluído do pacto social, o lugar do sujeito da desrazão ou da ausência de sujeito - sujeito racional e responsável cívica e legalmente - sujeito delirante sem cidadania que deixa de ser um ator social para tornar-se objeto do alienismo.

A história do manicômio mostra como se criou o processo de lidar com o sujeito alienado, alheio, estrangeiro a si próprio, que não é sujeito. No manicômio coloca-se em funcionamento a regra, a disciplina e o tratamento moral para a reeducação do alienado, através do que se torna possível a construção do conceito de uma subjetividade alienada, desregrada. Ao mesmo tempo, a instituição torna-se o lugar de tratamento e a institucionalização, uma necessidade.

II - Genealogia da subjetividade e complexidade

A produção de subjetividade

As últimas décadas foram intensamente transformadoras dos modos de vida. As mudanças se deram em todos os âmbitos, dos costumes e valores até a vida cotidiana e o espaço e tempo urbanos. Na política, a democracia está em questionamento (Santos, 1998; Vieira, 1997). Na tecnologia, as telecomunicações de terceira geração, a informática e as mídias constróem outros modos de circulação e utilização da informação (Castells, 1997; Lévy, 1993; Deleuze, 1992). No campo do conhecimento, a ciência vem passando por transformações profundas, e a forma de entender a produção de conhecimento passa a ter novos rumos com a crítica do modelo científico moderno e seu paradigma newtoniano (Santos, 1997; Prygogine & Stengers, 1991), que concebe o conhecimento como um meio de revelar a verdadeira natureza das coisas.

A abordagem contemporânea sobre a loucura se inspira, em grande parte, na análise histórica da sociedade e das formas de saber-poder da modernidade, tendo como ponto de partida, portanto, a noção de produção histórica, que tem sido muito cara às ciências sociais e humanas das últimas décadas, pretendendo um enfoque crítico ao seu fazer ciência. Pensar em produção histórica de saberes, instituições, objetos de conhecimento, formas de sociabilidade, de trabalho, de sensibilidade, de comunicação, de subjetividade, remete a uma mesma operação metodológica na produção de conhecimento: não considerar as coisas e eventos como naturais e acabadas, buscar a compreensão de um momento histórico-social para entender a emergência de novos olhares e práticas sobre o homem, e considerar o próprio homem como uma invenção. A necessidade de historicizar os objetos torna-se função de todos aqueles que buscam analisar o homem e a sociedade contemporânea, e vem sendo a convergência de grande parte do debate atual.

A análise genealógica busca entender as condições de possibilidade para a produção do sujeito, para a invenção de formas de vida nas redes da história (Foucault, 1974a; 1979a). Isto significa que a noção de subjetividade passaria a ter outros sentidos. Se no conhecimento que busca a verdade dos paradigmas científicos, o sujeito e o objeto são previamente dados, a subjetividade é um dado a priori, um princípio de individuação, que independe das condições históricas. O conhecimento é capaz de revelar a essência das coisas. Assim, a subjetividade é algo do indivíduo, de sua interioridade, onde está uma faculdade racional. Uma subjetividade a-histórica e apolítica a desvelar um mundo imutável. A razão é o fio condutor que garante a ordem interior e uma continuidade entre o mundo e a consciência racional.

Na análise genealógica, o conhecimento é tomado como invenção, no sentido de um olhar para o mundo que se faz no olhar, criação de um modo de existência, de uma possibilidade de vida. Não revela algo próprio da natureza, mas sim o que inventamos sobre ela. Por sua vez, a subjetividade é produto das redes da história; é, então, descentrada do indivíduo, sendo sempre coletiva e nunca individual. É produzida nos registros coletivos da sociedade e da cultura, através de mecanismos e estratégias os mais diversos, que definem os modos de existência regulados pelas leis, verdades e crenças, produzindo subjetividades e formas de vida. A produção de subjetividade funciona forjando modos de existência, que modelam as maneiras de sentir e pensar dos indivíduos. Mas, se a subjetividade também não é natural, é produzida, assim como seu padrão ideal, a invenção de formas de vida nada mais é que a produção de subjetividade - a subjetividade passaria a ter uma dimensão estética, com efeitos políticos. A subjetividade não estaria dada, não seria interior ao indivíduo, mas seria produzida pelos vetores mais diversos presentes na coletividade. Para Guattari ... seria conveniente dissociar radicalmente os conceitos de indivíduo e de subjetividade. Para mim, os indivíduos são resultados de uma produção de massa. O indivíduo é serializado, registrado, modelado. (...) A subjetividade não é passível de totalização ou de centralização no indivíduo. Uma coisa é a individuação do corpo. Outra é a multiplicidade dos agenciamentos da subjetivação: a subjetividade é essencialmente fabricada e modelada no registro do social (Guattari, 1986). E ainda: ...não é apenas o conteúdo cognitivo da subjetividade que se encontra aqui modelado mas igualmente todas as suas outras facetas afetivas, perceptivas, volitivas, mnêmicas... (Guattari, 1992).

A subjetividade é descentrada do indivíduo, passando a ser constituída por forças disseminadas no campo social e por suas positividades, que buscam a sua modelagem, serialização e homogeneização. Os processos de subjetivação dos equipamentos sociais e dos dispositivos políticos de poder têm a função de definir coordenadas semióticas determinadas, que se infiltram no comportamento dos indivíduos, fazendo com que suas funções e capacidades sejam utilizadas e docilizadas. Mas não se trata de um movimento unilateral de um poder como entidade que subjuga o indivíduo, e sim de uma naturalização das práticas e discursos. Assim, como há equipamentos sociais, práticas, discursos, tecnologias institucionais para modelagem e serialização da subjetividade, há movimentos de resistência e ruptura que produzem singularizações (Guattari, 1992; Guattari & Rolnik, 1985) na subjetividade, modos de pensar e de viver que escapam aos grandes processos de captura das máquinas capitalistas de produção de subjetividade (Guattari, 1981). Dessa forma, todos estão "trabalhando" na produção de subjetividades, principalmente aqueles que têm seu discurso legitimado, como "trabalhadores sociais" os mais variados. A produção de subjetividade pode funcionar para naturalizar ou desnaturalizar saberes e instituições sociais os mais diversos em qualquer ponto ou instância do sistema social: Aquilo que se convencionou chamar de "trabalhador social" - jornalistas, psicólogos de todo tipo, assistentes sociais, educadores, animadores, gente que desenvolve qualquer tipo de trabalho pedagógico ou cultural em comunidades de periferias, em conjuntos habitacionais, etc. - atua de alguma maneira na produção de subjetividade. Mas, também, quem não trabalha na produção social de subjetividade? (Guattari, 1986).

A partir desse referencial, busca-se uma relação mais móvel com o conhecimento, um pensamento nômade (Deleuze, 1985), que desnaturalize as verdades acabadas e coloque em questão o próprio processo de conhecimento. O sujeito não existe a priori - está em constante constituição. O "sujeito do conhecimento" não é um fundamento inquestionável sobre o qual o conhecimento se dá. O conhecer não serve para representar um mundo dado, a cognição é uma invenção de si e do mundo, provocando bifurcações irreversíveis na subjetividade (Maturana & Varela, 1995). É a produção histórica do próprio sujeito, sujeito e objeto não são dados prévios ao processo de conhecer, mas são engendrados a partir de práticas cognitivas concretas. A cognição não encontra seu fundamento nem na unidade do sujeito cognoscente nem numa suposta identidade do objeto (Kastrup, 1997).

A partir dessas noções, talvez fosse possível constituir uma história política do conhecimento, de seus fatos e seu sujeito, ou seja, a política da verdade (Foucault, 1974a). Mas só há história da verdade se não houver sujeito absoluto. A noção central da genealogia, como um método de análise e um instrumento eficaz na superação da filosofia e da ciência tradicionais, é a noção de 'Erfindung' (invenção), ponto de partida para problematizar a filosofia da representação e o método naturalista (Foucault, 1979; Nietzsche, 1983).

Qual a importância dessa reflexão para o campo da saúde mental? Para responder a questão, é preciso compreender que o pensamento científico, construído na modernidade como forma privilegiada e legitimada de método de produção de conhecimento, torna-se o modelo através do qual todos os discursos científicos vão se produzir. Dentre eles, os discursos das ciências humanas e sociais, que buscam se enquadrar no modelo lógico matemático, na causalidade, na previsibilidade, no determinismo e evolucionismo, na neutralidade, na objetividade, isto é, no modelo de racionalidade do pensamento científico moderno e propriamente das ciências naturais. A medicina e a psiquiatria são exemplos muito claros desse fato (Foucault, 1975; 1979; 1987) e apontam para a pertinência da atitude crítica aos modelos de saúde mental que são reproduzidos pelos profissionais do campo.

Complexidade e loucura

A razão e o paradigma científico clássico entram em crise com as transformações da sociedade contemporânea e as novas formas de pensamento em diversos campos das ciências exatas e humanas, como a física quântica, a biologia, a química, a antropologia, a psicologia, a filosofia, a política, e em todos os campos a complexidade dos objetos coloca a racionalidade clássica em xeque. O modo-indivíduo de subjetividade do século XIX se modifica na era virtual e da biotecnologia. Na "nova aliança" da complexidade nas ciências (Prygogine & Stengers, 1991), o sujeito do conhecimento de Descartes não é mais absoluto, e os sujeitos se tornam histórico-estéticos, capazes de engendrar sua autopoiese (Maturana & Varela, 1995), na qual um sujeito e um objeto não preexistentes se fazem em sua relação. Não mais a especialização, a fragmentação e o isolamento. Reconstruir os objetos em sua complexidade requer a superação dessas operações. É precisamente nas relações que se configuram, num meio caótico e em desequilíbrio, constituído por forças em choque que criam constante interferência, que a existência concreta das coisas se manifesta.

O isolamento foi uma das estratégias centrais para a elaboração do conceito de alienação, que produz o louco como sujeito do erro. O isolamento como um princípio científico diz respeito a tirar os objetos de investigação de seus meios caóticos e tirar as interferências do ambiente natural, transportando ao ambiente asséptico do laboratório. Nos deparamos com um problema epistêmico fundamental: como estudar a doença isolando o louco pelo esquadrinhamento do hospital? O princípio se funda na idéia de que para tratar é preciso conhecer, e para conhecer torna-se imprescindível retirar quaisquer influências externas. A observação in vitro tira as más influências, permite a separação em tipos para a constituição de um espaço de conhecimento. No entanto, surge uma importante questão: a observação in vitro não transformaria a natureza da doença? Em outras palavras, a experiência da institucionalização não alteraria a experiência da alienação? O que a psiquiatria concebe como efeitos da cronicidade da natureza da doença mental não seriam efeitos largamente produzidos pela institucionalização?

Ora, para o saber psiquiátrico, a degeneração é causada pela doença mental, sem nenhuma ligação com as formas de relação institucional que se estabelece com a loucura e o louco. A doença mental concebida sob um ponto de vista naturalista é a noção que dá o suporte fundamental da prática, do poder e do saber psiquiátricos. A História da loucura demonstra a história do asilamento da loucura e de sua medicalização e patologização, e sua transformação em doença mental: Nossa sociedade não quer reconhecer-se no doente que persegue ou encerra (Foucault, 1975). É através desta operação que é possível uma psiquiatria da loucura.

Um objeto se configura pelo seu sistema de relações; a racionalidade introduz uma simplificação, através do reducionismo que o método científico e psiquiátrico operam, e que a retomada da complexidade busca desmistificar.

Para Sacks (1995), a doença é um processo no sujeito, não é um defeito no corpo, no órgão ou no funcionamento bioquímico. É um processo referente à conduta e à forma de olhar. Há uma complexidade no processo saúde-doença que ultrapassa o orgânico simples. O que parece desvio quando se coloca em relação a uma norma, se mostra como outra linguagem, outros caminhos neurais e de aprendizagem cultural, outras subjetividades, que insistimos em desqualificar como inferiores aos modos padronizados de experiência. Na doença há uma construção de subjetividade radicalmente diversa, por isso nunca se pode tratar o sintoma, é preciso tratar o sujeito. Existem casos em que a medicação psiquiátrica, ao fazer um anteparo à doença, não resolve o problema ou até mesmo pode agravar a situação. Nesse sentido é possível pensar que o delírio pode ser necessário como processo. A doença deve ser repensada como fato cultural e como caminho; é preciso aprender com a doença. Em vez de um tempo e espaço absolutos, uma temporalidade e uma espacialidade produzidos.

A noção de clínica também se transforma na abordagem ético-estética (Deleuze & Guattari, 1972), na qual a subjetividade é coletiva e não individual. Se a subjetividade não é mais um componente do indivíduo, a clínica psicológica clássica, que se centrava sobre a subjetividade individual, perde sua sustentação. O conceito de clínica se amplia, tomando a forma de um ato analítico que age sobre a produção de subjetividade, serializando-a ou singularizando-a, aproximando-se da noção de analisador adotado no âmbito da análise institucional (Coimbra, 1995). A clínica, nesse sentido, não é executada pelo especialista, pois a análise se produz sem se centrar em um sujeito que a realize, nem como uma interpretação ou revelação do oculto; a análise se produz em um campo de forças, seja num grupo, numa relação psicoterapêutica, nas relações do hospital, da fábrica, da escola, do hospício, em espaços os mais distintos. Clínica torna-se uma relação estratégica nos espaços sociais, e não o ato médico ou psicoterapêutico do espaço do consultório. Pode se exercer em diferentes pontos, heterogêneos, do campo social.

III - A construção coletiva do sujeito da saúde mental

É possível perceber hoje no campo da saúde mental no Brasil um expressivo processo de transformação do lugar do louco como ator social, como sujeito político. Uma das faces desse processo refere-se à ampliação do conceito de "reforma psiquiátrica". O objetivo é não reduzi-lo a um processo exclusivamente restrito a mudanças administrativas ou técnicas dos serviços. Ou seja, procura-se construir um conceito de reforma psiquiátrica que não seja sinônimo de reforma da assistência psiquiátrica, a exemplo dos processos que ocorreram nos anos 60 e 70.

Dispositivo da complexidade - uma nova relação com a loucura

Todo o debate crítico em torno da saúde mental e do processo de reforma psiquiátrica, na atualidade, bem como a literatura da área colocam a desconstrução como uma busca de superação dos paradigmas clássicos, de crítica da verdade e neutralidade nas ciências, de problematização das concepções naturalistas de subjetividade, saúde, doença e loucura e de reconstrução de sua complexidade. Colocam também a incapacidade da psiquiatria de explicar ou curar o seu objeto de intervenção, a doença mental (Basaglia, 1981 e 1985; Rotelli, 1990). A desconstrução está relacionada à noção de invenção, de construção do real, de produção da subjetividade, recolocando em discussão a ciência e a psiquiatria. "Desconstrução" do dispositivo psiquiátrico e clínico em seus paradigmas fundantes e suas técnicas de poder-saber. Desconstrução como uma "ação prática de desmantelamento das incrustações institucionais que cobriam a doença; foi necessário tentar colocar entre parênteses a doença como definição e codificação dos comportamentos incompreensíveis, para buscar suprimir as superestruturas dadas pela vida institucional, para poder assim individualizar quais partes eram de responsabilidade da doença e quais da instituição, no processo de destruição do doente e da doença" (Basaglia, 1981).

História da loucura na idade clássica (Foucault, 1978) e O nascimento da clínica (Foucault, 1987) tornaram-se referências fundamentais para o entendimento da mediação do dispositivo psiquiátrico na produção da doença mental. Com a constituição da psiquiatria e do dispositivo clínico é construída uma tecnologia material e subjetiva que funciona no dispositivo da psiquiatria. Através da genealogia do sujeito, podemos pensar como este deixa de ser algo dado e torna-se uma produção, uma subjetividade produzida como doença mental, que incide sobre os corpos institucionalizados.

Uma outra contribuição importante para a desmontagem do dispositivo psiquiátrico é de Franco Basaglia, tanto por sua produção teórica quanto pelos processos de transformação do campo da saúde mental por ele liderados em Gorizia e Trieste. Por um lado, pelo princípio da "luta contra a institucionalização", que diz respeito à idéia de desconstrução do manicômio, entendido como o conjunto de práticas multidisciplinares e multiinstitucionais, exercitadas e reproduzidas em múltiplos espaços sociais, e não apenas no interior do hospício (Basaglia, 1981). Por outro lado, pela recusa à tecnificação, ou à vocação terapêutica, isto é, a simples substituição de tecnologias antigas por novas. E, finalmente, pelo princípio de construção de uma relação de contrato com o sujeito que substitua a relação de tutela instaurada pela psiquiatria.

Entende-se por modelo manicomial aquele que se funda na noção de que a experiência psíquica diversa é sinônimo de erro. O delírio não seria uma expressão do desejo, mas sim mera externalização do erro. Assim entendido, um dos aspectos mais importantes no processo de transformação radical do modelo manicomial torna-se, exatamente, a superação do conceito de doença. Não se trata, obviamente, de negar a diversidade da experiência do delírio ou da alucinação, mas de não utilizar o conceito de doença (igual a erro) na relação com o sujeito. Nesse sentido Rotelli propõe, no lugar do objeto doença mental, o objeto existência-sofrimento do sujeito em sua relação com o corpo social (Rotelli, 1990).

Para Basaglia, a psiquiatria colocou o sujeito entre parênteses para ocupar-se da doença como fenômeno da natureza. Assim, numa atitude intensamente husserliana, Basaglia (1981) propõe uma inversão, isto é, colocar a doença entre parênteses para tornar-se possível lidar com o sujeito e não com a doença: O colocar entre parênteses a doença mental não significa a sua negação, no sentido de negação de que exista algo que produza dor, sofrimento, mal-estar, mas a recusa à aceitação da completa capacidade do saber psiquiátrico em explicar e compreender o fenômeno loucura/sofrimento psíquico, assim reduzido ao conceito de doença. A doença entre parênteses é, ao mesmo tempo, a denúncia e a ruptura epistemológica que se refere ao "duplo" da doença mental, isto é, ao que não é próprio da condição de estar doente, mas de estar institucionalizado (Amarante, 1994).

Nesse sentido, o papel do técnico se transforma quando ele se coloca sob outros princípios; se ele faz funcionar a tecnologia da doença mental, fortalece o dispositivo psiquiátrico. Mas, se transforma sua forma de intervenção, trabalha no sentido da desmontagem desse dispositivo. Isso significa pôr em funcionamento um dispositivo de desinstitucionalização e reinserir a complexidade dos problemas com os quais lida. Significa ainda abrir mão das interpretações da loucura segundo erro, incapacidade, inferioridade, doença mental, e potencializá-la como diferença, um modo diferente de relação com o mundo. Enfim, não usar o saber como técnica normativa, mas como possibilidade de criação de subjetividades. A técnica deixa de ser instrumento da violência quando a prática funciona como uma desconstrução da clínica. No lugar do diagnóstico, a tomada de responsabilidade (Dell'Acqua, 1992) e a quebra da hierarquia. Se a clínica se sustenta no conceito de doença que, por sua vez, é o fundamento do poder-saber médico-psiquiátrico, o colocar esse conceito em questão eqüivale a fazer funcionar o que poderíamos denominar de "dispositivo da complexidade", isto é, a desconstrução da clínica (na qualidade de clínica psiquiátrica). Esse é o cerne da atuação política dos novos operadores da desinstitucionalização: Mas a clínica não é apenas um olhar. Agora a doença, bem fora de parênteses, se revela como o lugar geométrico das incrustações judiciárias, diagnósticas e científicas aplicadas sobretudo, e sem contradição, às classes subalternas. Conjunto de aparatos administrativos, disciplinares, científicos, normativos, coerentes com o velho estatuto epistemológico da doença... (Rotelli, 1990).

A questão central que se coloca é que o dispositivo da clínica é o mecanismo que permite lançar visibilidade sobre o processo de saúde-doença, e que traz consigo táticas fundamentais como a internação, justificada pela crise e pela periculosidade do indivíduo em relação a si e aos outros, como o ato terapêutico que busca a cura, como sua objetivação na forma de corpo doente. Formas que precisam ser desmontadas. Estas instituições funcionam com base em uma relação codificada entre "definição e explicação do problema e resposta (ou solução) racional", tendencialmente ótima. Para esclarecer melhor a ação deste paradigma racionalista problema-solução é suficiente referir-se à terapia no âmbito da medicina. A terapia, entendida não tanto como uma relação individual entre médico e paciente mas sobretudo como um sistema organizado de teoria, normas, prestações -, é, em geral, o processo que liga o diagnóstico ao prognóstico, que conduz da doença à cura. Este é portanto um sistema de ação que intervém em relação a um problema dado (a doença) para perseguir uma solução racional, tendencialmente ótima (a cura) (Rotelli, 1990).

Entretanto não estamos lidando mais com um problema dado, mas construído e sem solução padrão, buscando reconstruir sua complexidade. Nesse sentido, entende-se que: ... o primeiro passo da desinstitucionalização foi o de começar a desmontar a relação problema-solução, renunciando a perseguir aquela solução racional (tendencialmente ótima) que no caso da psiquiatria é a normalidade plenamente restabelecida (...) ... na relação que liga o problema à solução, é a solução que formula o problema (...) Por isso, a reproposição da solução reorienta de maneira global, complexa e concreta a ação terapêutica como ação de transformação institucional (...) O processo de desinstitucionalização torna-se agora reconstrução da complexidade do objeto. A ênfase não é mais colocada no processo de "cura" mas no projeto de "invenção de saúde" e de "reprodução social do paciente" (Rotelli, 1990).

A desconstrução questiona as bases do dispositivo psiquiátrico, em sua competência para atuar frente à loucura. Novas tecnologias científicas, que se destinem à cura da doença mental, continuam apenas apresentando um problema que não pode ser resolvido. Não há modernização que resolva a questão sempre nebulosa da cura em psiquiatria. A cura se torna a ação de produzir subjetividade, sociabilidade - mudar a história dos sujeitos que passa a mudar a história da própria doença. Para Rotelli (1990) a hipótese é a de que o mal obscuro da psiquiatria está em haver separado um objeto fictício, a "doença", da existência global complexa e concreta dos pacientes e do corpo social. Sobre essa separação artificial se construiu um conjunto de aparatos científicos, legislativos, administrativos (precisamente a "instituição"), todos referidos à "doença". É esse conjunto que é preciso desmontar (desinstitucionalizar) para retomar o contato com aquela existência dos pacientes, como "existência" doente.

Faz-se necessário forjar um novo conceito no lugar de doença, um novo objeto que reavalie o fenômeno da loucura, sem escamotear sua complexidade, ao mesmo tempo que impeça ser ela, a loucura, capturada na doença. Se a separação provém do princípio do isolamento na versão pineliana, o novo objeto deve ser útil para criar um "tratamento" que não seja moral ou medicalizante, e que supere esse princípio. O próprio termo "tratamento" torna-se inadequado e perde seu sentido original, já que a atuação não mais se caracteriza como reduzida à terapêutica: Concretamente transformam-se os modos nos quais as pessoas são tratadas para transformar o seu sofrimento, porque a terapia não é mais entendida como a perseguição da solução-cura, mas como um conjunto complexo, e também cotidiano e elementar, de estratégias indiretas e mediatas que enfrentam o problema em questão através de um percurso crítico sobre os modos de ser do próprio tratamento. O que é, portanto, nesse sentido "a instituição" nessa nova acepção? É o conjunto de aparatos científicos, legislativos, administrativos, de códigos de referência e de relações de poder que se estruturam em torno do objeto "doença". Mas se o objeto ao invés de ser "a doença" torna-se "a existência-sofrimento dos pacientes" e a sua relação com o corpo social, então desinstitucionalização será o processo crítico-prático para a reorientação de todos os elementos constitutivos da instituição para este objeto bastante diferente do anterior (Rotelli, 1990).

A operação que torna o doente um objeto é a mesma que o desistoriza. A "objetivação" do louco, segundo Basaglia, impede que ele crie o seu próprio corpo pessoal, tornando-o um corpo institucional. Para Basaglia (1985) a aproximação de tipo objetivante acaba por influir sobre a idéia que o doente faz de si mesmo, o qual - através deste processo - só pode comportar-se como corpo doente, exatamente da mesma maneira em que vivem o psiquiatra e a instituição que cuidam dele.

Alguns pacientes ainda buscam não serem tragados pela instituição, e o que parece sintoma pode ser forma de resistir à mortificação, último recurso de produção de si mesmo. O doente é já unicamente um corpo institucionalizado, que vive como um objeto e que, às vezes, tenta - quando ainda não está completamente domado - reconquistar mediante acting-out, aparentemente incompreensíveis, os caracteres de um corpo pessoal, de um corpo vivido, recusando identificar-se com a instituição (...) ... lhe é negada - de forma concreta e explícita - a possibilidade de reconstruir um corpo próprio que consiga dialetizar o mundo (Basaglia, 1985).

Essa é uma questão fundamental, pois é o movimento de tomada de responsabilidade individual e coletiva que se constitui como meio para a transformação institucional e para o processo de desconstrução. O trajeto que compreende da saída da condição de sujeitado, um corpo marcado pelo exame clínico e pelo diagnóstico psiquiátrico, até a transformação em um usuário do sistema de saúde que luta para produzir cidadania para si e seu grupo passa necessariamente pelo aspecto central da autonomia. Ao invés da cura, incitação de focos de autonomia. A cura cede espaço à emancipação, mudando a natureza do ato terapêutico, que agora se centra em outra finalidade: produzir autonomia, cidadania ativa, desconstruindo a relação de tutela e o lugar de objeto que captura a possibilidade de ser sujeito. Para Rotelli (1990) a emancipação terapêutica (que se torna o objetivo substituto da "cura") só pode ser (cientemente) a mobilização de ações e de comportamentos que emancipem a estrutura inteira do campo terapêutico. Ou ainda: A governabilidade teve a psiquiatria entre os seus instrumentos de gestão da desordem e da miséria. O dispositivo psiquiátrico funciona em espaços os mais disseminados, mas tem por excelência o seu exercício no manicômio. O manicômio é: o lugar zero da troca. A tutela, a internação têm esta única finalidade: subtração das trocas, estabelecer relações de mera dependência pessoal (Rotelli, 1990). No manicômio, a sociabilidade é reduzida a zero. Esse é um dos problemas que se colocam: o problema não é cura (a vida produtiva) mas a produção de vida, de sentido, de sociabilidade, a utilização das formas (dos espaços coletivos) de convivência dispersa. (Rotelli, 1990).

Guattari (1992) entende que a cura não é uma obra de arte, mas deve proceder do mesmo tipo de criatividade. A interpretação não fornece chaves padronizadas para resolver problemas gerais (...) mas deve constituir um acontecimento, marcar uma bifurcação irreversível da produção de subjetividade... Esse trabalho se inicia com medidas básicas de abertura dos mecanismos de violência e enclausuramento e necessita, principalmente, do estabelecimento de novas relações entre os pacientes, a equipe e os psiquiatras. Assim é que, para Rotelli, o objetivo prioritário da desinstitucionalização é transformar as relações de poder entre instituição e os sujeitos e, em primeiro lugar, os pacientes. Inicialmente, isto é, no trabalho de desconstrução do manicômio, essa transformação é produzida através de gestos elementares: eliminar os meios de contenção; restabelecer a relação do indivíduo com o próprio corpo; reconstruir o direito e a capacidade de uso dos objetos pessoais; reconstruir o direito e a capacidade da palavra; eliminar a ergoterapia; abrir as portas; produzir relações, espaços e objetos de interlocução; liberar os sentimentos; restituir os direitos civis eliminando a coação, as tutelas jurídicas e o estatuto de periculosidade; reativar uma base de rendimentos para poder ter acesso aos intercâmbios sociais (Rotelli, 1990).

O ato terapêutico ganha outros sentidos. É possível perceber como os conceitos formam uma rede: a clínica encerra a atuação sobre a doença, que requer um diagnóstico que a reconheça e possibilite a escolha do tratamento ou ato terapêutico apropriado, que por sua vez objetiva a cura. A desmontagem e desnaturalização dessa rede, bem como a proposição de novos conceitos ou novos sentidos para os mesmos conceitos é o trabalho da desinstitucionalização. O ato terapêutico, se não é mais fundado sobre a doença e não provém da autoridade médica, torna-se a própria organização coletiva, convertendo-se em tomada de responsabilidade e produção de subjetividade: ao invés de fundar-se sobre uma regra imposta de cima, a organização se convertia, por si mesma, num ato terapêutico ... (Basaglia, 1985).

Aos poucos, as relações passam a não se assentar mais nas hierarquias, mas na sociabilidade e na produção de instâncias coletivas, através do trabalho de mudança dessas relações e na produção de outras formas de expressão para o louco e sua loucura que se mostram não só viáveis, mas inovadoras e de extrema riqueza. Guattari relata sua própria experiência em relação a este processo: Foi então que aprendi a conhecer a psicose e o impacto que poderia ter sobre ela o trabalho institucional. Esses dois aspectos estão profundamente ligados, pois a psicose, no contexto dos sistemas carcerários tradicionais, tem seus traços essencialmente marcados ou desfigurados. É somente com a condição de ser desenvolvida em torno dela uma vida coletiva no seio de instituições apropriadas que ela pode mostrar seu verdadeiro rosto, que não é o da estranheza e da violência, como tão freqüentemente ainda se acredita, mas o de uma relação diferente com o mundo (...) Os psicóticos, objetos de um sistema de tratamento quase animal, assumem necessariamente uma postura bestial (...) No estilo de vida comunitária que era então o de La Borde naqueles anos, os doentes me apareceram sob um ângulo completamente diferente... (Guattari, 1992).

Atualmente, vários serviços de saúde mental ou de atenção psicossocial vêm sendo implantados no Brasil. A década de 1990 assistiu à produção de um bom número de novas instituições e experiências locais. Uma das necessidades atuais é a de compor uma rede de comunicação entre esses trabalhos, que possa enriquecê-los e fortalecê-los através de trocas e debate. A transformação que se opera na subjetividade dos doentes e da instituição, quando se trabalha para a desconstrução do paradigma psiquiátrico, pode ter grande amplitude, rompendo com conceitos e reinscrevendo a forma da loucura na sociedade: Essa atividade incessante de questionamento [e mobilização], aos olhos de um organizador-conselho, pareceria inútil, desorganizadora e, entretanto, é somente através dela que podem ser instauradas tomadas de responsabilidade individuais e coletivas, único remédio para a rotina burocrática e para a passividade geradas pelos sistemas de hierarquias tradicionais (Guattari, 1992).

O trabalho de desinstitucionalização leva, necessariamente, à produção de um novo tipo de subjetividade, que permita a manifestação do devir-louco sem interditar sua expressão, sem regulá-lo no jogo das sanções institucionais e legais ou objetificá-lo, fazendo com que se desistorize e deixe de ser um sujeito. É a produção de um novo lugar para a subjetividade louca, o estabelecimento de uma nova relação com ela, e a criação de fissuras na serialização psiquiátrica. Para isso, é preciso a tomada de um sentido para a própria existência e da produção de sua própria singularidade: O que visávamos, através de nossos múltiplos sistemas de atividade e sobretudo de tomada de responsabilidade em relação a si mesmo e aos outros, era nos libertarmos da serialidade e fazer com que os indivíduos e os grupos se reapropriassem do sentido de sua existência em uma perspectiva ética e não mais tecnocrática. Tratava-se de conduzir simultaneamente modos de atividades que favorecessem uma tomada de responsabilidade coletiva e fundada entretanto em uma re-singularização da relação com o trabalho e, mais geralmente, da existência pessoal. A máquina institucional que instalávamos não se contentava em operar uma simples remodelagem das subjetividades existentes, mas se propunha, de fato, a produzir um novo tipo de subjetividade (Guattari, 1992).

Um dos caminhos mais importantes para o qual aponta a desinstitucionalização é o da criação de novas relações com a loucura, que se processa a partir da mudança das relações institucionais internas e de desmontagem dos dispositivos da clínica e da psiquiatria, mas certamente não se restringe a isto. Novas subjetividades e um novo lugar para o sujeito louco só são produzidos em relação com o social. O trabalho de desconstrução do manicômio necessariamente extravasa o contexto institucional específico. A desinstitucionalização atinge então seu objetivo mais amplo de questionamento das instituições e subjetividades capitalísticas: é a desconstrução como transformação cultural: Trabalhando regularmente com sua centena de pacientes, La Borde se encontrou progressivamente implicada em um questionamento mais global sobre a saúde, a pedagogia, a condição penitenciária, a condição feminina, a arquitetura, o urbanismo. (...) E começamos a sonhar com o que poderia se tornar a vida nos conglomerados urbanos, nas escolas, nos hospitais, nas prisões etc., se, ao invés de concebê-los na forma da repetição vazia, nos esforçássemos em reorientar sua finalidade no sentido de uma re-criação interna permanente. Foi pensando em uma tal ampliação virtual das práticas institucionais de produção de subjetividade que, no início dos anos 60, forjei o conceito de "análise institucional" (Guattari, 1992).

Através do trabalho no campo social a desconstrução atinge seu sentido mais abrangente, como processo social amplo e complexo de participação popular, territorialização dos serviços, envolvimento de diferentes atores sociais, e mudança da relação social com o fenômeno da loucura. O melhor espaço de reabilitação é a cidade (Basaglia, 1982), não um serviço que ofereça tão-somente uma tecnologia de cura: Recentrar a psiquiatria na cidade não significa implantar aí mais ou menos artificialmente equipamentos e equipes extra-hospitalares, mas reinventá-la ao mesmo tempo em que se desenvolvem outras práticas sociais com a ajuda direta das populações concernidas (Guattari, 1992).

Um dos riscos que se corre, se não houver clareza da desinstitucionalização como desconstrução do dispositivo e do paradigma psiquiátricos, é o de sair do manicômio e continuar reproduzindo os mecanismos do dispositivo psiquiátrico, operação que Castel (1978) chama de aggiornamento, algo como um cosmético da psiquiatria, uma reforma superficial, que mantém a função da psiquiatria como saber-poder. Para Guattari podem-se criar equipamentos psiquiátricos ágeis no seio do tecido urbano sem por isso trabalhar no campo social. Simplesmente miniaturizaram as antigas estruturas segregativas e, apesar disso, interiorizaram-nas (Guattari, 1992).

Entende-se desconstrução como um processo social complexo, de desmontagem do dispositivo psiquiátrico, que não tem fim, ou não pretende constituir, um modelo ideal, mas sim dar novo significado às relações e colocar questões imanentes às situações-problema. Nesse sentido, é um processo que precisa, por definição, ser reinventado incessantemente, e questionar também o conjunto dos segmentos sociais que deveria ser (...) objeto de uma verdadeira "revolução molecular", quer dizer, de uma re-invenção permanente (Guattari, 1992).

Para Rotelli a produção da vida e a reprodução social seriam os objetivos e a prática da instituição inventada. Para ele estas devem evitar as estreitas vias do olhar clínico, assim como da investigação psicológica e da simples compreensão fenomenológica, e fazer-se tecido, engenharia de reconstrução de sentido, de produção de valor, tempo, responsabilizar-se, de identificação de situações de sofrimento e de opressão, reingressar no corpo social, consumo e produção, trocas, novos papéis, outros modos materiais de ser para o outro, aos olhos do outro (Rotelli, 1990b). Um aspecto importante no sentido de superar essa redução clínica individualizante diz respeito à redefinição do lugar do sujeito da diferença na sociedade. Para tanto, o processo passa a contar com o que vem sendo denominado de protagonismo do sujeito "alienado", através das organizações de usuários e movimentos de empowerment com conquistas significativas em termos de representação política e social. Essa redefinição é realizada através da desmontagem político-social da construção do lugar da diferença como um lugar inferior e do papel social destinado ao alienado. O protagonismo começa com a crítica dos lugares que se quer produzir; fundamentalmente, dois lugares possíveis: o de paciente, demente, alienado, tutelado e dependente ou o de sujeito político, de direito, que debate o tratamento e a instituição, que participa e interfere no campo político.

A construção coletiva do protagonismo requer a saída da condição de usuário-objeto e a criação de formas concretas que produzam um usuário-ator, sujeito político. Isso vem ocorrendo através de inúmeras iniciativas de reinvenção da cidadania e empowerment, como atenta Vasconcelos (2000), por meio de intervenções via associações de usuários ou de cooperativas sociais, ou ainda da participação política de tais atores nos mais importantes fóruns sociais de formulação de políticas da área, tal como nos conselhos de saúde e comissões de saúde mental (nos dois casos tanto em nível nacional, quanto estadual e municipal).

Essas têm sido as referências teóricas e culturais que têm fundamentado e orientado o processo de desconstrução das práticas de institucionalização da loucura, e que têm transformado o lugar social da mesma. Do sujeito alienado, incapaz, irracional, a um protagonista, desejante, construtor de projetos, de cidadania, de subjetividade. Enfim, é importante ressaltar que significativa parte dessa construção tem sido possibilitada em decorrência da atitude epistemológica proposta por Basaglia de colocar a doença entre parênteses, fazendo da intervenção uma estratégica não de cura/reabilitação, mas de invenção da saúde, de reprodução social dos sujeitos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jul 2007
  • Data do Fascículo
    2001
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