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Ciências sociais e saúde para o ensino médico. Saúde em debate - Série Didática. Canesqui, Ana Maria (org.). FAPESP-Editora Hucitec, São Paulo 2000, 283pp.

Rosana Magalhães

Departamento de Ciências Sociais, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz

O ensino das ciências sociais na graduação médica representa um importante ponto de inflexão no processo de formação dos profissionais de saúde. Fronteiras disciplinares, postulados rígidos e limites institucionais são repensados e um novo horizonte de possibilidades teórico-práticas é criado. No entanto, a trajetória de incorporação das ciências sociais no ensino médico não deve ser percebida como um percurso linear, sem superposições, ambivalências e conflitos. As contradições marcam o crescimento e a consolidação deste projeto de articulação entre formulações sociológicas, abordagens antropológicas, teoria política e a medicina.

Na verdade, o entendimento da saúde como fenômeno social e as exigências práticas decorrentes deste aprendizado impôs, permanentemente, o contato com diferentes conceitos, categorias e tradições analíticas. Nesta peregrinação em busca de argumentos novos, concorreram entre si abordagens funcionalistas, estruturalistas, pós-estruturalistas, interacionistas e outras tendências teóricas. Universos simbólicos, representações coletivas, relações de gênero, poder, estratificação social são alguns dos temas que fertilizaram, em diferentes contextos sociais, hipóteses interpretativas para a caracterização das condições de saúde da população, da prática médica, da relação médico-paciente ou, ainda, dos perfis de formação profissional.

O livro Ciências sociais e saúde para o ensino médico, organizado por Ana Maria Canesqui, enfrenta o desafio de reunir e sistematizar algumas dessas interpretações desenvolvidas no campo da saúde coletiva no Brasil. Trata-se de uma coletânea que visa, prioritariamente, contribuir para a elaboração de um "roteiro de ensino" capaz de orientar a formulação de conteúdos para os cursos de graduação médica no país. Por um lado, Ana Maria Canesqui atualiza a perspectiva presente em outras obras importantes como Dilemas e desafios das ciências sociais na saúde coletiva (1995) e Ciências sociais e saúde (1997). Ou seja, destacando as inegáveis contribuições de sociólogos, economistas, antropólogos e médicos-sanitaristas ao amadurecimento deste campo intelectual, a autora revigora o diálogo entre as diversas disciplinas das ciências sociais e o saber biomédico.

Por outro lado, ao estudar as múltiplas zonas de mediação entre as ciências sociais e a saúde no âmbito da formação profissional e, focalizar as lacunas existentes nos currículos das escolas médicas, Ana Maria Canesqui apresenta um conjunto de artigos capaz de oferecer elementos para o debate em torno da reforma do ensino e da construção de projetos de capacitação na área. Sem a pretensão de "construir um discurso da supremacia exclusiva do coletivo (social) sobre o biológico e vice-versa", os estudos históricos e as pesquisas empíricas reunidas no livro ressaltam a necessidade de uma análise abrangente e plural. A organização dos textos em quatro partes - "A medicina e os médicos", "Políticas de saúde e tecnologias médicas", "Medicina e outros sistemas médicos" e, por último, "Práticas terapêuticas e olhares sociológicos e antropológicos sobre a doença" - nos faz ver as múltiplas áreas de interação presentes no campo da saúde e os limites das intervenções restritas ou instrumentais.

Os autores, especialistas e pesquisadores prestigiados nas diferentes instituições acadêmicas do país, ao discutirem a história da medicina, a estruturação da profissão médica e do mercado de trabalho, os contornos da política de saúde, os dilemas da alocação de recursos vis-à-vis os diferentes caminhos para compreender e aliviar o sofrimento humano, testemunham a presença de um objeto em mutação. Neste sentido, os artigos sobre a AIDS, o alcoolismo em uma comunidade indígena e as complexas relações entre raça e os perfis de morbi-mortalidade são expressão inequívoca da tarefa compartilhada de compreender, no quadro contemporâneo da saúde, problemas emergentes, velhos impasses e novos desafios. O resultado desse esforço é uma obra de grande vitalidade a qual, certamente, despertará o interesse pela reinvenção permanente de conteúdos e práticas no processo de formação médica.

História oral: desafios para o século XXI. Ferreira, Marieta de Moraes, Fernandes, Tânia & Alberti, Verena (orgs.). Fiocruz/COC -CPDOC/FGV, Rio de Janeiro, 2000. 204 pp.

Vitória Vellozo

Secretaria Municipal de Saúde

A década de 1990 assistiu a uma significativa expansão da história oral. A criação da Associação Brasileira de História Oral, em 1994, é um marco de referência dessa expansão. Desde então multiplicaram-se os encontros e seminários, o intercâmbio institucional, a listagem de publicações e de trabalhos científicos nessa área, revelando a vitalidade e o dinamismo da história oral entre nós. A realização do X Congresso Internacional de História Oral, no Rio de Janeiro, em 1998, consolidou essa perspectiva.

A coletânea História oral: desafios para o século XXI, que reúne os textos das conferências proferidas durante o X Congresso Internacional de História Oral, tem o mérito de oferecer ao leitor um panorama diversificado e atual do uso e das potencialidades da história oral, promovendo um fértil debate sobre os grandes desafios dos trabalhos nessa área: a incorporação de novas tecnologias, a complexidade das relações culturais, as questões metodológicas e os dilemas éticos, expressos a partir de diferentes pontos de vista.

As conferências reunidas no livro abordam diferentes dimensões da história oral, compondo seis painéis temáticos: "Abertura", "Avaliações e tendências da história oral", "História oral na América Latina", "Traumas na Alemanha" e "Identidade da classe trabalhadora em uma economia global".

A abertura feita pela presidente da Associação Internacional de História Oral (IOHA), Mercedes Vilanova, destaca a importância da realização do X Congresso na América do Sul. Fruto de uma longa trajetória é, inegavelmente, uma conquista que amplia horizontes futuros e abre caminho para o fortalecimento do diálogo e da integração neste campo. Diz a autora: Estamos, pois, começando a praticar a mestiçagem cultural e começamos a reconhecer nossas respectivas identidades culturais.

Uma visão positiva de nós mesmos também é reforçada pela conferência inaugural proferida por Roberto DaMatta. O autor destaca que a heterogeneidade, a multiplicidade, a polissemia e a mestiçagem, após um século de afirmação em contrário, são hoje elementos que conferem uma enorme vantagem ao Brasil na consolidação de laços sociais mais solidários.

A questão do hibridismo cultural e da constituição de identidades são temas recorrentes em outras conferências. Entre os desafios da história oral ante a chegada do século XXI, Philippe Joutard ressalta a necessidade de se permanecer fiel ao compromisso com a voz dos excluídos, com a revelação do indescritível e com o testemunho das situações de extremo abandono. Ao mesmo tempo, é preciso ser capaz de analisar criticamente a totalidade da documentação na produção de interpretações. Neste sentido, o autor também sinaliza os desafios de ordem metodológica e a incorporação de novas tecnologias de captação de imagem pela história oral, quando ainda temos dificuldade de ir além dos conteúdos produzidos pelas entrevistas, raramente realizando estudos sobre os silêncios e as hesitações. Finalmente, Joutard destaca estreita ligação entre história oral e identidade, assinalando que a primeira por seu permanente recurso à memória se constitui um potente vetor de identidade.

O texto de Alistair Thomson traça um panorama da perspectiva internacional da história oral, nos últimos cinqüenta anos, explorando a "dimensão humana" da prática da história oral. Seguindo esta trilha aborda, a partir da literatura produzida nesse período, preocupações com aspectos metodológicos, com os dilemas na interpretação dos testemunhos orais, com a introdução de novos modos de registro de entrevistas e com as implicações éticas dos usos e abusos da apresentação pública dos relatos pessoais.

A contribuição de Alessandro Portelli consiste em apontar a centralidade da história oral na releitura dos acontecimentos trágicos, assim como das conquistas do século XX. Segundo o autor, recuperar a "memória como história", se constitui um instrumento capaz de promover a renovação do diálogo sobre a história, numa perspectiva de luta por igualdade social.

Fechando o segundo bloco temático, a percepção de uma tendência mundial de regionalização de identidades e das noções de história é o ponto de partida para a análise de Selma Leydesdorff sobre os desafios do transculturalismo. A autora destaca a complexidade da abordagem transcultural, sugere o incremento de estudos nessa área, ao mesmo tempo em que circunscreve a história oral como um campo e uma atitude de pesquisa, em que a singularidade da experiência individual e o caleidoscópio das representações culturais poderiam se encontrar e produzir esforços de generalização.

A discussão sobre a história oral na América Latina é objeto de análise da terceira seção da coletânea. José Carlos Sebe Bom Meihy sublinha, com especial vigor, a vinculação da história oral ao processo de redemocratização. Por outro lado, enfatiza a excessiva dependência dos modelos europeu e norte-americano. A coexistência dessas duas lógicas diferenciadas situam a história oral na América Latina no impasse político da criação de um saber autônomo e de uma prática temática independente que tem que conviver com a prática imitativa exercida nas ex-metrópoles.

Em outra linha interpretativa, Dora Schwarztein, traçando um perfil da história oral na Argentina, chama a atenção para o desenvolvimento heterogêneo das experiências com história oral na América Latina, para a existência de desafios distintos e para a diversidade temática. Considera, entretanto, que o fundamental não é a elaboração de marcos teóricos nacionais, mas a compreensão acerca dos processos de construção e constituição dos testemunhos orais, dentro de campos definidos de poder.

"Nós e o espelho" é o título da reflexão proposta por Janaína Amado acerca da armadilha dicotômica que tem permeado o pensamento e a produção intelectual latino-americana. Ciente da existência de um sistema complexo de tendências entrelaçadas, a autora recupera os conceitos de mestiçagem e de identidade para ressaltar as contribuições inegáveis de uma produção tão variada quanto original, e capaz de promover um diálogo interdisciplinar.

Eugênia Meyer faz um balanço de duas décadas de trabalhos produzidos na América Latina, reafirmando a responsabilidade e o desafio dos historiadores latino-americanos de socializar e de proteger as fontes e os testemunhos, de recuperar a história não-oficial e de insistir na necessidade da interdisciplinaridade e da multidisciplinaridade.

O quarto bloco reúne artigos sobre os depoimentos de sobreviventes do Holocausto e de prisioneiros em campos soviéticos na Alemanha Oriental entre 1945 e 1950. Mesmo se tratando de temas clássicos da história oral os trabalhos apresentados revigoram o debate, analisando um leque ampliado e complexo de questões em torno do nacional-socialismo e o pós-guerra na Alemanha.

Mark Roseman assinala que as incongruências encontradas a partir da comparação entre testemunhos orais e documentos de época podem elucidar estratégias constituídas para lidar com as lembranças de um passado insuportável.

As razões do silêncio de um sobrevivente do Holocausto são o tema do artigo de Friedhelm Boll, que chama a atenção para os sentimentos de culpa e a dificuldade de comunicação, em linguagem cotidiana, enfrentados pelos sobreviventes dos campos de concentração nazista.

As nuanças que envolvem a culpa e os traumas vivenciados nos campos de concentração assumem tonalidades ainda mais sutis diante das análises de Anne Kaminsky e Alexander von Plato. Os autores sinalizam a complexidade inserida na interpretação das lembranças desse tempo, assinalando os sentimentos ambíguos, que variaram com as conjunturas políticas, a "hierarquia de vítimas" e a comparação entre as experiências dos campos nazistas e dos campos soviéticos entre 1945-1950 na Alemanha Oriental elaboradas por sobreviventes.

A parte final da coletânea aborda temática da globalização da economia e seu reflexo na constituição da identidade da classe trabalhadora. Michael Frisch e Alícia Rouveral, a partir de experiências de operários americanos, destacam os impactos do declínio da atividade industrial, da reestruturação produtiva e da flexibilização das relações de trabalho na vida dessas pessoas.

Esses dois trabalhos também são ousados no que diz respeito às técnicas e à metodologia ao combinar o uso da fotografia à história oral. O estudo de Alícia Rouveral tem ainda por perspectiva "compartilhar autoridade" e, desse modo, abre espaço para participação efetiva da entrevistada na análise dos achados da pesquisa. As inovações apresentadas e os pontos de convergência entre o trabalho de Frisch e o de Rouveral abrem caminho para Ana Maria Mauad, comentarista final, salientar os desafios da história para a "compreensão integral da comunicação humana".

O debate atual e envolvente presente em História oral: desafios para o século XXI torna a leitura desta coletânea instigante e oportuna para estudantes e profissionais da área.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jul 2007
  • Data do Fascículo
    2001
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