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RESENHAS

REVIEWS

Municipalização da saúde e poder local: sujeitos, atores e políticas. Sílvio Fernandes da Silva. Editora Hucitec, São Paulo, 2001, 292pp.

Carlos Minayo Gómez

ENSP/Fiocruz

Em 292 páginas, Sílvio Fernandes da Silva, atual secretário municipal de Saúde de Londrina, brinda os pesquisadores e os gestores de saúde com uma obra que merece destaque, por suas qualidades acadêmicas, sua relevância social e política e sua pertinência histórica. O tema da municipalização e do poder local nunca esteve tão presente na pauta de mudanças no país e de forma muito particular no setor saúde. Desde 1988, a partir da promulgação da Carta Constitucional e da Lei Orgânica específica, o processo de descentralização vem fazendo parte das formas de concretização da democracia, ampliando o quadro de atores responsáveis pela condução do país e pela implementação de políticas que afetam direta e indiretamente a qualidade de vida da população brasileira.

O livro que ora apresento foi escrito com emoção e razão, pois o autor combina, em sua trajetória, a reflexão acadêmica e a gestão política do setor saúde em sua cidade, Londrina; papéis exercidos alternadamente e muito bem sintetizados nas páginas que ora prefacio. É preciso ressaltar que Sílvio sempre foi e continua a ser um ator relevante na formulação e na implementação da Reforma Sanitária, exatamente, naquele espaço em que as dificuldades do cotidiano põem à prova teorias políticas e estratégias organizacionais: o âmbito local. A questão local, mesmo em se tratando de uma unidade territorial pequena, revela inter-relações extremamente complexas que necessitam de instrumentos conceituais densos e novos para serem compreendidas.

Fruto de sua tese de doutorado, esta obra, com certeza, vem responder a indagações de um intelectual orgânico como é o caso de Sílvio. E por isso, contém em si, a complexidade das interrogações dos que articulam teoria e prática e conduzem ou acompanham, de forma engajada, o processo de implantação do SUS. Talvez para não contaminar sua análise com as emoções da gestão do cotidiano no qual esteve envolvido como secretário de saúde, o autor estudou a dinâmica dessa implantação em Marília (SP), uma cidade que, como Londrina, vem desenvolvendo, com muita densidade, uma experiência bem-sucedida de descentralização do setor.

É preciso falar sobre a importância teórica e prática do trabalho. Apenas na última década, vem se tornando mais habitual acompanhar as políticas públicas com avaliação do processo de implementação, ação fundamental para qualquer país que se proponha a dar continuidade a seus acertos e a corrigir, em caminho, os problemas não previsíveis no momento do planejamento. Essa postura ao mesmo tempo responsável e crítica permite superar um costume muito comum em países como o Brasil, onde os governantes de plantão costumam destruir tudo o que foi feito por seus antecessores para, sempre recomeçar, sobretudo, quando os gestores da administração anterior foram seus adversários. Nesse sentido, o livro de Sílvio é um trabalho essencial, na medida em que analisa os acontecimentos empíricos, teoriza, valoriza, critica e aponta elementos para ação.

Não resumirei o trabalho do autor, mas ressaltarei alguns pontos, sobretudo aqueles que reforçam meu argumento de que este é um trabalho de leitura obrigatória. Começo pelo método. Ao usar a estratégia do estudo de caso, Sílvio foi muito feliz teoricamente, pois investigou a implantação de uma política social em plena efervescência, fazendo dela o microcosmo de uma reflexão muito mais ampla a respeito do processo político e do processo social de construção e de inclusão de atores; de produção de consensos e dissensos; de avaliação de pontos-chave para as mudanças; e de constatação de núcleos problemáticos do sistema de saúde que, segundo o próprio autor, resistem a qualquer forma de intervenção já tentada. A obra de Sílvio também relativiza o peso dos esforços de transformação organizacional, tema muitas vezes tratada pelos formuladores da Reforma Sanitária como objetivos absolutos em si mesmos.

No livro, Sílvio coloca os motivos da escolha de Marília como campo de estudo: uma cidade de porte médio; o fato dos gestores locais manifestarem seu desejo de ter uma avaliação de seu desempenho e dos resultados das intervenções; a presença, no local, do Projeto UNI (que norteia a formação dos estudantes de medicina, integrando-os na comunidade); e o fato de, nessa municipalidade, estar sendo exercida a gestão plena do sistema local de saúde.

No trabalho de campo e documental, Sílvio, na qualidade de pesquisador, desvendou os vários ângulos do movimento político, comunitário e institucional voltado para a Reforma do Sistema de Saúde como história de um período de 10 anos. E nas imagens e cenários colheu a dinâmica do interjogo de forças; de pluralidade de atores; de conflitos e consensos de interesses; de projetos e possibilidades; de dificuldades e restrições; de promessas e incertezas. Ouviu as pessoas, cada uma em seu respectivo papel. Como retratou esse conjunto de interações, seu trabalho é também uma fonte de consultas e um manancial de perguntas para futuras pesquisas.

Na análise de tudo isso, Sílvio retomou a proposta do Movimento Sanitário, seu sentido ético e político, mas, sobretudo, analisou a participação dos atores locais, seu papel e sua força/fraqueza, assim como a eficácia e a eficiência das ações descentralizadas, num exercício hermenêutico e dialético fundamental para a compreensão da implementação do SUS. Focalizou também o movimento das interações do âmbito local com o regional e o nacional, na medida em que tudo se integra num sistema onde cada instância tem seu papel, mas acha-se profundamente relacionada e influenciada pelo que ocorre no todo.

O livro não pretendeu ir além de Marília, e nem deveria, pois se propôs a apresentar um estudo de caso. Mas já há vários outros trabalhos que vão permitindo concluir que, apesar de todos os percalços e dificuldades, a universalização do direito à saúde por meio da implementação local dos serviços de promoção, de prevenção e de assistência, pode ser considerada, numa perspectiva processual, um sucesso. A Pnad/ Saúde de 1998 evidencia a ampliação do número de estabelecimentos, sobretudo os públicos e o aumento da população que tem acesso aos serviços. E o Censo de 2000 revela muitas melhorias nos padrões de saúde da população brasileira. Esses resultados, olhados de forma dinâmica, mostram que vale a pena dedicar-se a uma causa tão nobre como a elevação da qualidade de vida do povo brasileiro. Certamente o livro de Sílvio é uma contribuição para pensar e para atuar nesse sentido. E Sílvio é um ator privilegiado dessa dinâmica.

Ciência e pobreza no século XX1 - Ciclo de Atualização em Jornalismo Científico. Faperj-Academia Brasileira de Ciências, Rio de Janeiro, 2001, 175pp.

Kathie Njaine

Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli CLAVES/ENSP/Fiocruz

A obra reúne os debates do Ciclo de Atualização em Jornalismo Científico, realizado em setembro de 2001, promovido pela Faperj, em parceria com a Academia Brasileira de Ciências. Trata-se de uma coletânea que relaciona artigos de especialistas de diversas áreas do conhecimento e profissionais da imprensa sobre os seguintes temas: ciência e tecnologia e projeto nacional; as contribuições do mapeamento genético para a sociedade; crise energética; água e escassez; indicadores de desenvolvimento humano e a questão da pobreza; mudanças climáticas; e o futuro da ciência.

Tomando como objeto de reflexão os desafios que o Brasil terá que enfrentar no século 21 para superar as graves desigualdades sociais no país, os debates trazem a certeza de que a ciência e a tecnologia são fundamentais para o desenvolvimento de uma sociedade, mas devem conciliar os investimentos políticos, financeiros e de pesquisas com as necessidades sociais.

Na apresentação, o presidente da Faperj expõe a relevância da ciência na erradicação da pobreza, na melhoria da qualidade de vida da população; e a preocupação central que perpassa todos os trabalhos reunidos neste livro: o uso social da ciência e o acesso à informação científica e tecnológica pelos cidadãos.

O livro está dividido em dois capítulos. O primeiro reúne a visão da ciência e da pobreza sob a ótica de pesquisadores vinculados a instituições de ensino e pesquisa reconhecidas nacional e internacionalmente no cenário da ciência e tecnologia do Brasil, e um artigo que apresenta os dados do PNUD sobre o Brasil no Relatório Internacional de Desenvolvimento Humano 2001. O segundo capítulo traz a visão sobre o tema, na ótica de jornalistas ligados à imprensa escrita e falada e a instituições de pesquisa.

"Para onde caminha a ciência?" é a pergunta que o físico e professor do Museu de Astronomia e Ciências Afins - Mast/CNPq, Henrique Lins de Barros, faz no primeiro capítulo. Alerta que o grande desafio da ciência está em construir uma nova relação com o mundo real e o mundo natural, para que se possa incorporar a dimensão humana. Para ele o caminho não está ligado diretamente ao desenvolvimento de novas tecnologias, mas sim a uma reflexão sobre a questão ética, que leve a ciência a interrogar se os avanços almejados devem ou podem ser realizados sem comprometer as futuras gerações.

O artigo "Ciência é poder", do professor Darcy Fontoura de Almeida, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, remonta o pensamento de Francis Bacon sobre o desejo de o homem dominar a natureza, sem que deixe de respeitar as suas leis. Destaca que, hoje, à luz da disciplina da genética que, associada à biologia molecular, não podemos continuar a considerar a natureza como um universo à parte. Somos sim, um resultado da interação permanente entre o patrimônio genético e o meio ambiente. Esse autor traz à tona sua preocupação e a de outros pesquisadores com o reducionismo que a biologia pode ocasionar em condições ideológicas propícias, onde a prepotência dos cientistas em querer dominar o segredo da vida é determinante. O professor Darcy reconhece que o conhecimento do genoma humano abre caminho para que se alcance o poder, como as manipulações e intervenções no conteúdo genético, que objetivam prevenir ou corrigir defeitos genéticos. Mas lembra que na prática, os portadores de mutações poderão ser vítimas de discriminação genética, ao se verem impossibilitados de adquirir seguros de vida ou de conseguir emprego, com conseqüências sérias de ordem psicológica, social e econômica. E alerta que "existe algo mais na célula além do DNA".

O Relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) situa o Brasil na 69ª posição no ranking de 162 países classificados como em desenvolvimento, e na 14a na América Latina e Caribe. Houve uma melhoria do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) brasileiro nas duas últimas décadas, devido a duas áreas que compõem o índice: saúde e educação. No entanto, comparando os dados do RDH 2000 com os de 2001, o relatório revela que aumentou a quantidade de brasileiros vivendo abaixo da linha de pobreza. Ou seja, vivendo com até US$1 por dia, em 2000 eram 5,1% da população, passando para 9,0% em 2001; e pessoas abaixo da linha de pobreza de US$2/dia passaram de 17,4% em 2002 para 22,0% em 2001. O relatório enfatiza que são necessários uma vida longa e saudável, conhecimento e acesso aos recursos para uma pessoa ter um padrão de vida entendido como decente, sem os quais muitas escolhas e oportunidades são inviabilizadas. Diferenças de gênero e raciais também são apontadas no relatório, o que demonstra um outro desafio a ser superado pelo país.

No que concerne ao campo da saúde no Brasil, Maria Cecília de Souza Minayo, professora titular da Fundação Oswaldo Cruz e coordenadora do Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli dessa instituição, aponta as tendências para o século 21 a curto e médio prazos. Situa os determinantes de saúde de um povo em quatro dimensões: as condições, situações e estilos de vida; a situação ambiental; o desenvolvimento da biologia; a organização da assistência à saúde. A autora apresenta um cenário da saúde da população brasileira, mostrando os avanços no setor, como a diminuição da mortalidade infantil, da mortalidade materna; o aumento da esperança de vida, principalmente, para o sexo feminino. Entretanto, destaca que esses ganhos, que decorreram da queda da mortalidade por diversas enfermidades nos últimos 20 anos, foram quase apagados pelo aumento da mortalidade por causas externas, incidindo sobremaneira na população masculina nas faixas de 15 a 19 anos, de 20 a 29 anos e de 30 a 39 anos. A autora levanta algumas hipóteses sobre os desafios no campo da saúde no Brasil. Do ponto de vista dos indicadores sanitários afirma que são necessários investimentos na diminuição das desigualdades econômicas das classes, gêneros, das etnias, das regiões e entre e nos próprios municípios. Com relação à questão ambiental, além do saneamento básico, aponta outros fatores provindos da vida moderna, como o estresse do trabalho ou do desemprego, do ritmo de vida, da poluição do ar, da água e dos rios, ou, ainda, a violência social que afeta a maior parte da população excluída. Também alguns desafios vêm exigindo respostas, como a questão da desigualdade e sustentabilidade; a degeneração da natureza causada pela exploração e o futuro das gerações; a preservação e uso sustentado da biodiversidade. Coloca um outro aspecto que envolve a biociência, como a biossegurança, a bioética e a incerteza dos novos experimentos. Quanto ao desenvolvimento da biologia, a autora constata em consonância com outros cientistas, a existência de esperanças e também de dúvidas que envolvem o âmbito da ética e o problema da privatização do conhecimento e acesso aos bens produzidos pela nova biologia. No tocante ao sistema de saúde, aponta as ambigüidades e a fragilidade do setor em relação aos mecanismos de financiamento, fortemente centralizados, que ameaçam as conquistas históricas dos movimentos sociais de saúde

A crise de energia elétrica e as alternativas energéticas são discutidas pelo professor Luiz Pinguelli Rosa, coordenador do Instituto Virtual Internacional de Mudanças Globais (Ivig) e diretor da Coppe/UFRJ. O Ivig antecipou a crise de energia em que o país está ingressando, por falta de investimento em tempo certo, assim como analisou o impacto das privatizações e o impacto na tarifa de geração elétrica a partir do preço do gás natural importando da Bolívia. O artigo aponta os cenários para o século 21 do ponto de vista de duas abordagens: uma tecnológica, que trata das fontes de energia para o futuro; e outra institucional. No que concerne às reservas de energia no Brasil, destaca que o país possui reservas de urânio que poderão servir em reatores nucleares, utilizando tecnologias melhores do que as que existem atualmente; possui energia solar e eólica em abundância; combustíveis fósseis como carvão, petróleo e gás natural. Em termos de tecnologia para o uso dessas energias, o autor ressalta que o século 21 deverá ser o século da energia solar e do álcool combustível, completando a utilização dos combustíveis fósseis que se tornarão raros. Alerta que o gás natural fechará seu ciclo de crescimento no mundo e o petróleo começará a declinar, mas o carvão sobreviverá se as tecnologias de seqüestro do dióxido de carbono evoluírem. A energia nuclear também poderá sobreviver, substituindo os reatores atuais e equacionando o armazenamento do lixo radioativo. O século 21 também deverá ser o da ocupação racional da Amazônia, principalmente pela descoberta de que a floresta tem potencial alto de absorção do dióxido de carbono, principal causador do efeito estufa, além de possuir uma enorme biodiversidade fundamental às populações amazônicas e ao Brasil. A Amazônia deverá também utilizar o potencial hidrelétrico de maneira seletiva e racional. Com relação à questão institucional, Luiz Pinguelli Rosa relaciona essas mudanças ao papel do Estado, à globalização econômica e à perspectiva sombria do desemprego, como problemas sociais que deverão ser resolvidos. Para isso reforça que é preciso deslocar o foco de uma lógica monetária, para não fechar os caminhos que deveríamos estar abrindo para este novo século.

O professor Roberto Schaeffer, do Programa de Planejamento Energético da Coppe/UFRJ, apresenta um panorama global das mudanças climáticas. Apesar do efeito estufa natural ser um fenômeno de bilhões de anos e ser considerado benéfico, as concentrações crescentes de gases de efeito estufa na atmosfera têm tido um impacto no aumento das temperaturas médias globais. O relatório recente do Third Assessment Report - TAR, de 2001, estima temperaturas médias globais se elevando entre 1,4 e 5,8ºC até 2100, taxa essa que não apresenta precedente nos últimos 10 mil anos. Conforme afirma o professor Schaeffer, a maior parte do aquecimento do planeta nos últimos 50 anos se deu devido a atividades humanas, e essas mudanças vêm afetando os sistemas físicos, biológicos e humanos. Contudo, são os países mais pobres em recursos e as populações mais carentes que se tornarão mais vulneráveis a esses efeitos. Nesse sentido, o autor aponta que toda a adaptação a essas mudanças deve vir acompanhada de desenvolvimento sustentável, diminuição da desigualdade, redução de consumo de energia, e mudança de padrões de consumo. Para além desses esforços, será necessária uma definição de responsabilidades dos países desenvolvidos, como contribuintes de uma maior concentração de gases de efeito estufa na atmosfera nos últimos 100 anos, e daqueles em desenvolvimento que caminham nesse sentido também.

O artigo sobre "Recursos hídricos no Brasil", do geógrafo Marcos Aurélio Vasconcelos de Freitas, diretor da Agência Nacional de Águas, aponta um cenário cada vez mais evidenciado na mídia, ou seja, o crescimento da demanda mundial por água de boa qualidade desproporcionalmente à renovação do ciclo hidrológico. Esse também é um fator de eqüidade, porque, embora as fontes hídricas sejam abundantes, o autor afirma que elas são desigualmente distribuídas na superfície do planeta, causando entraves para o desenvolvimento de várias regiões, limitando o atendimento às necessidades do homem e degradando os ecossistemas aquáticos. O crescimento demográfico e o desenvolvimento socioeconômico são seguidos de uma maior demanda de água, tanto nos setores industriais como domésticos. Destaca-se mais uma vez a situação dos países em desenvolvimento, onde a escassez de água tem se intensificado e a saúde das populações tem sido afetada pela contaminação e poluição, principalmente nas grandes concentrações urbanas. O Brasil tem o maior ecossistema hídrico do planeta, que corresponde a 13,8% do deflúvio médio mundial, mas, como alerta o autor, deverá promover uma gestão eficiente desses recursos para as futuras gerações. A Agência Nacional de Águas, cujas atividades tiveram início em janeiro de 2001, vem implementando ações como o Programa de Despoluição de Bacias Hidrográficas e o Programa de Gestão de Recursos Hídricos no Semi-Árido (Pró-Água), além de estar estruturando um sistema de informações, em tempo real, para prevenir os eventos críticos, como as secas e cheias, contando com o apoio da mídia.

"Ciência, tecnologia e projeto nacional" é o tema abordado pelo professor César Benjamin, do Movimento Consulta Popular. O autor situa o sistema econômico mundial como estruturalmente assimétrico e afirma que os desafios para os países retardatários serão: internalizar seletivamente as técnicas mais relevantes do paradigma vigente e, ao mesmo tempo, preparar condições para uma meta que rompa a lógica da dependência através de um novo paradigma. Aponta que o Brasil não possui ainda condições para esse salto, que seria de natureza política e cultural, mas tem potencial para isso e no campo da ciência e tecnologia tem várias frentes abertas necessitando de um projeto nacional consistente que os articule. Destaca que é, principalmente, como estoque de matéria-prima para as biotecnologias que a biodiversidade incorpora um papel estratégico, pois cerca de 60% do estoque de material genético do planeta estão concentrados na Amazônia, para onde interesses internacionais de diversas esferas estão voltados.

Na visão do jornalista Fábio Muniz Fernandes, a notícia científica não pode ser considerada uma modalidade de informação hierárquica, exigindo uma forma específica de transmissão de maneira a integrar a comunicação necessária a uma ação de modificação dos indicadores de exclusão e pobreza na sociedade. Considera que as novas tecnologias devam servir a esse fim e a atividade científica deva ser compreendida em sua especificidade e potencialidade de explicação dos fenômenos físicos, biológicos, etc.

Para Danielle Nogueira, repórter do Jornal do Brasil, o "Projeto Genoma Humano" é uma questão de informação central a ser pensada por todos, porque diz respeito a quem terá acesso ao resultado do exame genético e que uso fará dele. Esse fato tem sido também constatado pelos pesquisadores e conseqüentemente intriga a imprensa mundial por envolver questões políticas, mercadológicas e éticas.

Nessa mesma linha, a repórter especializada em educação da Folha Dirigida, Maria Cristina Siqueira dos Santos, afirma que por mais veloz que a civilização caminhe, a ciência "não oferece mais que raríssimas verdades acabadas aos jornais", embora tenha conquistado seu espaço diário na mídia por sua condição de descobrir e renovar a atividade humana. Reflete que a transmissão das informações científicas para a mídia exigirá de alguma forma um longo período de espera, pela própria natureza da atividade de pesquisa que pode durar décadas. E sinaliza que caberia a outros grupos profissionais, que não o científico desenvolver programas que possibilitem ampliar as potencialidades da ciência e transformá-la em um bem comum. Nesse caso situa a imprensa e a educação como setores importantes responsáveis por essa tarefa.

O jornalista Cláudio Marques enfatiza em "Desafios para a ciência no Brasil" a importância de os investimentos sociais serem acompanhados de pesquisas que busquem resolver os problemas em áreas de maior relevância para os países pobres. Cita a área da saúde no país como um campo que vem investindo em desenvolvimento de vacinas específicas, medicamentos e alternativas de alimentação que possam solucionar o problema da fome.

O desafio da "Evolução científica e pobreza" é interrogado pelo jornalista Guido Mendes, da Secretaria de Gabinete do Governo do Estado do Rio de Janeiro, que aponta a utilização do conhecimento construído em prol dos seres humanos do planeta como o maior impasse. Apresenta como questão localizada o Programa de Gestão dos Recursos Hídricos na Bacia do Rio Paraíba, onde vivem cinco milhões de pessoas; como uma ação pública exemplar, coordenada pelo setor privado, poder público e sociedade civil.

A jornalista Eliane Belleza, do Instituto Fernandes Figueira da Fundação Oswaldo Cruz, relembra as tragédias cotidianas que ocorrem nos grandes centros urbanos e cita a reflexão de José Carlos Libânio, coordenador de desenvolvimento humano do PNUD no Brasil, sobre o significado do aumento de parcelas de poder pelos pobres, como forma de garantir direitos básicos, influência nas políticas públicas, acesso à informação e a novas tecnologias e democratização da terra, do capital e do trabalho.

O repórter da Empresa Municipal de Multimeios da Secretaria da Educação da Prefeitura do Rio de Janeiro, Marcus Tavares, discute o profundo gap entre ricos e pobres. Considera que os avanços científicos e tecnológicos só são socializados a longo prazo, ou por resistências às mudanças, mas principalmente por esbarrar no poder econômico. Aponta também os movimentos sociais como capazes de se oporem a esse poder de alguma forma, o que não significa participação direta nas descobertas da ciência, setor que faz parte do mundo das classes dominantes.

No artigo "A miséria ignorada", a jornalista Renata Pereira da TV Bandeirantes, considera que há caminhos possíveis a serem trilhados, como a mobilização da sociedade em torno de causas como a fome, o terrorismo. Alerta que os atentados ocorridos nos EUA, em 11 de setembro de 2001, serviram para mostrar ao mundo capitalista um lado da miséria que atinge o planeta e que é preciso aprendermos a ouvir o apelo dessas populações miseráveis.

Por último, a jornalista Cláudia Jurberg, assessora de eventos científicos do Instituto Oswaldo Cruz/ Fiocruz, indaga: afinal, quem pauta o sensacionalismo do jornalismo científico? Essa é uma questão que vem sendo debatida há pelo menos duas décadas pela Associação Nacional de Jornalismo Científico, entidade preocupada em dosar esse gênero de notícia, equilibrando a informação necessária com a sedução que muitas vezes afeta o jornalista ao escrever sobre ciência. Por outro lado, equilibrar a notícia com a vaidade do cientista. Nesse embate, cita a reflexão do físico Henrique Lins de Barros: tanto o jornalista quanto o cientista pautam o sensacionalismo na imprensa. Segundo o físico, o jornalista procura notícia que desperte o interesse dos leigos, enquanto o cientista quer mostrar que sua pesquisa é importante para todos; o jornalista parte do pressuposto que qualquer dado científico é chato, enquanto o cientista considera o jornalista uma "anta", incapaz de entender o objeto de seu trabalho; e os dois duvidam que o leitor ou espectador seja capaz de compreender a ciência. No entanto, Cláudia Jurberg considera que o leitor é muito mais esperto do que se imagina e que a popularização da ciência através do jornalismo científico deve procurar dar uma visão acessível ao público sem descaracterizar as pesquisas.

Para concluirmos, apontamos algumas premissas de desafios a serem considerados:

• periodicidade desses ciclos de debates entre cientistas e jornalistas;

• inclusão dessa temática nos cursos de jornalismo;

• discussão mais aprofundada sobre a popularização da ciência versus vulgarização;

• estudos sobre a ciência traduzida em experiências modificadoras de realidades locais;

• reflexões a partir da incorporação de tecnologias com recursos próprios e aquisição de conhecimentos científicos pragmaticamente em comunidades carentes;

• debates sobre a função social da ciência e da imprensa com o público.

Entretanto, é necessário se criar uma verdadeira relação de cooperação entre cientistas e jornalistas, no sentido de inaugurar um novo paradigma para a divulgação científica no Brasil, para que possamos questionar continuamente as possibilidades da ciência e da imprensa na erradicação da pobreza no século 21, que inclua a ética em ambas as atividades e destitua a arrogância que muitas vezes oblitera o sentido essencial da ciência, da informação e da comunicação social.

Saúde, a cartografia do trabalho vivo. Emerson Elias Merhy. Editora Hucitec, Rio de Janeiro, 2000, 189pp.

Luiz Carlos de Oliveira Cecílio

Unicamp/Governo do Estado de São Paulo

O livro Saúde, a cartografia do trabalho vivo, de Emerson Elias Merhy, que a Hucitec acabou de lançar, constitui-se em uma excelente oportunidade para uma leitura mais integrada ou "transversalisada" do que este produtivo autor tem escrito nos últimos anos. Composto de um conjunto de textos, a maioria já publicada e recompilada em sua tese de livre-docência (2000), o livro, organizado em quatro capítulos enriquecidos com três apêndices, constitui-se, ele próprio, uma cartografia do esforço teórico que Emerson tem realizado para pensar o trabalho e a gestão em saúde na sua trajetória de educador-militante-pesquisador. O trabalho vivo em saúde é a categoria analítica que funciona como um fio condutor da(s) leitura(s) que pode(m) ser feita(s) dos textos, produzidos a partir de múltiplas experiências, compartilhadas com tantos coletivos e, nas quais o autor esteve sempre muito implicado.

O formato do livro pode causar um questionamento inicial no leitor: qual o critério adotado por Merhy para "classificar", como capítulos e apêndices, textos igualmente importantes para a construção do seu pensamento? Uma possibilidade de resposta: no bloco dos quatro capítulos, estão expostas as questões centrais da sua reflexão teórica mais recente. Os apêndices seriam textos para iluminar as interrogações e inquietações apresentadas nos quatro capítulos, com o olhar mais voltado para o setor público. Dois blocos de produção do autor dialogando entre si. No primeiro, seu foco de atenção está posto no processo de reestruturação produtiva da saúde em curso no setor privado, ligado ao capital financeiro e, no segundo, desloca seu foco de atenção para o campo das organizações governamentais, território privilegiado de suas intervenções, interrogando-se sobre o que podemos aprender "com a força da grana que ergue e destrói" coisas belas, como diz Caetano Veloso. Com certeza, conhecendo o Emerson, toda a sua disposição está voltada em aprender a "erguer coisas belas", como a defesa da vida de forma radical e a contribuição para a construção de uma nova cidadania no nosso país.

A importante reestruturação do processo produtivo da saúde, na forma do Managed Care (Atenção Gerenciada), que vem ocorrendo de forma impetuosa nos Estados Unidos, com desdobramentos importantes nos países da América Latina, incluindo o Brasil, parece funcionar como um analisador altamente instigante para o autor que reconhece uma confluência de temas da agenda do Managed Care com aquela de todos comprometidos com a construção do SUS. Como é possível encontrar algum diálogo entre o projeto com pretensões de universalização e eqüidade do SUS e a proposta da Atenção Gerenciada, que entende a universalidade como um equívoco, pois "implica a não-utilização da inteligência do agente econômico", e que exclui qualquer grupo que possa implicar maior custo para o sistema, que tem, em resumo, um "sentido excluidor basal"? Para Merhy, a resposta estaria no fato de que a transição tecnológica em curso no setor saúde não se dá pela entrada de equipamentos mas pela capacidade que tem tido de "atingir o núcleo tecnológico do trabalho vivo em ato na sua capacidade de produzir novas conformações dos atos de saúde e o seu lugar na construção de processos produtivos, descentrando o trabalho em saúde até mesmo dos equipamentos e especialistas". E isso nos interessa. Assim, a transição tecnológica estaria ocorrendo no campo das tecnologias leves, inscritas no modo de atuação do trabalho vivo em ato e nos processos de gestão do cuidado. E isso, e "apenas" isso, já justificaria a grande atenção que o autor, em rica parceria com Celia Iriart e H. Waitzkin, entre outros, tem dedicado ao estudo e compreensão da transição tecnológica conduzida pelos setores financeiros monopolistas no setor saúde como fonte de indagações para se pensar a gestão e a reorganização do setor de saúde estatal.

O que parece ser uma "lição" a ser aprendida com o Managed Care, guardadas as diferenças de sua lógica com a da construção do SUS, é a viabilização de determinados dispositivos de gestão com alto poder de atingir o espaço da microdecisão até então monopolizada pelo médico sob a égide do modelo flexneriano. Para Merhy, o nó crítico que interessa é: como tornar controlável a dinâmica microdecisória a tal ponto que a incorporação tecnológica e mesmo a lógica dos processos produtivos sejam alterados? Isto é, como, pelo terreno das tecnologias leves que operam nos processos relacionais que compõem o ato de cuidar e mesmo os atos decisórios da saúde, se pode imprimir uma transição tecnológica, no setor saúde? No fundo, a questão que interessa ao autor, e a todos nós que batalhamos pela construção do SUS é se seria possível pensar um modelo anti-hegemônico que torne a dinâmica microdecisória mais pública, capturada pelo mundo das necessidades dos usuários? Partindo da evidente constatação de que os arranjos viabilizados pelo Managed Care (a articulação e controle mútuo de quatro grande atores - financiadoras, prestadoras, administradoras e consumidores - atuando em uma lógica de mercado) são incompatíveis com a lógica de construção do SUS como política social, o autor vai apontar, nos três apêndices, como vê possíveis modos de se fazer a transição tecnológica no setor público, comprometida não com a lógica pura e simples da eficiência (idéia que seduz importantes setores governamentais e parcelas do próprio Movimento Sanitário) mas com a defesa da vida, com os interesses dos usuários. O dilema que o autor se propõe a enfrentar não é pequeno: seria possível adotar a caixa de ferramentas do Managed Care "desencarnada" da lógica de interesses da seguradora privada, organizando um sistema com uma visão ampla de saúde e de cidadania social?

Como eu já havia destacado, é no conjunto dos três textos publicados como apêndices que o autor apresenta os dispositivos que comporiam uma caixa de ferramentas como poder de fogo suficiente para enfrentar tal dilema; na minha opinião, a questão central do livro. Uma caixa intencional e necessariamente eclética, pois nela vão entrar desde os protocolos de cuidado até um conjunto de idéias e modos de intervenção buscados no campo das técnicas de Governo, que comporiam núcleos de tecnologias leves e leve-duras visando à gestão do cotidiano em saúde, terreno da produção e cristalização dos modelos de atenção à saúde (...) permitindo instituir novos arranjos no modo de fabricar saúde, ao se configurarem novos espaços de ação e novos sujeitos coletivos, bases para modificar o sentido das ações de saúde, em direção ao campo de necessidades dos usuários finais. Aliás, para o autor, a única indicação segura para atravessar o pesado campo dos instituídos, o fogo cerrado dos interesses em jogo e os embates cotidianos que se realizam nas organizações, rumo a "outras cartografias além do instituído", seria "a possibilidade de permeabilizar os espaços institucionais no interior dos serviços de saúde para que neles atue a força instituinte do usuário, mesmo que ele não esteja fisicamente ali". Para tanto, os serviços de saúde devem apoiar-se em processos gerenciais autogestores, publicamente balizados a partir de contratos globais, e dirigidos colegiadamente pelo conjunto dos trabalhadores, sempre adotando a priori que, no jogo de interesses tão díspares, os dos usuários seriam os únicos com potência e legitimidade para "colocar seu foco privado para publicizar os outros".

Parece-me, aqui, que Merhy contrapõe à idéia da lógica do mercado, em particular dos interesses do setor financeiro oligopólico, como "vetor externo" determinante da transição tecnológica em curso no setor saúde, um outro modo de pensar. Em outras palavras: aquele que entende os interesses dos usuários com força e legitimidade para orientar uma necessária reorganização do processo produtivo da saúde na direção de um novo patamar, inclusive se sobrepondo a um conjunto de interesses "menores" disputados pelos "outros" atores nas arenas das organizações de saúde. Parece-me que tal tipo de pensamento, uma "ética de convicção", no sentido dado por Weber - um desenho do futuro que escaparia aos ditames da lógica instrumental e que remeteria ao campo dos valores últimos -, pode ser problemático no campo das organizações de saúde, quando consideradas as suas tensões constitutivas como bem apontadas pelo autor. O próprio autor reconhece o quanto pode ser tensa a captura do exercício privado dos atos produtores do cuidado por processos mais publicizantes: impactar os exercícios privados, tornando-os mais controlados, produzindo com isso serviços mais centrados ou descentrados das óticas corporativas; atuar sobre disputas que ocorrem cotidianamente, procurando impor controle sobre elas e impor certos interesses de alguns como sendo universais (grifos meus). Merhy reconhece que a polarização entre autonomia e controle é sem dúvida um lugar de tensão e, portanto de potência, constituindo-se em um problema para as intervenções que ambicionam governar a produção de um certo modelo tecno-assistencial. Porém, minhas parcerias com o Emerson me permitem dizer que, onde ele escreve "problema" ele quer dizer, de verdade, possibilidades de reinvenção das organizações e das relações entre os homens. Sendo assim, voltemos à Apresentação para encerrar esta resenha, buscando ali palavras do autor que dão o verdadeiro sentido dessa obra. De fato, somos e não somos sujeitos, ou melhor, somos sujeitos que sujeitam em certas situações, e somos sujeitos que se sujeitam em outras. Instituídos e instituintes, parto do princípio que somos, em certas situações, a partir de certos recortes, sujeitos de saberes e das ações que nos permitem agir protagonizando processos novos como força de mudança, mas, ao mesmo tempo, sob outros recortes e sentidos, somos reprodutores de situações dadas, ou melhor, mesmo protagonizando certas mudanças, muito conservamos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Dez 2002
  • Data do Fascículo
    2002
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