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Ideologia, fetiche e utopia na saúde: uma análise a partir da saúde bucal

Ideology, fetish and utopia at oral health public policts

Resumos

No artigo pretendemos caracterizar 3 conceitos essenciais para se compreender a produção de necessidades humanas, como a saúde, seu escalonamento na esfera de valores socialmente construídos e as relações de poder usualmente escondidas quando se trata do adoecer humano. Ao abordar o termo fetiche, tomamos o conceito de Marx sobre o fetichismo da mercadoria, e partimos então dessa perspectiva para caracterizar a expressão "fetichismo odontológico". Depois, fazemos uma reflexão sobre ideologia, um conceito carregado de historicidade e, por isso, polêmico. Partimos, entretanto, já da visão dialética marxista, quando Marx e Engels ressignificaram o que seria ideologia. Concluímos com uma análise do conceito de utopia, que consideramos, no sentido sociológico, a expressão de grupos contra-hegemônicos num movimento de crítica à ideologia. Focalizamos a "utopia da saúde bucal" como um movimento de construção de propostas alternativas com a finalidade de transformar a realidade. O objetivo é constituir uma base de conhecimento que, mesmo bastante limitada, permita analisar a realidade sob um ponto de vista alternativo àquele que estamos habituados, para que assim possamos compreender que o que se faz necessário não são mudanças em métodos ou instrumentos, nem em maneiras de agir, mas a compreensão de uma história mais real e menos natural.

Ideologia; Fetiche; Saúde bucal


The aim of this task is to discuss a new proposal of Collective (Public) Oral Health for the professional development of Brazilian dentists. This study is based in a new model of attention in oral health. The Collective Oral Health is a critical movement that is fighting for its own legitimation as public health politics and philosophic bases to dental schools against the hegemony. Fundamented in a analysis of social, cultural, political and economical contexts of contemporary Brazil, and based in a critical reflection of dental education, clinical practice of dentistry and some concepts like fetish, ideology and utopia, the study discuss the limitations that the present model of public politics employed brings to health promotion and life's quality for Brazilian society. Therefore we discuss the beginning of the movement and also analyzed some experiences in the organization of public health services. The project of collective oral health proposes changes in health attention and new compromises and political articulations for the reconstruction of the Brazilian society.

Ideology; Fetish; Oral health


ARTIGO ARTICLE

Ideologia, fetiche e utopia na saúde: uma análise a partir da saúde bucal

Ideology, fetish and utopia at oral health public policts

Gustavo de Oliveira FigueiredoI; Dyla Tavares de Sá BritoI; Carlos BotazzoII

INúcleo de Tecnologia Educacional para Saúde, NUTES/UFRJ. Av. Roberto Silveira, 122/202, Icaraí, 24230-165, Niterói RJ. gusfigueiredo@ig.com.br

IIInstituto de Saúde da Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo

RESUMO

No artigo pretendemos caracterizar 3 conceitos essenciais para se compreender a produção de necessidades humanas, como a saúde, seu escalonamento na esfera de valores socialmente construídos e as relações de poder usualmente escondidas quando se trata do adoecer humano. Ao abordar o termo fetiche, tomamos o conceito de Marx sobre o fetichismo da mercadoria, e partimos então dessa perspectiva para caracterizar a expressão "fetichismo odontológico". Depois, fazemos uma reflexão sobre ideologia, um conceito carregado de historicidade e, por isso, polêmico. Partimos, entretanto, já da visão dialética marxista, quando Marx e Engels ressignificaram o que seria ideologia. Concluímos com uma análise do conceito de utopia, que consideramos, no sentido sociológico, a expressão de grupos contra-hegemônicos num movimento de crítica à ideologia. Focalizamos a "utopia da saúde bucal" como um movimento de construção de propostas alternativas com a finalidade de transformar a realidade. O objetivo é constituir uma base de conhecimento que, mesmo bastante limitada, permita analisar a realidade sob um ponto de vista alternativo àquele que estamos habituados, para que assim possamos compreender que o que se faz necessário não são mudanças em métodos ou instrumentos, nem em maneiras de agir, mas a compreensão de uma história mais real e menos natural.

Palavras-chave: Ideologia, Fetiche, Saúde bucal

ABSTRACT

The aim of this task is to discuss a new proposal of Collective (Public) Oral Health for the professional development of Brazilian dentists. This study is based in a new model of attention in oral health. The Collective Oral Health is a critical movement that is fighting for its own legitimation as public health politics and philosophic bases to dental schools against the hegemony. Fundamented in a analysis of social, cultural, political and economical contexts of contemporary Brazil, and based in a critical reflection of dental education, clinical practice of dentistry and some concepts like fetish, ideology and utopia, the study discuss the limitations that the present model of public politics employed brings to health promotion and life's quality for Brazilian society. Therefore we discuss the beginning of the movement and also analyzed some experiences in the organization of public health services. The project of collective oral health proposes changes in health attention and new compromises and political articulations for the reconstruction of the Brazilian society.

Key words: Ideology, Fetish, Oral health

O fetichismo odontológico

Para iniciar essa discussão, tomaremos a proposição de Debord (1997), quando caracteriza a sociedade moderna como a sociedade do espetáculo e, portanto, "o reino do fetichismo e do consumo, um mundo fragmentado, separado". O autor elabora uma interessante discussão sobre o fenômeno da ideologia na sociedade contemporânea e a denomina "sociedade do espetáculo". Essa sociedade, segundo Debord, sustenta-se como uma grande acumulação de espetáculos, de representações. Gradualmente, o indivíduo, como ser pensante e ator de sua realidade, passa a ser diluído por um mundo de representações e "pela generalização do fetichismo da mercadoria que invade a vida cotidiana". Nesse sentido, a crítica da vida cotidiana se tornaria o fundamento da crítica à sociedade moderna.

A relevância da discussão se amplia, ou se torna mais séria, quando contextualizada no quadro socialmente caótico em que vivemos hoje no Brasil, ou seja, na nossa vida cotidiana. Dados divulgados pelo IBGE (2000) sobre os indicadores sociais mínimos no país revelam uma carência social crônica. A taxa de analfabetismo é de 13,3% para indivíduos com mais de 15 anos de idade. A média do tempo de estudo da população varia em torno de 5,7 anos. A renda de 31,1% das famílias é inferior a dois salários mínimos, 23,8% da população não possui água canalizada, enquanto que somente 52,8% da população brasileira tem esgoto e fossa séptica e apenas cerca de 80% tem coleta domiciliar de lixo. Mesmo com essas demandas o país insiste em adotar um modelo de produção científica e tecnológica incompatível com a nossa realidade. A ciência na área de saúde é quase sempre voltada para a testagem de hipóteses, testagem de novos produtos, de novas técnicas, cedendo muito facilmente, tanto no meio acadêmico quanto na prática cotidiana, à pressão das grandes indústrias de fármacos e equipamentos médicos. Essa postura, historicamente, não vem auxiliando na solução dos problemas de saúde. Ao contrário, o modelo tem agravado as diferenças sociais e estimulado o crescimento do setor privado em detrimento do setor público de saúde. Tem, portanto, favorecido a venda e o consumo de um bem que vem sendo considerado uma mercadoria: a saúde.

A "tecnificação" da ciência, como resultado da forma que o modo de produção capitalista toma nos dias atuais, não transforma somente a saúde em mercadoria, mas também o próprio corpo dos indivíduos. Berlinguer, (apud Iyda, 1998), falando sobre o uso do corpo como mercadoria, considera que, na medida em que o corpo é cada vez mais freqüentemente concebido como ser biológico, as técnicas tendem a ser aplicadas sobre ele com a exclusão do sujeito. Segundo o autor, isso está inscrito em relações sociais que podem ser aquelas do dinheiro ou do poder: A ameaça adicional à integridade da pessoa decorre da fragmentação do corpo. A introdução de órgãos humanos num sistema comercial, dada a separação dos componentes de um corpo, pode fazer desaparecer a percepção da pessoa: o corpo se torna um conjunto biológico para o qual, e do qual podemos transferir elementos de acordo com uma lógica unicamente técnica.

Sobre o processo de mercantilização no campo da saúde, Botazzo e Narvai (1990) afirmam que o modo de produção capitalista, hegemônico, transforma serviços odontológicos em mercadorias (grifo meu) passíveis de serem adquiridas no mercado, pelos indivíduos que dispõem de recursos financeiros para fazê-lo. Garrafa (1993) afirma que partes do corpo humano transformam-se em mercadorias, que são negociadas em um processo vulgar de compra e venda. A subsunção da mercadoria parece evidente em todos esses autores, de maneira que então nos permitiria aqui discorrer sobre ela.

Discutindo o conceito de mercadoria, Marx (1983) afirma que a mercadoria é qualquer coisa de necessário, útil ou agradável à vida, objeto de necessidades humanas, um meio de subsistência no sentido mais amplo do termo. E ainda demonstra que qualquer mercadoria se apresenta sob o duplo aspecto de valor de uso e de valor de troca. O tempo de trabalho materializado nos valores de uso das mercadorias é ao mesmo tempo a substância que faz delas valores de troca, logo mercadorias, e também é o padrão para medir a grandeza precisa do seu valor. Nesse sentido, Marx (1983) afirma que a relação entre as mercadorias como valores de troca é antes uma relação entre as pessoas e a atividade produtiva recíproca. E, afirma ainda que todas as ilusões do sistema monetário resultam de não se ver que o dinheiro, sob a forma de um objeto natural de propriedades determinadas, representa uma relação social de produção. Assim, para Marx: Os valores de troca das mercadorias tornam-se pois valores de uso ao permutarem-se de forma universal, ao passarem das mãos em que são meios de troca para as mãos em que são objetos de uso. Só em função desta alienação universal das mercadorias, o trabalho que elas encerram se torna trabalho útil (Marx, 1983).

A forma de conhecimento decorrente do modelo capitalista de ciência, de acordo com Iyda (1998), exclui da odontologia (produção, organização e formas de trabalho) o que há nela de essencial: sua humanidade (o trabalho e as relações sociais) e sua historicidade. Não se trata de uma simples questão técnica, mas econômica e política, produzindo inclusive formas ideológicas que legitimam a prática hegemônica, transformada em mercadoria. Pois, ainda para Iyda (1998), não é a boca ou, mais estritamente, a arcada dentária que constitui o objeto da odontologia senão o homem, seu produto e produtor: a boca, ingestora de alimentos, emissora de sons, da transmissão verbal dos símbolos, guarda hoje os séculos dessa práxis social. Neste sentido, as estruturas dentárias não são fenômenos naturais mas resultam de um processo da produção e reprodução dos homens de suas condições materiais e de sua inserção nesta produção e são, portanto, socialmente investidos, apresentando-se diferentemente entre as classes e categorias sociais (Iyda, 1998).

Articulada à questão proposta por Marx sobre o valor de uso das mercadorias, Iyda (1998) afirma que o valor de uso dos serviços odontológicos está condicionado por aquelas contradições sociais descritas anteriormente, e também pela capacidade dos serviços de responder adequadamente à questão do atendimento, produzindo e inculcando um conjunto de idéias, valores e comportamentos favoráveis a uma estrutura de necessidades, legalmente reconhecidos como o consumo mínimo de saúde para todos os "indivíduos-cidadãos". Revendo Marx (1971), agora em O capital, constatamos que a mercadoria é, antes de mais nada, um objeto externo, uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, provenham do estômago ou da fantasia.

A constituição da saúde bucal como necessidade é portanto uma produção social e, segundo Martins (1999), está relacionada com as condições sociais de vida das pessoas, as tradições históricas, o hábito social e as suas representações sobre o corpo e sobre o fenômeno saúde-doença. Ainda para a autora, a saúde bucal como necessidade se articula diretamente com a ampliação da cidadania política e social, principalmente quando afirma que a demanda por saúde bucal parece concorrer com questões que estão relacionadas diretamente com a sobrevivência das pessoas. Parece que saúde bucal se torna necessidade quando um nível mínimo de sobrevivência e cidadania já foi alcançado. As necessidades de saúde são historicamente produzidas, dependendo das relações sociais e dos conflitos gerados pelo poder.

Voltando a Marx (1971) constatamos que a mercadoria, ou "coisa" que satisfaz as necessidades humanas, é misteriosa simplesmente por encobrir as características materiais e propriedades sociais inerentes aos produtos do trabalho; por ocultar, portanto, a relação social entre trabalhos individuais dos produtores e o trabalho total, ao refleti-la como relação social existente, à margem deles, entre os produtos do seu próprio trabalho. Sendo assim, a forma da mercadoria e a relação de valor entre os produtos do trabalho nada têm a ver com a natureza física desses produtos nem com as relações materiais dela decorrentes, mas sim com o tempo de trabalho humano dispensado na produção da mercadoria. Ainda segundo Marx (1971) é dessa forma que uma relação social definida, estabelecida entre os homens, assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Kosik (1976) analisando exatamente o intercâmbio de pessoas e coisas, afirma que: Na economia capitalista, verifica-se a personificação das coisas e a coisificação das pessoas. Às coisas se atribuem vontade e consciência, e por conseguinte o seu movimento se realiza consciente e voluntariamente; e os homens se transformam em portadores ou executores do movimento das coisas. A vontade e a consciência dos homens são determinadas pelo movimento das coisas.

Para compreender bem essa relação invertida recorreremos novamente a Marx (1971) quando propõe a análise de uma situação equivalente e recorre "à região nebulosa da crença". Para Marx: , os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas que mantêm relações entre si e com os seres humanos. Concluindo o diagnóstico, Marx afirma que é exatamente o que ocorre com os produtos da mão humana no mundo das mercadorias. E a isso chama fetichismo, que está sempre grudado aos produtos do trabalho, quando são gerados como mercadorias. Para Marx (1971) ainda: esse fetichismo do mundo das mercadorias decorre do caráter social próprio do trabalho que produz mercadorias. Objetos úteis se tornam mercadorias, por serem simplesmente produtos de trabalhos privados, independentes uns dos outros. De acordo com Iyda (1998), se a divisão social do trabalho, de um lado, possibilitou à odontologia aspectos positivos; por outro, o desenvolvimento das forças produtivas e sua especialização acarretaram também aspectos negativos, como "a alienação fundamentada na autonomização e no fetichismo de sua prática".

A odontologia tem tratado o reparo dos dentes como uma mercadoria. Percebendo a mercadoria como a satisfação de necessidades humanas, a profissão transforma a restauração de dentes na satisfação de uma necessidade humana. Assim, para Botazzo (1994), a prótese, que devia ser considerada a evidência do fracasso de uma determinada odontologia, é erigida como totem, como elemento propiciador da realização pessoal e profissional que todos devem atingir. Não significa com isso negar a necessidade da prótese bucal, mas destacar a iniqüidade de um modelo assistencial que se beneficia do fato de ? da população em torno de 60 anos de idade estar desdentada, total ou parcialmente. Ainda para o autor: a perda dos dentes serve para demonstrar nosso avanço tecnológico e aqui reside parte da ambigüidade: extrai-se para depois reabilitar.

Esta pode ser considerada uma relação ambígua, ou até mesmo invertida, na medida em que a necessidade de reparo passa a ser maior que a própria necessidade de ser saudável. É nesse sentido que afirmamos existir um fetichismo odontológico, quando consideramos, assim como Marx, que os produtos da mão humana parecem dotados de vida própria no mundo das mercadorias, ou seja, os produtos da odontologia ­ a restauração de corpos, fruto de suas técnicas ­ ao se tornarem privados, acabam também por se tornarem mais importantes que o próprio sujeito humano no qual as intervenções práticas são realizadas. Daí o fetiche, que leva a perceber como naturais as relações sociais tornadas objetos.

Analisando ainda essa relação que denominamos de fetichismo odontológico, cabe ressaltar que para Marcuse, apud Giroux (1986), as marcas mais penetrantes da repressão social são geradas na história íntima dos indivíduos, nas "necessidades, satisfações e valores que reproduzem a servidão da existência humana". Essas necessidades são mediadas e reforçadas por meio de padrões e rotinas da vida diária. É dessa forma que as "falsas" necessidades que perpetuam o trabalho duro, a miséria e a agressividade tornam-se ancorados na estrutura da personalidade como uma segunda natureza; isto é, a natureza histórica é esquecida, e ela se reduz a padrões de hábitos. O fetichismo odontológico age assim, nessa história íntima, criando falsas necessidades. Botazzo (1994) pondera que para atuar dessa forma a odontologia considera o paciente que não sabe ou não quer se cuidar. Assim: ele é que é pobre, desmotivado, que não dá valor aos seus dentes, que não tem "cultura odontológica". O paciente com seu diagnóstico desqualificado é o paciente mudo cuja história não pode ser ouvida. Contando parte da história de muitos pacientes, Botazzo nos demonstra a perversidade do fetichismo: à restauração das superfícies sucedem-se as obturações dos condutos radiculares; às grandes reconstruções plásticas sucedem-se as próteses articuladas ou parciais e destas ­ passos sempre mediatizados pela presença nada discreta da exodontia ­ às próteses completas. Nem importa que se busquem implantes ou que se atinjam novas possibilidades de reabilitação bucal; do começo ao fim sempre se estará diante do esforço de propor um sucedâneo artificial, uma construção fabricada, em substituição a uma parte nossa que se foi de nós, assim, como se não pudéssemos fazer muito, o afastamento deste brilho tão incerto quanto bruxuleante, que a alguns lhes custa mais perdê-lo e a outros bem menos.

A construção da saúde bucal como valor, e não da intervenção odontológica, para Martins (1999), está relacionada à conquista dos direitos sociais, a condições dignas de vida, trabalho, moradia e também ao acesso aos serviços de saúde bucal de boa qualidade. Nessa mesma perspectiva, Campos (2000) afirma que o valor de uso de um serviço ou um bem é socialmente produzido. Sendo assim, necessidades e valores de uso são constituídos por uma luta de influência entre saberes, interesses econômicos, interesses e necessidades da população, a prática política e profissional, a mídia. É com toda essa multiplicidade de determinantes que se constroem valores de uso e necessidades sociais.

Enquanto as tecnologias se multiplicam no atendimento às partes do corpo, como lidar com essas questões é uma polêmica que abre espaço para debate do tema na área da saúde. Para Arendt (1983), o mundo de experimentação científica sempre parece capaz de se tornar uma realidade criada pelo homem; e isto, embora possa aumentar o poder humano de criar e de agir, até mesmo de criar um mundo, a um grau muito além do que qualquer época anterior ousou imaginar em sonho ou fantasia, torna, infelizmente, a aprisionar o homem: e agora com muito mais eficácia, na prisão de sua própria mente, nas limitações das configurações que ele mesmo criou.

A ideologia

Esse fetichismo se transforma em um sistema ordenado de idéias e representações de normas ou regras, existente como algo separado e independente das condições materiais, portanto, considerado por Marx e Engels (1965), ideologia. A ideologia surge quando há desvinculação da força produtiva de trabalho com o pensamento intelectual e é entendida como uma forma de controle e repressão da classe operária, num domínio silencioso garantido pela alienação da história como um fato social. Ainda para os autores, a noção progressista da história forja uma estabilidade inexistente no sistema de relações sociais; omite o poder dos que produzem a matéria, evocando entidades totalizadoras para reger o mundo, como um mecanismo de representação da classe dominante. Assim, as idéias construídas pelo homem sobre o mundo deixaram de ser meras interpretações para serem assumidas como verdades absolutas.

Nesse sentido as idéias precedem a praxe, autolegitimam-se, são externas, predominantes, uma força metafísica capaz de controlar e dirigir a ação dos homens, de determinar relações materiais e estagnar classes sociais. Ideologia é exatamente o sistema que faz com que os trabalhadores acreditem ser homens inferiores e menos providos que os intelectuais. Para Marx e Engels (1965), em A ideologia alemã, as idéias nascem da atividade material. Não significa, entretanto, que os homens representem nas idéias a realidade de suas condições materiais, mas, ao contrário, representam o modo pelo qual a realidade lhes aparece na experiência imediata.

Por esse motivo, as idéias tendem a ser uma representação invertida do processo real, colocando como origem aquilo que é conseqüência e vice-versa. Somos postos então diante da "idéia" do fato, e não diante da realidade histórico-social do fato. A idéia passa a representar a própria realidade, autônoma e generalizadora, assumindo ideologicamente o papel da classe dominadora; ocultando a dominação real de uma classe sobre a outra e as possibilidades de luta. De acordo com Marx e Engels (1965), as verdadeiras condições da existência dos homens como sociedade não são percebidas como fruto de suas próprias relações interpessoais e com o universo concreto. As relações de trabalho não são, como deveriam ser, compreendidas como um modo de produção. A realidade da classe dominada é percebida de forma estática, prefixada, independente da atividade de seus membros ­ fatalidade do destino ­ natural. A ilusão de que a história é um progresso linear e espontâneo, ao invés de lutas entre classes, faz com que a classe dominada se veja como objeto e não como sujeito ativo no processo de mudanças. Quantos de nós já não percebemos a realidade dessa forma, como preexistente à própria sociedade e estática, imutável?

Quanto à concepção de realidade, é impossível compreender a origem e a função da ideologia sem compreender a luta de classes, pois a ideologia é um dos instrumentos da dominação e, também, uma das formas de luta. Segundo Chauí (1994) a luta de classes não é apenas o confronto armado, mas: está presente em todos os procedimentos institucionais, políticos, policiais, legais, ilegais de que a classe dominante lança mão para manter sua dominação, indo desde o modo de organizar o processo de trabalho e o modo de se apropriar dos produtos (pela exploração da mais-valia e pela exclusão dos trabalhadores do usufruto dos bens que produziram), até as normas do direito e o funcionamento do Estado. Ela está presente também em todas as ações dos trabalhadores para diminuir a dominação e a exploração, indo desde a luta pela diminuição da jornada de trabalho, o aumento de salário, greves, à criação de sindicatos livres e a formação de movimentos políticos.

Portanto, revendo Chauí (1994), podemos perceber que enquanto não houver um conhecimento da história real, enquanto a teoria não mostrar o significado da prática imediata dos homens, enquanto a experiência comum de vida for mantida sem crítica, sem pensamento, a ideologia se manterá.

Discutindo o fenômeno da ideologia e as disputas de poder na sociedade moderna, Nogueira (1999) assegura que a dimensão "classe social" não tende a desaparecer, mas sua efetivação como agente político provavelmente estará mesclada com fatores religiosos e culturais; e que a oposição específica proletariado versus burguesia será substituída por outra: exploradores e explorados, ricos e pobres. Sempre que houver um fator cultural ou ideológico unificador, a ação política será mais motivadora. O que se pode constatar é que a individualidade exacerbada pelo capitalismo moderno vem ocultando as relações de trabalho dividindo os homens não mais por suas classes, mas por seus interesses subjetivos: negros, gays, moradores de favelas, de condomínios ou evangélicos. Assim como Chauí (1994), acreditamos que as classes sociais não são coisas nem idéias, mas são relações sociais determinadas pelo modo como os homens, na produção de suas condições materiais de existência, se dividem no trabalho, instauram formas determinadas da propriedade, reproduzem e legitimam aquela divisão e aquelas formas por meio das instituições sociais e políticas, representam para si mesmos o significado dessas instituições por meio de sistemas determinados de idéias que exprimem e escondem o significado real de suas relações. E assim, ainda para a autora, as classes sociais são o fazer-se classe dos indivíduos em suas atividades econômicas, políticas e culturais.

Sob essa perspectiva, toda ideologia, segundo Rodrigues (1988), é uma verdade parcial, já que é a verdade de um grupo ou classe, mas que não é assumida como verdade parcial. Os grupos detentores de uma visão de mundo querem que ela seja necessária, isto é, que seja desejada e assumida como verdadeira, como universal por todos os outros grupos ou classes. Desse modo, aquilo que inicialmente se constitui como verdade de um grupo tende, uma vez tornado ideologia, a se converter em verdade de todos. No instante em que isso ocorre, e se assim pudesse ocorrer, haveria a garantia da manutenção de uma ordem social, ou predomínio de uma visão de mundo, da forma em que se encontra estruturada pelo grupo que detém o seu controle.

A distinção entre ideologia e mentira, realizada por Giroux (1986), é essencial porque sublinha o caráter inconsciente dos enunciados ideológicos: a passagem da concepção particular à concepção total (sistema unificado de pensamento de um grupo que está implícito no juízo de seus membros) de ideologia leva ao problema da falsa consciência. Já Ricoeur (1983) conceitua tal processo como inversão: trata-se de uma distorção, de uma formação do real operada pela consciência dos sujeitos. (...) a ideologia é um fenômeno insuperável da existência social, na medida em que realidade social sempre possui uma constituição simbólica e comporta uma interpretação, em imagens e representações, do próprio vínculo social.

O conceito de ideologia não pode ser reduzido a um simples dualismo de idéias contrapostas à realidade material. Giroux (1986) afirma que por um lado a ideologia pode ser vista como um conjunto de representações produzidas e inscritas na consciência humana e no comportamento, no discurso e nas experiências vivenciadas. Por outro lado, a ideologia afeta, e se concretiza, nos vários "textos", práticas e formas materiais. E conclui: Daí o caráter da ideologia ser mental, mas sua efetividade é tanto psicológica como comportamental; seus efeitos não são apenas enraizados na ação humana, mas são também inscritos na cultura material.

Ainda de acordo com Giroux (1986), percebemos que a ideologia, já que localizada no inconsciente, é um momento de autocriação bem como uma força de dominação. Dessa forma, o alicerce inconsciente da ideologia não é apenas enraizado nas necessidades repressivas, mas também em necessidades que são por natureza emancipatórias. Por isso é que devemos reconhecer o grau em que as forças históricas e objetivas da sociedade deixam sua impressão ideológica sobre o próprio psiquismo. O que emerge desse lócus de necessidades contraditórias são tensões tanto dentro da estrutura da personalidade quanto dentro da sociedade maior.

Vemos assim a ideologia das classes ou da classe dominante chegar às classes subalternas por vários canais, por meio dos quais a classe dominante constrói a própria influência ideal, a própria capacidade de plasmar as consciências de toda a coletividade. De acordo com Gruppi (1978) os intelectuais são os "persuasores" da classe dominante, são eles quem elaboram as ideologias, são os "funcionários da hegemonia da classe dominante". Os intelectuais não são um grupo social autônomo, mas cada grupo social, afirmando uma função específica na produção econômica, forma intelectuais que se tornam os técnicos da produção. Esses intelectuais não se limitam a ser apenas os técnicos da produção, mas também emprestam à classe economicamente dominante a consciência de si mesma e de sua própria função, tanto no campo social quanto no campo político. Dão homogeneidade à classe dominante e à sua direção. Assim, ainda para Gruppi, o capitalismo industrial cria essencialmente os técnicos, os cientistas, ligados à produção. São esses os intelectuais orgânicos ao capitalismo.

Os canais de dominação fazem com que as classes sociais dominadas participem de uma concepção do mundo que lhes é imposta pelas classes dominantes. O fenômeno de manutenção das idéias dominantes, mesmo quando se está lutando contra as classes dominantes, é para Chauí (1994) o aspecto fundamental daquilo que Gramsci chama de hegemonia. O termo hegemonia deriva do termo eghestai, que significa "conduzir", "ser guia", "ser líder"; ou também do verbo eghemoneuo, que significa "ser guia", "preceder", "conduzir", e do qual deriva "estar à frente", "comandar", "ser o senhor". Por eghemonia, o antigo grego entendia a direção suprema do exército. Trata-se portanto de um termo militar. Hegemônico era o chefe militar, o guia e também o comandante do exército. Na época das guerras do Peloponeso, falou-se de cidade hegemônica para indicar a cidade que dirigia a aliança das cidades gregas em luta entre si (Gruppi, 1978).

Uma classe é hegemônica não só porque detém a propriedade dos meios de produção e o poder do Estado, mas ela é hegemônica sobretudo porque suas idéias e valores são dominantes, e mantidos pelos dominados até mesmo quando lutam contra essa dominação.

Raymond (1997) afirma que a dominação essencial de uma determinada classe na sociedade não se mantém somente pelo poder pela propriedade, mas também, inevitavelmente, pela cultura do vivido. Considerada pelo autor aquela saturação do hábito, da experiência, dos modos de ver, sendo continuamente renovada em todas as etapas da vida, desde a infância, sob pressões definidas e no interior de significados definidos, de tal forma que o que as pessoas vêm a pensar e a sentir é, em larga medida, uma reprodução de uma ordem social profundamente arraigada, a que elas podem até achar que de algum modo se opõem, e a que, muitas vezes, se opõem de fato. Ainda segundo o autor, há um trabalho muito importante a ser feito em relação aos próprios processos de hegemonia cultural. As pessoas mudam, é verdade, por intermédio da luta e da ação. Algo tão arraigado quanto uma estrutura dominante de valores, sentimentos e atitudes, só muda por meio de novas experiências ativas. Para Bourdieu, apud Silva (1999), a dinâmica da reprodução social está centrada no processo de reprodução cultural. É através da reprodução cultural que a reprodução mais ampla da sociedade fica garantida. Dessa forma, como afirma o autor: na medida em que a cultura dominante tem valor em termos sociais, na medida em que o indivíduo que a possui obtém vantagens materiais e simbólicas, ela se constitui como capital cultural.

Para Ricoeur (1983) a definição do fenômeno ideológico é uma questão repleta de armadilhas e é preciso escapar ao fascínio exercido pelo problema da dominação para considerarmos um problema mais amplo, o da integração social, de que a dominação é uma dimensão, e não a condição única e essencial. Assim, o fenômeno ideológico está ligado à necessidade, para um grupo social, de conferir-se uma imagem de si mesmo, de representar-se, no sentido teatral do termo, de representar e de encenar. Avançando na discussão, Touraine (1997) afirma que o sujeito se coloca por oposição à lógica do sistema, e, portanto, a sociedade não pode mais ser definida como um conjunto de instituições ou como o efeito de uma vontade soberana: ela não é a criação da história, nem de um príncipe; ela é um campo de conflitos, de negociações e de mediações entre a racionalização e a subjetivação, que são as duas faces complementares e opostas da modernidade.

Nesse sentido, procuramos compreender a globalização atual como um processo reversível, já que é o resultado de uma ideologia restritiva estabelecida. De acordo com Santos (2000) todas as realizações atuais, oriundas de ações hegemônicas, têm como base construções intelectuais fabricadas antes mesmo da fabricação das coisas e das decisões de agir. A intelectualização da vida social, segundo o autor, vem portanto acompanhada de uma forte ideologização que descarta outras idéias possíveis, não significando contudo que elas não existam. Ainda para Santos (2000), além das múltiplas formas com que, no período histórico atual, o discurso da globalização serve de alicerce às ações hegemônicas dos Estados, das empresas e das instituições internacionais. O autor afirma que o papel da ideologia na produção das coisas e o papel ideológico dos objetos que nos rodeiam contribuem, juntos, para agravar essa sensação de que agora não há outro futuro senão aquele que nos virá como um presente ampliado e não como outra coisa.

Se ressaltarmos algumas das principais características da época presente, de acordo com Marcos (2001), constataremos: supremacia do poder financeiro; revolução tecnológica e informática; guerra; destruição/despovoamento e reconstrução/reordenamento; ataques aos Estados Nacionais; a conseqüente redefinição do poder e da política; o mercado como figura hegemônica que permeia todos os aspectos da vida humana em todas as partes; maior concentração de riqueza em poucas mãos; maior distribuição de pobreza; aumento da exploração e do desemprego; milhões de pessoas sem-teto; delinqüentes que integram o governo e desintegração de territórios. Em resumo, uma "globalização fragmentada". Portanto, num mundo onde a barbárie tornou-se cotidiano, é preciso reconhecer a responsabilidade dos intelectuais que resistem. Segundo Marcos (2001): Depende da ação deles saber se o protesto se esgotará em denúncia sem perspectiva, ou ao contrário, levará à formação de novos atores sociais e, indiretamente, a novas políticas econômicas e sociais. (...) o intelectual em seu papel é um crítico da imobilidade, um promotor da mudança, um progressista. No entanto, este comunicador de idéias críticas está inserido em uma sociedade polarizada, confrontada entre si mesma de muitas maneiras e com diferentes argumentos, mas dividida fundamentalmente entre os que usam o poder para que as coisas não mudem e os que lutam pela mudança.

Discutindo também o papel do intelectual na sociedade moderna, Touraine (1997) afirma que esse papel deveria ser o de ajudar na emergência do sujeito, aumentando a vontade e a capacidade dos indivíduos de serem atores de sua própria vida. O sujeito se choca com a lógica dominante do sistema que o reduz ao papel de consumidor e de defensor de seus interesses em um ambiente mutável; ele está igualmente ameaçado pela fuga para fora do campo social e de sua diversidade, para a homogeneidade fictícia de uma tradição comunitária ou para uma fé religiosa. Os intelectuais têm por tarefa principal construir a aliança entre o sujeito e a razão, entre a liberdade e a justiça: Como não falariam eles em nome da razão sendo que ela é a sua única força frente ao dinheiro, ao poder e à intolerância? e também: como não defenderiam eles o sujeito, movimento de reflexão do indivíduo sobre si mesmo, contra as ordens impostas, as proibições transmitidas e todas as formas de conformismo?

A separação entre o trabalho intelectual e o trabalho manual liga-se, pois, à posse e monopólio do saber, na qualidade de forma de apropriação da ciência pelo capital. Para Schraiber (1989), avaliando o saber que se encontra valorizado, é um saber que se apresenta neutro, já que é técnico e científico. A separação entre o trabalho manual e o intelectual está condicionada diretamente à relação entre o trabalho intelectual e a reprodução das relações ideológicas próprias do capitalismo. Na mesma perspectiva, Demo (1998) afirma que ideologia mais inteligente é a que se traveste de ciência, por isso, seu arquiteto típico é o intelectual, figura importante na justificação do poder. Esses são os intelectuais orgânicos ao capitalismo a que Gramsci se refere. Por outro lado, como chama a atenção Marcos, em texto já citado, há os intelectuais que resistem e que, com sua crítica, contribuem para a elaboração da contra-ideologia, com vistas a mudar a história dominante.

Ricoeur (1983) destaca a importância da crítica à ideologia no processo de emancipação. Mas é importante ressaltar que a questão não é substituir uma ideologia por outra. Segundo Chauí (1994) cometemos um engano quando imaginamos ser possível substituir uma ideologia "falsa" por uma ideologia "verdadeira", primeiro porque uma ideologia que dissesse tudo já não seria ideologia, e também porque falar de ideologia dos dominados é um contra-senso, visto que a ideologia é um instrumento de dominação. Podemos, isso sim, contrapor ideologia e crítica da ideologia, e podemos contrapor ideologia ao saber real que muitos dominados têm acerca da realidade da exploração, da dominação, da divisão social em classes e da repressão a que esse saber está submetido pelas forças repressivas dos dominantes.

Entretanto, é mesmo Chauí (1994) que alerta para o fato de que a teoria não está encarregada de "conscientizar" os indivíduos, não está encarregada de criar a consciência verdadeira para fazer oposição à consciência falsa e com isso mudar o mundo. Para a autora, cabe à teoria desvendar os processos reais e históricos como resultados e como condições da prática humana em situações determinadas, prática que dá origem à existência e à conservação da dominação de uns poucos sobre todos os outros. Entretanto, não é a teoria, mas a práxis humana fundamentada na teorização crítica que será responsável pelo processo de emancipação a que se refere Ricoeur. Nesse sentido, torna-se relevante reconhecer que a práxis do homem não é a atividade prática contraposta à teoria; é a determinação da existência humana como elaboração da realidade. Assim, para Kosik (1976) a práxis compreende, além do momento laborativo, também o momento existencial e portanto: se manifesta tanto na atividade objetiva do homem, que transforma a natureza e marca com o seu sentido humano os materiais naturais, como na formação da subjetividade humana, na qual os momentos existenciais como angústia, a náusea, o medo, a alegria, o riso, a esperança etc... não se apresentam como "experiência" passiva, mas como parte da luta pelo reconhecimento, isto é, do processo da realização da liberdade humana.

Ainda para Kosik (1976), conhecemos o mundo, as coisas, os processos somente na medida em que os "criamos", isto é, na medida em que os reproduzimos espiritualmente e intelectualmente. Essa reprodução espiritual da realidade só pode ser concebida como um dos muitos modos de relação prático-humana com a realidade, cuja dimensão mais essencial é a criação da própria realidade humano-social.

A utopia em marcha

A crítica à ideologia e a práxis levam à necessidade de se construírem utopias. Entretanto, vários são os significados de utopia. Segundo Japiassu e Marcondes (1990) utopia é um termo criado por Tomas Morus no ano de 1516, em sua obra Utopia, significando literalmente "lugar nenhum", para designar uma ilha perfeita onde existiria uma sociedade imaginária na qual todos os cidadãos seriam iguais e viveriam em harmonia. A alegoria de Tomas Morus serviu de contraponto através do qual se criticou a sociedade de sua época, formulando um ideal político-social inspirado nos princípios do humanismo renascentista. Ainda para os autores, em um sentido mais amplo: utopia designa todo projeto de uma sociedade ideal, perfeita. O termo adquire um sentido pejorativo ao se considerar esse ideal como irrealizável e portanto, fantasioso. Por outro lado, possui um sentido positivo quando se defende que esse ideal contém o germe do progresso social e da transformação da sociedade. Esse sentido de ideal de transformação é essencial para Mannheim (1982), quando afirma que: a utopia aspira por outra realidade, ainda inexistente, tem portanto uma dimensão crítica ­ ou de negação da ordem social existente, ou de orientação para sua ruptura ­ apresentando função subversiva e, em alguns casos, função revolucionária.

A concepção de utopia por nós utilizada procura levar em conta o caráter dinâmico da realidade, na medida em que não assume como ponto de partida "uma realidade em si", mas antes, uma realidade concreta, histórica e socialmente determinada, que se acha em um constante processo de mudança. Assim como Mannheim (1982), iremos considerar utópicas somente aquelas orientações que, transcendendo a realidade, tendem, caso se transformem em conduta, a abalar, seja parcial ou totalmente, a ordem de coisas que prevaleça no momento. Mannheim (1982) afirma que cada época permite surgir (em grupos sociais diversamente localizados) as idéias e valores em que se acham contidas, de forma condensada, as tendências não-realizadas que representam as necessidades de tal época. Estes elementos intelectuais se transformam, então, no material explosivo dos limites da ordem existente, deixando-a livre para evoluir em direção à ordem de existência seguinte. Vendo utopia como propõe Mannheim, um ideal orientado para a transformação da realidade presente, é que consideramos o conceito como parte necessária, e indispensável a uma proposta de mudança, uma vez que aponta os rumos da transformação a partir do real.

Segundo Iyda (1998), desvendar os fatos e ultrapassar uma visão dominante da odontologia é considerá-la além de sua aparência, e além das suas práticas utilitária e técnico-científica. É superar a exclusão das classes populares que pode ser percebida na restrição do acesso, na seletividade e no tratamento diferencial dos serviços odontológicos. Nesse sentido, para a autora, politizar a odontologia é perceber que o ato odontológico é um fenômeno social (econômico, ideológico e político). É necessário portanto segundo Iyda inteirar-se de que a realidade social não é uma massa de fatos fragmentados e desligados entre si, mas é complexa e contraditória, compreendendo relações, processos e estruturas nem sempre visíveis, mas que devem ser desvendados, para que esta realidade seja captada em sua totalidade, em movimento, e para que se busque a resolução de suas contradições, criando uma nova realidade e "reinventando a saúde bucal" (grifos meus). Segundo Paim e Filho (2000), uma das formas de enfrentar os desafios da saúde com equidade será constituir sujeitos sociais comprometidos com novas utopias, estabelecendo canais de comunicação com outros sujeitos sociais que passem da condição de usuários passivos ou destinatários de serviços públicos e de políticas de saúde para um patamar de parceiros e cidadãos.

Além dos espaços da vida cotidiana, os conselhos municipais de saúde, os centros comunitários, os sindicatos, ou os partidos políticos são espaços para essa discussão e construção de uma nova realidade. É fundamental que se crie um ambiente de diálogo, fomentando debates não só sobre o contexto presente, mas sobre a responsabilidade do Estado, da ciência e de cada cidadão para que ocorram transformações substanciais na realidade brasileira. Para isso se faz necessário que ocorram mudanças estruturais na universidade, no sistema de saúde, nas formas de acumulação de renda, nos meios de produção, nas relações de trabalho, nas políticas públicas e em todo contexto social. Sendo assim, a construção de um futuro saudável está intimamente relacionado com a sedimentação da democracia e com o exercício da cidadania na sociedade brasileira. Segundo Mannheim (1982) somente quando a concepção utópica do indivíduo se impõe a correntes já existentes na sociedade, dando-lhes uma expressão, quando, sob esta forma, reflui de volta ao horizonte de todo o grupo, sendo por este traduzida em ação, somente então pode a ordem existente ser desafiada pela luta de outra ordem de existência.

De acordo com Santos (2000) o mundo definido pela literatura oficial do pensamento único é, somente, o conjunto de formas particulares de realização de apenas certo número de possibilidades. No entanto, um mundo verdadeiro se definirá a partir da lista completa de possibilidades presentes em certa data e que incluem não só o que já existe sobre a face da Terra, como também, o que ainda não existe, mas é empiricamente factível. Segundo o autor tais possibilidades, ainda não realizadas, já estão presentes como tendência ou como promessa de realização. Por isso, situações como a que agora nos defrontamos parecem definitivas, mas não são verdades eternas. É somente a partir dessa constatação, fundada na história real do nosso tempo, que se torna possível retomar, de maneira concreta e pertinente, a idéia de utopia como projeto.

O Sistema Único de Saúde (SUS) com seus princípios de igualdade e participação popular é uma conquista do modelo democrático e tem que ser defendido, apesar de a população só conseguir ver um sistema de saúde falido pela incompetência do governo em promover políticas públicas que assegurem a sua implantação. É urgente que se desenvolva a capacidade de escuta e o reconhecimento do direito de voz e decisão da população a respeito de seus problemas e necessidades de cuidados, trabalhando a especificidade das demandas dos grupos sociais, como forma de não incidir na generalização e homogeneização das questões da saúde, freqüentemente observadas em algumas práticas.

De acordo com Santos (2000) às visões oferecidas pela propaganda ostensiva ou pela ideologia contida nos objetos e nos discursos opõem-se as visões propiciadas pela existência. Para o autor: é por meio desse conjunto de movimentos, que se reconhece uma saturação dos símbolos pré-construídos e que os limites da tolerância às ideologias são ultrapassados. É nesse sentido que tentamos compreender a Utopia da saúde bucal coletiva como uma realidade a se construir, mas também, como uma proposta que busca romper com o aspecto de naturalidade que assumem as políticas públicas e busca assumir para si, um sentido que muitas vezes se perde, o da construção histórica da realidade, desmistificando o fetichismo odontológico e ressaltando a responsabilidade dos sujeitos como atores sociais que atuam nesse processo; com a capacidade, e possibilidade, de mudar o status quo.

Talvez possamos considerar que os desejos de viver eternamente, com prazer, sem dor, e de ser belo, são hoje inerentes à subjetividade humana, e, provavelmente o sejam, desde que se associou saúde à qualidade de vida e ao prazer. Entretanto, o sistema capitalista se prevalece disso, transformando esses anseios em produtos, que anuncia, coloca à venda e "exige" a compra. A transformação do desejo humano em mercadoria é o que caracteriza então o fetichismo. É sob essa perspectiva que afirmamos que o sistema capitalista alimenta o consumo dos serviços de saúde (ou a medicalização da vida), não como a realização de um desejo humano, mas para a realização de um fetiche, uma fantasia criada pelo próprio sistema, exatamente por considerar os serviços de saúde um produto privado. A partir dessa análise, poderíamos então ponderar que não é o desejo de ser belo e de viver com prazer, sem dor e eternamente que se constituem no fetiche, mas sim a fantasia sustentada pela propaganda de que esses desejos podem ser satisfeitos ao se comprar o "produto saúde". É claro que não podemos desconsiderar que também a própria fabricação desses desejos na subjetividade humana é em grande parte um reflexo dos valores produzidos no contexto cultural da sociedade capitalista. Segundo Campos (2000) a saúde coletiva pode auxiliar no fortalecimento dos sujeitos ao co-participar da produção de necessidades sociais. Constitui-se portanto em uma utopia "desfetichizar" a saúde ­ e também a saúde bucal ­ que obviamente continuaria sendo uma necessidade humana, mas passaria a não ser mais considerada uma mercadoria. Assim, é papel dos trabalhadores da área da saúde tornar consciente essa relação saúde-mercadoria para a população, o que certamente irá auxiliar na desconstrução do fetiche e na reorganização da escala de prioridades das necessidades humanas, construindo coletivamente valores que possam proporcionar qualidade de vida aos sujeitos, a todos, e não somente aos que podem comprar.

Artigo apresentado 30/5/2003

Aprovado em 20/7/2003

Versão final apresentada em 8/8/2003

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jun 2007
  • Data do Fascículo
    2003

Histórico

  • Aceito
    20 Jul 2003
  • Recebido
    30 Maio 2003
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