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Normatização, o Estado e a saúde: questões sobre a formalização do direito sanitário

Normatization, State, and health: issues on the formalization of health laws

Resumos

A atualidade é um ambiente de turbulência em que as bases científicas vêm sendo redefinidas, conforme demonstra o trabalho de vários autores que propõem novas maneiras de enfocar as questões que surgem na sociedade de hoje. Neste contexto, descrevemos a saúde, como conceituada pela Organização Mundial de Saúde e pela Constituição Brasileira de 1988, como matéria transdisciplinar, que requer uma abordagem igualmente ampla e considera os desafios epistemológicos atuais. O direito, ciência da modernidade, é desafiado em seus fundamentos por esta atualidade, que impõe uma busca de novas soluções, de acordo com seus novos caminhos. Este artigo busca apresentar questões sobre Estado, normatização e saúde, ao propor uma leitura a partir de autores vindos da sociologia, ao ampliar o espectro de análise e ao abarcar as questões epistemológicas de maneira transdisciplinar.

Estado; Normatização; Saúde; Transdisciplinaridade


The actuality is a turbulent environment where the scientific basis have been redefined, according to the work of many authors who have proposed new ways to focus the issues arising in today's society. In this context, we describe health, as states by WHO and by the Brazilian Federal Constitution of 1988, as a transdisciplinary subject, requiring an equally wide approach, considering the current episthemological challenges. Laws, as a modern science, has been challenged in its foundations by this actuality which imposes a quest for new solutions, according to its new ways. This article seeks to present issues on the State, normatization and health, proposing an intake from authors coming from the sociology field, widening the range of analysis and seeking to cover the episthemological questions in a transdisciplinary way.

State; Normatization; Health; Transdisciplinarity


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Normatização, o Estado e a saúde: questões sobre a formalização do direito sanitário

Normatization, State, and health: issues on the formalization of health laws

Patrícia Fernandes da SilvaI; William WaissmannII

IEscola Nacional de Saúde Pública, Fiocruz. Rua Leopoldo Bulhões 1480, Manguinhos, 21041-310, Rio de Janeiro RJ. pfernandes_adv@yahoo.com

IICentro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana, ENSP/Fiocruz

RESUMO

A atualidade é um ambiente de turbulência em que as bases científicas vêm sendo redefinidas, conforme demonstra o trabalho de vários autores que propõem novas maneiras de enfocar as questões que surgem na sociedade de hoje. Neste contexto, descrevemos a saúde, como conceituada pela Organização Mundial de Saúde e pela Constituição Brasileira de 1988, como matéria transdisciplinar, que requer uma abordagem igualmente ampla e considera os desafios epistemológicos atuais. O direito, ciência da modernidade, é desafiado em seus fundamentos por esta atualidade, que impõe uma busca de novas soluções, de acordo com seus novos caminhos. Este artigo busca apresentar questões sobre Estado, normatização e saúde, ao propor uma leitura a partir de autores vindos da sociologia, ao ampliar o espectro de análise e ao abarcar as questões epistemológicas de maneira transdisciplinar.

Palavras-chave: Estado, Normatização, Saúde, Transdisciplinaridade.

ABSTRACT

The actuality is a turbulent environment where the scientific basis have been redefined, according to the work of many authors who have proposed new ways to focus the issues arising in today's society. In this context, we describe health, as states by WHO and by the Brazilian Federal Constitution of 1988, as a transdisciplinary subject, requiring an equally wide approach, considering the current episthemological challenges. Laws, as a modern science, has been challenged in its foundations by this actuality which imposes a quest for new solutions, according to its new ways. This article seeks to present issues on the State, normatization and health, proposing an intake from authors coming from the sociology field, widening the range of analysis and seeking to cover the episthemological questions in a transdisciplinary way.

Key words: State, Normatization, Health, Transdisciplinarity

Introdução e justificativas

O ordenamento jurídico é a interface que permite a existência do estado democrático de direito. O Estado é uma pessoa jurídica de direito público, isto é, uma instituição pública que detém determinadas atribuições definidas em lei ou atribuições por definições culturais. Um Estado nacional historicamente representa um Estado relacionado à determinada organização social confinada a um espaço geográfico. Um Estado de direito é aquele que é definido por leis e que coloca estas mesmas leis como padrão para toda a sociedade, inclusive para a sua própria atuação. No dizer de Dallari (2001), podemos conceituar Estado como a ordem jurídica que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado território.

Não há um Estado-nacional na atualidade que não seja instituído por leis, e nem há os que não utilizem algum tipo de ordenamento legal, e que não busquem, pela normatização, estabelecer uma comunicação com os elementos que o constituem, e a expressão daquilo que se acredita que é a nação que o apóia (Dallari, 2001).

O Estado aparece como porta-voz, mas também como projeção do caráter de determinada sociedade. Este caráter é uma formulação geral, baseada em valores do grupo, que pelas leis reafirmam e mesmo constroem um conjunto de práticas que o definem.

Assim, o Estado ganha uma personalidade jurídica própria, isto é, ganha uma identidade que, ainda que emane de um grupo formador, é diferente da multiplicidade de indivíduos que compõem este grupo. Ainda que não seja um sujeito de direitos, como uma pessoa física seria, compartilha diversos de seus aspectos, conforme afirma Dallari: Finalmente, com a obra de Jellinek, a teoria da personalidade jurídica do Estado como algo real e não fictício vai-se completar e acaba sendo mesmo um dos principais fundamentos do direito público. Explica Jellinek que sujeito, em sentido jurídico, não é uma essência, uma substância, e sim uma capacidade criada mediante a vontade da ordem jurídica. O homem é um pressuposto da capacidade jurídica, uma vez que todo direito é uma relação entre seres humanos. Entretanto, nada exige que a qualidade de sujeito de direitos seja atribuída apenas ao indivíduo. E a elevação de uma unidade seja atribuída apenas ao indivíduo. E a elevação de uma unidade coletiva àquela condição não tem o sentido de criação de uma substância fictícia, que não existisse antes e que se proclame como uma essência a que se una a ordem jurídica (Dallari, 2001).

Se o Estado age por via legal, age através de conjuntos de normas, que tendem a proporcionar um ordenamento das relações, criando uma realidade social unificada para todo o coletivo que a ele se submete. O Estado é um agente criador das leis, ainda que estas sejam, em sua gestação no caso pátrio, advindas de grupos representativos dos múltiplos elementos da sociedade. A entidade "Estado" absorve esse grupo representativo como um órgão da sua gestão.

Cria-se então uma relação indivíduo (pessoa física) / Estado (pessoa jurídica de direito público), que é diferente da relação indivíduo (uma pessoa) / grupo (comunidade de diversas pessoas), sendo a primeira regulada primariamente por normas escritas que vinculam as possibilidades de ação de ambas as partes, e a segunda regulada pela própria relação de poder entre as partes. A relação entre indivíduo-grupo pode e freqüentemente traz o Estado para sua esfera, ao buscá-lo como terceira pessoa de uma disputa, tendo este o direito jurisdicional, isto é, de dizer o direito dentro daquela lide.

Hoje, a relação indivíduo-grupo se ampliou enormemente em virtude das possibilidades de trocas de informações, que permitiram que as relações se multiplicassem e abrangessem temas e formas que antes não poderiam ser formuladas. A velocidade das trocas de idéias e de informações pelos meios de comunicação e no ciberespaço trouxe uma nova dimensão para as relações humanas e para as maneiras de se atuar na sociedade, que ao mesmo tempo propuseram diversas questões ao Estado. Conceitos como local de consumação de uma transação comercial, por exemplo, são redefinidos; conceitos como propriedade intelectual, as garantias de seus direitos de propriedade, também têm de ser redefinidos e colocados de maneira tal que possam ser efetivamente protegidos.

Nesse espaço podemos observar que as relações se formam e se diluem, impossibilitando que haja uma forte cristalização de valores específicos, cabendo então questionar a existência de valores ou coisas que se queiram universais, sólidas e à prova de dúvida. Na verdade, assim como as relações não têm tempo hábil para se cristalizar, elas se diluem também rapidamente, gerando outras relações novas.

A normatização ou, para os efeitos deste artigo, o Direito tem um caráter normativo e, conseqüentemente, formador de uma idéia ou conceito sólido e delimitado. Apreende-se uma determinada idéia ou relação e retira-se dela um modelo que deve ser reforçado pelo aparato estatal, que a principio diz-se representar uma vontade social, isto é, um valor, um anseio, uma vontade manifestada por toda a sociedade através de seus representantes nos poderes constituintes do Estado. Entretanto, como a atualidade é extremamente veloz, ao tempo em que algo se cristaliza e entra em operação, já existe um movimento que empurra essa norma para a fluidificação e para a mudança. Na realidade, a rigidez ocorre apenas na letra da norma publicada, mas tem a sua solidez desafiada na vida cotidiana pelas práticas que as pessoas estabelecem nas suas relações.

A solidez, neste caso específico, mais do que uma cristalização de norma representa uma solidificação de campo, isto é, ao admitir uma certa elasticidade nas condições específicas determinadas pela técnica interpretativa consagrada pela doutrina, a norma incorpora a elasticidade como parte do que ela representa. A intenção da lei não é meramente orientar uma decisão, mas determinar, daí a especificidade desejável do seu texto e a necessidade de que um juiz, ao proferir a sua interpretação quanto à aplicação da lei, o faça fundamentado nos princípios jurídicos aceitos, sem que isso represente vício do seu livre convencimento. Há que se atentar para o papel que a estrutura do sistema judiciário tem na manutenção de si mesmo, uma vez que os tribunais superiores agem de maneira a resguardar essa forma de pensar doutrinária. Comentando o ordenamento jurídico na perspectiva de Norberto Bobbio, Rogério Gesta Leal (2002) argumenta que criam-se ao longo da história ocidental mecanismos e instrumentos de controle/ordem social, advindos tanto do processo de desenvolvimento das forças sociais (mercado e grupos de pressão), como das próprias institucionais estatais (Executivo, Legislativo e Judiciário), dando-se destaque aqui para o processo legislativo, onde conforme se vai subindo na hierarquia das fontes, as normas tornam-se cada vez menos numerosas e mais genéricas e, descendo, ao contrário, tornam-se cada vez mais numerosas e específicas. (...) Em outras palavras, a norma fundamental se apresenta como o fundamento subentendido da legitimidade de todo o sistema. Em La fabrique du droit, Bruno Latour (2002,) observa este comportamento e diz que ( ) unlike scientists, who dream of overturning a paradigm, of putting their names to a radical change, a scientific revolution, or a major discovery, conseillers du gouvernement invariably present their innovations as the expression of a principle that was already in existence, so that even when it is transformed completely the corpus of administrative law is "even more" the same than it was before ( ).

As formas de se interpretar, ainda que dêem a impressão de liberdade, representam um precondicionamento induzido pela solidez de campo. Assim propagamos todos ao aceitarmos este precondicionamento, um conceito tipo "caixa-preta", que é tomado por inteiro, como fato, sem que haja realmente um questionamento de sua composição. De acordo com Latour (2000), a propagação das caixas-pretas no tempo e no espaço é paga por um fantástico aumento no número de elementos que devem ser interligados, de maneira que vivemos a "caixa-preta" da normatização sem que possamos realmente entender os elementos que a compõem. A crise se estabelece quando as caixas-pretas não atendem a contento os desafios da realidade e pode-se observar claramente que elas existem e que podem ser questionadas ou devolvidas, isto é, a construção de conceitos e visões mais passíveis de investigação e conseqüentemente mais flexíveis. Isto se manifesta mais claramente em áreas que se beneficiam de uma abordagem transdisciplinar.

O que se apresenta, a seguir, são questões para o direito que surgem nesse ambiente de turbulência, em relação à normatização, ao Estado, e à saúde, utilizando, como base, teorias e autores vindos da sociologia, trazendo a necessidade da discussão sobre a produção de conhecimento em direito na área da saúde.

Modernidade, Estado, norma e atualidade

O Estado moderno é uma criação moderna, isto é, a noção de lei como algo justo, aquilo que é ajustado em sociedade, e que para esta sociedade é dado como que natural no sentido de inquestionável; é uma criação do pensamento moderno, nascida no jusnaturalismo de Hobbes e formada por pensadores como Locke, Kant, que impõem uma visão racionalista, profundamente idealista, do direito e que, mais tarde, é revista por Hans Kelsen em seus trabalhos sobre a norma jurídica (Leal, 2002).

A revolução industrial e a democrática, e ascensão do Ocidente à hegemonia global produziram as concretas concomitâncias tecnológicas, econômicas, sociais e políticas dessa visão de mundo, que assim se afirmou e se elevou em sua soberania cultural. E o triunfo apoteótico da ciência moderna sobre a religião tradicional, a teoria da evolução de Darwin, trouxe a origem das espécies da Natureza e a do próprio homem para dentro do círculo de abrangência da ciência natural e do panorama moderno (Tarnas, 2000). O racionalismo, a vitória da razão, das luzes sobre as trevas, estende-se ao estudo das relações sociais e o Estado passa a ser objeto de intenso escrutínio, sendo o direito (leis, normas, judicialização) matéria de especial interesse. Assim nasce o Estado Moderno, estruturalmente monista, concentrando em si todos os poderes e monopolizando a produção jurídica (Leal, 2002).

Segundo o sociólogo Zygmunt Bauman (1999), a principal característica da atitude moderna é uma busca incessante da ordem e da estruturação, operando o estabelecimento de fronteiras que fixa o que é, e deixando de fora aquilo que não é. O pensamento moderno é um pensamento de dentro-fora, de amigo-inimigo, sendo o inimigo um erro, um amigo mal-acabado e, em si, mais uma entidade que por conceito é rígida. Na sanha ordenadora, a modernidade estabelece todo tipo de normas, dentre elas, talvez as mais emblemáticas e poderosas, as normas que regulamentam uma relação com a coletividade e com o indivíduo simultaneamente.

A norma representaria uma verdade de natureza quase transcendental, justificando estruturas de poder e pensamento, que acabam por se manifestar em imperativos formais, justos, por que legitimados pelo próprio sistema que compõem.

É Kelsen quem admite a impossibilidade de uma norma que seja em si uma verdade absoluta, representando a sua interpretação não um conhecimento, mas a manifestação de vontade daquele que detém o poder de interpretá-la (Leal, 2002) e, assim, antecipa uma contradição que vem desafiar a modernidade em seus fundamentos.

A grande dificuldade do processo normativo seria a ambivalência, que segundo Bauman é "a possibilidade de conferir a um objeto ou evento mais de uma categoria" (Bauman, 2001). Este elemento traz a incerteza da correção dos ordenamentos, denunciando a impossibilidade de uma norma unificada, ainda que se pretenda que ela seja este monólito lógico após a sua, indubitavelmente penosa, construção.

Bruno Latour (1994) vê essa busca de um ordenamento perfeito como um movimento de purificação característico da modernidade. Ao observar algo que não pode ser definido em um conceito já existente e que apresenta elementos de outras categorias, a atitude moderna é criar uma nova categoria. Ou seja, o movimento moderno é transformar aquilo que é híbrido em algo sólido, em uma entidade absorvida pelo ordenamento. Na sociedade, o Estado é um elemento cristalizador de híbridos, criando novas categorias na letra da lei, e assim incorporando-as na sua linguagem. Exemplos deste comportamento podem ser os movimentos de minorias e sua gradual ascensão representativa, à margem do Estado, e na verdade muitas vezes contra os estatutos dele. Para serem absorvidos transformaram-se em categorias fixas.

A atualidade pode então ser reconhecida como um emaranhado de ordenamentos múltiplos que se interpenetram, eliminando a possibilidade da existência de um elemento que esteja apenas em um único sistema. Todos estamos simultaneamente em vários sistemas, em ordens que nos definem, e que como são múltiplas nos conferem múltiplas definições.

Saúde como um quase conceito

Dentre as áreas de interesse do Estado brasileiro, definidas em sua Constituição, temos o direito à saúde como um direito social. Pela carta magna a saúde é um direito de todos e dever do Estado; a Carta indica que a saúde ultrapassa o entendimento comum de simples ausência de doença, impondo ao Estado o dever de por meio de políticas sociais e econômicas não apenas a redução do risco de doenças, mas também a recuperação, proteção e promoção de saúde. Desta maneira, o legislador trata saúde como algo de definição complexa, infraconstitucionalmente definida na lei 8.080/90, que define mais detalhadamente o que seria esta "saúde", que implica um direito ao bem-estar eco-biopsicossocial do indivíduo. A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade (Organização Mundial de Saúde, 1946). Tal definição coloca na área de atuação das estruturas estatais, que visam garantir o acesso a este bem-estar, toda uma variedade de assuntos e áreas antes não vistas. A Constituição brasileira, ao tutelar esta saúde ampla e visceralmente múltipla, não apenas reconhece a complexidade do tema, mas coloca o Estado como porta-voz nesse espaço, por definição, interdisciplinar. O entendimento e a abordagem interdisciplinar em matéria de saúde pelo Estado, pessoa jurídica de direito público, implica criar mais uma disciplina no campo normativo, reconhecendo elementos que devem ser agregados para sua formação. Entretanto, há de se questionar se essa unicidade, dada a amplitude da definição proposta, pode ser alcançada ou se, encarada como transdisciplinar pelo reconhecimento da insuficiência de uma única disciplina para seu esgotamento, a produção de conhecimento não seria mais eficaz levando em conta os objetivos propostos na Constituição Brasileira de 1988.

Tema prenhe de ambivalências é a saúde conforme vista pela OMS e adotada pelo sistema brasileiro. A saúde é uma coleção de "bem-estares", ou seja, chegou-se a uma percepção de saúde que ultrapassa o conceito de não-doente, para o conceito de bem-estar, que não pode ser abarcado por critérios quantitativos e qualitativos fixos e predeterminados (Conselho Nacional de Saúde, 2002). Saúde se torna tudo que afeta a forma como o indivíduo e o seu grupo experimentam a sua existência em determinada circunstância. Para os institutos estatais relacionados a este assunto, é saúde a maneira como se planeja a família, se organiza o ambiente de trabalho e seu entorno; é saúde o estado psicológico do indivíduo e, portanto, a segurança pública, que, como exemplo, se transforma em dados epidemiológicos importantes, não apenas por morbidade e mortalidade aferidos diretamente pelos dados obtidos na rede assistencial hospitalar, mas também pelo mal-estar psíquico que a falta de segurança causa. São saúde, também, todas as descobertas da biotecnologia que possam afetar direta ou indiretamente este bem-estar, seja físico, psicológico ou social. Assim, é de interesse da saúde assuntos como clonagem, produtos transgênicos, técnicas eugenéticas, trocas de sexo fenotípico, entre outros temas.

O interesse pela saúde, afeta, também, a indústria, a agricultura, a construção civil. "Saúde" se torna um conceito amplo, que a cada momento agrega novos significados e atribuições, e que por isso não pode ser fixado no espaço (em uma área de atuação) ou no tempo.

Diz a lei 8.080/90:

Art. 3º - A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais; os níveis de saúde da população expressam a organização social e econômica do País.

Parágrafo único. Dizem respeito também à saúde as ações que, por força do disposto no artigo anterior, se destinam a garantir às pessoas e à coletividade condições de bem-estar físico, mental e social.

Normatizar sobre saúde torna-se, assim, uma tarefa inglória sob o prisma moderno, uma vez que tanto em perspectiva, quanto numa visão microscópica, o tema se expande em multiplicidade.

Veja-se o caso do Sistema Único de Saúde (SUS), no tocante à maneira como os municípios são tratados. Os potenciais financeiros dos municípios variam enormemente, inclusive entre municípios de mesma população, sendo verdade que cada município apresenta características próprias relativas à necessidade assistencial, à sua geração e necessidade de recursos, sendo ainda variável sua estrutura dedicada à gestão do sistema operante. Utilizar parâmetros numéricos ou mesmo qualitativos, distintamente, para encaixar determinado município na estrutura administrativa do SUS, pode ser contraproducente para este município, pois ele pode, e freqüentemente ocorre isto com municípios pequenos ou depauperados, não se encaixar, na prática, no modelo imposto; não conseguir gerir da maneira preconizada os recursos; não oferecer, por esta e outras razões, os serviços mínimos a que se obriga por lei; enfim, há um emperramento da obtenção do benefício final do SUS que é este bem-estar eco-biopsicossocial. Isto se não considerarmos outros obstáculos que se referem às estruturas de poder local, de interesses e formas de atuação próprias de cada localidade; estas estruturas tendem a procurar manter o status quo inicial; a sua unidade e a relação imposta pelo SUS implicam diretamente uma troca de idéias e abertura de mão de poderes para a consecução de outros. Esta troca e disposição para aceitar movimentos que possam alterar o status original pode ser inexistente e sua imposição pode não ser feita de modo atraumático.

Esta dificuldade vem se expressando no desenvolvimento do SUS de maneira que o Estado, por seus órgãos e institutos administrativos ligados à saúde, busca através de compromissos e metas dirimir estes empecilhos à consecução de seus objetivos fundamentais. Todavia, mantém-se a mesma visão normatizadora e, ainda que não se ignore a fluidez do tema, recorre-se a maneiras de administração dos conflitos que apenas tem um efeito sinérgico com um arcabouço jurídico avesso à velocidade e transdisciplinaridade. O SUS ainda é freado, por motivos múltiplos, sem que se ataque ou se aceite a maneira como essa multiplicidade se organiza. Convém que se reforce que a necessidade de categorizar, purificar, estabelecer normas fechadas até em suas aberturas, a sanha estruturante e conseqüentemente cristalizadora, pode ser um dos elementos que emperram um pensamento administrativo mais eficiente para o SUS.

Outras áreas do direito sanitário, utilizando uma terminologia ainda objeto de discussão, que demonstram o questionamento dos instrumentos jurídicos, normalmente afetam a maneira como o direito abarca as situações, ou seja, impactam os conceitos jurídicos.

Como encarar, por exemplo, as relações de parentesco, no caso de um ser humano clonado ou de um ser humano gerado in vitro por um casal, e nascido do ventre da irmã de um dos cônjuges ou da mãe de um dos pais? Como encarar a troca de sexo civil se, apesar do sexo genético, vivemos na verdade a nossa identidade social e, ao mesmo tempo, como coadunar isto com o direito que o outro tem sobre informações deste tipo numa relação conjugal? Enfim, a todo o momento, somos confrontados com situações que têm sido cruciais para a sociedade atual, em vista dos desenvolvimentos biotecnocientíficos, e que têm encontrado fórum para discussão no espaço ético, mas que, no ordenamento jurídico, têm enfrentado resistência.

Porém, será esta resistência um fenômeno social, no sentido de uma resistência de valores sociais, ou será também esta resistência de natureza epistemológica, isto é, há a pressão da atualidade, há a pressão que vem das relações nas múltiplas redes que constituem o nosso ambiente, mas o arcabouço jurídico simplesmente não consegue dar conta disso por não saber como?

Tais questionamentos são importantes, atualíssimos, e vistos cotidianamente na prática advocatícia na área sanitária e regulatória (relacionada à saúde). Heloíza Helena Barboza (Barboza, 2001) atenta para isso e diz que: A revolta dos fatos contra o direito estoura periodicamente e periodicamente destrói, após mais ou menos sangue derramado, as instituições que não se adaptarem à nova face da sociedade (Barboza, 2001).

A solução aventada para este cul-de-sac seria a busca na ética de um procedimento mais eficaz de resolução de conflitos, e de dinamização destes mesmos conceitos jurídicos. Assim para um biodireito, uma bioética como matriz referencial, e os dois formariam a base de um direito legitimamente sanitário, isto é, um direito da saúde.

Porém, utilizar a ética como guia não resolve a questão normativa, pois apesar de apresentar bases interpretativas mais maleáveis e conseqüentemente mais bem adaptadas a tempos velozes, ela não ataca o problema que é uma norma que em algum momento se torna um peso morto, atravancando a solução e a dissolução das relações. Ainda que se argumente que este é um processo natural e que para uma lei obsoleta resta a revogação e a criação de uma nova lei, caímos de novo no problema de um tempo que faz da obsolescência não um risco, mas uma certeza para o futuro quase imediato. Na verdade, a proliferação de normas atende à necessidade de uma visão de mundo em "legal-ilegal", majoritária na medida em que a maior parte da doutrina jurídica se preocupa enormemente com a interpretação de fatos de acordo com normas, isto é, buscando adequar a realidade a um esquadro de legalidade/ilegalidade que permite seja dito o direito, isto é, seja feita a justiça, que passa na sua rotina a ser uma interpretação vinculada a um processo. A ética, neste caso, não passaria de uma alternativa igualmente normativa, dicotômica, ainda que talvez mais flexível. Este raciocínio reafirma sua característica moderna, que, como pudemos observar, não mais descreve a atualidade.

Cabe atentar que ao decidirmos que a normatização, da maneira como ela é feita ou apenas por existir, não dá conta da atualidade, e sabendo que a normatização é característica importante e definidora do estado de direito, estamos na verdade clamando por um questionamento deste estado, e ousando redefini-lo em bases novas ainda não testadas.

Conclusões

O direito e o Estado se encontram em momento de profundo questionamento perante os desafios de uma atualidade veloz, que cada vez mais se constitui como redes de relações que se interpenetram, multiplicando ambivalências, exibindo uma universalização do estranhamento, liquefazendo a modernidade e desta maneira impondo uma modificação na forma como se entende e se produz conhecimento.

A atuação do Estado, via normatização, é então colocada em xeque, e tem de ser reavaliada, sob pena de seus objetivos não serem alcançados com uma mínima sensação de contento. O próprio Estado reconhece isto e propõe grupos interdisciplinares para solução de suas questões administrativas de políticas públicas. Todavia, o arcabouço normativo, da maneira como é pensado, continua ineficiente, pois, pela interdisciplinaridade, ainda se busca conceituar matérias como unas, isto é, como instâncias não mais híbridas e sim solidificadas em categorias, reduzindo a adaptabilidade a novas situações e contribuições.

O campo da saúde apresenta o desafio vivo de uma transdisciplinaridade, que no dizer de Pedro & Nobre (2002). Segundo D' Amaral é um comunicar intercientífico que parte de uma concepção a priori do real como múltiplo (...) e que podemos trabalhar a partir de um conceito ampliado de transdisciplinaridade, pois (...) se a concepção de rede entende a multiplicidade como uma amarração que envolve governos, ciências, empresas, pessoas comuns, etc., parece-me que estamos diante da possibilidade de transdisciplinaridade ampliada. Não são mais apenas disciplinas científicas que se comunicam no sentido de lidar com a pluralidade irredutível, mas sobretudo outras de conhecimento e ouros saberes.

A aceitação da multiplicidade e do estranhamento, considerando a existência de redes de coletivos que se interpenetram, poderia ser o ponto de partida para a redefinição da norma, e conseqüentemente do Estado, seu papel e sua atuação.

Sem isso, não parece possível atingir os objetivos de políticas públicas de saúde, em uma atualidade dinâmica e de alcance ampliado. Os objetivos atingidos seriam tópicos, e freqüentemente desconectados de efeitos mais difundidos, como seria o escopo das idéias que o Estado propôs a si mesmo. Assim vemos políticas excelentes voltadas para esta ou aquela moléstia importante, sem que haja nisso uma melhoria estrutural de todo o sistema de saúde, sendo a importância das moléstias caracterizada tecnicamente, mas também politicamente, e este talvez seja um dos elementos mais importantes a considerar.

Podemos ainda ver este tema como similar ao apresentado por Urry & Law (2002), relativamente ao papel das ciências sociais e dos métodos em pesquisa social, e questionarmos que Estado queremos, que leis, que processo normativo, se é que este poderá ainda ser compreendido da mesma maneira? O método, no caso das ciências sociais, assim como para o direito, e no caso específico objeto deste artigo, é fundamental, mas não é inocente: If methods are not innocent then they are also political. They help to make realities. But the question is: which realities? Which do we want to help to make more real, and which less real? How do we want to interfere (because interfere we will, one way or another)? (Urry &Law, 2002).

Assim vemos que o método cria as realidades que ele descobre, e assim, ao pensarmos o Estado, a normalização e a saúde e buscarmos ferramentas teóricas para lidarmos com questões relativas a estes assuntos, estamos recriando-os. O momento impõe, portanto, uma redefinição também de fontes, de métodos, de alternativas; demanda um maior dinamismo e principalmente maior crítica daquilo que se pesquisa, de quem pesquisa e da disciplina que pesquisa. O campo da saúde, com a sua tendência ao escape, dada a sua transdisciplinaridade, é um desafio ao pensamento jurídico, não está alheio a este movimento de redefinições e, ainda que lentamente, assaltado pelas próprias ambivalências, tende a participar dele ou reconhecer a sua aderência involuntária a ele.

A saúde e o direito sanitário, como nova vertente de pesquisa, é campo fértil para este debate, que precisa ser intensificado, pelo bem-estar que o Estado se comprometeu a alcançar ou disponibilizar.

Colaboradores

PF Silva e W Waissmann participaram igualmente da formulação do artigo.

Artigo apresentado em 10/10/2004

Aprovado em 15/11/2004

Versão final apresentada em 16/12/2004

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jun 2007
  • Data do Fascículo
    Mar 2005

Histórico

  • Revisado
    15 Nov 2004
  • Recebido
    10 Out 2004
  • Aceito
    16 Dez 2000
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