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O pragmatismo e o utilitarismo não resolveram, e agora?

Pragmatism and utilitarism did not work, and now?

DEBATEDORES DISCUSSANTS

O pragmatismo e o utilitarismo não resolveram, e agora?

Pragmatism and utilitarism did not work, and now?

Lia Giraldo da Silva Augusto

Fundação Oswaldo Cruz. giraldo@cpqam.fiocruz.br

O debate sobre o tema das novas e velhas questões envolvidas em Saúde do Trabalhador nos coloca diante da crise em que vivemos. As questões formuladas pelos autores são suficientemente abrangentes para uma análise ontogênica desta questão.

Para mim, que tenho a responsabilidade histórica de ter iniciado a primeira experiência concreta de organização das ações de saúde do trabalhador na rede de saúde no ano de 1983 no Estado de São Paulo, fica uma perspectiva de maior radicalização das teses colocadas pelos autores.

Acredito que as novas questões ainda não foram devidamente formuladas: estamos girando em torno das velhas questões. Todas elas eram e continuam sendo os mesmos entraves: ausência de uma efetiva Política Nacional de Saúde do Trabalhador, fragmentação do conhecimento e das ações, pouca capacidade de pressão dos movimentos sociais e de qualificação das demandas.

A crise da saúde do trabalhador não pode ser separada da questão mais geral da saúde pública. Agora passados praticamente 15 anos da promulgação da Lei Orgânica da Saúde nº 8.080/1990 temos de avaliar se de fato aqueles princípios e diretrizes orientadores da Política de Saúde foram implementados.

O balanço não é muito positivo. A crise sistêmica referida pelos autores tem três aspectos a serem considerados: de ordem ontogênica, epistemológica e ética. Vivemos um paradoxo: formulou-se uma reflexão crítica, mas não se mudou a prática "sanitária" hegemônica que permaneceu contaminada pelo paternalismo hipocrático.

A análise a partir de nossa própria experiência é útil como material empírico para fazer esse percurso. Uma das mais significantes foi a resolução SS 69, de 18 outubro de 1984 da SES-SP, que instituiu na lista das doenças de notificação compulsória do Estado de São Paulo os agravos relacionados com riscos oriundos dos processos produtivos das empresas que operavam na região de abrangência do Pólo Industrial de Cubatão. Esta foi a primeira experiência de ampliação do sistema de vigilância epidemiológica para além das doenças "tropicalistas" e que nunca foi devidamente avaliada na elaboração das estratégias de vigilância em saúde do trabalhador. Como esta, outras experiências exitosas se perderam e, como um mote continuum, tudo tem de começar de novo (MS, 2001; Augusto et al., 1996).

As transformações da atividade econômica, com o desenvolvimento das forças produtivas, a crescente industrialização, a precarização das condições de trabalho, a informalização das relações de trabalho, o desemprego e a tecnificação da agricultura tudo isto, aliado a um modelo de desenvolvimento periférico e subordinado aos interesses do capital, está refletido no perfil epidemiológico do país. Mas essas questões nunca foram incluídas no fazer da saúde pública, embora na Constituição de 88, em seus artigos 196 e 200, haja inscrito a transversalidade da política de saúde, e que nunca foi assumida.

À pergunta do que adoecem e morrem os trabalhadores devemos acrescentar outra: como adoecem e morrem os trabalhadores? Aliás, "o como" é mais importante do que "o porquê" por uma razão fundamental: se quisermos sair da relação de causalidade linear tão profundamente enraizada na prática de saúde e alcançar a complexidade dos processos necessários para uma ação transformadora temos de ir para os sistemas dinâmicos abertos que constituem os sistemas sociais com todas as suas tensões e que se materializa na luta pela cidadania.

Outro aspecto que julgo importante é não confundir risco com causa e causa com contexto. Esta confusão corriqueira observada até mesmo em compêndios de epidemiologia é outra questão importante para se superar a linearidade causal, que em saúde do trabalhador se expressa no chamado "nexo-causal".

A exigibilidade e a justicialização em saúde do trabalhador ficou aquém do que poderíamos chamar de um Estado democrático e de direito. Infelizmente a produção de conhecimento fragmentado tem servido para criar cortinas de fumaça que impedem o descortinamento dos responsáveis pelos contextos de nocividade. Ainda o fatalismo e a culpabilização da vítima permanecem sendo práticas ideológicas cotidianas contra os trabalhadores.

Não produzimos uma heurística contra-hegemônica suficientemente consistente para contrapor ao domínio das verdades cientificistas que confundem até mesmo os juízes, peritos e lideranças sindicais mais bem-intencionados. No entanto, o fetichismo da ciência tem servido para continuar a produzir indicadores que invertem a complexidade da realidade, colocando a saúde subordinada a parâmetros simplistas de origem cientificamente duvidosos.

Por que será que, até hoje, apesar de os dados de morbimortalidade apontarem para um perfil epidemiológico complexo, permanecemos com a cara "tropicalista" que os "colonizadores globais" insistem em nos identificar? Por que será que os agravos relacionados com os processos produtivos e padrões de consumo oriundos das revoluções científico-tecnológicas e industriais, especialmente do século 20, não foram incorporados aos sistemas de vigilância epidemiológica em nosso país?

Mesmo após a Constituição de 1988, continuamos a ter uma prática sanitária que pouco se diferencia do período anterior a ela. Isto não é uma questão apenas do Programa de Saúde do Trabalhador. Tivemos algumas experiências de cunho transformador localizadas aqui ou acolá em saúde mental, saúde da mulher, saúde do idoso, saúde do trabalhador, saúde da criança, saúde ambiental, mas tudo parece refluir para um mesmo "modelo" assistencialista e restrito. Sobrevivem ainda alguns focos de resistência, outros sucumbiram ao pragmatismo de sobrevivência.

O Programa de DST/Aids é provavelmente o que alcançou uma rede social mais ampla, envolvendo dimensões humanas, técnicas e institucionais que pôs em cheque a prática reducionista (pragmática e utilitarista observada na assistência á saúde), obrigou a instituição da tutela do Estado sem a perda da autonomia dos sujeitos. Seria interessante analisar esta questão de forma mais abrangente para compreender a "não delegação" de direitos e a necessidade de libertação (empowerment) diante de todos os tipos de paternalismo.

A crise da saúde pública é mais profunda. Na verdade é uma crise anunciada e que varou o século 20 e ainda não foi resolvida (Tarride, 1998). A Saúde do Trabalhador não poderia ser uma ilha de fantasia no mar de lama. Não dá para avançar isoladamente como se fôssemos dotados de imunidade contra os acordos multilaterais. O que é que tem a ver o modelo de controle de endemias vetoriais com a saúde do trabalhador? Eu diria, tudo! Naquele está bem explícito o modo de operar da saúde pública: domesticação e subordinação ao pensamento hegemônico e aos interesses de mercado que impede a existência de uma Política Nacional de Saúde do Trabalhador, de Saúde Ambiental e de outras, nos moldes que foram pensadas pela contribuição da esquerda acadêmica em sintonia com os movimentos sociais comprometidos com a justiça social e ambiental.

Há necessidade de inovar os conceitos para impactar favoravelmente a forma e os rumos das políticas sociais e dos programas estatais locais. Tal mudança implica a incorporação de idéias conceitualmente complexas como a de promoção da saúde, como na reformulação de mecanismos políticos e institucionais – via descentralização e territorialização do planejamento público e reforma do saber acadêmico e científico – com vistas a operacionalizar os conceitos complexos (Martins, 2004).

Referências bibliográficas

Augusto LGS, Rocha LE, Freitas CU, Lacaz FAC & Bichir A 1996. Vigilância epidemiológica de doenças ocupacionais. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional 54(4):32-65.

Martins PH & Fontes B 2004. Redes sociais: novas possibilidades teóricas. Ed. Universitária UFPE, Recife.

Ministério da Saúde 2001. Área temática de Saúde do Trabalhador. Cadernos de Saúde do Trabalhador: Legislação. Disponível em <http://www.saude.sc.gov.br/SaudeTrabalhador>. Secretaria de Políticas de Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas, Brasília.

Programa Nacional de Segurança e Saúde do Trabalhador (PNSST) 2004. Brasília (mimeo).

Tarride MI 1998. Saúde pública: uma complexidade anunciada. Fiocruz, Rio de Janeiro.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2005
  • Data do Fascículo
    Dez 2005
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