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Politicidade do cuidado e processo de trabalho em saúde: conhecer para cuidar melhor, cuidar para confrontar, cuidar para emancipar

Politicity of care and work process in health: knowing to take a better care, taking care to confront, taking care to emancipate

Resumos

Politicidade do cuidado diz respeito ao manejo disruptivo da relação entre ajuda e poder para construção da autonomia de sujeitos. Tal concepção se expressa principalmente pelo triedro conhecer para cuidar melhor, cuidar para confrontar, cuidar para emancipar, que, em contextos sócio-históricos específicos e adaptado ao processo de trabalho em saúde, pode se constituir numa referência reordenadora de relações de domínio. Trata-se de uma reflexão teórico-filosófica, fundamentada em tese de doutorado, que aprofunda a ambivalência do cuidado, concebido tanto pelo modo de ser solidário, como pelo vir a ser político. Objetiva-se indicar aplicabilidades à concepção de politicidade do cuidado no âmbito do processo de trabalho dos profissionais de saúde, sinalizando potencialidades emancipatórias. A primeira parte faz uma reflexão aprofundada sobre a politicidade do cuidado nas dimensões ontológicas, epistemológicas, biológica e política, argumentando sobre a tensa relação entre ajuda e poder presente no gesto de cuidar. Na segunda, contextualiza-se essa teorização na forma desigual de organizar e produzir cuidados em saúde, discutindo-se a mudança do modelo de atenção à saúde. Na terceira, conclusiva, fundamenta-se o triedro do cuidar e apontam-se indicações emancipatórias para o processo de trabalho dos profissionais.

Cuidado; Emancipação; Poder


Politicity of care is about handling the disruptive of the relation between help and power for the construction of the autonomy of subjects. Such conception is expressed mostly by the trihedron knowing to take a better care, taking care to confront and taking care to emancipate, that, in social-historical specific contexts and adapted to the working process in health, can constitute a reoriented reference of the domain relations. It is a theoretician-philosophical reflection, based in a doctorate thesis, which deepens the ambiguity of the care, conceived such by the way of being solidary, such as by becoming to be political. This article aims to indicate the applicability of the politicity conception of the care in the scope of the health professionals working process, signaling emancipatories potentialities. The first part makes a deep reflection about the policity of caring in its ontological, social and political dimensions, arguing about the tense relation existing between help and power which is present in the gesture of taking care. The second part contextualizes this theory in the unlike form of organizing and producing health care, presenting the discuss about the change of the attention model to the health. The third part is based in the emancipatory trihedron of caring and points emancipatory indications to the working process of the professionals.

Care; Emancipation; Power


TEMAS LIVRES FREE THEMES

Politicidade do cuidado e processo de trabalho em saúde: conhecer para cuidar melhor, cuidar para confrontar, cuidar para emancipar

Politicity of care and work process in health: knowing to take a better care, taking care to confront, taking care to emancipate

Maria Raquel Gomes Maia Pires

Departamento de Serviço Social, Universidade de Brasília. Campus Universitário Darcy Ribeiro, ICC Centro, Sobreloja Sl-432, Asa Norte, 70910-900 Brasília DF. maiap@uol.com.br

RESUMO

Politicidade do cuidado diz respeito ao manejo disruptivo da relação entre ajuda e poder para construção da autonomia de sujeitos. Tal concepção se expressa principalmente pelo triedro conhecer para cuidar melhor, cuidar para confrontar, cuidar para emancipar, que, em contextos sócio-históricos específicos e adaptado ao processo de trabalho em saúde, pode se constituir numa referência reordenadora de relações de domínio. Trata-se de uma reflexão teórico-filosófica, fundamentada em tese de doutorado, que aprofunda a ambivalência do cuidado, concebido tanto pelo modo de ser solidário, como pelo vir a ser político. Objetiva-se indicar aplicabilidades à concepção de politicidade do cuidado no âmbito do processo de trabalho dos profissionais de saúde, sinalizando potencialidades emancipatórias. A primeira parte faz uma reflexão aprofundada sobre a politicidade do cuidado nas dimensões ontológicas, epistemológicas, biológica e política, argumentando sobre a tensa relação entre ajuda e poder presente no gesto de cuidar. Na segunda, contextualiza-se essa teorização na forma desigual de organizar e produzir cuidados em saúde, discutindo-se a mudança do modelo de atenção à saúde. Na terceira, conclusiva, fundamenta-se o triedro do cuidar e apontam-se indicações emancipatórias para o processo de trabalho dos profissionais.

Palavras-chave: Cuidado, Emancipação, Poder

ABSTRACT

Politicity of care is about handling the disruptive of the relation between help and power for the construction of the autonomy of subjects. Such conception is expressed mostly by the trihedron knowing to take a better care, taking care to confront and taking care to emancipate, that, in social-historical specific contexts and adapted to the working process in health, can constitute a reoriented reference of the domain relations. It is a theoretician-philosophical reflection, based in a doctorate thesis, which deepens the ambiguity of the care, conceived such by the way of being solidary, such as by becoming to be political. This article aims to indicate the applicability of the politicity conception of the care in the scope of the health professionals working process, signaling emancipatories potentialities. The first part makes a deep reflection about the policity of caring in its ontological, social and political dimensions, arguing about the tense relation existing between help and power which is present in the gesture of taking care. The second part contextualizes this theory in the unlike form of organizing and producing health care, presenting the discuss about the change of the attention model to the health. The third part is based in the emancipatory trihedron of caring and points emancipatory indications to the working process of the professionals.

Key words: Care, Emancipation, Power

Introdução

A politicidade do cuidado reside na intrínseca ambivalência da ajuda que, sendo poder, tanto domina como liberta fazeres humanos. A característica do cuidar, como gesto e atitude solidária, inclina-se para proteger e assegurar vida, direitos e cidadania. Porém, a relação fraterna aí impulsionada também é opressora e subjugante, utilizando-se de artifícios calcados na solidariedade para manter-se em posição de domínio. Esta discussão integra a tese de doutorado Politicidade do cuidado como referência emancipatória para gestão de políticas de saúde: conhecer para cuidar melhor, cuidar para confrontar, cuidar para emancipar (Pires, 2004), defendida no programa de pós-graduação em Política Social da Universidade de Brasília, e discute teoricamente o caráter dinâmico, turbulento, subversivo, político e reconstrutivo do cuidar, a partir das seguintes questões: Como um cuidado eminentemente tutelar, que sobrevive da própria dependência, poderia desencadear rupturas emancipatórias a partir dessa mesma proteção? Poderia uma relação protetora vir a se constituir em impulso criativo à insubordinação autônoma? Existiria dinâmica subversiva na ajuda, típica relação de poder?

A politicidade do cuidado, concebida na ambigüidade que a conforma, pode desconstruir assimetrias de poder a partir do triedro conhecer para cuidar melhor, cuidar para confrontar, cuidar para emancipar (uma produção própria que será aprofundada no decorrer deste texto). Articulando saber, poder e ajuda, o referido triedro aprofunda as dimensões epistemológicas, ecológica, ontológica e social do cuidado, por meio da politicidade que lhe é intrínseca. Parte-se do suposto que o ato de conhecer, ou de computação/cogitação (Morin, 1999), sendo político e biológico (Maturana & Varela, 1997; Demo, 2002b), e entendido como forma natural de participar de um mundo social e historicamente conformado, instrumentaliza confrontos e autonomias libertárias. O triedro emancipatório do cuidar, contextualizado na política pública e adaptado ao processo de trabalho em saúde, pode se constituir numa referência capaz de democratizar poderes por meio do fortalecimento da autonomia de sujeitos. Este argumento é aprofundado nas três partes que compõem este artigo: a) politicidade do cuidado: centralidade do político para a gestão da ajuda-poder; b) politicidades na forma desigual de organizar e produzir saúde: entre o aprisionamento e a libertação do cuidar; c) triedro emancipatório do cuidar e processo de trabalho em saúde: indicando dinâmicas disruptivas. Pretende-se apontar possibilidades emancipatórias para o processo de trabalho dos profissionais de saúde a partir da tese supracitada (pesquisa teórica e prática, centrada no uso da politicidade do cuidado como referência teórico-analítica para a gestão de políticas de saúde, que investiga se a gestão de programas prioritários para o SUS, como o PSF, tem oportunizado cenários propícios à autonomia de sujeitos). Para os propósitos deste texto, qual seja, indicar dinâmicas indutoras de reordenamento de poderes para a prática dos profissionais de saúde, fundamentou-se principalmente nas discussões que integram o referencial teórico e análise dos dados da referida produção (documentos institucionais e trabalhos premiados na II mostra nacional de produção em saúde da família, ocorrida em julho de 2004).

Politicidade do cuidado: centralidade do político para gestão da ajuda-poder

A politicidade do cuidado pode ser entendida como manejo político e reconstrutivo da relação dialética estabelecida entre ajuda e poder para a construção de autonomias de sujeitos, sejam estes gestores, técnicos, profissionais de saúde, usuários dos serviços de saúde, família, comunidade, enfim, cidadãos. Acerca da politicidade, adota-se a referência de Demo (2002a), que a concebe como habilidade política humana de "saber pensar" e intervir criticamente, numa busca imanente por autonomia crescente. O enfrentamento dos limites postos, sejam sociais, econômicos, culturais ou biológicos, conforma o centro nevrálgico e motor da politicidade humana. Para consolidar a idéia de politicidade como razão humana fundamental, o autor resgata conhecimentos da biologia para argumentar sociologicamente. A partir do entendimento biológico da intrínseca mutabilidade do ser vivo, constrói uma fundamentação teórica para o entendimento da politicidade como possibilidade de construirmos uma sociedade menos desigual, mais ética e justa. Advém também desse autor uma referência importante sobre igualitarismo (possível pela democratização do poder) em oposição a igualdade (contraditório porque este mesmo poder, sendo estrutural, não desaparece facilmente). Na base desta discussão está a pulsação de uma politicidade biologicamente plantada, o que nos torna, a exemplo de outros seres vivos, (...) profundamente gregários e cooperativos, embora profundamente competitivos (...) (2002a).

A partir do debate amplificado por Demo para explicar a politicidade, e se distanciando de qualquer fechamento determinista, é possível observar aspectos que sugerem uma inter-relação dos fenômenos naturais, sociais e históricos presentes na realidade, quais sejam: 1) a politicidade, antes de ser razão humana, lateja na matéria, estando presente como dinâmica de reconstrução tanto nos processos vivos, como nas movimentações moleculares, atômicas e subatômicas que conformam os elementos não orgânicos da natureza; 2) os animais são seres políticos porque também se relacionam, interagem, tensionam e transformam entre si, como se observa, por exemplo, nas formas de associação entre seres vivos estudadas pela biologia (cooperação, mutualismo, competição, simbiose, sociedade, entre outros); 3) esta politicidade, no homem, se complexifica, assumindo peculiaridades próprias do ser dialético que sabe intervir pela reconstrução permanente; 4) tal intervenção humana, no capitalismo, tem intensificado a face agressiva e desigual das relações sociais, sendo necessário o resgate da dimensão ética dessa mesma politicidade, capaz de forjar processos emancipatórios.

Ainda sob as descobertas da biologia, na teoria da autopoiese, em Maturana & Varela (1997), o dinamismo das transformações operadas pela dinâmica e diversidade da organização do ser vivo impressiona, a despeito de certo fechamento estrutural-funcionalista presente na concepção de clausura operacional da máquina vivente. Segundo esta teoria, os processos produtivos e autônomos que conformam o ser vivo geram transformações dentro do sistema (máquina vivente), sendo o meio externo responsável apenas por perturbações menos expressivas. A clausura operacional atuaria como uma rede fechada de relações e produções do sistema, limitando a mudança apenas ao interior da máquina vivente. Residiria aí a limitação dessa teoria, uma vez que tais processos podem desencadear mudanças não apenas dentro, mas do sistema como um todo, numa perspectiva mais dialética. Apesar dessa ressalva, a centralidade da autonomia dos fenômenos biológicos, assumida pelos autores como traço primordial e inerente à vida, traduz a vanguarda dessa teoria. O pulsar dos fenômenos naturais, tão irreverentemente caracterizados tanto pela termodinâmica dos processos irreversíveis (movimento de turbulência e revolução presente no aquecimento das moléculas químicas que gera dissipações irrepetíveis, singulares e transformadoras na estrutura das mesmas), em Prigogine (1997), quanto pela autopoiese (autonomia ou auto-eco-organização dos processos vivos), em Maturana & Varela (1997), consubstanciam um forte argumento em favor da politicidade.

O caráter disruptivo, autopoiético e irreversível inerente aos seres vivos, concebido de maneira dialógica e dialética, fundamenta o argumento da politicidade do cuidado. Nesta direção, a reconstrução da ajuda em prol da autonomia do outro, calcada em relações de poderes potencialmente subversivas, pode configurar um cuidar de cariz mais emancipatório. A autonomia intrínseca dos sujeitos como potencial transformador, a historicidade e dinamicidade de uma realidade complexa e imprevisível configuram a idéia da politicidade do cuidado como gestão inteligente da ajuda-poder. É precisamente pela politicidade que o cuidado pode se tornar emancipatório ou desconstrutor das próprias estruturas que o subjugam. Trata-se de redimensionar o cuidado como possibilidade ética da humanidade, viabilizável pela ambivalência intrínseca. Tal intento sugere um movimento dialético no qual a relação de dependência acontece mais para construir autonomia dos atores envolvidos, que para manter-se em si mesmo, como exercício autocentrado de poder. Ou seja, significa cuidar para que possamos ser capazes de reelaborar cada vez mais a tutela e exigir cidadania, onde o "meu" projeto de autonomia só existe como parte da autonomia coletiva, sabendo-a sempre relativa.

O cuidado como gestão da ajuda-poder tem como fulcro central a dinamicidade tanto dos processos históricos, quanto da natureza, assumindo-se aqui uma abordagem social, ecológica e epistemológica do cuidar (Pires, 2002). Por existir sobretudo na natureza, o cuidado faz parte da compleição dos seres vivos e da emergência dos processos cognitivos globais de uma mente incorporada, ocorrendo em múltiplas e diversas formatações. Sobre essa última expressão, explica-se: distanciando-se da clausura operacional que outrora assinalava, e articulando múltiplos saberes (psicologia cognitiva, fenomenologia e budismo), Varela propõe que a reflexão precisa interromper os padrões habituais de recorrência e programação, mantendo-se atenta e aberta. Aberta às possibilidades diferentes daquelas contidas nas representações comuns que as pessoas têm, aberta à vivência reflexiva propiciada pela mente, aberta aos desígnios do caos e da incerteza, aberta às transformações advindas da dúvida e do acaso, atenta às possibilidades emancipatórias que podem advir desse estado de ausência de fundamento, conformando o que ele denomina de enaction. A ausência de um fundamento essencial, de um comando único, de um self central e porto seguro das pulsões humanas, ao invés de ser considerado um aspecto negativo, é descrito como profundamente revelador de condições libertárias, presente na existência co-dependente da própria vida. Por meio da enaction, os praticantes da atenção/consciência podem aumentar a capacidade de se estar atento às profundas experiências advindas da conexão entre corpo e mente.

Assim, seja na turbulenta natureza que busca superação de equilíbrios pela irreversibilidade dos fenômenos (Prigogine, 1997), na biologia dos processos autônomos ou na experiência vulnerável da reflexão oriunda da junção do corpo com a mente, o cuidado, não sem conflito, interage e tensiona seres por dinâmica interna, inerente ao pulsar da vida. É precisamente pelo conflito e incerteza presentes no gesto de ajuda que ele pode vir a ser uma força revolucionária, traduzindo-se em politicidade subversiva. Compreender o cuidado como vir a ser, contrário de ser, contemporiza-o como possibilidade de mudança inerente às relações sociais. A liberdade manifesta na concepção do vir a ser constitui a potencialidade subversiva do cuidado, expressa pela frivolidade, fugacidade e intrínseca transitoriedade do fenômeno do poder. O cuidado visto na totalidade envolve não só o modo de ser, estrutura mais definidora e capturável, como também o modo de vir a ser, característica que o torna dinâmico, permeado por volúpia e tensão dialética.

A este respeito, a discussão em Heidegger sobre o ser-no-mundo inclui a dimensão da cura/cuidado, que compõem a estrutura da pre-sença (constituição ontológica de homem, ser humano e humanidade). É na pre-sença que o homem constrói seu modo de ser-no-mundo. Assim, segundo o filósofo da fenomenologia, o ser-no-mundo em sua essência é cura, entendida como condição estrutural de existência humana. Ontologicamente, cura não pode significar uma atitude especial para consigo mesmo, porque esta atitude já se caracteriza como preceder a si mesma, envolvida por outros dois momentos estruturais, o já ser-em e o ser-junto do conceito ôntico de cura também permite chamá-lo de cuidado e dedicação, integrando os comportamentos e atitudes humanas (Heidegger, 2002). Boff (1999), apoiando-se em Heidegger, reconhece o cuidado como modo de ser essencial, como ethos humano e dimensão ontológica impossível de ser totalmente desvirtuada. Defende que o cuidado entra na constituição da natureza e do ser humano, sem o qual não haveria a própria vida. Com o tom profundamente humano, filosófico e teológico, propõe uma ressignificação do cuidado, fundado numa nova ética do humano e na compaixão pela terra. A consistência teórica de Boff, a despeito de certa tendência esotérica tão pouco ambivalente, torna seu "saber cuidar" uma referência importante para as utopias humanas. Outro destaque oportuno é a crença de que o cuidado, em sentido irrestrito, reside na imanência da vida e do humano, admitindo-se aqui uma plenitude incapturável apenas pela razão.

Longe de se adentrar nesta seara filosófica, por fugir aos objetivos deste texto, cabe considerá-las referências importantes para o elemento de ruptura presente nas expressões do cuidar – imanente em possibilidades, transcendente em desafios. Seja qual for a tendência pretendida, a capacidade revolucionária do cuidado ocorrerá menos pelo seu modo-de-ser que pelo seu modo-de-vir-a-ser. É principalmente pelo que ainda não é, já sendo em si, que se pode argumentar em favor da emancipação. Ou, é precisamente pela dinâmica da liberdade, aproximativa de realizações e plena de desejos, que as utopias libertárias se realizam (Bauman, 2001). Acreditar que as ações solidárias e revestidas de autoridade, ou seja, fundadas em relações de poder próprias do sujeito que ajuda o outro e define-se a si mesmo, podem promover autonomias capazes de vir a reordenar desigualdades, implica conceber a centralidade do político nas relações sociais estabelecidas. É pela mediação de interesses, pela negociação árdua de projetos, pela intensidade da ágora público/privado inerente às sociedades humanas que as pretensas liberdades tomam concretude. O cuidado como ajuda que se reelabora na relação de poder estabelecida, acontece principalmente pela politicidade do cuidar, entendida tanto pelo seu modo de ser solidário, como pelo seu modo de vir a ser político.

O termo ajuda é discutido por Gronemeyer (2000), que, ao tentar uma definição teórica desta palavra para o Dicionário do Desenvolvimento, apresenta-o como poder elegante. A autora argumenta que a ajuda ao desenvolvimento, em especial aquela oferecida aos países do Terceiro Mundo, sempre se constituiu num mecanismo de dominação, em que a dissimulação e extrema discrição lhe foram sempre atributos principais. (...) O poder elegante jamais é identificado como poder. E ele é verdadeiramente elegante quando, cativados pela ilusão de liberdade, os que a eles estão submetidos negam, repetidamente, sua existência. É uma forma de manter o cabresto na boca dos subordinados sem deixar que eles sintam o poder que está dirigindo. Em suma, o poder elegante não força, não recorre ao cacete nem às correntes, simplesmente ajuda (...) (Gronemeyer, 2000). Como todo poder que se preza em manter-se forte, a ajuda atua por mecanismos camuflatórios, lançando mão de apelos pretensamente morais para consolidar sua hegemonia. Afinal, quem ousa desconfiar daquele que está ajudando o outro? Tome-se o caso dos micropoderes presentes no processo de trabalho em saúde. Como duvidar do médico, que além de deter o conhecimento sobre o meu corpo e minha doença, promove o bem da minha saúde a partir do seu saber-poder? (Foucault, 1979).

O cuidado, apesar de bem mais amplo por envolver aspectos ontológicos, ecológicos, sociais, culturais e políticos do ser vivo, tende a ser mais bem compreendido no campo da assistência à saúde, uma vez que as profissões têm progressivamente disciplinado o cuidar em procedimentos, tarefas, tecnologias, rotinas e micropolíticas para cuidar das doenças (Merhy, 1997). Nesse caso, a ajuda como poder elegante aparece em sua face mais velada, seja porque a enfermidade nos fragiliza diante da iminência da morte, seja porque a ajuda no campo da saúde historicamente sempre se aproximou do sacerdócio e da benevolência, legitimando hegemonias seculares que aprisionam corpo e subjetividade das pessoas à lógica da divisão social do trabalho em saúde (Rezende, 1989; Pires,1989).

De volta à macropolítica, e na tentativa de arquitetar uma teoria de soberania para a nova forma global de economia capitalista, Hardt & Negri (2002) defendem que estaríamos vivendo num Império. O Império difere do imperialismo moderno que o antecede, principalmente, por não ter um centro único de poder definido, mas redes de poder que o sustentam. Por outro lado, as forças criadoras da multidão que o amparam são capazes de construir um contra-império tipicamente revolucionário. O mecanismo de coerção utilizado opera no seio da vida social, atuando em malhas intrincadas, sendo disperso e pouco localizável. A discussão de biopoder em Foucault (1985) lança as bases da teoria do império, ou de como a gestão das forças do corpo foram, e continuam a ser, extremamente estratégicas para a acumulação capitalista. A articulação entre a reprodução humana e o capital, garantindo uma força produtiva dócil, foi o principal objeto de intervenção do poder disciplinar do capitalismo industrial. A própria disciplina, tão formatada e institucionalizada na era moderna, é (re)discutida atualmente como uma introjeção inerente à vida social.

O poder, situação estratégica complexa, permeada por disputa e sublevações num determinado contexto sócio-histórico, tanto em Foucault (1985) como em Hardt & Negri (2002), encarrega-se mais da vida do que da ameaça da morte, dando-lhe acesso direto ao corpo biológico articulado intrinsecamente com a história. Para Foucault (1985), é principalmente por meio desta biopolítica, que negocia domínios sobre a vida na história dos homens, que o saber-poder tem se constituído como um agente de transformação da vida humana. Para o autor, e referindo-se à história da sexualidade humana, o mesmo interdito que mantém o corpo disciplinado aos desígnios do capitalismo, submetido às normas sociais que mantêm os corpos dóceis e hígidos para a reprodução do capital, pode se contrapor a estes comandos por uma mesma biopolítica interna, libertando-se da tutela por meio do cuidado de si, capaz de forjar autonomias. Nessa linha de pensamento, e acompanhando as transformações do capital, que hoje rompe barreiras físicas e territoriais, o poder igualmente se fragmentou nos corpos humanos, perdendo em unidade definidora capturável, ganhando em extensão irrepreensível. Assim, apesar da coerção externa, hoje as pessoas obedecem ou não muito mais por dinâmica interna, por uma biopolítica que lhe é intrínseca. É precisamente sobre essa dimensão política da vida das pessoas que o poder imperial age, por mecanismos internos de controle mediados pelo biopoder. Assim, ao contrário do que se poderia supor, visto que no Império não existe uma sede específica de poder, a política não desaparece, mas sim sua soberba autonomia. Em diálogo com esses autores, argumenta-se aqui por uma proposição disruptiva do cuidar, por um cuidado que se reconstrua sempre para cuidar melhor, gerindo politicamente relações da ajuda-poder. Para a área da saúde em especial, esse debate se insere na atual discussão sobre mudança do modelo assistencial em saúde, ou na busca de inovações e reconstruções do trabalho em saúde capazes de fortalecer a autonomia de sujeitos, sejam estes profissionais ou usuários do sistema de saúde.

Buscando politicidades na forma desigual de organizar e produzir saúde: entre o aprisionamento e a libertação do cuidado

A mudança do paradigma assistencial em saúde, uma das grandes lutas advindas do movimento da Reforma Sanitária, permanece como utopia concretizável. Tal ideário, fundado nos princípios doutrinários do SUS (universalidade, eqüidade e integralidade), sofre influência das profundas mudanças que vêm ocorrendo na economia e estrutura da sociedade (Offe, 1991; Santos, 1997), nos valores e hábitos de saúde da população (consumismo e medicalização dos problemas sociais, em que as questões de ordem pública, como saneamento básico e água tratada, são tomadas restritamente apenas sob a ótica da dimensão privada, enfatizando-se o tratamento das enfermidades como fim em si (Fleury, 1997), além da própria formação e prática dos profissionais (tecnicista, cartesiana, positivista), inserindo-se, claro, no contexto estrutural bem mais amplo de conformação das relações de ajuda-poder nas políticas sociais.

A referida mudança consistiria em transcender a abordagem curativa, hospitalocêntrica, fragmentada em especialidades, fundada em processos de trabalhos rigidamente divididos, alienados e na hegemonia do médico sobre a equipe de saúde (Campos, 1992; Pires, 1989). Em seu lugar, propõem-se abordagens interdisciplinares, com resgate da integralidade da atenção, centrada na saúde, na comunidade, no fortalecimento das redes solidárias, na participação social e na pessoa como sujeito do seu processo de saúde-doença, seja em nível individual ou coletivo. Por modelo assistencial, entenda-se a forma com que o cuidado em saúde é produzido e se organiza na política de saúde para atender às necessidades da população. Apesar do uso bastante consagrado na literatura de saúde, mantenha-se aqui uma ressalva crítica em relação à expressão modelo, por reduzir politicidades libertárias. Ou seja, modelo pressupõe norma, padrão, rigidez e certo fechamento epistemológico, inibindo um diálogo mais aberto, dinâmico e reconstrutivo com outras formas de produzir e organizar cuidados em saúde, inscritas na diversidade étnica e cultural das pessoas. Para o que vem se discorrendo, este termo se refere apenas a uma determinada forma de organizar o cuidado, em geral vinculada à política de saúde oficial, que por sua vez se insere no modo de produção capitalista. Não significa dizer que seja a única ou a mais importante maneira de cuidar, haja vista a diversidade de saberes, práticas e culturas que compõem a realidade em saúde do país (Weber, 1999).

O modelo assistencial, curativo e hospitalocêntrico envolve a pesada indústria farmacêutica, de equipamentos e insumos tecnológicos para o setor, gerando lucros e acumulação do capital (mercado). Para a manutenção desta forma de produzir cuidados em saúde, que coincide com a reprodução do sistema capitalista, estimula-se o consumo de serviços e equipamentos em saúde, bem como a medicalização dos problemas sociais da população, que geram dividendos para o setor privado. Por outro lado, o mercado de trabalho que se abre ao profissional de saúde exige justamente o que as universidades estão prontamente respondendo, ou seja, um profissional especializado e tecnicamente competente, embora alienado de seu processo de trabalho (cuidar) e politicamente frágil (Pires, 2001). Para além de quaisquer interpretações mais duras sobre a determinação do econômico sobre o social, incompatível com a complexidade da realidade que se vem discutindo (Morin, 2002), é preciso priorizar a tensa correlação de forças que se estabelece na conformação das políticas sociais, capaz tanto de dominação, quanto de sublevação emancipatória. A despeito disso, é inegável a influência do mercado nas sociedades capitalistas, haja vista as extremas desigualdades sociais que se tem de enfrentar em tempos de globalização do capital.

Para a mudança pretendida conseguir ter êxito precisa mexer com o modo como vêm sendo produzidas as ações e serviços de saúde que, se historicamente vêm privilegiando o capital, urge voltar-se para o trabalho. Neste sentido, a alienação do trabalho, categoria marxista que busca apreender a acumulação do capital, figura como discussão relevante para entender como o cuidado à saúde, nas sociedades capitalistas, vem sendo organizado, produzido e acessado de maneira desigual. Apesar de profundamente transformado e contemporizado, o trabalho abstrato (Marx, 1963) segue como categoria atual e relevante para as explicações e análises das políticas sociais capitalistas. Não se pretende, repita-se, limitar a tensa e complexa correlação de forças que se estabelece na conformação da realidade, entendendo-a histórico-estrutural, uma vez que as estruturas se modificam na história (Minayo, 2001; Demo, 2002b). Afinal, a aposta num caminho único, seja fechado ou aberto, não tem dado conta das crises epistemológicas, sociais e econômicas pelas quais se tem passado, nem tampouco dos dilemas éticos da profunda desigualdade em que a humanidade se encontra (Boff, 2003; Dussel, 2002). Tal digressão seria incompatível com uma tese centrada na politicidade do cuidado, em que o cuidar, sendo relação que envolve ajuda e poder, está inscrito na subjetividade das pessoas, inseridas em contextos sócio-históricos complexos.

O que se argumenta é que, apesar de algumas interpretações recolocarem em debate a centralidade do trabalho para a reprodução do capital (Antunes, 2002), haja vista a transmutação e intensa flexibilização dos meios de produção, afirma-se que o trabalho permanece essencial para a acumulação capitalista, embora calcado muito mais na mais-valia relativa, centrada no conhecimento, do que na mais-valia absoluta, calcada na força de trabalho humana. Se era assim no período da revolução industrial estudado por Marx, continua sendo, embora profundamente transmutado, no Império de Hart & Negri (2002). Ainda sobre essa questão, e assumindo uma atualização polêmica do marxismo, Holloway (2003) aborda a alienação do trabalho sob o enfoque da transformação do poder-fazer em poder-sobre, defendendo que o capitalismo se baseia não na propriedade das pessoas, mas na propriedade do fato. O que Marx chama alienação, ou ruptura do homem em relação ao seu objeto de trabalho, Holloway denomina de separação do fato em relação ao fazer. O processo de trabalho é traduzido como fluxo social do fazer, sendo este inerente aos convívios humanos. A análise de Holloway (a despeito de não explicitar como seria possível mudar o mundo sem tomar o poder) consegue aprofundar com pertinência o âmago da contradição capitalista, traduzido pelo aprisionamento do fluxo social do fazer. À medida que a alienação das relações sociais se aprofunda, subjetivizando cada vez mais a coisa e coisificando cada vez mais o sujeito, mais trágico se torna o dilema da mudança, que tende a se apresentar contraditoriamente como urgente e inviável. Diante da iminência do impossível, surge a crítica ou o poder-para (conhecimento), o questionamento que tenta ir além da aparência, traçando as razões mais reveladoras do fenômeno criticado, que teria como objetivo principal resgatar a subjetividade dos sujeitos, recobrando-lhe o que fora alienado.

Diante do desafio da mudança mediada pelo saber, faz-se necessário retornar à politicidade do cuidado, numa tentativa de antever indícios libertários. Cuidar é mais que ato mecanizado, rotinizado e alienado de sentido, faz parte da atividade criativa dos seres, compondo-lhe a estrutura de ser e vir a ser-no-mundo, sendo atitude humana inscrita na esfera vital, subjetiva e cultural das relações sociais. O fazer humano é permeado de cuidado, capaz tanto de oprimir, quanto de libertar. O que Holloway chama de submissão do poder-fazer ao poder-sobre, pode ser traduzido aqui como institucionalização do cuidado (Pires, 2002), significando o aprisionamento do cuidar em normas, rotinas e técnicas que desvirtuam o cuidado de sua existência criadora e reveladora (Heidegger, 2002). A institucionalização do cuidado, tenso em disputas entre o instituinte e o instituído, ou entre a ação dos sujeitos e a normalização, tende a priorizar a tutela em detrimento da autonomia dos sujeitos, inserindo-se na lógica de abstração do trabalho em favor do capital. O cuidado institucionalizado, fragmentado e extorquido de subjetividades reconstrutivas, embora igualmente rico em politicidades subversivas, de certa forma vem sustentando um modelo de atenção à saúde injusto e desigual, sob a forma da ajuda conformada em política de saúde tipicamente capitalista.

Longe do extremismo recorrente em considerar as políticas sociais ou como expediente da acumulação capitalista, ou como direito redistributivo conquistado pelos trabalhadores (e distante também da bipolaridade simplista expressa na hipótese do engodo ou na hipótese da conquista denunciada por Coimbra (1987), na critica que faz às análises marxistas sobre a causação das políticas sociais na sociedade capitalista, apontando o simplismo, a-historicidade e compactação presentes nas mesmas), cabe reafirmar que é na totalidade desses dois processos que as realidades sociais e econômicas se fundam. As políticas sociais sintetizam a contradição entre modo e relações de produção nas sociedades capitalistas, conformando-se historicamente a partir das correlações de forças estabelecidas na arena política (Poulantzas, 1985; Offe, 1991; Faleiros, 2000). Porém, reparando bem, pode-se dizer que, a despeito da ostensiva presença da sociedade civil na esfera pública de decisão em muitos contextos, a correlação de forças entre mercado e bem-comum tem ocorrido com uma forte predominância do capital nas ações legitimadoras do interesse público.

Falar em mudança do modelo assistencial pressupõe alterar a excessiva tecnificação que o cuidado sofre no processo de trabalho dos profissionais em saúde, que, por sua vez, se insere nas correlações de forças que conformam as políticas sociais. Cuidar da saúde das pessoas, afinal, é mais que construir um objeto e intervir tecnicamente sobre ele, é interagir, encontrar, alimentar a alma, considerar, reconstruir-se, querer construir projetos (Ayres, 2001). Na relação estabelecida no ato de cuidar, em que ajuda e poder se confrontam e se superam nas sínteses dos atos produzidos, acredita-se que seja possível emancipar por meio da construção de autonomias de sujeitos, sabendo-as relativas e processuais. Pelo reconhecimento de saberes como meio para forjar poderes adormecidos, acreditando no fomento de projetos capazes de restabelecer corpo e subjetividades pasteurizadas, e apostando no incapturável do viver humano, a ajuda pode emancipar-se da tutela, produzindo efeito de poder mais igualitário. Emancipar pela ajuda pode ser possível pelo triedro emancipatório do cuidar – conhecer para cuidar melhor, cuidar para confrontar, cuidar para emancipar – no qual conhecimento, poder e autonomia se tencionam para libertar o fazer humano das amarras que o sucumbem, potencializando utopias concretizáveis.

Triedro emancipatório do cuidar e processo de trabalho em saúde: indicando dinâmicas disruptivas

A politicidade do cuidado está calcada na reconstrução da autonomia de sujeitos por meio da gestão da ajuda-poder. A defesa dessa concepção se fundamenta pelo que aqui se denomina triedro emancipatório do cuidar: conhecer para cuidar melhor, cuidar para confrontar, cuidar para emancipar (a escolha da metáfora do triedro, meramente ilustrativa, foi inspirada no fato de essa figura geométrica ser formada constitucionalmente por três faces integradas, visualizadas em conjunto, gerando diversas imagens a depender da posição e incidência do jogo de luz e sombras possíveis). Com tal proposição, argumenta-se em favor do conhecimento como forma natural de participar de um mundo socialmente fundado em relações de ajuda-poder. Articulando saber e poder, ou reconhecendo que o cuidado é também uma forma de conhecimento capaz de forjar possibilidades libertárias, pode-se ampliar a capacidade de confronto e reordenamento das assimetrias de poder, emancipando por meio da mesma ajuda que domina e subjuga. Desconstruir progressivamente relações de domínios por meio de ações solidárias implica um resgate crítico da discussão sobre conhecimento e poder, que sempre foi tensa e dialética. Sobre tal questão, Morin (1999) defende a idéia de que o conhecimento tem uma vocação emancipatória, de modo que quanto mais se conhece e se compreende, mais se é capaz de, reconhecendo os limites do verdadeiro, dedicar-se à sua procura e, por meio desse processo incessante de busca, emancipar-se relativamente de certas concepções. Diante do desafio da complexidade do real, urge ao conhecimento refletir-se sobre si mesmo, situando-se e problematizando-se no exercício processual de aproximar-se da realidade.

Se tal conhecimento pode ser visualizado como uma forma de participar da vida – e se o homem é estruturalmente cuidado como modo de ser-no-mundo junto dos entes intramundanos (Heidegger, 2002; Boff, 1999) –, o ato de cuidar também pode ser concebido como forma de conhecer e reinventar cotidianos. Para se cuidar uns dos outros, numa propulsão tanto criativa quanto dominadora, incorpora-se, apreende-se e interpreta-se a realidade. Nesse espírito ampliado, entenda-se conhecimento como dinâmica viva de produzir interpretações, significados, críticas e formas de participar da realidade. Conhecer é reconstruir possibilidades de conviver, atuar e interagir com o planeta, concebendo a disrupção, o confronto e a provisoriedade como cerne. É a maneira como a natureza se mantém diversa, única e incapturável, reconduzindo tempos, espaços e histórias de forma não-linear e irredutível. Precisa-se, então, conhecer para cuidar melhor, cuidar para confrontar, cuidar para emancipar, porque tal politicidade se expressa na intrínseca habilidade de cognição presente na natureza, na cultura e na história da humanidade.

Refletindo a humanidade da humanidade, Morin (2002) diz que a condição do sujeito é seu egocentrismo, entendendo-o dentro de princípios egoístas e altruístas ao mesmo tempo. Além do egocentrismo, considerado central, a subjetividade comporta a afetividade, pois o sujeito está também destinado potencialmente ao amor, à entrega, à amizade, à inveja, à ambição, ao ciúme, ao ódio e à relação com o outro, que se encontra no âmago do eu. Sendo, ao mesmo tempo, fechado e aberto, o egocentrismo do sujeito concebe o outro como estranho e como parte, no sentido altruísta e egoísta presente na relação eu/outro e na conjugação do nós, seres humanos. Assim, o sujeito surge para o mundo na sua relação com o outro, sem o qual o EU desapareceria. É na intersubjetividade que o sujeito se expressa e se define, por meio dela produz-se conivência, comunhão e possibilidade de compreensão. Ao mesmo tempo, a qualidade de sujeito, que garante autonomia do indivíduo, pode ser submetida por essa mesma subjetividade, pelo mesmo âmago que lhe define como ser capaz de ação, produção, auto-eco-organização.

O ser humano é mimético, capaz de histeria, loucura e possessão. Mas também é único, compreensivo, generoso, almejante de paz e tranqüilidade. Essa turbulência hologramática contém um cosmo interior e integra um cosmo superior, origem da própria vida. Esse circuito aberto e intempestivo traduz-se na idéia de homo sapiens-demens (Morin, 2002), capaz de razão e demência, linearidade e ambivalência que, de maneira antagônica e complementar, conforma os sujeitos humanos. Estes são sábios e loucos, a despeito das tentativas do paradigma moderno de planificá-los nos extremos da racionalidade (Bauman, 2001), como se ela não fizesse parte das pulsões e afetividades do homo-sapiens-demens. Para Morin, a afetividade medeia a relação entre o homo sapiens e o homo demens, os componentes racionais e dementes do humano. Tal subjetividade se expressa nas sensibilidades poéticas, estéticas, míticas, religiosas e simbólicas. Exprime-se igualmente nos gestos de cuidado intersubjetivos que os compõem, na ajuda embebida de razão e emoção que tanto pode dignificar, quanto submeter o outro às suas ambições.

As pessoas são seres de cuidado e de destruição, de ajuda e de coerção, exprimem-se pela tensa disputa da loucura e sapiência que as encerra. O ato de cuidar sofre pressões tanto da racionalidade empírica-prático-instrumental, como das pulsões incontroláveis e delinqüentes que integram o homo sapiens-demens. O cuidado é uma mediação criadora entre a racionalidade e a pulsão presente no afeto. Misto de estratégia, ruptura e submissão, o cuidado transita entre a humanidade sapiens e demens, unindo-as numa propulsão reorganizadora de poderes conformados. A politicidade do cuidado contempla o potencial da mudança, da desconstrução reconstrutiva, da ruptura dos interditos e sublevações opressivas, tendo por foco a construção da autonomia, síntese de diversos modos de cuidar. Trata-se de uma autonomia dependente (Morin, 2002), porque não existe autonomia viva que não seja dependente (do meio, da auto-organização, da energia vital, da cultura, da história, da família, da sociedade, do Estado) ou polidependente. A liberdade do sujeito autônomo ocorreria numa situação que comporte, ao mesmo tempo, ordem e desordem, estabilidade e regularidade, certezas a priori para que seja possível escolher e decidir num mínimo de desordem e risco. A autonomia do indivíduo humano se funda na qualidade de sujeito que se auto-afirma ocupando o centro do seu mundo, mas que comporta um Nós (família, espécie, sociedade), uma inscrição comunitária (família, pátria), hereditária, histórica e cultural.

A politicidade do cuidado medeia o confronto das tensões entre razão e demência presente nos sujeitos, podendo inaugurar novas ordenações de poderes. Trata-se de argumentar em prol de uma nova lógica do cuidar, em que se exercite uma ajuda que, sendo poder, tanto subjuga, como é capaz de libertar. Significa desenvolver uma epistemologia dialética do cuidado que ganhe em intensidade subversiva, mesmo sendo relação de dominação. O cuidado aqui proposto contempla toda a ambigüidade e complexidade do sujeito discutida por Morin, fundamentando-se eticamente na emancipação dos sujeitos. A gestão da ajuda-poder para a emancipação de sujeitos envolve conhecer para cuidar melhor, cuidar para confrontar, cuidar para emancipar, pois precisa-se entender mais profunda e dialeticamente a realidade complexa para nela agir e cuidar, em nome de uma ética mais justa, cuidadora, igualitária e libertadora (Dussel, 2002). Ajudando para que os sujeitos conheçam melhor, unindo forma e conteúdo, quantidade e qualidade, razão e afeto, as chances e conquistas cidadãs podem ser alargadas. Tal intervenção cuidadora e subversiva pode fortalecer autonomias e qualificar enfrentamentos, emancipando pela desconstrução progressiva de assimetrias de poder.

Na tentativa de indicar dinâmicas disruptivas para a forma desigual com que serviços e práticas de saúde vêm se organizando no contexto das políticas de saúde do Brasil, o cuidado precisa ser dinamizado como uma prática reconstrutiva da autonomia dos sujeitos, desde que se considere a conjuntura local/global e as correlações de forças para qualquer pretensão de mudança que se queira. Há de se inaugurar novas formas de compreender, interagir e se relacionar com o outro (sabendo-o parte de mim), desenvolvendo ações mais partilhadas de ajuda e poder no campo da saúde. À luz desse debate, considerem-se as premissas do quadro 1 como referências centrais para orientar o processo de trabalho dos profissionais de saúde, no âmbito do SUS.


Assumir a politicidade do cuidado como referência analítica e proposição indutora de mudança significa apostar numa ajuda que priorize a libertação de fazeres, desconstruindo as amarras que o aprisionam e potencializando enfrentamentos de situações opressoras. Significa passar de técnico a agente público de mudança, de administrador de decisões a formulador e indutor das mesmas, de paciente a cidadão, de doente a pessoa humana, capaz tanto de sapiência criativa, quanto demolição destruidora, mas na perfeita imperfeição que conforma o ser humano como vida.

Artigo apresentado em 25/10/2004

Aprovado em 12/01/2005

Versão final apresentada em 23/03/2005

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jun 2007
  • Data do Fascículo
    Dez 2005

Histórico

  • Aceito
    12 Jan 2005
  • Recebido
    25 Out 2004
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