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RESENHAS REVIEWS

Everardo Duarte Nunes

Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas, Unicamp

Minayo MCS. De ferro e flexíveis: marcas do estado empresário e da privatização na subjetividade operária e suas repercussões na saúde. Rio de Janeiro: Garamond, 2004, 458p.

Eu tenho um pedacinho de ferro no meu coração.

(Entrevista de um técnico de equipamentos de mineração)

Para aqueles que acompanham a produção científica de Cecília Minayo e são seus admiradores, este livro reserva enormes surpresas e mais uma vez ficamos seduzidos pela sua incomparável capacidade de pesquisar e narrar a nossa realidade social. Nele a socióloga, antropóloga e humanista estão corporificadas integralmente. Figura das mais expressivas e importante das ciências sociais em saúde, a ela, certamente, aplica-se a idéia hegeliana de que a biografia tem como pano de fundo o mundo histórico em que o indivíduo se integra. A sua obra e o seu percurso acadêmico e profissional me encaminham para esse entendimento. Em toda a sua carreira de pesquisadora, professora e atuante em diversos setores administrativos e técnico-científicos, sua presença foi sempre marcada por uma preocupação: integrar conhecimento e prática social. E isso, sem dúvida, fez com que o apresentador do livro (Ari Roitman) o incluísse dentre as obras que contribuem para a "compreensão da identidade nacional".

Muitos estudos ilustram a temática da identidade nacional na sociologia brasileira, mas há um que particularmente gostaria de mencionar; trata-se de Os parceiros do rio bonito, de Antônio Cândido, ao lado do qual eu coloco este trabalho de Cecília, assim como o que lhe deu origem (Os homens de ferro). Escritos em épocas diferentes, Os parceiros foi apresentado como tese em 1954 e publicado em 1964, e nele o autor analisa a "cultura caipira"; os de Cecília pesquisam a "cultura operária" nas décadas de 1980 e 1990; realizam estudos em locais distintos, o primeiro em Bofete (interior de São Paulo), o segundo, Itabira (Minas Gerais), mas apresentam muitos pontos em comum, quando vistos como exemplos de investigação, no que há de melhor em termos de metodologia e de integração da sociologia, antropologia, história e economia. Além desse aspecto, ambos se debruçam apaixonadamente sobre seus temas e com rara sensibilidade narram as diferentes experiências laborais – a do campo e a do complexo industrial – nas quais sobressaem a vida e a experiência de trabalhadores expostos às agruras dos seus trabalhos.

Neste livro, Cecília acompanha a vida dos mineradores de ferro da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) desde 1980 até a atualidade, sendo que o estudo cobre toda a história da Companhia criada pelo Governo Federal, em 1º de junho de 1942, e privatizada em 7 de maio de 1997. A CVRV se tornaria a maior mineradora diversificada das Américas e a maior prestadora de serviços de logística do Brasil, sendo um dos mais importantes e produtivos grupos empresariais brasileiros, com 29.349 empregados e clientes em mais de 30 países. Notícias recentes apontam que a CVRD lucrou R$ 5,094 bilhões no primeiro semestre de 2005, o que praticamente equivale à soma dos resultados obtidos pelos Bancos Bradesco e Itaú, que juntos lucraram R$ 5,096 bilhões (Folha de S. Paulo, 11/08/05, p. B1). É importante a referência a essas datas, porque o estudo de Cecília apresenta o processo de transformação industrial da Companhia que se estende de um sistema produtivo taylorista-fordista para um tayotista-pós-fordista. Além disso, trata-se de um processo de produção voltado exclusivamente para a exportação, o que confere características especiais aos seus trabalhadores, como também o fato de ser mineração a céu aberto. Ao contextualizar o seu trabalho, a autora situa não somente a trajetória da investigação, como também as características específicas da Companhia, e o cenário da história. O cenário é Itabira, que tem sua história vinculada à mineração desde a colonização, e neste livro é parte do relato, e assim o estudo não se refere somente à Companhia, ou aos trabalhadores, mas à própria cidade – uma "aldeia industrial" na expressão de Weber, mas que Cecília prefere denominar "uma cidade do trabalho", pois quase tudo na esfera da reprodução social gira em torno dos projetos, dos tempos, e da cultura da CVRD (p. 55).

É difícil comentar este trabalho sem se reportar às próprias idéias expostas pela autora, pela clareza e precisão que somente uma pesquisadora com as qualidades de Cecília é capaz de elaborar. Por exemplo, quando escreve que não pretendi esgotar a compreensão dos fatos, pois estou convencida de que a realidade social, densa, obscura e difícil de se deixar penetrar, é muito mais rica e complexa do que qualquer compreensão que dela eu possa ter pretendido (p. 75). Claro que o rigor de pesquisadora é que impõe a Cecília esta excessiva modéstia sobre o próprio trabalho, que apresenta como uma etnografia – reconstruindo a experiência dos mineradores de uma determinada localidade –, mas que extrapola esses limites ao cotejar as análises com a literatura nacional e internacional que trata do desenvolvimento da classe operária.

Dialeticamente, a análise percorre as etapas de desenvolvimento da Companhia e a formação de uma identidade operária, gravada na memória e nos corpos desses mineradores, em suas sinuosas trajetórias de trabalho (p. 95), que viam na Companhia a grande possibilitadora de suas modestas pretensões. Nesse primeiro momento, quando a Companhia se estabelece, muitos são os aspectos que merecem menção, especialmente os relacionados ao cotidiano do trabalho, mas destaco o componente ideológico – a preservação das riquezas minerais num quadro nacionalista de contraponto ao capital estrangeiro e da industrialização como sinônimo de desenvolvimento social e progresso – quando o entrevistado diz: Nós tínhamos que cuidar da nossa parte, para o bem da Companhia e do Brasil (pp. 112-113). Cada momento deste trabalho é uma revelação em que a narrativa, despojada de hermetismos teóricos, expõe relatos carregados de emoção, acompanhando três gerações de trabalhadores. Nesse longo processo de seis décadas, assiste-se não apenas à transformação da forma de produção trazida pela mecanização, mas a disciplinarização dos mineradores da Vale, tornando-os ágeis, obedientes, produtivos e hierarquicamente organizados (p. 148), identidade que se completa com o processo de automação.

A densidade dos 12 capítulos que constituem o núcleo narrativo desta saga de operários, com uma enorme quantidade de informações que tecem um enredo centrado nas trajetórias de um trabalho que acompanhou as transformações das relações sociais e econômicas da produção, é de difícil síntese. No parágrafo acima aponto os três momentos que estão presentes nesse movimento de construção da economia capitalista e que se destacam nas próprias expressões desses operários: a "época do muque", de 1945-1951, quando o trabalho é essencialmente manual e que começa a se reduzir em 1952, início da mecanização e também da criação de formas de inculcação de uma cultura organizacional corporativa, nacionalista e colaborativa (p. 88) e que a autora acertadamente denomina de "cultura de empresa" para distinguir da "cultura operária". O terceiro momento – o da automação que se fez acompanhar de maior produtividade, na melhor qualificação de sua força de trabalho – trouxe, segundo os operários e técnicos, também um notável desenvolvimento à empresa. Como diz o gerente geral, Era uma empresa muito boa, privatizada melhorou ainda mais (p. 316). Para Cecília, essa fase de reestruturação produtiva "contém algumas verdades e muitos mitos". Transcrevo duas passagens que mostram a posição da autora diante desse processo. Em primeiro lugar, como Cecília entende a reestruturação produtiva, no quadro das profundas transformações objetivas ocorridas no mundo do trabalho, mas que se imbricam às mudanças subjetivas: À medida que realizei esta pesquisa, pude concluir que não há apenas um dispositivo poderoso responsável pela abrupta opção de um cenário alternativo na mineração da CVRD. Há, sim, um conjunto sistemático de chaves acionadas concomitantemente para a abertura progressiva de um novo mundo que surge (pp. 316-317), no processo de acumulação capitalista. De outro lado, aponta que a "ideologização" do processo de mudança necessita ser visto tanto sob a perspectiva do "protagonismo dos empresários", de um lado, e de outro, a dos operários como atores que encontram formas de se proteger, de criticar e de defender os seus interesses (p. 360). No processo mais amplo de situar o operário e seu contexto, Cecília não se limita a trabalhar a subjetividade operária, mas a objetiva no "chão da mina", ela estende sua análise a todos os envolvidos no processo produtivo.

Nos capítulos finais, Cecília retoma a tese que defende ao longo do livro, a de que as relações de produção e reprodução somente podem ser entendidas como totalidade na qual estão imbricadas a vida social, política e econômica. Nessa totalidade, o mundo da mina é criado e recriado. Livro que é uma lição de sociologia, nasce como um exemplo de pesquisa e de texto. Nele não há ilustrações; as palavras são mais fortes que as imagens, aquelas que aprendemos a admirar nas fotos de trabalhadores clicadas por Salgado. Mas, apesar disso, a minha imagem final destes comentários recorre a uma poesia que fala de uma foto. Há muitos anos, em Confidência do itabirano, Carlos Drummond de Andrade terminava o seu poema dizendo com muita tristeza: Hoje sou funcionário público. Itabira é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói! Discordo do poeta. Itabira é muito mais que isso, e Cecília, com o seu trabalho, tirou a fotografia da parede e tornou a cidade parte importante da nossa História.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2005
  • Data do Fascículo
    Dez 2005
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