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O debate sobre a regulamentação do ato médico no Brasil

The debate about the regulation of the medical act in Brazil

Resumos

Este artigo discute a demanda pela regulamentação do "ato médico" no Brasil à luz do referencial teórico da Sociologia das profissões. Apresenta e analisa os principais argumentos trazidos pelas corporações ao debate político a partir de documentos oficiais e entrevistas dos principais atores, entendendo o processo como legítima busca de defesa das prerrogativas e privilégios corporativos. Reconhecendo que a disputa está relacionada à construção das identidades profissionais, defende a regulamentação das profissões da área da saúde respeitando-se suas competências e habilidades teóricas e práticas. Conclui enfatizando que o papel do Estado na regulamentação das profissões precisa considerar os interesses da sociedade diante da intensa divisão do trabalho ocorrida na área da saúde, respeitando-se as competências exclusivas da medicina e reconhecendo as das novas profissões da área, como fisioterapia, fonoaudiologia, psicologia e outras.

Sociologia das profissões; Identidade profissional; Profissões de saúde


This article discusses the demand for the regulation of the "medical act" in Brazil considering the theoretical framework adopted by the sociology of the professions. It presents and analyzes the main arguments of the health corporations based in official documents and main actors' interviews. The process is understood as a legitimate action of defense of the prerogatives and corporate privileges. Recognizing that the dispute is related to the construction of the professional identities it defends that the regulation of the health professions must respect their competences and theoretical and practical abilities. It concludes emphasizing that the role of the State in the regulation of the professions must consider the interests of the society in face of the intense technical division of the work that happened in the health sector. This means to respect the exclusive competences of the medicine and recognize those of the new professions of the area, such as physiotherapy, phonoaudiology, psychology and others.

Sociology of the professions; Professional identities; Health professions


DEBATE DEBATE

O debate sobre a regulamentação do ato médico no Brasil

The debate about the regulation of the medical act in Brazil

Regina Guedes Moreira GuimarãesI; Sérgio RegoII

IDepartamento de Saúde da Comunidade, IB/CCBS, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Unirio. Rua frei Caneca 94, Centro, 20211-040, Rio de Janeiro RJ. rgguima@hotmail.com

IIEscola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fiocruz

RESUMO

Este artigo discute a demanda pela regulamentação do "ato médico" no Brasil à luz do referencial teórico da Sociologia das profissões. Apresenta e analisa os principais argumentos trazidos pelas corporações ao debate político a partir de documentos oficiais e entrevistas dos principais atores, entendendo o processo como legítima busca de defesa das prerrogativas e privilégios corporativos. Reconhecendo que a disputa está relacionada à construção das identidades profissionais, defende a regulamentação das profissões da área da saúde respeitando-se suas competências e habilidades teóricas e práticas. Conclui enfatizando que o papel do Estado na regulamentação das profissões precisa considerar os interesses da sociedade diante da intensa divisão do trabalho ocorrida na área da saúde, respeitando-se as competências exclusivas da medicina e reconhecendo as das novas profissões da área, como fisioterapia, fonoaudiologia, psicologia e outras.

Palavras-chave: Sociologia das profissões, Identidade profissional, Profissões de saúde

ABSTRACT

This article discusses the demand for the regulation of the "medical act" in Brazil considering the theoretical framework adopted by the sociology of the professions. It presents and analyzes the main arguments of the health corporations based in official documents and main actors' interviews. The process is understood as a legitimate action of defense of the prerogatives and corporate privileges. Recognizing that the dispute is related to the construction of the professional identities it defends that the regulation of the health professions must respect their competences and theoretical and practical abilities. It concludes emphasizing that the role of the State in the regulation of the professions must consider the interests of the society in face of the intense technical division of the work that happened in the health sector. This means to respect the exclusive competences of the medicine and recognize those of the new professions of the area, such as physiotherapy, phonoaudiology, psychology and others.

Key words: Sociology of the professions, Professional identities, Health professions

As modernas sociedades ocidentais se desenvolveram com a idéia de que profissional é um indivíduo possuidor de um saber e de um fazer que não apenas resolve problemas concretos relacionados com o cotidiano de seus membros, como também o faz defendendo primariamente os interesses de seus clientes. Desta forma, em troca da afirmação desses interesses primários, a sociedade, por intermédio do Estado, confere a esses grupamentos profissionais a exclusividade da prática em determinadas atividades e delega às corporações a autoridade para se auto-regulamentar. O poder de auto-regulamentação é uma das maiores ambições dos grupos ocupacionais, até por pressupor a capacidade de definir os seus próprios limites profissionais e, por conseguinte, a delimitação do campo profissional.

Não é por outra razão que se pode verificar nos materiais promocionais dos organismos profissionais um reflexo da competição entre categorias profissionais: "Fisioterapia com fisioterapeuta", "Administração com administradores", "Não construa sem consultar um arquiteto" e "Não assine nada sem consultar um advogado", reflexo de suas disputas com médicos fisiatras e engenheiros civis e de afirmação da relevância social de suas competências específicas.

O desejo de se auto-regulamentar também esteve expresso nos recentes embates no campo do jornalismo: desde a luta pela exigência do diploma universitário para o exercício à tentativa (até agora malsucedida) de criar um órgão de registro e controle do exercício profissional existente nas demais profissões de nível superior. Esse debate não tem uma relação mais profunda com a discussão sobre a "liberdade de informação", mas sobre como se dão (ou se darão ou dariam) as relações entre capital e trabalho neste início de século 21 neste campo.

Como veremos ao final deste artigo, defendemos a idéia de que um dos panos de fundo dessas discussões atuais sobre profissões é o ataque, pelos representantes do capital, às profissões em geral e às organizações profissionais em particular. A derrota da proposta do socialismo real e a atual hegemonia do chamado neoliberalismo marcam um declínio da capacidade de intervenção e de luta das organizações dos trabalhadores. O que hoje se configura politicamente mais atuante (embora de efetividade ainda pouco evidente) é o movimento antiglobalização, cujos atores mais relevantes estão reunidos em organizações não-governamentais e não em organizações típicas de trabalhadores.

No caso do campo da saúde, entendemos que está ocorrendo um processo de "repactuação" legal, como um resultado da intensa divisão do trabalho que aí ocorreu. Este não seria um fenômeno apenas brasileiro, mas que também é observado, por exemplo, nos Estados Unidos, como demonstra o artigo de Fink (1997). A novidade estaria no enfraquecimento das organizações corporativas, enfraquecimento que é favorecido com a fragmentação das profissões.

No Brasil, uma consulta na página da Câmara Federal, na Internet, aponta a existência de 86 projetos de lei em tramitação, que tratam da regulamentação do exercício de profissões, sendo que 24 projetos são considerados inativos. Entre esses projetos, está sendo proposta a concessão do poder de auto-regulamentação (expressa pela proposta de criação de Conselhos Federal e Estaduais) a 12 corporações de profissionais: a) com formação em curso superior: os profissionais de Educação Física, analistas de sistemas, turismólogos, psicomotricistas, músicos e psicopedagogos; b) sem formação em curso superior: técnicos agrícolas, instrumentadores cirúrgicos, despachantes, árbitros de futebol, professores de ioga e técnicos de segurança de trabalho.

As disputas, entretanto, não se dão apenas entre as corporações. É claro que quando a corporação A ou B defende seu monopólio de prática ela está, de fato, defendendo um monopólio econômico sobre uma prática. Embora o panorama aqui apresentado sugira que o mercado de trabalho seja fortemente relacionado com as profissões, existem sinais de que o mundo profissional está em crise. Aqui no Brasil, por exemplo, Machado (1996) discutiu amplamente esta crise e as transformações relacionadas com o status profissional das ocupações na saúde, em particular os médicos, em decorrência de mudanças na forma de inserção no mercado de trabalho (incluindo o assalariamento), diminuição relativa da autonomia profissional, aumento da procura pelas instâncias judiciais comuns para resolver as contendas entre profissionais e clientes, etc.

Assim, é neste contexto de intensa luta pela delimitação dos campos de prática exclusiva das profissões e de "repactuação" desses campos de competência com a sociedade que procuraremos discutir os recentes embates entre a corporação médica e as demais corporações da área da saúde em torno da delimitação do chamado "ato médico". Esta "repactuação" tornou-se indispensável pela atual complexidade da divisão horizontal e vertical do trabalho (social e técnica) no campo da saúde, associada com as mudanças decorrentes da crescente incorporação de recursos de alta tecnologia no campo, redefinindo o escopo de atuação dos diversos atores em questão. Nossa proposta neste artigo é a de buscar entender os movimentos que as corporações estão fazendo à luz da sociologia das profissões, tendo como eixo temático a construção da identidade profissional.

Profissão e profissionalização

O tipo de ocupação que mais freqüentemente é chamada em estudos sociológicos de profissão é uma ocupação de tempo integral, que está estreitamente ligada à criação de escolas de treinamento, de associação profissional, de auto-regulamentação e de adoção de um código de ética. Uma profissão, para ser considerada como tal, precisa, ao longo do tempo, consolidar um corpo esotérico de conhecimento e ser orientada para um ideal de serviços, isto é, servir primariamente aos interesses da comunidade (Machado, 1995).

Segundo Goode (1969):

1) Idealmente, o conhecimento e habilidades devem ser abstratos e organizados em um corpo codificado de princípios;

2) O conhecimento deve ser aplicável, (...), a problemas concretos da vida;

3) A sociedade ou seus membros mais relevantes devem acreditar que o conhecimento pode, atualmente, resolvê-los (...);

4) Membros da sociedade devem também aceitar como adequado que esses problemas não sejam mais encaminhados para outros grupos ocupacionais, já que este grupo ocupacional é que detém o conhecimento e não os outros;

5) A própria profissão deve ajudar a criar, organizar e transmitir o conhecimento;

6) A profissão deve ser aceita como árbitro final em qualquer disputa sobre a validade de qualquer solução técnica envolvendo área de sua suposta competência;

7) A quantidade do conhecimento e habilidades e a dificuldade em adquiri-los devem ser tão grandes que os membros da sociedade vejam a profissão como possuindo um certo grau de mistério que não é acessível aos homens comuns por seus próprios esforços ou mesmo sem ajuda.

Os estudos sobre como uma atividade ocupacional adquiriu status de profissão nas sociedades modernas deram um determinado desenho ao processo de profissionalização, caracterizado pela estruturação de privilégios profissionais, que depois foram questionados pelas profissões que se seguiram, quando da sua luta corporativa. Nesse processo, as universidades representaram uma instância jurídico-legal, onde se transmite o conhecimento formal, o corpo esotérico de conhecimento.

Para Wilensky (1970), a profissionalização de uma ocupação se dá por meio de um processo de oito etapas que inclui: a ocupação tornar-se uma atividade de tempo integral; a criação de um sistema de ensino formal com a distinção entre os que estão mais dedicados à prática ou ao ensino profissional; a criação de uma associação profissional nacional; intensa disputa política interna contra os que se dedicam à ocupação há mais tempo (que resistem à atualização do trabalho); e externa (contra as ocupações com atividades semelhantes); e a criação de um código de ética para reduzir a competição interna e para proteger os clientes e enfatizar o ideal de serviço. Com a redefinição das tarefas de sua competência, o trabalho menos qualificado fica delegado a subordinados.

Assim, como nas demais sociedades ocidentais e também no Brasil, as profissões reconhecidas como as mais antigas são a medicina e a advocacia e seus processos de profissionalização são modelares para as demais ocupações. Santos (1995) descreveu o processo de profissionalização da medicina no Brasil e é correto afirmar que, embora mais lentamente, ele tenha acompanhado o processo de industrialização. Somente a partir da década de 1930, é que ele se acelera, tendo, também, a diversificação do mercado de trabalho, como uma das conseqüências. Este fenômeno é facilmente compreendido, dada a estrita relação entre o desenvolvimento econômico e o aumento de sua complexidade e o desenvolvimento das formas como as ocupações se organizam na inserção no mercado.

Muitas ocupações, que surgiram a partir da divisão do trabalho, têm buscado sua profissionalização na formação de nível superior. Isso ocorreu de tal modo que, por exemplo, no campo da saúde o Conselho Nacional de Saúde (CNS, 2004) reconheceu, em 1997, os 13 profissionais de saúde de nível superior, a saber: os assistentes sociais, os biólogos, os profissionais de Educação Física, os enfermeiros, os farmacêuticos, os fisioterapeutas, os fonoaudiólogos, os médicos, os médicos veterinários, os nutricionistas, os odontólogos, os psicólogos e os terapeutas ocupacionais. Com referência aos assistentes sociais, biólogos e médicos veterinários, a caracterização como profissionais de saúde deve ater-se a dispositivos legais do Ministério da Educação, do Ministério do Trabalho e dos Conselhos de Classe dessas categorias.

No entanto, a expansão das escolas superiores de formação profissional não ocorreu como expressão de uma política articulada para os setores educacional e profissional, que pudesse responder adequadamente à relação entre o contingente de formados e o mercado, e sua distribuição no país. Este descompasso implicou o aumento da concorrência no mercado de trabalho nos centros urbanos, contribuindo para o achatamento salarial, emergindo o profissional assalariado, até mesmo em profissões tradicionais como a medicina (Marinho, 1986). Dentre os possíveis resultados desta [falta de] política, associada com a intensa divisão do trabalho, estão a redução dos salários e o aumento das disputas entre profissionais pelo campo de prática.

Não desejamos parecer estar apregoando o fim do assalariamento profissional ou especulando sobre como a vida seria se não fosse do jeito que é. Queremos destacar que a oferta excessiva de força de trabalho qualificada na área da saúde levou, necessariamente, à diminuição dos rendimentos, particularmente em países como o Brasil, onde o Estado tem uma grande importância como empregador. Embora constitucionalmente a saúde seja uma obrigação do Estado, esta obrigação não repercute no oferecimento de remuneração salarial coerente com a importância da retórica discursiva. Trabalhadores de outros organismos de Estado têm uma remuneração muitas vezes superior a dos trabalhadores mais qualificados na área da saúde.

Particularmente, a ampla oferta de profissionais de saúde assegurou, sim, uma diminuição proporcional nos salários oferecidos. Mesmo para os médicos, que sempre foram o componente com maior prestígio social e o mais numeroso da força de trabalho qualificada. Este parece ser um segundo degrau na deterioração da relação entre médicos e o Estado. O primeiro seria a aprovação, no início da década de 1960, da possibilidade de os médicos terem duas matrículas – dois vínculos – com o Estado, em vez de terem obtido um aumento salarial, (mas esta é outra história).

Se, durante as décadas de 1970 e 1980, era comum a denúncia do modelo de assistência à saúde (criado em nosso país, baseado na presença do médico e do atendente de enfermagem e enfocado, também, na luta pelo reconhecimento da importância dos saberes profissionais das demais profissões de saúde), o grande crescimento do número de faculdades para graduação de outros profissionais de saúde, especialmente nas décadas de 1980 e de 1990, fez com que sua presença nas equipes se ampliasse sobremaneira (Machado et al., 1990).

Nesta época, as grandes mudanças ocorridas na organização do sistema (com a transferência da assistência médica para o âmbito do Ministério da Saúde, a criação do Sistema Unificado Descentralizado de Saúde e a do Sistema Único de Saúde) também ocorreram em relação às políticas de recursos humanos setoriais. Destas, ainda pouco se discute sobre a implementação da isonomia salarial por nível de escolaridade. A implementação desta política desconsiderou o princípio de que a composição do valor da remuneração salarial é diretamente relacionada com o custo de reprodução daquela força de trabalho. Logo, quanto maior a especialização, quanto maior o tempo de formação, maior deveria ser a remuneração.

Um fenômeno que pode ser considerado uma possível conseqüência deste processo foi o afastamento da maioria dos médicos dos serviços assistenciais públicos de saúde, uma vez que estes profissionais contavam com alternativas que traziam maior recompensa financeira às suas atividades. Esta afirmação, entretanto, não significa que ignoremos ou minimizemos a complexidade dessa questão ou o papel desempenhado pela crise de financiamento do setor, mas sim o nosso desejo de destacar um fator muito pouco considerado e que julgamos estratégico na compreensão do fenômeno e do papel que os profissionais vão desempenhar a partir de então.

Em seguida ao início dos anos 90, observou-se um grande contingente de profissionais mudar sua concepção sobre empregos na rede pública de saúde: de um emprego desejado pela maioria dos médicos até o final da década de 1980, passou a ser encarado como um emprego temporário, pronto para ser descartado logo que uma nova e melhor alternativa de remuneração surgisse. Alguns especialistas, como anestesistas, neurocirurgiões e ortopedistas, buscaram o caminho do afastamento do sistema como empregados, optando pela venda de seus serviços, em uma alternativa bem mais lucrativa. Isso foi tão eficaz que os anestesistas a estenderam para os serviços privados do sistema de pré-pagamento.

Se a relação desses profissionais com o setor público se deteriorou a tal ponto, em parte pela multiplicação da oferta, a relação com o setor privado não pareceu melhor: do vínculo como profissional autônomo (que apenas aparentemente preservava sua condição "liberal"), passou para o vínculo de profissional credenciado (seja com as empresas de pré-pagamento, seja com o próprio setor público) e para o de empregado direto, até chegar à despersonalização, na qual o indivíduo deixa de ser pessoa física e passa a ser pessoa jurídica, transformando-se em uma empresa.

No Brasil, para as empresas de assistência à saúde privadas, baseadas no pré-pagamento, corporações de profissionais fortes significam dificuldades maiores nas negociações das remunerações. Fato que fica evidente para quem acompanha as negociações entre as organizações representativas dos médicos com essas empresas na implantação de uma tabela de remuneração profissional.

Com o objetivo de reduzir custos, a forma de pagamento dos serviços vem sendo francamente questionada e já estão sendo testadas alternativas há bem mais de uma década nos EUA. Referimo-nos aos Diagnostic related groups: um sistema para categorizar pacientes, baseado em seus diagnósticos primários e secundários, procedimentos primários e secundários, idade e duração da internação. É, então, determinado um custo uniforme para cada categoria (Pittsburg State University, 2005). Salienta-se que, neste processo, desaparecem da remuneração os trabalhos específicos das diversas corporações profissionais, incluídos na condição genérica da assistência. Se por um lado este processo é positivo, dando ênfase à assistência global do paciente, por outra, enfraquece sobremaneira a capacidade das corporações defenderem seus ganhos salariais e, definitivamente, perde-se de vista boa parte da identidade profissional dos envolvidos.

Se, antes da intensa divisão de trabalho na saúde, a auto-regulação profissional era suficiente para dirimir dúvidas sobre os campos profissionais, hoje, o recorrer à justiça é a regra, criando-se assim a demanda por legislações específicas sobre os temas. Assim, para afirmar seu campo de atuação, delimitando-o ou ampliando-o, as corporações profissionais precisam sensibilizar diferentes segmentos da sociedade e, sobretudo, estruturar argumentos consistentes que embasem a defesa para os projetos de lei que pleiteiam (um deles, a regulamentação de suas profissões) ou argumentos que impeçam a aprovação de leis que contrariem os interesses corporativos.

Como exemplo, a definição em lei dos atos profissionais das diferentes categorias tem representado, nos últimos trinta anos, no Brasil, uma das frentes de luta pelo monopólio profissional. Entendemos ato profissional como uma ação que a legislação regulamentadora de uma profissão atribui aos agentes de uma categoria profissional, seja ele exclusivo ou compartilhado com outras profissões e que deva ser realizado por pessoa habilitada, no exercício legal de sua profissão. A definição jurídica do ato profissional é um dos aspectos que consolida a identidade profissional, que é, por sua vez, socialmente construída, ao longo de um período histórico suficiente para determinar que seus elementos constitutivos se incluam na consciência social.

No entanto, a consideração do ato profissional no âmbito jurídico é uma inflexão recente no processo de discussão das competências profissionais, já que, antes, apenas a formação bastava para distinguir seus saberes respectivos. Com isso, a disputa pelo monopólio da prática da medicina ficou mais evidente com a intensa divisão do trabalho nas sociedades modernas e com o surgimento de novas ocupações nesse campo de conhecimento. Foi nesse contexto que surgiu a necessidade sentida pela categoria médica de regulamentar o ato médico.

O projeto de lei sobre o ato médico e as disputas profissionais

O debate sobre a necessidade de regulamentação do ato médico tem o seu marco em 1989, quando o deputado federal Pedro Cañedo apresenta um projeto de lei que atribuía ao Conselho Federal de Medicina (CFM) a definição do ato médico. Não havendo, porém, apoio da entidade, o projeto foi retirado por seu autor. Outras iniciativas, no âmbito do CFM, foram frustradas e a discussão continuou nos Conselhos Regionais, nos anos seguintes, tendo à frente o Rio de Janeiro e Santa Catarina (Cremerj, 1998).

As discussões se seguiram até que, em março de 1998, o Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (Cremerj) definiu o ato médico, com a resolução nº. 121/98, enumerando critérios e exigências para o exercício da profissão médica. Diz no Art. 1º: Ato médico é a ação desenvolvida visando à prevenção, ao diagnóstico, tratamento e à reabilitação das alterações que possam comprometer a saúde física e psíquica do ser humano (Cremerj, 1998).

Em seguida, o CFM, em 18 de dezembro de 1998, aprova o novo Estatuto para os Conselhos de Medicina. O Art. 1º diz: O Conselho Federal de Medicina e os Conselhos Regionais de Medicina são órgãos supervisores, normatizadores, disciplinadores, fiscalizadores e julgadores da atividade profissional médica em todo o território nacional. E, como consta no Art. 30, inciso IX, é a ele atribuído "definir e normatizar o ato médico" (CFM, fev./1999).

Por conseguinte, em outubro de 2001, o CFM cria a resolução 1.627/2001, que define o ato profissional de médico como todo o procedimento técnico-profissional praticado por médico legalmente habilitado e dirigido para a prevenção primária, secundária e terciária. Esta resolução refere, também, que as atividades que envolvam procedimentos diagnósticos de enfermidades ou impliquem indicação terapêutica são privativas dos médicos, sendo que as outras atividades podem ser atos profissionais compartilhados com outros profissionais da área de saúde, dentro dos limites impostos pela legislação pertinente, excluindo o exercício da odontologia, nos termos da lei. Estabeleceram-se, assim, as bases que construíram, posteriormente, o Projeto de Lei do Ato Médico PLS 025/02.

Os esforços da categoria médica não foram suficientes para fazer avançar o referido projeto no Congresso Nacional. Dessa forma, a Comissão Nacional em Defesa do Ato Médico, constituída por representantes de suas diversas organizações, passa a trabalhar em várias estratégias. Por exemplo, em outubro de 2003, o CFM distribuiu ao Congresso Nacional o projeto de lei nº 25, de 2002 – PLS 025/02, na forma de cartilha, divulgando-a amplamente em outros espaços, sustentando que a definição do campo de trabalho é uma necessidade elementar na institucionalização de uma profissão e estabelecendo uma identidade médica legalmente instituída que assegure sua atividade profissional e o melhor atendimento ao indivíduo e à coletividade (CFM, 2003). Mas do que trata o Projeto propriamente dito?

A resolução do CFM, que deu origem ao Projeto, era curta e objetiva: definia como ato privativo do médico toda e qualquer atividade que envolvesse a execução "de procedimentos diagnósticos e terapêuticos", ressalvadas aquelas praticadas pela odontologia, que eram excluídas da definição, no seu artigo segundo. Dessa forma, em uma resolução de seu órgão auto-regulamentador, subordinar-se-iam à profissão médica todas as demais profissões de saúde e seria vedado que qualquer outro profissional pudesse fazer diagnóstico ou alguma ação terapêutica. Parece claro que o modelo depreendido dessa proposta regulamentadora era o modelo que considerava as demais profissões de saúde atividades paramédicas, em um estágio pré-profissional, ou seja, de apoio ou suporte à medicina.

Já, o projeto substitutivo do senador Tião Viana (2002), embora contenha o mesmo número de artigos (cinco), consegue ser mais genérico. O parágrafo único do artigo primeiro dispõe que são atos privativos de médico a formulação do diagnóstico médico e a prescrição terapêutica das doenças, respeitado o livre exercício das profissões de saúde nos termos de suas legislações específicas. Assim, o senador consegue propor algo que não resolverá os conflitos existentes entre as profissões, pois se exime de definir o que seria diagnóstico médico em contraposição, por exemplo, ao diagnóstico fonoaudiológico ou fisioterapêutico. O projeto substitutivo aparentemente deixa aberta a porta para que cada profissão tenha seu exercício respeitado "nos termos de sua legislação específica". Mas, essa não parece ser a interpretação da maioria dos opositores do projeto. Por que, então, a polêmica persiste?

As demais categorias profissionais da saúde se têm posicionado contrariamente ao projeto de lei para definição do ato médico, refutando-o contundentemente. Para alguns, o projeto de lei é considerado um retrocesso no campo da saúde, ao pretender centralizar na mão dos médicos todas as atividades relativas ao diagnóstico de enfermidade e ao tratamento da saúde, excluindo os avanços na relação interdisciplinar de profissionais de várias áreas que podem conjunta e coletivamente atuar e se responsabilizar pelo trabalho de tratamento, prevenção e promoção da saúde (Redepsi, 2003).

Ricardo Moretzsohn, presidente do Conselho Federal de Psicologia e Coordenador Nacional da Comissão Contra o Projeto de Lei do Ato Médico, por exemplo, afirma que "da forma como o projeto se encontra, ele limita ao médico a prescrição terapêutica" (Moretzsohn, 2004). Também, tem-se argumentado, contrariamente, que o seu conteúdo apresenta uma nefasta proposta de restringir aos médicos procedimentos já garantidos por lei a outros profissionais, ofendendo a Constituição Federal, de 1988, que determina a liberdade de ação profissional quando atendidas as qualificações que a lei estabelecer, ferindo a autonomia das profissões de saúde, uma condição básica para o atendimento integral à saúde do cidadão (Andrade, 2003).

É interessante notar algumas das áreas nas quais os conflitos são mais evidentes: nutricionistas e nutrólogos e endocrinologistas; fisioterapeutas, médicos fisiatras, profissionais da educação física e médicos especialistas em medicina esportiva; psicólogos, psiquiatras e toda a ampla variedade de psicoterapeutas; fonoaudiólogos e otorrinolaringologistas. São áreas em que, de fato, verifica-se um conflito de competências e de limites. Os saberes são, em muitos casos, compartilhados, não fosse a origem comum. Mas por que a disputa com essas novas profissões é tão intensa, mas não o é com a odontologia – que também compartilha o tronco comum das ciências biológicas? Talvez a única explicação para a falta de conflito no Brasil está no fato de esta separação já se ter dado há mais de um século, mas a questão é essencialmente a mesma.

Na tentativa de identificarmos os pontos de conflito, é interessante notar que a enfermagem não possui, ao menos de forma evidente, um campo do saber sobre o qual possa reclamar exclusividade. Poderia ser no campo da enfermagem obstétrica (como fica claro na disputa, ora em curso, no Rio de Janeiro), mas não é. A enfermagem parece reclamar uma autoridade profissional difusa que se confunde com a medicina, em sentido mais amplo.

A resolução 271/2001, de julho de 2002, do Cofen define que é ação de enfermagem (quando praticada pelo enfermeiro, como integrante da equipe de saúde) a prescrição de medicamentos, tendo autonomia na escolha e posologia dos mesmos, podendo solicitar exames de rotina e complementares no âmbito de Programas de Saúde. Inicialmente, houve a contestação judicial por parte das organizações médicas, com a obtenção de uma liminar para suspender o efeito dessa medida, que foi cassada sob a alegação de que esta prática faz parte de Programas do Ministério da Saúde – o que é fato.

Esta postulação vem encontrando algum grau de respaldo legal, uma vez que é fundamentada na utilização, pelo Ministério da Saúde, desses profissionais na implantação do Programa de Saúde da Família – PSF, recebendo um treinamento com apostilas que ensinam rotinas simples de tratamento de doenças freqüentes e pouco graves, como anemia ferropriva, etc. O problema está na utilização de regras gerais, que não são válidas para todos, por profissionais que não estão aptos a realizar o diagnóstico diferencial com problemas mais complexos. A "tecnificação" da assistência à saúde, sua redução à aplicação de regras e rotinas simplificadas (tão caras aos tempos informatizados dos protocolos clínicos, medicina baseada em evidências e inteligência artificial aplicada à medicina), expõe de forma injustificada a população a riscos.

Esta situação está longe de ser definida e ações judiciais seguem se formando, no âmbito dos Tribunais Regionais, cujas decisões ainda não criaram jurisprudência (CFM, 2004; Cofen, 2005). Resta a pergunta: estariam os enfermeiros de um modo geral capacitados para prescrever medicamentos e solicitar exames complementares no âmbito de Programas de Saúde? Possuem formação profissional para tal ou baseiam sua reivindicação em cursos de capacitação genéricos e eventuais?

Outras vezes a reivindicação dos enfermeiros se dá em relação às práticas de outras profissões: o Conselho Federal de Farmácias (CFF) questiona a resolução 257/2001, do Cofen, quanto ao preparo de drogas quimioterápicas e antineoplásicas pelo enfermeiro. O CFF alega que este é um ato privativo do farmacêutico. Outro exemplo, é a resolução Cofen – nº 295/2004, que dispõe sobre a utilização da técnica do brinquedo/brinquedo terapêutico pelo enfermeiro na assistência à criança hospitalizada, o que poderia ser questionado como prática dos psicoterapeutas, sejam eles psicólogos ou médicos.

Vejamos agora a assistência e educação nutricional a indivíduos sadios ou enfermos, que é considerada uma atividade privativa dos nutricionistas, desde a década passada, pela lei 8.234, de 17 de setembro de 1991, que regulamentou a nutrição. No Art. 4º, incisos VII e VIII, atribuem-se, também, aos nutricionistas as seguintes atividades, desde que relacionadas com alimentação e nutrição humanas: prescrição de suplementos nutricionais, necessários à complementação da dieta e a solicitação de exames laboratoriais necessários ao acompanhamento dietoterápico.

Não há dúvida de que existe um "conflito de fronteira" entre nutrólogos e nutricionistas, assim como nos parece claro que a tendência é a de extinção da especialidade médica, pelo sucesso no recorte do conhecimento realizado pela nova profissão. Entretanto, há que existir uma solução temporária que preserve os interesses e a legitimidade das atividades dos médicos que, eventualmente, nela se dediquem. Outro conflito nesta área localiza-se na pediatria, pelas atividades de puericultura, para as quais também deverão ser estabelecidas soluções conciliatórias que viabilizem, ao menos por um tempo, as práticas de ambos os profissionais.

É importante observar algumas entrevistas concedidas ao site Universia (2005) por representantes de Conselhos de Profissionais de Saúde que se opõem ao projeto de lei em questão. Tirando o fato de que todos parecem estar se referindo ainda à Resolução do CFM e não ao substitutivo genérico do senador Tião Viana, há um certo consenso em se reconhecer a legitimidade (embora não cheguem a falar de necessidade) da criação de uma lei que regulamente o ato profissional do médico. Jorge Steinhilber (2005), presidente do Conselho Federal de Educação Física, entretanto, refere-se à necessidade de se criar a lei do ato de cada profissional, para que a sociedade conheça cada uma das profissões e fiquem bem definidas as respectivas competências. Sua posição é bem compreensível, posto que estes profissionais estão em permanente atrito profissional com os fisioterapeutas, já que suas atividades são, em muitos casos, sobrepostas.

Em virtude dessas considerações, é correto identificarmos uma fonte de insatisfações sentidas pelos profissionais de saúde no fato de os atos profissionais se definirem em relação ao ato médico. Insatisfações que são evidentes e justificáveis, uma vez que os demais profissionais de saúde têm lutado pela construção de sua própria identidade profissional, ao longo de seu processo de profissionalização, e não desejariam que esta construção se calcasse por oposição ou contraposição com àquela construída pelos médicos.

Já Ricardo Moretzsohn (2004), embora considere mesmo inaceitável o substitutivo apresentado, reconhece como legítima a regulamentação da profissão médica, mas discorda que esta seja feita por projeto de lei. Esta afirmação sugere uma tentativa de manter a condição em que cada profissão siga se auto-regulamentando, o que parece improvável, tal a divisão do trabalho no setor, o potencial de conflitos que existe, até mesmo passíveis de recursos jurídicos, cuja decisão dependerá de interpretações dos juizes em relação a questão.

Marinho (1986) já acentuava na década de 1980 que a delimitação do controle legítimo sobre determinada esfera do conhecimento, que garante à profissão um monopólio e seu domínio de trabalho, é problemática na realidade concreta. O mais comum tem sido a conquista ou garantia de "monopólios de competência", por meio de intensa atividade política que culmina com uma ação regulatória por parte do Estado. É o poder do Estado que garante às profissões o exclusivo direito de usar ou avaliar certo conhecimento e especialidade. É ele que sanciona e ordena o campo profissional, cria ou autoriza a criação de cursos universitários, reconhece as diversas associações profissionais e regulamenta o exercício das profissões. Aspectos que se refletem no curso do trâmite do projeto de lei 025/02: uma intensa atividade política no sentido de que o Estado promova ações regulatórias, sancionando e ordenando o campo profissional.

Considerações finais: a necessidade de configuração de um novo modelo no campo das profissões

Quando uma ocupação consegue se estabelecer na sociedade, há uma tendência para sua profissionalização. Este processo configura uma identidade profissional, construída ao longo de um período histórico, representada por um conjunto de elementos cognitivos, normativos e reguladores socialmente reconhecidos. Foi assim que as profissões mais antigas, como a medicina e o direito, em seu processo de profissionalização, desenharam um caminho que outras ocupações também trilharam em busca da conquista das prerrogativas profissionais.

Contudo, no Brasil, com a intensa divisão de trabalho ocorrida especialmente no século 20, este processo de profissionalização se intensificou, culminando nos anos 90 com um grande número de ocupações pleiteando sua regulamentação profissional ou tentando ampliar o seu escopo de competência e atuação.

Considerando-se o caso em questão, ainda que desde a década de 1930 o processo de profissionalização de outras profissões de saúde já tivesse se iniciado, a corporação médica em 1957, quando da regulamentação de seu Conselho Federal, não encontrou motivos para definir o ato médico. Nem mesmo no final da década de 1980, a despeito do movimento pela isonomia salarial, no âmbito do sistema público de saúde, não parecia haver motivos para tal.

Na realidade, a corporação médica só se preocupou efetivamente com a regulamentação do ato médico, ao final da década de 1990, quando se depara com uma crise refletida em vários âmbitos do trabalho e da formação médica. Surge então a necessidade crescente de defender o seu monopólio de competência, ameaçado, por exemplo, pelas reivindicações de privilégios de categorias profissionais que vinham ocupando espaços no setor, amparadas nas legislações de exercício profissional privativas ou na possibilidade de demandá-las juridicamente.

Contrapõe-se o fato de que o processo de profissionalização de outras categorias no campo de trabalho da saúde vem se consolidando, o que tem fortalecido a identidade profissional de outras profissões (no âmbito jurídico, ideológico, cultural e político), reforçada pelo estabelecimento de seu corpo de conhecimento, pela normatização de suas ações, pela institucionalização do ensino da profissão e pela ocupação de espaços relevantes, na discussão e solução de problemas de atenção integral à saúde da população.

Outro aspecto que se salienta é que o debate atual sobre a regulamentação do ato médico permite construir um desenho do sistema de forças no qual se inserem atualmente as relações profissionais, desvelando as disputas entre distintas identidades profissionais, a busca pela afirmação como profissão e as contradições e os conflitos de interesses em diversos âmbitos. São estes: na definição de diferentes atos profissionais; na competição pelo monopólio econômico sobre a prática e pelo monopólio de competências; no poder de auto-regulamentação; na autonomia técnica; no controle sobre o seu trabalho e o de outros; e nos diversos constrangimentos à prática profissional, aí implicados. Mostra, também, como o aspecto jurídico e as disputas entre as corporações se vinculam e como estão encaminhando o processo histórico das profissões.

Por outro lado, o risco de desestabilização de uma profissão, tão temido numa crise dessa natureza, tem impulsionado os profissionais ao diálogo com diversas categorias, agentes sociais e agências, conduzindo-os à revisão de seus sistemas de referência, a novos questionamentos, a argumentos e a considerações sobre posicionamentos anteriores. O reconhecimento da crise é fundamental para a condução do processo de socialização profissional e socialização em geral. Sobretudo, traz a possibilidade de provocar mudanças, a começar pela necessidade de conscientização acerca das identidades dos atores que com ela se envolvem e sobre a responsabilidade dos mesmos nesse processo, comprometendo-os com a crítica em relação a seu agir profissional e seu compromisso social maior.

Nas sociedades democráticas – inseridas na atualidade num mundo globalizado e informatizado e, sobretudo, com intensa competição de mercado, estabelecida pela prevalência mundial de uma economia neoliberal – observa-se, entre as corporações profissionais, uma intensa luta pelo monopólio de competências e limites de atuação. Esta se expressa, por exemplo, nos numerosos projetos de regulamentação de exercício profissional e no grande material divulgado em diversos meios de comunicação, tendo como objetivo conquistar o apoio dos políticos e da população quanto à relevância das reivindicações pretendidas.

Tem sido freqüente, também, que as discussões internas nas corporações e com as demais contrariem a proposta de trabalho em equipe, quando não são consideradas a complexidade da questão e as conseqüências, ao longo do tempo, das decisões tomadas.

Encaminhando para uma articulação com os aspectos macroestruturais, vemos que esta disputa tem-se revelado com um cerne voltado mais para o interesse no monopólio econômico sobre as práticas profissionais do que para o interesse das corporações profissionais em lutarem por uma participação na construção de um projeto social global ou pela implementação de políticas de saúde (apesar de as corporações centrarem seus discursos, de acordo com seus interesses, sobre a atuação integral à saúde ou riscos a ela), de trabalho e de formação profissional.

A rigor, o tensionamento do modelo de organização corporativa dos profissionais não é, necessariamente, ruim (nem bom). A regulação das profissões apenas por pares pode gerar (e com grande freqüência gera) distorções relacionadas com a excessiva proteção dos colegas. A discussão de um novo modelo de organização, que conte mais com representantes não corporativos, parece inevitável e não apenas pela ação do empresariado que atua no campo da saúde. Em nosso país, desde o final da década de 1980, segmentos do movimento sindical apostam na organização sindical não corporativa, mas por setor da economia (por exemplo, o Sindicato dos Trabalhadores da Saúde). Se isto atenderá também aos interesses da sociedade é uma pergunta para ser ainda respondida.

Portanto, o debate que se tem estabelecido em torno da proposta de regulamentação em lei do ato médico no Brasil traz questões amplas e permite evidenciar uma crise que se reflete no campo das profissões de saúde, indicando a necessidade de discussões mais críticas sobre os modelos atuais de relações profissionais, considerando sua complexidade e suas intersecções macro e micro.

O estudo da organização por profissões, descolado da rede de relações da qual ele faz parte, não atende à solução dos problemas concretos e não consegue responder primariamente aos interesses sociais mais amplos, dada à incompatibilidade, muitas vezes existente, entre os referenciais e objetivos de projetos sociais defendidos por diferentes segmentos da sociedade.

No debate em questão neste texto, apesar de muitos dos representantes das diferentes profissões se preocuparem em incluir em seus argumentos a defesa do SUS e referirem que a aprovação do projeto de lei inviabilizaria muitas das atividades do SUS, parece que o olhar que ainda falta nesta discussão é aquele que privilegia os interesses da população. Ou, considerando os estágios de desenvolvimento moral preconizados por Lawrence Kohlberg, abandonar os argumentos relativos aos estágios egocêntricos, pré-convencionais e incorporar pelo menos a perspectiva do nível convencional que envolve uma preocupação e uma orientação consciente que contribui para o bem-estar da sociedade (Milnitsky-Sapiro, 2000).

Para isso, é indispensável que se faça uma avaliação criteriosa sobre os saberes e competências específicas de cada formação e a preservação dos limites, respeitada a divisão do trabalho já efetivada, de cada competência. É puro nonsense e perda de tempo das organizações médicas quererem ignorar que outras profissões, de fato e de direito, se estabeleceram na área da saúde. O que se requer agora é o bom senso crítico de observar até aonde vão as possibilidades de autonomia profissional e como todos os profissionais poderão atuar para enfrentar as ameaças de perda de identidade resultantes das novas relações de trabalho e da perda de representatividade e de poder de intervenção das corporações no enfrentamento com as grandes empresas da área da saúde.

Colaboradores

RGM Guimarães e S Rego participaram igualmente de todas as etapas da elaboração do artigo.

Agradecimentos

Os autores agradecem a Marisa Palácios e Clary Sapiro pelos comentários críticos na primeira versão do manuscrito.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jun 2007
  • Data do Fascículo
    Dez 2005
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