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Debatendo o ato médico

Debating the medical act

DEBATEDORES DISCUSSANTS

Debatendo o ato médico

Debating the medical act

Maria Helena Machado

Fiocruz e Departamento de Gestão da Regulação e do Trabalho em Saúde, Ministério da Saúde. machado@saude.gov.br

O presente artigo aponta para um importante debate no setor, uma vez que as profissões de saúde, de um modo geral, têm pautado e priorizado em suas agendas políticas o debate sobre o ato médico. Também considero corajoso e desafiador tratar do assunto com a clareza e competência com que os autores desenvolveram no artigo. Então, vamos ao debate.

Mas como se dá o processo regulatório das profissões?

Moran & Wood (1993) definem o modelo de regulação como mecanismo utilizado para guiar a incorporação dos médicos graduados no mercado de serviços de saúde a fim de que ponham em prática seus conhecimentos de acordo com a definição de certos padrões técnicos e administrativos. Estes autores consideram que o modelo de regulação é composto dos seguintes elementos: a) os mecanismos de entrada no mercado, incluindo licenciamento e certificação; b) o controle da competição profissional; c) a estrutura do mercado de trabalho e; d) o mecanismo remuneratório.

Controle do mercado

Este aspecto assinala a forma pela qual se regula a entrada no mercado dos indivíduos habilitados para exercer a profissão médica. Devido à alta complexidade que corresponde ao trabalho de um médico, os mecanismos de entrada no mercado acabam sendo sofisticados no que se refere à definição de quem e sobre quais circunstâncias é exercida a medicina. A estratégia mais comum para controlar a entrada no mercado é o estabelecimento de mecanismos de licenciamento no qual o Estado outorga a autorização legal, depois de cumprir com certos requisitos tais como escolaridade, filiação a entidades profissionais, entre outros.

Regulação de práticas de competição profissional

Os aspectos da regulação podem estar relacionados à competição que outros grupos profissionais estabelecem com os médicos. O fato de que os médicos podem ter um monopólio virtual do conhecimento é aplicado na produção de serviços de saúde; o acesso deste conhecimento a outros grupos pode ser regulado tanto nos aspectos educativos como na produção dos serviços de saúde. Assim, existem mecanismos legais ou ideológicos para regular a competição de outros modelos da prática médica tais como a homeopatia, a acupuntura, etc. A competição, entretanto, também pode ser regulada entre os próprios membros da profissão: por exemplo, em alguns países existem regulamentações específicas sobre a proibição ou permissividade no uso de propaganda para a promoção dos serviços que outorgam aos praticantes.

Estrutura do mercado de trabalho

Há distintas formas de os médicos se integrarem ao mercado de trabalho para produzir serviços. Em países onde o setor público é forte e muito presente, como é o caso do Brasil, os médicos acabam por ingressar no setor público, tornando-se assalariados. Por outro lado, o setor privado tem crescido e assumido boa parte da produção de serviços médicos, o que produz, no interior da corporação, um elevado contingente de profissionais dependentes da contratação pelos empresários da saúde, que quase sempre estabelecem regras e acordos comerciais visando reduzir seus custos de operação. Entretanto, pela natureza da profissão, a atividade liberal continua sendo uma prática comum em qualquer mercado de trabalho. Contudo, em muitos casos e cada vez mais comum, os médicos acabam por se associarem à prática assalariada pública e privada, bem como à liberal. Nos últimos anos, as instituições têm posto em prática diversos mecanismos regulatórios, assegurando que a produção tenha seus custos reduzidos ao incrementar os seus níveis de eficiência e qualidade dos serviços prestados.

Mecanismo remuneratório

Em boa parte e, tradicionalmente, a forma mais comum de os médicos obterem sua renda é por meio do pagamento direto dos serviços prestados. Entretanto, cresce no mundo inteiro o assalariamento, como forma fundamental de inserção dos médicos no mercado de trabalho. Em alguns países, porém, a profissão tem demonstrado capacidade de fazer valer suas preferências sobre a forma com que devem perceber sua remuneração pelos serviços prestados. Em outros casos, o Estado ou mesmo as instituições têm tido maior controle sobre esta questão.

O conjunto destes quatro aspectos constitui o modelo de regulação. Para Moran & Wood existem três modelos regulatórios principais. O primeiro, refere-se à auto-regulacão, ou seja, os próprios profissionais definem os mecanismos de entrada no mercado e de competição profissional. O segundo, denomina-se regulação com sanção estatal caracterizada por aquelas entidades e/ou instituições encarregadas de formular e implementar os mecanismos de regulação, com consentimento e apoio do Estado. No terceiro, a regulação direta do Estado é exercida por instituições públicas especializadas nesta função.

Os mercados profissionais existentes atualmente no mundo emergiram ao meio das transformações advindas da Revolução Industrial e da consolidação do sistema capitalista. Tais fatos permitiram o surgimento de práticas e novas funções sociais, tornando-se crescente a necessidade de profissionalismo em toda a sociedade industrializada (Larson, 1977). A institucionalização desse mercado impôs a definição e a adoção de novas estratégias políticas, tais como, a necessidade de geração de experts – o que seria feito por meio de um treinamento específico; a necessidade de se ofertar profissionais e serviços padronizados que diferenciassem sua identidade e permitisse sua conexão com os consumidores; e, finalmente, a determinação por parte do Estado na condução e desenvolvimento deste processo. Para isso foi fundamental que o Estado assumisse uma ação direta e positiva em relação à obrigatoriedade da educação formal e garantisse os monopólios de competência, já que ambos se apresentavam como variáveis cruciais no desenvolvimento do projeto profissional. Configurava-se uma situação em que os grupos profissionais estavam compelidos a solicitar projeção estatal e penalidades estatais contra competidores não licenciados (Larson, 1977).

A constituição do mercado de trabalho é uma das bases do projeto profissional da medicina. Para isso ela constituiu ao longo dos tempos um mercado de serviços complexo, exclusivo, com forte credibilidade social. O mercado de serviços de saúde, especialmente o mercado de trabalho médico, encontra-se em consonância com esta perspectiva de profissionalismo, apresentando uma oferta de serviços altamente especializados (Machado, 1996).

Desta forma, a definição dos atos e atividades pertinentes por exclusividade e/ou compartilhamento representa uma fase bastante importante para aqueles que executam essas atividades bem como uma segurança para os que recebem seus serviços. Vejamos como a profissão se constituiu ao longo dos tempos.

No Brasil, durante um longo período, impunha-se uma distinção entre os físicos e cirurgiões, sendo que os primeiros gozavam de maior prestígio social. Os primeiros praticantes da medicina no Brasil (boticários, cirurgiões ou físicos) necessitavam apenas do domínio de alguma técnica para instalar-se como profissional. Àquela época, podia-se observar no Brasil, comparativamente aos outros países, uma certa anarquia da prática profissional e, conseqüentemente, do mercado de trabalho, semelhante à dos demais países. Sendo poucos os profissionais e muito vasta a extensão territorial, juntamente com esses praticavam a medicina ainda os boticários e seus aprendizes, os aprendizes de barbeiros, os "anatômicos", os "algebristas" os "curandeiros", os entendidos, "curiosos" e outros que tais (Santos Filho, 1991). Enfim, todos aqueles que dominavam alguma técnica podiam instalar-se como profissional. Tornar-se "médico" no Brasil Colônia era muito mais uma questão de vontade e habilidade pessoais do que de capacitação por destreza e conhecimento técnico (Machado, 1996).

Em estudos realizados sobre a história da medicina brasileira, verificou-se que "médicos" e "cirurgiões" se instalavam comumente em sobrados comerciais e, por vezes, tinham como auxiliar, escravos, não só para aplicar ventosas, cataplasmas, lavagens e clisteres, como fazer sangrias, curativos etc. Sabe-se que, vários desses escravos-enfermeiros se tornavam praticantes da medicina, que, ao comprarem sua liberdade, conseguiam a Carta de Cirurgião-Barbeiro que lhes garantiam o direito de fazer concorrência ao antigo senhor.

Ao longo do tempo, evidentemente, a atividade médica tornou-se uma sólida, respeitada e prestigiosa profissão no Brasil, à semelhança do que aconteceu em outros países. Ao cumprir o ritual e o processo de profissionalização, descrito pelos autores no artigo em pauta, o ofício da medicina é hoje uma das profissões com maior regulação de seu mercado de trabalho, seu processo de formação, bem como do próprio exercício profissional.

Mas o que está em discussão nesta tão antiga e estruturada profissão? Cabe, nesta altura do campeonato, discutir ato médico?

Sociologicamente, não, mas juridicamente, sim.

Faz sentido e é necessário, se estamos focando os aspectos legais, uma vez que toda profissão precisa ter sua lei de regulamentação profissional, que assegure juridicamente prerrogativas, privilégios e direitos exclusivos, especialmente para aquelas profissões que estão em processo de profissionalização, necessitando firmar-se no mercado de trabalho.

Por outro lado, este debate está, em termos sociológicos, fora de foco e politicamente incorreto por alguns motivos. Primeiro, porque não é a lei do ato médico e sim a lei de regulamentação da profissão que vai regular toda a prática cotidiana. O termo "ato médico" é, além de incorreto, provocativo e discriminatório quanto às demais profissões. Segundo, para uma profissão tão antiga e sólida quanto a medicina não cabia transformar este ato jurídico em um ato político e por que não provocativo mediante às demais profissões da saúde. Terceiro, a reação em cadeia das demais profissões não é compreensível e aceitável, uma vez que todas elas, sem exceção, têm sua lei que regulamenta a profissão e confere exclusividade de determinados atos profissionais.

Sendo assim, por que tanto polêmica em torno da questão?

A resposta é, certamente, política e ideológica, correspondendo muito mais a velhas disputas jurisdicionais do que, de fato, aos termos da legalidade que aplica a lei de regulamentação da profissão médica, denominada "ato médico".

Referências bibliográficas

Larson MS 1977. The rise of professionalism. A sociological analysis. University of California Press, Berkeley, Los Angeles e London.

Machado MH 1996. Os médicos e sua prática profissional: as metamorfoses de uma profissão. Tese de doutorado. Iuperj, Rio de Janeiro.

Moran M & Wood B 1993. States, regulation and the medical profession. Open University Press, Buckingham.

Santos Filho LC 1991. História geral da medicina brasileira. 2 vols. Hucitec-Edusp, São Paulo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jun 2007
  • Data do Fascículo
    Dez 2005
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