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Ato médico e a formação médica para atender as necessidades de saúde da sociedade

The "medical act" and medical education to attend the health interests of the society

DEBATEDORES DISCUSSANTS

Ato médico e a formação médica para atender as necessidades de saúde da sociedade

The "medical act" and medical education to attend the health interests of the society

Jadete Barbosa Lampert

Departamento de Clínica Médica, Universidade Federal de Santa Maria. dcm.ccs@bol.com.br e jadete@uol.com.br

O artigo nos brinda com um esclarecimento importante e relevante sobre o processo de profissionalização e as profissões do ponto de vista sociológico, permitindo um maior entendimento das complexas ações que estão em torno dos encaminhamentos para a regulamentação do ato médico no Brasil. O trabalho reúne informações, analisa, discute e chama a atenção para questões ainda não respondidas, em especial no olhar mais abrangente, que esteja voltado e, realmente, preocupado com as necessidades e a qualidade da assistência em saúde prestada à população/sociedade brasileira em um contexto que busca a integralidade e o acesso universal. Diante das questões não respondidas percebe-se a complexidade e a atualidade do tema abordado, assim como a carência de ampliação nos estudos.

O comentário que se faz está mais ligado à vivência docente em uma escola médica e à militância na educação médica junto da Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM), em especial referente à avaliação das mudanças preconizadas para a formação deste profissional médico, e a valorização do docente formador dos profissionais da saúde e gestor da escola. Tendo como pano de fundo a história recente do século findo, que contextualiza o momento atual, tenta-se trazer alguns aspectos que fazem parte deste conjunto da identidade profissional e estão muito submersos nos debates das mudanças no mundo do trabalho e, enfim, da regulamentação do ato médico.

Entende-se que o ato médico na qualidade de um ato profissional, como o artigo bem esclarece, é aceito como uma ação que a legislação reguladora de uma profissão atribui aos agentes de uma categoria profissional, seja ele exclusivo ou compartilhado com outras profissões e que deva ser realizado por pessoa habilitada, no exercício legal de sua profissão.

Entende-se também que o processo de profissionalização de uma ocupação se dá em etapas. Estudiosos da sociologia das profissões mostram este processo a partir do reconhecimento de uma ocupação como atividade de tempo integral, que dá conta da sobrevivência e interesses de seus membros, atende e defende os interesses de seus clientes com um ideal de serviço. Criam escolas para a reprodução de conhecimentos e habilidades que devem ser abstratos e organizados em um corpo codificado de princípios. Reconhecido pela sociedade, este grupo, que detém conhecimentos e habilidades, através do Estado, ganha exclusividade da prática em determinadas atividades e o poder da auto-regulamentação. Constitui uma associação profissional com um código de ética para reduzir a competição interna e estabelece regras para inclusão de novos associados.

Em tempo de debates para regulamentação do ato médico busca-se, também, a qualidade das ações em saúde por meio de avaliações interativas de acompanhamento e diálogo entre os atores envolvidos. As mudanças que levam às transformações se dão tanto no campo do ensino como no campo dos serviços no mercado de trabalho.

Belmartino et al. (1990) mostram a relação entre a oferta e a necessidade de profissionais qualificados, reportando-se aos processos de produção de capacidade de trabalho médico (a formação médica) e o de produção de serviços de saúde (a prática médica). Das características do sistema de educação médica dependerá o montante de pessoal qualificado para a oferta de serviços. Há uma interação recíproca entre sistema de educação e sistema prestador de serviços.

Pode-se perceber a magnitude e a complexidade das disputas de poder que se travam nesse processo de profissionalização e na conquista dos nichos do mercado de trabalho que surgem às expensas da crescente e intensa produção de novos conhecimentos e tecnologias. Nos últimos 30, 40 anos a ciência e a tecnologia tiveram crescimento sem precedentes. Se, por um lado, a ampliação do conhecimento e o surgimento de novas tecnologias coincidem com a intensa divisão do trabalho no aparecimento de novas profissões e especialidades, por outro, o conhecimento ao se fragmentar em especialidades, no caso da medicina, fez o profissional se distanciar do seu paciente como um todo, desumanizando o ato médico. Os médicos, como os primeiros profissionais reconhecidos da saúde e referência no setor, têm se formado com visões delimitadas do conhecimento, restrito a partes e funções do corpo humano (órgãos, sistemas) com tendência a se acentuar visto a contínua ampliação de conhecimentos. Os interesses da clientela têm sido referidos de forma generalizada sem entrar na especificidade da atenção, do cuidado e acolhimento.

Por um lado, tem-se o desafio dado às treze profissões da área da saúde ao disputar o mercado de trabalho e delimitar os campos de atuação, sendo uma delas a medicina, que se apresenta com setenta especialidades em busca de uma lei que regulamente o ato médico para delimitar seu(s) campo(s) profissional(ais). Todas as setenta especialidades médicas estão reconhecidas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). Por outro lado, a clientela, que continua sendo a razão de suas existências, espera ser atendida nas suas demandas que também se ampliam do ponto de vista individual e coletivo. A regulamentação do ato médico busca sua validade para todo profissional que, colando grau, recebe um registro no Conselho Regional de Medicina (CRM) e está legalmente habilitado para o exercício da profissão com as competências e habilidades que o curso lhe conferiu.

Neste panorama de diversificados campos de trabalho médico (especialidades), pode-se pensar que a definição do ato profissional médico deva ser ampla e abrangente, o que englobaria muitas das outras profissões da saúde ou, então, deveria ser específica para as diferentes especialidades. A especificidade do ato médico atribuída a um oftalmologista será distinta da outorgada a um cardiologista. A intenção seria aprovar uma definição abrangente, que desse conta do conflito com as demais profissões da área da saúde.

O objetivo do desenvolvimento dos conhecimentos científicos e tecnológicos continua a ser o próprio homem, a clientela, sua vida social e a manutenção da sua qualidade de vida, sua saúde individual e coletiva. Mas no exercício da profissão, identifica-se entre o médico e a população uma barreira representada por um código de linguagem fechado e específico. Este código retrata e refrata a realidade, primeiro porque se atém ao biológico e individual do doente, sem considerar o meio, a experiência existencial e condicionamentos da situação deste sujeito. Segundo, porque transforma o conceito de doença numa especialidade relacionado a determinado órgão, considerando o corpo do doente objeto de saber e espaço da doença. E terceiro, porque a prática chega a prescindir da realidade mais imediata e sensível que é o corpo e seus sintomas, voltando-se para as mensagens infracorporais fornecidas pelos equipamentos laboratoriais (Bakhtin apud Minayo, 1996).

O compromisso com os interesses da clientela tem ficado em segundo plano, apesar dos discursos. Mas esta clientela, também, se articula como comunidade/populações, e mais bem informada e organizada apresenta mais condições de reivindicar e participar. Existe um grande fosso, segundo Vasconcelos (2001), separando o atendimento dos serviços de saúde e a vida da população. Lembra que a educação em saúde é o campo de prática e conhecimento do setor saúde que se tem ocupado mais diretamente com a criação de vínculos entre a ação médica, o pensar e o fazer cotidianos da população. Estes vínculos são necessários, uma vez que, até a década de 1970, a educação em saúde no Brasil era basicamente uma iniciativa das elites políticas e econômicas. Assim ficava subordinada aos interesses dessas elites que impunham normas e comportamentos por elas consideradas adequadas (Vasconcelos, 2001).

No comentário deste artigo, visando mais entender do que incrementar a discussão, levanta-se como fator relevante o papel do médico nas funções de docente e de administrador na instituição de ensino. A docência tem aparecido como uma ocupação com status de profissão, sem ser tratada nem reconhecida pelo Estado e pela sociedade com o prestígio merecido, apesar das reincidentes retóricas.

Como os autores comentam, há no Brasil um desarranjo na distribuição das escolas e dos profissionais no território nacional. Esse panorama nos mostra a necessidade da produção de novos dados e mais estudos abalizadores para as políticas e para as decisões nas instâncias governamentais de criação de escolas e serviços.

A escola surgiu na Idade Média com uma estrutura organizacional totalmente separada dos serviços de assistência. Fazer o ensino da prática oferecido pela escola coincidir com a prática dos serviços de forma crítica e construtiva é, ainda, o desafio que está posto na aproximação entre escola, serviços e comunidade, criando novos espaços para construção de novos conhecimentos. Para tanto, outro setor de conhecimentos e habilidades específicas que tem sido deixado em plano secundário é o administrativo, o gerencial, que envolve o planejamento, implementação, acompanhamentos e avaliação de resultados, de forma que se possa aprimorar e ajustar os processos de mudanças.

A universidade, a escola, é a instituição jurídico-legal na qual se transmite o conhecimento formal e se adquire a habilitação e o título profissional. E na seqüência, como parte do controle corporativo o profissional deve receber um número de registro do Conselho Regional para ingressar no mercado de trabalho (o registro no conselho regional da profissão). Portanto, no processo de profissionalização é fundamental constituir um sistema de ensino formal, no caso, as escolas médicas com seus programas curriculares. No advento das especializações, as escolas estruturadas em departamentos (Reforma Universitária, 1968) com currículos divididos em ciclos básico e profissionalizante fragmentaram-se na abordagem pedagógica em disciplinas isoladas que pouco interagem (Currículo mínimo, MEC/CFE, resolução nº 8, 1969). Desta maneira, a formação já na graduação tem propiciado visões restritas das partes do ser humano, retratando a estrutura da assistência à saúde prestada predominantemente em especialidades.

O paradigma da integralidade que vem sendo construído no pensar e fazer da formação do profissional da saúde, para complementar o que o paradigma flexneriano, modelo biologicista e tecnicista deixou de atender, induz à construção de um novo modelo pedagógico nas escolas, visando ao equilíbrio entre a excelência técnica e a relevância social. Só um corpo docente com as competências e habilidades requeridas para as funções de professor, pesquisador, médico e administrador pode garantir que as escolas médicas, atendendo as Diretrizes Curriculares (ME/CNE/CES, resolução no. 4 de 07/11/2001), estejam construindo de forma participativa o seu Projeto Político-Pedagógico (PPP). Este trabalho deveria ter o apoio e a participação da corporação. O PPP deve situar a escola no contexto da sociedade onde se insere e definir a que veio e como pretende desempenhar seu papel no ensino, na pesquisa e na extensão/assistência diante das necessidades de atenção à saúde da comunidade no âmbito individual e coletivo.

Ao construir o programa curricular e as metodologias de ensino-aprendizagem, a escola está tratando de como vai garantir as competências e habilidades requeridas para a formação do futuro profissional e, portanto, delimitando o ato médico. As mudanças prementes, além do arrolar e distribuir conteúdos no programa, estão nas metodologias ativas de ensino-aprendizagem, que devem estar mais centradas no estudante, tendo no professor um orientador e facilitador na construção do conhecimento, com vistas à educação permanente. A instituição escola/universidade nas relações e parceria com os serviços e grupos comunitários busca elaborar o planejamento do processo ensino-aprendizagem centrado em problemas prevalentes na comunidade. E a reorientação pedagógica é necessária para que o conhecimento seja o resultado de uma construção ampla e integrada com o objeto de trabalho (Ferreira, 2001).

Embora a escola faça parte dos quesitos como fundamental para a garantia da profissionalização, paradoxalmente a corporação tem se distanciado da escola, quando participa pouco dos espaços de análise crítica e reflexiva do seu fazer e pensar, pensar e fazer. A academia pela sua natureza crítica e reflexiva na medida que, além de reproduzir, produz conhecimentos, também analisa, avalia e questiona as práticas existentes. Desta forma o pouco entrosamento nestas questões propicia uma disputa de "poder" que penso tem debilitado internamente a corporação. Houve uma aproximação e parceria histórica entre as instituições corporativas da medicina, na década de 1990, na constituição e desenvolvimento do Projeto Cinaem (Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação das Escolas Médicas). Esta parceria em uma década produziu um trabalho significativo com as escolas médicas.

Apesar de a corporação identificar profissionais ligados mais à prática e os outros dedicados ao ensino, não é raro ter-se docentes atuando na escola e concomitantemente nas instituições corporativas e em atividades técnico-profissionais no mercado de trabalho. Aliás, a maioria dos docentes das escolas médicas é de médicos com atividade profissional no mercado de trabalho médico. Isso mostra a forte presença da corporação nas escolas. Mas nesses espaços da escola, as ações cotidianas tendem a acontecer de forma isolada, como se tem salientado, com pouca interação. Esta proximidade física não supera, em razão da fragmentação do conhecimento, uma certa limitação em perceber o conjunto, seja na escola/ensino, seja no trabalho/serviço. As dificuldades de diálogo entre os saberes e instituições têm sido grandes e trabalhosas nas tentativas esparsas que se têm observado. Mesmo escolas reconhecidas como inovadoras com mudanças avançadas para a integralidade na abordagem da saúde, por serem recentes, sinalizam um longo caminho a ser percorrido de tempo para serem consolidadas, carecendo de forte apoio reflexivo, de acompanhamento e de avaliação, uma vez que estão na contramão da cultura ainda muito voltada para a doença, impregnada no universo médico (Lampert, 2002).

Entre os eixos relevantes da formação profissional que permeiam a construção e a execução dos programas curriculares das escolas deve estar o desenvolvimento docente e o mercado de trabalho. Um é o modelo, o facilitador e orientador do futuro profissional; o outro é o espaço dinâmico de interação das práticas profissionais, da procura e da oferta, e objeto de estudo na perspectiva de mudanças.

O profissional médico tem assumido na escola funções de professor, pesquisador, médico e administrador para desempenhar tarefas de ensino, pesquisa, extensão/assistência e gerência. Para cada tarefa pressupõem-se competências e habilidades específicas, mas na prática não tem sido questionada ou exigida. Os profissionais da área da saúde assumem estes cargos nas instituições de ensino com a mesma facilidade com que assumem as atividades técnicas de sua formação específica. A prática corrente de capacitação docente ou gerencial tem ficado submersa em uma aceitação simplificada de que "quem sabe fazer, sabe ensinar" e de "quem sabe fazer, sabe mandar/coordenar/delegar".

Ao tentar compreender os determinismos e protagonismos históricos no campo da saúde, Minayo (2001) enfatiza as correntes que conferem papel ativo à subjetividade no debate atual sobre o pensamento complexo. Registra que, se existe um papel das instituições que tendem à rotina para se legitimar, tem-se a importância dos atores sociais para concretizar mudanças em relação à repetição de modelos.

A complexidade do contexto atual com a intensa divisão do trabalho desafia, em especial, a corporação médica para buscar o entendimento destas implicações para uma "repactuação", como bem situa este artigo. A repactuação passa obrigatoriamente pela análise da formação dos profissionais da saúde (graduação, pós-graduação e educação permanente) e pela forma de prestação da assistência às necessidades de saúde da sociedade. Nessa perspectiva da inter-relação profissional, uma arena democrática e participativa promove discussões em áreas específicas e compartilhadas entre as diversas profissões e especialidades. A contemporaneidade histórica com vista à integralidade exige atitudes distintas das observadas no histórico Congresso Nacional de Práticos, em 1922 (Pereira Neto, 2001).

Os espaços criados para as aproximações entre profissionais das várias especialidades médicas, entre os vários profissionais da saúde, entre profissionais docentes das várias disciplinas e departamentos da escola, entre profissionais docentes, profissionais prestadores de serviços e comunidade/clientela devem proporcionar a construção de novos conhecimentos e auxiliar o processo de "repactuação".

O poder dos vários atores sociais está posto, o desafio é de como bem usá-lo.

Cumprimento os autores, e agradeço o convite e a oportunidade deste exercício.

Referências bibliográficas

Belmartino S, Bloch C, Luppi I, Quinteros Z & Troncoso MC 1990. Mercado de trabajo y médicos de reciente graduación. Centro de Estudios Sanitarios y Sociales (CESS), Associación Médica de Rosário. OPS, Oficina Regional de la OMS, Representación de Argentina, Publicación n. 14, 65 pp.

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Lampert JB 2002. Tendências de mudanças na formação médica no Brasil: tipologia das escolas. Hucitec-Associação Brasileira de Educação Médica, São Paulo.

Machado MH (coord.) 1997. Os médicos no Brasil: um retrato da realidade. Fiocruz, Rio de Janeiro.

Minayo MCS 2001. Estrutura e sujeito, determinismo e protagonismo histórico: uma reflexão sobre a práxis da saúde coletiva. Ciência & Saúde Coletiva 6(1): 7-19.

Minayo MCS 1996. Representações sociais de saúde/ doença, pp. 175-196. Em MC Minayo. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 4ª ed. Hucitec, São Paulo.

Pereira Neto AF 2001. Ser médico no Brasil: o presente no passado. Fiocruz, Rio de Janeiro.

Vasconcelos EM 2001. A saúde nas palavras e nos gestos: reflexões da rede educação popular e saúde. Hucitec, São Paulo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jun 2007
  • Data do Fascículo
    Dez 2005
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