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Assim é se lhe parece!

Right you are, if you think you are!

DEBATEDORES DISCUSSANTS

Assim é se lhe parece!* * Alusão a obra de Pirandello 21.

Right you are, if you think you are!

Samuel Jorge Moysés

PUCPR e UFPR

Artigos de debates, com freqüência, conduzem os debatedores à peculiar situação de releitura compulsória do que escreveram, a partir da interpretação do Outro. Estaríamos, assim, diante de um impulso cooperativo por meio do qual a leitura realizaria o sentido ampliado da obra, com a "interferência autoral" do leitor (Rabenhorst1).

Mas, não são apenas potencialidades desejáveis as que entram em cena, sendo freqüente, também, a ocorrência de uma contaminação mítica, uma desnaturação dos argumentos originais (Barthes2). À luz do entendimento (e possível mitificação do sentido original dos argumentos apresentados por Botazzo), acredita-se que ele opera, primeiro, uma desconstrução e, depois, duas construções.

Na desconstrução, Botazzo lastra seu argumento crítico sobre os significados dados para a Saúde Bucal Coletiva (SBC), a partir de duas referências. Citando Narvai3, ele lembra que este autor, ao vincular a SBC aos serviços de saúde, encontrou oito distintos significados para a mesma, sendo, freqüentemente, significados excludentes entre si. Contudo, esboçando uma metacrítica, Botazzo profere: [...] ao se retirar o conteúdo crítico do conceito, nele se aniquilam as possibilidades de transformação e criação, sendo reduzido a um componente "odontológico", tornando-se um mero efeito de superfície. Quanto a Moysés & Sheiham4 ele observa que estes autores, interessados em discutir os elementos constituintes de uma teoria e suas formas elementares, [...] não se equivocam quando pensam produção científica como uma dimensão necessária para a construção social da SBC, mas repara que, pelo uso da noção de paradigma, tiveram a mirada reduzida.

Em contraponto às duas referências citadas acima, Botazzo realiza suas duas construções, com inegável originalidade e força conceitual: primeiro, reivindicando a cientificidade da SBC, pela explicitação do seu pertencimento às ciências humanas, que exige, entre outras coisas, o abandono da noção de paradigma; segundo, apresentando e discutindo o conceito de bucalidade, entendido como expressão dos trabalhos sociais que a boca humana realiza.

Quanto à desconstrução, Bobbio5 certa vez advertiu para o perigo de reagir a um excesso com outro excesso. Parece um excesso de Botazzo utilizar "recortes" de Narvai, bem como de Moysés e Sheiham, como se fossem "teses" a serem dialeticamente desmontadas em sua antitética formulação. Contudo, não parece correto executar o próximo movimento produzindo, aqui, um comentário que, sob o véu de uma síntese crítica, igualmente cometa excessos. Botazzo deve ter o mérito reconhecido pela totalidade de sua produção no campo da SBC e não a partir de "recortes" de seu artigo.

Mas, não se pode ignorar, olimpicamente, duas implicações de sua desconstrução. A primeira é que no texto citado de Moysés e Sheiham, ao contrário do que Botazzo afirma, os autores não trabalham sob inspiração kuhniana, nem, tampouco, pensam a SBC na perspectiva do paradigma. A segunda, é que o uso da "palavra" paradigma ­ como vocábulo incorporado na língua ­ não significa necessariamente aderência ao desenvolvimento histórico-teórico dado ao "conceito" kuhniano de paradigma.

Será melhor reconstituir a primeira implicação, enfatizando que a proposição de Moysés e Sheiham é sutilmente anti-kuhniana ou antiparadigmática. Obviamente, não se ignora Kuhn e seus conceitos, entretanto sua utilização tem o objetivo de trazê-lo para a arena dos debates necessários à SBC. Observe-se, por exemplo, a citação literal a seguir extraída de Moysés e Sheiham: Resta-nos, contudo, o consolo de uma visão sutilmente diferente de paradigma [...] a ciência vem trabalhando com paradigmas que, embora sejam convenientes operacionalmente, são simplificadores (ou redutores)... Embora o desenvolvimento do conhecimento científico seja poderoso meio de detecção dos erros e de luta contra as ilusões, os paradigmas que controlam a ciência jamais poderão ser antídotos onipotentes, pois não podem tratar sozinhos dos problemas epistemológicos, filosóficos, éticos, estéticos, dentre outros [...] (Morin6).

Botazzo não ajunta sua crítica à advertência, literal, acima. Surpreendentemente, em sua instigante desconstituição discursiva do conceito de paradigma, ele nos distrai de algumas passagens "quase-kuhnianas" do seu próprio discurso (a dialética do avesso), já que em suas próprias palavras: [...] Os problemas que cercam a saúde bucal coletiva são extensamente os mesmos que animam a produção teórica da Saúde Coletiva. São genericamente traduzidos como crises, e a eles vieram se juntar o de certa identidade, a emergência de uma nova saúde pública pelo envelhecimento do seu referencial teórico-metodológico. Ou, ainda, numa paráfrase ao pensamento althusseriano: [...] a produção teórica da saúde bucal coletiva é ainda bastante descritiva. Ela dá conta de ser um começo, o ponto inicial, "o princípio decisivo de qualquer desenvolvimento posterior da teoria", porque suas descrições [...] tornam possível fazer com que a vasta maioria dos fatos observáveis no domínio que a ela concerne corresponda à definição que ela fornece do seu objeto.

Sabemos que Althusser afastou resolutamente toda a questão da validação dos conhecimentos científicos, como sendo um preconceito da epistemologia burguesa. Houve porém uma definição central sobre a qual não vacilou: ideologia. A relação duplamente ilusória/concreta que os homens mantêm com as suas condições reais de existência. O "líquido amniótico" em que subsistem e que contribui decisivamente para a reprodução das suas relações vitais (Althusser7). É com o conceito de ideologia que Botazzo irá operar de modo mais consistente.

Quanto à segunda implicação, sabemos que toda língua moderna, como fenômeno vivo, apresenta uma dinâmica que, em seu uso corrente, faz perder o rastro original e a potência nominal das palavras. É o que parece ocorrer com a palavra paradigma. Sempre muito temida em círculos não esotéricos da ciência, agora Botazzo decreta sua inutilidade!? Observa-se, contudo, o uso do termo paradigma de modo pouco preciso ou, até mesmo, abusivo. Curiosamente, Kuhn o utiliza sob 21 maneiras diferentes (Masterman8).

Bem, de resto, paradigma tornou-se um lugar-comum. Foucault9 ensina o que é um lugar-comum: fórmulas ou clichês fixos e admitidos em esquemas formais ou conceituais, de que se servirão os escritores com freqüência. Ao contrário do clichê retórico ou da trivialidade, o lugar-comum foucaultiano é um espaço de encontro que reconduz o plural e diverso a uma unidade chocante. Aliás, citando Foucault9, e já que Botazzo considera foucaultianas algumas das primeiras referências ao que significa bucalidade [...] com seres de viscosidade e podridão sob os dentes e a saliva de Eustenes, façamos justiça a Rabelais10 (1955), já que é deste último tal passagem.

Ao reiterar a cientificidade da SBC pela explicitação do seu pertencimento às ciências humanas, Botazzo "exige um reposicionamento epistemológico, isto é, seu deslocamento do solo biomédico, e o abandono da noção de paradigma". Então, se há uma epistéme ­ uma mudança de olhar e um solo epistêmico ­, deve haver um conjunto de conhecimentos que tem por objeto o conhecimento científico.

Ao modo de Derrida11, vamos encontrar neste texto de Botazzo um esforço de desconstrução/construção duplo. Desconstrução sugere destruição, negação, niilismo. Entretanto, a desconstrução é uma estratégia afirmativa e não negativa. A estratégia consiste em buscar, numa herança da qual não podemos nos livrar, os recursos necessários para a desconstrução dessa mesma herança. Assim, para nos retirar do "solo biomédico", Botazzo reutiliza o próprio solo biomédico, em uma espiral crítica, para sugerir que [...] uma primeira tarefa da saúde [bucal] coletiva seria a de recuperar [sua] fisiologia e apresentá-la na forma dos trabalhos que a boca realiza. Não são, neste caso, apenas trabalhos sociais os trabalhos da boca identificados por ele ­ a manducação, a linguagem e a erótica. Pois queiramos ou não, para tais trabalhos há que haver um suporte biológico que o próprio Botazzo chama de "vísceras". Claramente, pode-se reconhecer que, na forma das ciências humanas, propiciaremos a emergência de novos objetos (ou funcionalidades) a estas vísceras.

Botazzo argumenta que os problemas derivados do conceito da SBC exigem um enfrentamento que só pode ser realizado com o uso das categorias de análise da Saúde Coletiva ou teoria social da saúde. Mas, esta ultrapassagem crítica é apresentada sem mediações. Assim, ao menos uma mediação aqui será referida, por economia de texto. E para manter fidelidade ao conjunto de referência que Botazzo cita, ao tratar do campo da Saúde Coletiva, será uma mediação a partir de autores que se supõem integrantes da mesma constelação cognitiva e política.

O problema kuhniano apontado por Botazzo, a saber, o uso de paradigma e uma história da ciência, em tudo desligada da história dos homens e, assim, anistórica, pois que se passa apenas na cabeça dos cientistas, parece ser problema na produção teórica também de parte da Saúde Coletiva.

Por exemplo, observemos Campos12 e Nunes13 que, curiosamente, no caso do primeiro, utiliza oito vezes a palavra paradigma ao longo do seu texto e, no caso do segundo, usa a palavra paradigma mesmo no título do artigo citado. Ambos, tratam de entender a Saúde Coletiva brasileira tanto como um campo científico quanto como um movimento ideológico em aberto, contribuindo para a construção do Sistema Único de Saúde (SUS) e para enriquecer a compreensão sobre os determinantes do processo saúde e doença. Mas, de modo contundente, também tratam de pensá-la para além do positivismo e do estruturalismo, fazendo uma crítica à sua tendência de assumir posição de transcendência sobre o campo da saúde.

Nesta linha, Campos12 julga importante aprofundar os motivos pelos quais, depois de denso desenvolvimento teórico e da incorporação de uma sofisticada trama de categorias sociológicas, a saúde coletiva brasileira continua tributária não da teoria crítica que construiu, mas de um pensamento sistêmico bastante pragmático e instrumental. Isto indicaria, na ótica de Botazzo, que a compreensão de qualquer crise se encontra fora da ciência, que não seria produtora de sujeitos. Afirmando isto, refere Althusser14 para quem todo discurso científico é um discurso sem sujeito, "pois não existe 'sujeito da ciência', a não ser numa ideologia da ciência." Esta é a tendência ideológica central do cientificismo, em que compromissos de valor são apresentados com suposta neutralidade e impessoalidade, num apelo à autoridade da "ciência", em cujo nome os interesses de dominação se impõem (Mészáros15). Com isto, também, se elide o sujeito epistêmico, que faz escolhas em sua produção/reprodução social, portanto, negando dialeticamente a possibilidade de afirmação de uma ciência sem sujeito (Foucault16).

Mesmo quando se tenta a incorporação do social, por exemplo na epidemiologia social ou crítica, que se imagina tributária da Saúde Coletiva, autores como Almeida-Filho17 observam: Em muitos modelos de investigação da chamada epidemiologia social, por exemplo, propõem-se objetos totalizados, sistemas dinâmicos e abordagens processuais histórico-estruturais. E como se operacionaliza essa pretensão? Com a condução de estudos de caso, enquetes operárias e avaliações de dados secundários? Para o autor, desta forma, produzem-se apenas cartas de intenções que não se cumprem com a desculpa de que os objetos são complexos e insubordinados e as técnicas são pobres e comprometidas. Ou seja, aponta uma "instabilidade de método", também.

Para concluir, ainda se faz necessário um breve e vertiginoso excurso sobre a obra de Kuhn, já que nossa oposição à visão kuhniana impõe aos praticantes da SBC prestar contas a si mesmos e a todos os demais sobre o respectivo modo de pensar. Como observou Jacobina18, antes de nos debruçarmos sobre o conceito de paradigma, poderíamos discutir, em primeiro lugar, a comunidade formada pelos cientistas. Fleck introduziu, e Kuhn assimilou, o conceito de "coletivo de pensamento" ­ Denkkolletiv ­ associado ao de "estilo de pensamento" ­ Denkstil (Maia19). Contudo, a obra de Kuhn absorveu a inclinação do seu momento político, especialmente da Guerra Fria (Babich20), desfazendo a semântica dos termos. Esta "comunidade científica" de Kuhn retém de Fleck somente uma vaga lembrança, o círculo esotérico do coletivo de pensamento, omitindo o seu refinamento estrutural e suas camadas intermediadoras socializantes. Aproximando-se da sociologia funcionalista, Kuhn transforma o conceito "aberto", de coletivo, no conceito "fechado", de comunidade. Assim, o modelo kuhniano realmente não serve à SBC, já que perde competência para avaliar transformações sociais, especialmente quando se pensa na iniqüidade social e sanitária vivenciada por importante parte da sociedade, sendo a "comunidade científica", fechada em si mesma, uma barreira às influências sociopolíticas.

E assim vamos, junto com Botazzo, reafirmando o reducionismo kuhniano e admitindo a Saúde Coletiva como inspiração para a SBC, mesmo sob a "tensão essencial de seu objeto e de seus métodos". E mesmo com o risco de que, seja qual for a denominação adotada ­ mudança de estilo de pensamento, ruptura epistemológica, viragem conceitual ou revolução científica ­, estejamos somente vivendo uma crise de identidade, já que a SBC toma emprestada sua estrutura teórica. Talvez, só haja Saúde Coletiva. Mas, crise de identidade é uma questão tipicamente pirandelliana!

REFERÊNCIAS

1. Rabenhorst ER. Sobre os limites da interpretação. O debate entre Umberto Eco e Jacques Derrida. Prim@ Facie 2002; 1(2):1-17.

2. Barthes R. Mitologias. São Paulo: Diefel; 1980.

3. Narvai PC. Saúde bucal coletiva: um conceito. Odont & Soc 2001; 3(1-2):47-52.

4. Moysés SJ, Sheiham A. Saúde bucal coletiva: personagens, autores ou... Pirandello de novo? In: Kriger L, editor. Promoção de saúde bucal: paradigma, ciência, humanização. São Paulo: Artes Médicas; 2003. p. 387-442.

5. Bobbio N. As ideologias e o poder em crise. Brasília: Editora Universidade de Brasília; 1999.

6. Morin E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez, Unesco; 2000.

7. Althusser L. Aparelhos ideológicos de Estado ­ nota sobre os aparelhos ideológicos de Estado. Rio de Janeiro: Graal; 1985.

8. Masterman M. The nature of a paradigm. In: Lakatos I, Musgrave A, editores. Criticism and the growth of knowledge. Cambridge: Cambridge University Press; 1970. p. 59-89.

9. Foucault M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes; 1992.

10. Rabelais F. Gargantua and Pantagruel. London: Penguin Classics; 1955.

11. Derrida J. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva; 1971.

12. Campos GWS. Saúde pública e saúde coletiva: campo e núcleo de saberes e práticas. Rev C S Col 2000; 5(2):219-30.

13. Nunes ED. Saúde coletiva: história e paradigmas. Interface ­ Comunic, Saúde, Educ 1998; 3:107-16.

14. Althusser L. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado (notas para uma investigação). In: Zizek S, editor. Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto; 1996. p. 105-42

15. Mészáros I. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo Editorial; 2004.

16. Foucault M. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes; 2004.

17. Almeida-Filho N. Os paradigmas da epidemiologia. In: Almeida-Filho N, editor. A clínica e a epidemiologia. Rio de Janeiro: Abrasco; 1992. p. 90-104.

18. Jacobina RR. O paradigma da epistemologia histórica: a contribuição de Thomas Kuhn. História, Ciências, Saúde ­ Manguinhos 2000; 6(3):609-30.

19. Maia CA. A domesticação da história das ciências pelo sistema das ciências. In: Soares LC; editor. Da revolução científica à big (business) science: cinco ensaios de história da ciência e da tecnologia. São Paulo: Hucitec; Niterói: EdUFF; 2001. p. 201-46.

20. Babich BE. Kuhn's paradigm as a parable for the Cold War: incommensurability and its discontents from Fuller's Tale of Harvard to Fleck's Unsung Lvov. Social Epistemology 2003; 17(2-3):99-109.

21. Pirandello L. Right you are, if you think you are. Mineola, NY: Dover Publications; 1997.

  • *
    Alusão a obra de Pirandello
    21.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Jun 2006
    • Data do Fascículo
      Mar 2006
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