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De saúde bucal, saúde mental, saúde sexual: o reiterado retorno à clínica

On oral health, mental health and sexual health: returning to clinic over again

DEBATEDORES DISCUSSANTS

De saúde bucal, saúde mental, saúde sexual: o reiterado retorno à clínica

On oral health, mental health and sexual health: returning to clinic over again

Wilza Villela

GT Gênero e Saúde da Abrasco. wilza.vi@terra.com.br

Honrada pelo convite do colega e amigo Carlos Botazzo para um diálogo em torno do seu artigo, causou-me agradável surpresa ler um texto que, sob o título "bucalidade", iniciava-se com uma longa digressão em torno da possibilidade do uso conceitual da idéia de saúde bucal coletiva.

Para Botazzo, este uso poderia ser autorizado pela legitimidade epistemológica do conceito, na sua relação com o campo da saúde coletiva, que lhe daria as fronteiras e os contornos teóricos, e pela potencialidade do pretendido conceito em produzir objetos e temas de investigação.

A análise da dinâmica do campo da saúde coletiva e dos limites à expressão da potencialidade conceitual da idéia de saúde bucal coletiva leva o autor a contrapô-la ao conceito de bucalidade, cunhado por ele mesmo em trabalho anterior1 e construído por referência às particularidades epistêmicas do campo da saúde coletiva, espaço no qual este tipo de problematização estaria inserido.

O percurso teórico que o autor realiza para sustentar a sua proposição parte da idéia de tomar conceitos como ferramentas, capazes de auxiliar no entendimento de questões postas pelo pensar-fazer humano e de, no processo de construção de respostas, identificar e propor novos problemas. É da natureza dos conceitos, dada a sua vinculação com a vida vivida, poderem, após algum uso, vir a se tornar pouco úteis, já que os problemas postos pela vida são móveis e dinâmicos como a própria vida. Rorty, por exemplo, propõe que pensemos nas mentes humanas como tramas de crenças e desejos, de atitudes sentenciais, que continuamente se reformulam de modo a acomodar novas atitudes sentenciais.2

Botazzo assinala que talvez o uso conceitual de "saúde bucal coletiva" produza mais problemas quanto à sua legalidade epistemológica do que soluções para o entendimento do mundo. O conceito de saúde bucal coletiva, estando referido ao conjunto de práticas e saberes articulados em torno da boca, como objeto, e inspirado por uma dada noção de saúde, seria inexoravelmente atravessado pelas injunções relacionadas à oferta de serviços de saúde, e que, no contexto brasileiro de implementação do SUS, é diariamente pressionado pela busca de modelos assistenciais que dêem conta de ampliar a cobertura garantindo qualidade, o que exige a simultânea produção e incorporação de tecnologias de alta e de baixa densidade3.

Admitindo que "saúde bucal coletiva" só teria sentido por referência à "saúde coletiva", é feita uma análise deste campo, sendo apontado, como uma de suas características, a natureza dupla e conseqüentemente ambígua dos seus objetos: corpos humanos e saúde.

Constituídos tanto na dimensão das materialidades biológicas quanto da sua produção histórico cultural, corpos humanos portam sujeitos e subjetividades, ou seja crenças e desejos. Falando das crenças, Rorty as define como um "mecanismo auto-reformulador, que produz movimentos nos músculos do organismo que estimulam para ação2. Neste sentido a própria idéia de saúde seria uma crença, pois, além de algumas positividades concretas e materializáveis aí articuladas, afigura-se também como um ideal utópico em torno do qual organizam-se uma série de fazeres e pensares sociais em contínua reformulação.

Esta característica sanitária e societária da saúde coletiva permite a formulação conceitual da idéia de "bucalidade", devendo ser reforçada que a opção por estes termos para definir saúde coletiva evita intencionalmente qualquer contraposição, em particular as que buscam opor materialidades, imaterialidades, mensurações e qualificações, objetividades e subjetividades. O mundo humano se constrói pela contínua objetivação, material ou não, das intenções ­ crenças, desejos, ações ­ dos sujeitos.

Bucalidade estaria relacionada à materialidade da cavidade bucal e suas estruturas, mas também às funções sociais da boca. Aqui devo dizer que, no afã de construir e defender o seu ponto de vista, Botazzo foi um tanto econômico na exploração destas funções, quando não problematiza a questão da fala e se furta a mergulhar na sabedoria dos ditos populares que tomam a boca como elemento simbólico de mediação das diferentes relações homem-mundo: "peixe morre é pela boca", "em boca fechada não entra mosca"; "ao notar que tu sorris todo mundo irá supor que és feliz".

Pela sua polissemia e abertura a múltiplas explorações e questionamentos, "bucalidade" reivindicaria para si o estatuto de conceito, ficando guardado o termo "saúde bucal coletiva" para definir aquele campo de práticas que, tomando como objeto a boca ­ órgão do corpo humano, área reservada à odontologia e de importância incontestável ­, transcende o nível dos cuidados clínicos estritos para incorporar também a vertente da organização das práticas, serviços e saberes relacionados à boca, na sua concretude anátomo-fisiológica.

A surpresa inicial pela originalidade da formulação deu lugar a alguns questionamentos e evocações, pautados pela minha experiência como trabalhadora da saúde, que passo a compartilhar com os eventuais leitores.

Em primeiro lugar, parece que, a existir um conceito de saúde bucal coletiva, deveria existir também conceitos de saúde mental coletiva, saúde sexual coletiva e tantos outros quantas fossem as funções humanas que, apoiadas numa corporeidade, real ou suposta, exigiriam cuidados específicos para a sua manutenção ­ o campo da saúde e, atravessadas por saberes e práticas que dizem respeito às culturas e às sociedades estariam definidas como coletiva. Desconheço tal profusão conceitual.

A segunda questão diz respeito à própria inspiração do debate. Perguntar se tal ou qual termo deve ser tomado como conceito nos leva a refletir sobre o conteúdo e a importância atribuída à idéia de "conceito", que justifica a elaboração do artigo.

Deveria ser o estatuto de "conceito" reservado apenas às idéias com força capaz de alavancar a prática de pesquisa? A capacidade explicativa dos conceitos ­ instrumentos do pensamento com a possibilidade, num momento dado, de produzir certa homogeneização e hegemonia nos modos de pensar e entender fenômenos do mundo ­ necessariamente equivale à sua capacidade de gerar problemas e objetos de investigação? De acordo com Rorty, qualquer disciplina que almeje um lugar ao sol mas é incapaz de oferecer as predições e a tecnologia fornecidas pelas ciências naturais precisa encontrar algum meio de obter o "status cognitivo" sem a necessidade de descobrir fatos4. Não residiria aí algo do afã da problematização sobre o status epistemológico de termos que, no geral, têm se mostrado úteis no estímulo da produção espiralar entre idéias e fatos?

Um campo instituído na interface de práticas e saberes, e marcado pela interdisciplinaridade que a natureza multifacetada dos seus objetos exige, como é a saúde coletiva, necessariamente configura espaços específicos de ação e reflexão, a partir da delimitação das fronteiras particulares, no caso, zonas corpóreas ou funções humanas, a que os termos "saúde" e "coletiva" estariam referidos. Se isto é dado, qual seria a necessidade da construção de uma taxonomia a partir da "grande árvore" saúde coletiva, para além de eventuais usos operacionais?

De um pensamento a outro, estas perguntas trouxeram-me à lembrança as longas discussões orquestradas pelo saudoso Sylvio Giordano com a equipe da Saúde Mental do Centro de Saúde Escola do Butantã, a respeito das diferenças entre psiquiatria e saúde mental. Entendida como um campo de práticas e saberes, de imediato a saúde mental se distinguia da psiquiatria pelo caráter disciplinar desta. Ademais, saúde mental remetia a uma prática assistencial vocacionada para lidar com as patologias mentais, mas também para acolher um volume grande de queixas que não tinha tradução simples ou imediata na nosologia psiquiátrica e ainda a um olhar para o sofrimento humano na perspectiva do bem-estar e da qualidade de vida, componentes da noção de saúde com o mesmo estatuto ético e humano que o da ausência de doenças.

Para além do tratamento das enfermidades, portanto, caberia aos trabalhadores de saúde mental a sua promoção, buscando, junto com seu usuário-interlocutor criar as condições possíveis de dignidade, bem-estar e felicidade, por meio da tentativa de redução das "dores da vida" e maximização das oportunidades de auto-realização dos usuários. Tal mudança na postura de trabalho exigia a produção de tecnologias e saberes próprios, e um certo consenso ético-moral da equipe que garantisse o deslocamento da idéia de ser um trabalhador da saúde mental para tornar-se um trabalhador pela saúde mental.

O desafio apresentado nesta proposta incluía a articulação entre um suposto conhecimento das causas e dinâmicas do adoecimento mental, que garantisse a intervenção clínica no processo, e uma empática e solidária escuta para as causas e dinâmicas do sofrimento psíquico, que garantisse a análise conjunta, trabalhador e usuário, do ponto onde deveria passar a linha demarcatória entre as dores da vida que aos humanos cabe aceitar e cada um consegue suportar. Análise sutil, dependente, no limite, de critérios éticos relativos à insuportabilidade ou inexorabilidade das dores do viver. Os sofrimentos considerados passíveis (dignos?) de redução eram considerados por referência à estratégia mais adequada de intervenção, sendo que grande parte resultava na prescrição de psicofármacos.

Originado, portanto, em proposições libertárias, como resposta aos excessos da psiquiatria institucional, a constituição do campo da saúde mental, traduzida na transformação das práticas, da nosologia e da organização dos serviços psiquiátricos e de saúde mental ocorreram pari passu com avanços na investigação clínica, epidemiológica e farmacológica relacionadas aos problemas mentais. Deste modo, este processo tanto estimulou ações e reflexões críticas e criativas sobre o cotidiano das pessoas, como também fomentou a constituição de novas categorias nosológicas, ampliando o leque de questões, cuja solução é buscada no espaço da saúde, contribuindo, assim, para o aprofundamento da tão exaustivamente denunciada medicalização da vida5.

Poder-se-ia dizer que este movimento ­ que transcende, embora incorporando, o movimento da reforma psiquiátrica ­ instituiu uma "saúde mental coletiva", como marco conceitual, embora este termo jamais tenha sido reivindicado por seus protagonistas.

À semelhança do campo da saúde bucal, a saúde mental configura-se como campo específico de e para o conhecimento, sustentado por um conjunto de práticas, atravessado por conceitos, idéias, ideologias e distintas demandas, originadas na indústria farmacêutica e na sociedade. Além disso é um campo que se enriquece pela incorporação dos novos conhecimentos derivados da genética, das neurociências, da ética e da filosofia, e também das exigências de reorganização dos serviços requeridas para a implementação do SUS. Seria, a partir disto, necessário cunhar um conceito que apontasse para todos os trabalhos sociais empreendidos por um órgão/função chamado mente?

Mesmo temendo maçar o leitor, faço outra breve evocação, também não especularmente acoplada às idéias apresentadas no artigo.

Anos depois das produtivas discussões relativas à reforma psiquiátrica, a urgência de enfrentamento da epidemia de Aids traz um novo estofo à idéia de sexualidade, que amplia seu conteúdo para além do estritamente sexual para incluir gostos, prazeres, preferências, práticas e fantasias, e cunha o conceito de "saúde sexual".

Definida por analogia à idéia de saúde da Organização Mundial de Saúde, saúde sexual implica ausência de doenças (notadamente as de transmissão sexual), ausência de qualquer modo de coação sexual (como a violência, a violação sexual e as demais formas de coerção sexual, presentes no sexo comercial, ou instituídas pela relação de poder entre homens e mulheres e pela estigmatização de gays e lésbicas, por exemplo) e presença de satisfação no ato.

Com um caráter bastante instrumental, o conceito de saúde sexual tem possibilitado uma série de intervenções de caráter médico e social, mas também ético e político, voltados para a sua conquista e garantia, o que muitas vezes traz no seu bojo a conquista e garantia de autonomia dos sujeitos.

Do mesmo modo, o conceito de sexualidade, que na sua ampliação recupera a perspectiva freudiana e atualiza a reflexão foucaultiana, tem inspirado um conjunto de investigações voltadas para desvendar a gama de variáveis e determinantes sociais e culturais dos atos eróticos e sexuais. A conexão entre objetividade e subjetividade, cultura e indivíduo, demonstrada nos estudos sobre sexualidade rompe com a idéia de que os impulsos sexuais e amorosos teriam sua origem, seu florescimento e fenecimento na intimidade de cada um, sem permeabilidade às outras intrusões do meio externo que não apenas a repressão.

A instrumentalidade dos conceitos de saúde sexual ou de sexualidade, tal como definidos, reduziriam o seu estatuto de cientificidade a ponto de podermos ser acusados de "hereges epistemológicos"? Ou de adotarmos o termo "conceito" com o mesmo sentido que lhe é atribuído pelo senso comum?

Cabe ressaltar que grande parte da produção sobre sexualidade e saúde sexual, no contexto da epidemia de Aids, toma como referência o campo de estudos de gênero, cujo status teórico e epistemológico também tem sido objeto de frutíferas problematizações, à semelhança das que encontramos no artigo de Botazzo. Embora não caiba, no âmbito destas notas, o aprofundamento das idéias que enriquecem o debate sobre o conteúdo e abrangência do uso de gênero na análise das relações sociais, deve-se assinalar que este debate tem propiciado o alargamento do olhar sobre diferentes fenômenos humanos contemporâneos, tais como a violência, a reprodução humana e produção de subjetividades.

A boca é um órgão. O sexo, uma função do corpo. O psiquismo é aquele dispositivo humano e social que possibilita que órgãos e funções sejam suportes da subjetivação humana. Os conceitos que daí se derivam dizem, ambos, respeito à multiplicidade de sentidos que se acoplam aos corpos e suas funções para transformá-los em agentes sociais e da cultura.

Que outras aproximações serão possíveis entre bucalidade e sexualidade, além do seu imbricamento semântico e funcional? Que outros motes nos instigariam, trabalhadores da saúde, a refletir, construir e desconstruir conceitos como estes, além do nosso compromisso com a clínica, que, no seu sentido ampliado, se oferece com lócus privilegiado de escuta, ausculta, produção e transformação de subjetividades?

Agradeço ao Carlos Botazzo a oportunidade de participar deste instigante diálogo e, mais uma vez, parabenizo a Revista pela proposta editorial desta seção de debates.

REFERÊNCIAS

1. Botazzo C. Da arte dentária. São Paulo: Hucitec; Fapesp; 2000.

2. Rorty R. Investigação enquanto recontextualização: uma avaliação antidualista de interpretação. In Rorty R. Objetivismo, relativismo e verdade. Rio de Janeiro: Relume Dumará; 2002. p. 131-53. (Escritos Filosóficos I).

3. Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. Propostas para Reorganização da Atenção Básica. São Paulo: SES; 2004. Mimeo.

4. Rorty R. Op. cit. p. 55-68.

5. Basaglia F. As instituições da violência. In: Amarante P, organizador. Escritos selecionados de Franco Basaglia. Rio de Janeiro: Garamond; 2005. p. 91-131.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jun 2006
  • Data do Fascículo
    Mar 2006
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