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A utilização de serviços de saúde por sistema de financiamento

An analysis of health services utilisation, by financing system

Resumos

Este artigo analisa, a partir de microdados de 1998 e 2003 da PNAD/IBGE, a utilização de serviços de saúde sob a perspectiva de seu financiamento ou, em outras palavras, sob o prisma do sistema de proteção à saúde pelo qual o serviço foi utilizado: se pelo Sistema Único de Saúde (SUS), ou seja, pelo sistema público financiado por meio de tributos; se por planos e seguros de saúde privados e financiados por prêmios pagos por beneficiários e/ou seus empregadores; ou, finalmente, se mediante a compra direta de serviços (pagamento direto no ato da utilização de serviços). Entre os principais resultados da análise, destacam-se os seguintes: 1) o SUS financia a maioria dos atendimentos e das internações realizados no País, participação que aumentou significativamente entre 1998 e 2003; 2) embora o número absoluto de atendimentos realizados pelos três sistemas de financiamento tenha aumentado, a expansão do SUS foi muito mais significativa e a ela correspondeu uma desaceleração do crescimento do gasto privado direto; 3) o SUS é o principal financiador dos dois níveis extremos de complexidade da atenção à saúde: o de atenção básica e o da alta complexidade.

Financiamento e utilização de serviços de saúde


This article analyses, from micro-data of the National Sample Household Survey (PNAD/IBGE) from 1998 and 2003, the utilisation of health services according to different financing systems. In other words, it analyses if this utilisation has been done through the National Health System SUS (public and universal health insurance, financed by taxes), through private health insurance (premiums paid by the insured population and/or their employers) or through out-of-pocket payments. The main results are: 1) SUS finances most of inpatient and outpatient utilisation and its participation has strongly increased from 1998 to 2003; 2) although the absolute number of outpatient utilisation made through the three systems has increased, SUS expansion has been much stronger (it increased 44%) and it corresponded to a slower increase (6,2%) of out-of-pocket utilisation and 3) SUS is the main financing system of the two extremes of complexity of health care: primary care and high complexity services.

Health services financing and utilisation


ARTIGO ARTICLE

A utilização de serviços de saúde por sistema de financiamento

An analysis of health services utilisation, by financing system

Silvia Marta PortoI; Isabela Soares SantosII; Maria Alicia Dominguez UgáI

IEscola Nacional de Saúde Pública, Fiocruz. Rua Leopoldo Bulhões 1.480, 7º andar, Manguinhos. 22241-210 Rio de Janeiro RJ. sporto@ensp.fiocruz.br

IIAgência Nacional de Saúde Suplementar

RESUMO

Este artigo analisa, a partir de microdados de 1998 e 2003 da PNAD/IBGE, a utilização de serviços de saúde sob a perspectiva de seu financiamento ou, em outras palavras, sob o prisma do sistema de proteção à saúde pelo qual o serviço foi utilizado: se pelo Sistema Único de Saúde (SUS), ou seja, pelo sistema público financiado por meio de tributos; se por planos e seguros de saúde privados e financiados por prêmios pagos por beneficiários e/ou seus empregadores; ou, finalmente, se mediante a compra direta de serviços (pagamento direto no ato da utilização de serviços). Entre os principais resultados da análise, destacam-se os seguintes: 1) o SUS financia a maioria dos atendimentos e das internações realizados no País, participação que aumentou significativamente entre 1998 e 2003; 2) embora o número absoluto de atendimentos realizados pelos três sistemas de financiamento tenha aumentado, a expansão do SUS foi muito mais significativa e a ela correspondeu uma desaceleração do crescimento do gasto privado direto; 3) o SUS é o principal financiador dos dois níveis extremos de complexidade da atenção à saúde: o de atenção básica e o da alta complexidade.

Palavras-chave: Financiamento e utilização de serviços de saúde

ABSTRACT

This article analyses, from micro-data of the National Sample Household Survey (PNAD/IBGE) from 1998 and 2003, the utilisation of health services according to different financing systems. In other words, it analyses if this utilisation has been done through the National Health System SUS (public and universal health insurance, financed by taxes), through private health insurance (premiums paid by the insured population and/or their employers) or through out-of-pocket payments. The main results are: 1) SUS finances most of inpatient and outpatient utilisation and its participation has strongly increased from 1998 to 2003; 2) although the absolute number of outpatient utilisation made through the three systems has increased, SUS expansion has been much stronger (it increased 44%) and it corresponded to a slower increase (6,2%) of out-of-pocket utilisation and 3) SUS is the main financing system of the two extremes of complexity of health care: primary care and high complexity services.

Key words: Health services financing and utilisation

Introdução

Este artigo tem por objetivo analisar, a partir de dados das PNAD 1998 e 2003, a utilização de serviços de saúde sob o prisma de seu financiamento ou, em outras palavras, sob o aspecto do sistema de proteção à saúde pelo qual o serviço foi utilizado: se pelo Sistema Único de Saúde (SUS), ou seja, pelo sistema de proteção vinculado ao sistema nacional de saúde, se por planos e seguros privados de saúde (asseguramento privado) ou se mediante a compra de serviços, com pagamento direto.

Diferentemente de outros trabalhos sobre o tema do financiamento setorial, este não o analisa a partir do volume de recursos movimentados pelos segmentos separadamente, e sim a partir do número de eventos de utilização de serviços cobertos por cada segmento, sendo uma análise descritiva desse fenômeno.

Aos três segmentos correspondem três formas de financiamento: o SUS é financiado por tributos diretos e indiretos das três esferas de governo; os planos e seguros de saúde privados são financiados pelos pagamentos mensais dos prêmios, efetuados pelos beneficiários individuais e, no caso dos beneficiários de planos coletivos, pelos pagamentos efetuados por eles e/ou pelas empresas que os empregam. Finalmente, aqueles que utilizam serviços de saúde sem ser por meio de nenhum sistema de asseguramento, o fazem mediante o pagamento direto no ato do consumo, conhecido na literatura internacional como out-of-pocket.

Assim, sob a perspectiva do financiamento, são abordadas numa primeira seção questões metodológicas; uma segunda seção analisa a distribuição da utilização dos atendimentos segundo sistema de financiamento, tipo de serviço recebido, região e decil de renda do usuário; e, ainda, é dado destaque à análise da distribuição dos atendimentos financiados pelo SUS. Numa terceira seção, são abordados os mesmos itens, em relação às internações hospitalares. Finalmente, a quarta seção do artigo refere-se às conclusões.

Notas metodológicas

O questionário da PNAD contempla as seguintes perguntas, que permitem identificar o sistema de financiamento pelo qual se deu a utilização de serviços:

1) "este atendimento de saúde foi coberto por algum plano de saúde?" (alternativas: SIM ou NÃO);

2) "pagou algum valor por este atendimento de saúde [...]?" (alternativas: SIM ou NÃO);

3) "este atendimento de saúde foi feito pelo SUS?" (alternativas: SIM, NÃO ou NÃO SABE).

As mesmas perguntas e alternativas de resposta foram elaboradas em relação às internações hospitalares. Deve-se destacar que as perguntas não foram excludentes e que, portanto, um mesmo indivíduo pode ter respondido SIM a mais de uma.

A opção metodológica foi a de considerar:

a) atendimentos ou internações cobertos pelo SUS: todas as respostas SIM à pergunta 3, independentemente de ter respondido positivamente à pergunta 2, e que tenha respondido NÃO à pergunta 1;

b) atendimentos ou internações cobertos por planos ou seguros de saúde: aqueles que disseram SIM à pergunta 1, independentemente de ter respondido SIM à pergunta 2, e NÃO ou NÃO SABE à pergunta 3;

c) atendimentos ou internações financiados diretamente com recursos do paciente foram considerados aqueles que responderam SIM à pergunta 2, excluindo aqueles que responderam SIM às perguntas 1 e/ou 3;

d) foi criada, ainda, uma quarta categoria, denominada "Outros", que inclui aqueles que não utilizaram o serviço pelo plano de saúde, não pagaram diretamente pelo serviço, e não utilizaram o serviço do SUS ou, ainda, aqueles que não souberam se utilizaram o serviço por intermédio do SUS. Esta categoria inclui, ademais, as pessoas que responderam SIM simultaneamente às questões 1 e 3 e, também, aqueles que tiveram atendimento mas cuja resposta foi classificada numa alternativa não-existente no questionário (código 9).

Entretanto, por não conseguirem informar o sistema de financiamento a que se referem, os dados desta categoria foram excluídos da análise. Vale mencionar que a comparação da participação desta categoria "outros" entre 1998 e 2003, que nada informa sobre o sistema de financiamento da utilização de serviços, se constitui num indicativo da consistência desses bancos de dados: a categoria "outros" representou, no caso dos atendimentos, 12,6% em 1998 e 6,9% em 2003; por sua vez, no que tange a internações, representou 7,3% em 1998 e 3,9% em 2003, o que evidencia uma clara melhoria na coleta e no processamento de dados, bem como ao tratamento dos mesmos efetuado pelo IBGE.

Destaca-se que na análise a seguir trabalhou-se apenas com as informações sobre utilização de serviços para as quais foi identificada a fonte de financiamento, o que equivale a dizer que foi excluído o item "outros".

Para identificar o volume de atendimentos ou internações cobertos por planos e seguros de saúde, mas que exigiram algum tipo de co-pagamento por parte do usuário, foram consideradas as respostas SIM às perguntas 1 e 2.

Foram identificados casos de pagamento de algum valor por serviços prestados pelo SUS. Estes correspondem à interseção dos conjuntos de respostas positivas às perguntas 2 e 3 e podem ser considerados ilegalidade ou mau preenchimento do questionário.

Deve-se observar também que, no que tange ao segmento "planos e seguros de saúde", foram considerados aqueles que correspondem a esquemas privados de utilização do serviço de saúde, independentemente da natureza da fonte financiadora (pública ou privada); assim, este segmento inclui tanto os planos privados puros como os planos dos militares e os dos servidores de administração pública municipal, estadual e federal.

Vale mencionar, também, que as informações referentes a atendimentos dizem respeito àqueles utilizados nas duas semanas prévias à pesquisa, enquanto as relativas a internações referem-se às utilizadas no ano prévio à pesquisa. Dessa forma, embora o conjunto de atendimentos inclua as internações hospitalares, na análise da utilização de internações segundo sistema de financiamento privilegiou-se o segundo tipo de dados.

Para trabalhar as informações sobre a utilização dos serviços de saúde com as da renda, utilizou-se o rendimento mensal familiar sem agregados que, conforme o glossário da publicação do IBGE "Acesso e utilização de serviços de saúde – PNAD 2003", é a soma dos rendimentos mensais dos componentes da família, exclusive os das pessoas com menos de 10 anos de idade e os daquelas cuja condição na família é de pensionista, empregado doméstico ou parente do empregado doméstico.

Neste artigo as informações de renda foram utilizadas para organizar as famílias em decis populacionais ordenados pela renda. Ao cruzar os dados referentes à utilização com os de renda, foram excluídas as pessoas que não informaram a renda, o que representou no caso dos atendimentos 3,4% em 1998 e 4,4% em 2003; por sua vez, no que tange a internações representou 2,7% em 1998 e 1,6% em 2003.

A distribuição dos atendimentos segundo sistema de financiamento

No ano de 2003, os atendimentos foram predominantemente realizados através do SUS, que participou com mais de 60% dos mesmos. Aumentou a participação do SUS na cobertura de atendimentos de saúde, quando comparada com 1998: ela passou de 56,1% para 61,3% dos atendimentos com fontes de financiamento identificadas, em detrimento fundamentalmente da participação do pagamento direto, cuja participação decresceu de 13,5% a 10,8% (Tabela 1).

Contribuiu, ainda, para essa situação o decréscimo da participação dos planos e seguros de saúde, que caiu de 30,5% em 1998 para 27,9% em 2003. Nesse movimento, a participação do SUS nos atendimentos cresceu 9,3%, enquanto a dos planos privados diminuiu em 8,4% e a do desembolso privado direto decresceu em 19,7%. Note-se que aumentou a participação dos atendimentos que exigiram co-pagamento do cliente entre os atendimentos realizados pelos planos ou seguros de saúde. Em 1998 os atendimentos que exigiram co-pagamento por parte do usuário representaram 12,2% dos atendimentos dos planos e seguros de saúde e em 2003 representaram 16,0%.

Se analisado o número absoluto de atendimentos realizados no Brasil, verifica-se que houve um aumento na sua utilização em todos os sistemas de financiamento. Neste período, o total de atendimentos financiados pelo SUS cresceu 44,5%; os providos por planos e seguros de saúde aumentaram em 21,0%; e o gasto privado direto cresceu apenas 6,2%. Assim, em valores absolutos, os três sistemas de financiamento apresentaram aumento; entretanto, o crescimento do número de atendimentos financiados pelo SUS foi muito superior ao dos demais sistemas. Parte do aumento dos atendimentos do SUS pode corresponder, no período de julho de 1998 a julho de 2003, a uma elevação de 22% no número de unidades ambulatoriais e de consultórios, de 21% do equipo odontológico, de 19% das salas de cirurgias ambulatoriais, de 17% das de pequenas cirurgias e de 15% das de gesso, segundo o SIA/SUS.

Os dados coletados em relação à utilização de atendimentos nas duas últimas semanas prévias à pesquisa PNAD mostram que em 2003 o SUS é, por um lado, o financiador predominante (quase absoluto) em consultas de agente comunitário ou parteira e vacinações e, por outro, nas internações e na quimioterapia, hemodiálise, hemoterapia e radioterapia, seguidas de consultas médicas. Portanto, é evidente que o SUS é o principal financiador dos dois extremos da assistência à saúde: o de atenção básica e o de alta complexidade.

Por outro lado, os pagamentos diretos são predominantes em consulta de farmácia (o que pode sugerir uma demanda reprimida por serviços de saúde) e atendimentos odontológicos, historicamente pouco cobertos pelo SUS1.

Embora de forma secundária, os planos e seguros de saúde privados participam fundamentalmente no financiamento de atendimentos executados por outros profissionais de saúde, imobilizações por gesso, cirurgia ambulatorial e exames complementares.

Quando analisada a variação entre 1998 e 2003, verifica-se um crescimento da participação do SUS em todos os tipos de atendimento, com exceção de "gesso e imobilização", no qual se verificou um aumento do gasto privado direto. Verifica-se especial aumento da participação do SUS nos atendimentos referentes a consultas de agente comunitário ou parteira (24,5%), "outros profissionais" (22,5%), exames complementares (13,9%), consulta odontológica (13,3%), ocorridos em detrimento, fundamentalmente, do gasto privado direto e, ainda, cirurgia ambulatorial.

Vale destacar o aumento da participação do gasto direto em cirurgias ambulatoriais (18,3%) e "gesso e imobilizações" (20,6%).

No que tange aos planos e seguros de saúde, tiveram sua participação elevada em relação a gesso e imobilizações (3,7%), em detrimento da participação do SUS.

Portanto, verifica-se uma expansão do SUS nos seus principais "gargalos" históricos, tais como exames complementares, consultas de outros profissionais e serviços odontológicos. O aumento da participação do gasto privado direto e do SUS nas cirurgias ambulatoriais merece futuros estudos no sentido de identificar eventuais transferências de cirurgias hospitalares para o âmbito ambulatorial.

Distribuição dos atendimentos por sistema de financiamento, segundo região

A maior taxa de crescimento da participação do SUS se deu na região Sudeste, exibindo uma variação positiva de 14,6%, sendo seguidas pelas regiões Centro-Oeste (9,4%) e Norte (9,1%), como se observa na tabela 2. Esta ênfase do SUS no financiamento de atendimentos no Sudeste é explicada pela expansão tardia do Programa Saúde da Família (PSF) nessa região quando comparada com as demais. Note-se que o número de agentes comunitários de saúde cresceu entre 1994 e 2003 nada menos que 325,7% no Sudeste, crescimento muito maior que o observado em nível nacional (76,9%) e nas demais regiões2.

No que tange aos planos e seguros de saúde, é interessante notar que sua participação só cresceu na região Sul, onde exibiu uma variação positiva de 3,6%, idêntica à do SUS. A participação deste segmento decresceu em todas as outras regiões e, principalmente, no Nordeste, onde diminuiu em 16,6%.

Vale registrar que a participação do gasto privado direto no ato da utilização diminuiu em todas as regiões, principalmente no Norte (32,5%), Sudeste (- 23,7%) e no Centro-Oeste (23,3%). Apesar dessa diminuição, existe estudo que mostra que o gasto privado direto é o segmento predominante do gasto privado em saúde, quando considerado em valores monetários3.

Dessa forma, é importante ressaltar que a elevação da utilização de atendimentos no Brasil foi possibilitada fundamentalmente pela expansão da intervenção estatal através do SUS e da diminuição do gasto privado direto. Por sua vez, a expansão acentuada da participação do SUS no financiamento dos atendimentos corresponde ao novo modelo assistencial que vem sendo implantado no país pelo Programa Saúde da Família.

Se observada a distribuição regional exclusivamente do total de atendimentos SUS em 2003 (Tabela 2), verifica-se que ela é semelhante à distribuição da população, bem como a distribuição das consultas médicas.

Entretanto, quando analisada a distribuição de cada tipo de atendimento SUS, segundo região de moradia do usuário, evidenciam-se diferenças importantes. A região Sudeste concentra uma parcela dos atendimentos SUS referentes a quimio, rádio e hemoterapia ou hemodiálise muito mais que proporcional ao tamanho de sua população (Tabela 3). Este fato era esperado, tendo em vista a distribuição regional da oferta desses serviços de alta e média tecnologia, o que corrobora a hipótese de que uma parcela da demanda de serviços de saúde é induzida pela oferta. As regiões Norte e Nordeste, inversamente, têm uma utilização desses serviços muito menos que proporcional ao tamanho de sua população, fato esse que se deve a uma escassez na oferta desses serviços nas referidas regiões4.

Observe-se, ainda, que apesar do expressivo aumento da participação do SUS nos atendimentos da região Sudeste referido anteriormente, motivado pela expansão do número de agentes comunitários de Saúde, ainda assim as consultas por agente comunitário ou parteira se concentram majoritariamente nas regiões Norte e Nordeste. Isto é devido à maior cobertura do PSF observada no Nordeste2. Esta, a princípio, corresponderia à lógica de implantação do programa que, como afirmam Marques & Mendes5, privilegiou inicialmente as localidades com os indicadores de saúde mais críticos e os municípios de pequeno e médio porte com baixa oferta de serviços e distantes dos grandes centros urbanos.

A distribuição das consultas odontológicas também se concentra no Nordeste, por terem sido incluídas as ações de saúde bucal no Programa Saúde da Família. Com a publicação da Portaria GM/MS nº 1.444, de 2000, que estabelece incentivo financeiro para a reorganização da atenção à saúde bucal prestada nos municípios por meio do Programa Saúde da Família, as ações de saúde bucal passaram legalmente a ser incluídas na estratégia do PSF. Cabe salientar que, até 2002, a proporção de serviços especializados de serviços de odontologia realizados pelo SUS em relação ao total de procedimentos clínicos odontológicos era de 3,5% segundo o SIA/SUS6.

Estes dados mostram a existência de dois modelos assistenciais, no âmbito do SUS: um que prioriza a atenção básica, predominante no Nordeste e Norte, e outro voltado para a alta complexidade, historicamente desenvolvido na região Sudeste.

Distribuição dos atendimentos por decil de renda, segundo sistema de financiamento

Como se observa na tabela 4 a participação do SUS no número de atendimentos em 2003 é predominante até o oitavo decil da população, inclusive. Por outro lado, como esperado, a participação do SUS é tanto maior quanto menor o nível de renda da população, que, nos dois decis superiores, passa a ser atendida preponderantemente pelos planos e seguros de saúde.

Quando comparados os anos de 1998 e 2003, verifica-se um aumento da participação do SUS na utilização de serviços efetuada por todos os decis. Este aumento do protagonismo do SUS se deu em detrimento do número de atendimentos financiados através de gasto privado direto, que caiu em todos os decis da população ordenada por renda. Em parte se deve também à diminuição da participação dos planos e seguros de saúde nos atendimentos utilizados pela população pertencente do 1º ao 9º decil.

Distribuição das internações, segundo sistema de financiamento

Houve um aumento da participação do SUS no financiamento das internações, em detrimento de um decréscimo da participação do gasto privado direto e dos planos e seguros de saúde privados no país (Tabela 5).

O SUS passou a ser responsável em 2003 por 69,9% das internações efetuadas no País, enquanto respondia por 67,1% em 1998. Por sua vez, o gasto privado direto caiu, na sua participação nas internações, passando de 7,3% em 1998 para 5,3% em 2003. Este movimento também se observa em relação à participação dos planos e seguros de saúde, que teve uma pequena diminuição, passando de 25,6% para 24,8%. Isso significou um crescimento da participação do SUS no financiamento das internações de 4,1% e uma diminuição de 27,9% da participação do gasto privado direto e, ainda, uma retração da participação dos planos e seguros de saúde de 2,8%.

Cabe destacar que diminuiu a participação das internações que exigiram co-pagamento do cliente entre as internações realizadas pelo plano ou seguro de saúde. Em 1998 as internações que exigiram co-pagamento por parte do usuário representaram 16,1% das internações dos planos e seguros de saúde e em 2003 representaram 14,8%.

Quando considerados os números absolutos, verifica-se que, embora a participação dos planos e seguros de saúde privados tenha decrescido, o número de internações efetuadas por este sistema aumentou. Tal queda da participação desse sistema de financiamento nas internações se deve ao crescimento mais acentuado do número de internações efetuadas pelo SUS, que cresceram 21,0%, enquanto as que foram financiadas pelos planos e seguros de saúde cresceram em apenas 13,0%. Ressalte-se, ademais, que diminuiu o número de internações financiadas através de gasto privado direto (-16,2%).

O maior protagonismo do SUS no número de internações por ele financiadas se dá, entretanto, em um contexto de diminuição do número de estabelecimentos hospitalares da rede SUS: eles caíram, segundo o SIH/SUS, de 6.366 em julho de 1998, para 5.864, em julho de 2003. Ainda, com exceção dos leitos de reabilitação, de hospital-dia e de UTI, houve o fechamento de todos os demais tipos de leitos, também segundo o SIH. Vale mencionar, também, que embora os dados da PNAD, que provêm da percepção dos usuários, indiquem um crescimento de 21,0% do número de internações efetuadas pelo SUS, quando observada a evolução do número de Autorizações para Internações Hospitalares (AIH) pagas pelo SUS no SIH, verifica-se uma diminuição de 1,26% entre julho de 1998 e julho de 20037.

A tabela 5 também mostra a predominância do SUS em todos os tipos de internações em 2003, especialmente no que tange aos partos normais, nos quais o SUS participa com 90,5% das respostas válidas, às internações psiquiátricas (79,6%), às internações para tratamento clínico (nas quais o financiamento do SUS participa em 75,7%) e às internações para exames (65,6%).

Uma possível explicação para a predominância de partos normais no SUS está dada pelas diferentes formas de remuneração de prestadores praticadas no SUS e nos planos privados, às quais se soma a impossibilidade de programar partos normais (contrariamente aos partos cesáreos), bem como às diferenças entre o tempo médio dedicado à realização destas práticas. Outra explicação pode ser dada pela diferença de níveis econômicos entre as usuárias do SUS e as dos planos e seguros de saúde. A comparação da proporção de partos cesáreos em relação ao total de partos efetuados pelo SUS em 2003 nas mulheres do menor decil de renda (25,2%) com os das mulheres de mais alta renda (68,4%) permite corroborar essa afirmação.

Quando comparados os resultados 1998 e 2003, verifica-se que a participação do SUS teve um maior crescimento no financiamento do número de internações para exames (11,6%) e cirurgias (11,4%) – em que pese uma diminuição de 6,2% do número de leitos cirúrgicos SUS segundo o SIH; esse aumento da participação do SUS no financiamento desse tipo de internações se deu em detrimento da participação do gasto privado direto. Inversamente, observa-se uma diminuição na participação do SUS em internações psiquiátricas, de 1,2%. Este fato, embora pouco significativo em termos numéricos, provavelmente deriva da política de desospitalização na área psiquiátrica, concomitante com o desenvolvimento dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e a diminuição dos leitos psiquiátricos vinculados ao SUS, de 11,4% entre julho de 1998 e julho de 2003. Entretanto, vale mencionar que foi expressiva a elevação dos planos e seguros de saúde privados na participação das internações dessa natureza, fundamentalmente devida à diminuição da participação do gasto privado direto e, também, provavelmente, em decorrência da promulgação da lei 9.656/1998, que passou a obrigar os planos e seguros de saúde privados comercializados a partir de 1999 a cobrirem esse tipo de serviço.

Vale mencionar, ainda, a diminuição da participação do gasto privado direto no financiamento do número de partos normais, cuja participação diminuiu em 43,2%.

Distribuição regional das internações

O crescimento da participação do SUS se deu em todas regiões, mas foi mais acentuado no Centro-Oeste (12,5%), Norte (7,7%) e Sudeste (4,1%). Nessas três regiões este aumento se deu em detrimento da participação tanto dos planos e seguros de saúde privados como do gasto privado direto. Diferentemente, na região Sul o crescimento da participação do SUS se deu em detrimento somente dos planos e seguros de saúde privados. Note-se, ainda, que no Norte e Centro-Oeste verifica-se uma acentuada queda da participação do gasto privado direto (respectivamente, -32,9% e -40,2%), como se verifica na tabela 6.

Distribuição das internações por decil de renda

Nas internações de 2003, predomina também o SUS na participação dos casos financiados, até o 8º decil da população ordenada por renda, inclusive; o que ocorria apenas até o 7º decil em 1998, conforme mostra a tabela 7. Da mesma forma que no caso dos atendimentos, este aumento da presença do SUS no financiamento do número de internações se deu, em geral, em detrimento do gasto privado (seja ele através de planos e seguros de saúde, ou através do pagamento direto no ato da utilização de serviços).

O aumento dos planos e seguros de saúde privados na participação do financiamento do número de internações se deu exclusivamente no último decil de renda. Eles cobrem em 2003 a maior parte das internações efetuadas apenas pelos 9º e 10º decil da população ordenada por renda. Observa-se, ainda, um decréscimo da participação deste sistema de financiamento na cobertura de internações em quase todos os decis.

No que tange à distribuição das internações SUS por decil de renda (Tabela 8), chama a atenção a maior participação das internações para cirurgia nos três decis de renda mais ricos; isto também se observa no que se refere às internações para exames, cuja participação no decil mais rico é aproximadamente o dobro da observada no decil mais pobre.

Vale ainda destacar o declínio da participação das internações por parto normal, à medida que a renda aumenta.

Conclusões

As informações analisadas neste artigo evidenciam um inegável avanço do SUS em todas as re-giões do país, tanto no que se refere à atenção básica quanto aos tratamentos hospitalares e exames de alta complexidade. Assim, o SUS é o agente financiador da maioria dos atendimentos e das internações realizadas no País, participando respectivamente em 61% e 70% dos mesmos, o que correspondeu a uma significativa expansão de sua participação entre 1998 e 2003, aumentando em 9,3% e 4,1%, respectivamente, para atendimentos e internações.

Por outro lado, observou-se que o SUS financia preponderantemente populações de baixa renda: a participação do SUS no número de atendimentos e de internações em 2003 é predominante até o oitavo decil da população. Ainda, como esperado, a participação do SUS é tanto maior quanto menor o nível de renda da população usuária.

O aumento dos "atendimentos" se deu predominantemente na região Sudeste; e isto (se deve) ocorreu no mesmo momento em que se deu a implementação do Programa Saúde da Família nessa região, a partir de 1998, ou seja, de forma mais tardia que nas demais. Diferentemente, o crescimento da participação do SUS nas internações foi mais acentuado nas regiões Centro-Oeste e Norte, tradicionalmente regiões de menor interesse para o segmento de saúde suplementar. O aumento dos atendimentos feitos pelo SUS, segundo a PNAD, corresponde a um aumento também da rede de serviços deste nível de atenção e da produção de serviços ambulatoriais segundo o SIA/SUS.

Embora o número absoluto de atendimentos realizados através dos três sistemas de financiamento tenha aumentado, a expansão do SUS foi muito mais significativa (com um aumento de 44%) e a ela correspondeu uma desaceleração do crescimento do gasto privado direto, que foi de apenas 6,2%.

Verificou-se, ainda, que o SUS é o principal financiador dos dois níveis extremos de complexidade da assistência à saúde: o de atenção básica e o de alta complexidade. Por sua vez, os pagamentos diretos são predominantes em consulta de farmácia (o que pode sugerir uma demanda reprimida por serviços de saúde) e atendimentos odontológicos (historicamente pouco cobertos pelo SUS).

No que diz respeito às "internações", foi também no SUS que se deu um maior aumento na sua participação, observando-se um maior crescimento no financiamento de internações para exames e cirurgias, em detrimento da participação do gasto privado direto.

Note-se que, quando considerados os números absolutos, se verifica que, embora a participação dos planos e seguros de saúde privados tenha decrescido, o número de internações efetuadas por este sistema aumentou. Isto se deve ao crescimento mais acentuado do número de internações efetuadas pelo SUS, que cresceram 21,0%, enquanto as que foram financiadas pelos planos e seguros de saúde cresceram apenas 13,0%. Contrariamente ao verificado em relação aos dados dos SIA/SUS para os atendimentos, no caso das internações realizadas pelo SUS, o aumento verificado segundo a PNAD não correspondeu a um aumento também da rede de serviços deste nível de atenção, tampouco da produção de serviços hospitalares segundo o SIH/SUS. Em relação ao gasto privado direto, ressalte-se, ademais, que diminuiu o número de internações financiadas através de gasto privado direto segundo a PNAD (-16,2%).

No que tange especificamente às internações realizadas por meio de planos e seguros de saúde, observou-se que, embora a regulamentação definida pela lei 9.656, e por instrumentos legais posteriores, tenha introduzido maiores exigências em termos de cobertura obrigatória, isso não se traduziu em aumento do co-pagamento, no caso das internações, por parte do usuário, já que houve uma queda na participação das internações que exigiram co-pagamento dos beneficiários de planos: de 16,1% em 1998, para 14,8% em 2003. Contrariamente, os atendimentos que exigiram co-pagamento por parte do usuário em 1998 representaram 12,2% dos atendimentos dos planos e seguros de saúde, e em 2003 representaram 16,0%.

Dessa forma, é necessário reconhecer que, embora o SUS não tenha ainda logrado cumprir inteiramente seus objetivos expressos em seus princípios norteadores – universalidade, integralidade e equidade –, é inegável que ele aumentou a sua participação no financiamento dos serviços realizados no país e que, assim, se verificou um considerável aumento da participação do Estado no âmbito da saúde, principalmente em favor das populações de mais baixa renda. Esta maior intervenção estatal no âmbito da saúde possibilitou uma importante redução do número de atendimentos e internações que demandaram pagamento direto, fato esse que favoreceu fundamentalmente os decis mais pobres da população.

Finalmente, vale destacar a importância da realização regular do suplemento referente à saúde da PNAD. Como mostra este artigo, graças a ela foi possível mensurar a evolução do SUS em termos de cobertura, bem como o comportamento do segmento de saúde suplementar e do gasto privado.

Deve-se ainda registrar uma clara melhoria na coleta e no processamento de dados da PNAD, bem como no tratamento dos mesmos efetuado pelo IBGE: a participação da categoria "outros", que nada informa sobre as variáveis estudadas, mas se constitui num indicativo da consistência desses bancos de dados, caiu significativamente entre 1998 e 2003 em relação a todas as variáveis estudadas.

Colaboradores

As autoras participaram na concepção, na análise dos resultados e na redação do texto. O processamento dos dados foi realizado por Isabela Santos.

Artigo apresentado em 7/04/2006

Aprovado em 24/04/2006

Versão final apresentada em 11/05/2006

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jun 2007
  • Data do Fascículo
    Dez 2006

Histórico

  • Aceito
    11 Maio 2006
  • Recebido
    07 Abr 2006
  • Revisado
    24 Abr 2006
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