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Agrotóxicos e doenças não transmissíveis

Pesticides and non-transmissible diseases

DEBATEDORES DISCUSSANTS

Agrotóxicos e doenças não transmissíveis

Pesticides and non-transmissible diseases

William Waissmann

Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. waissman@ensp.fiocruz.br

A agricultura intensiva é um dos esteios históricos da lógica exportadora do estado brasileiro. Mais que significar um espaço produtivo gerador de bens populares, vem significando, ao longo dos séculos, momento perpetuador do uso abusivo e exclusivo do solo, a permitir desde a utilização da força de trabalho escrava até a expulsão da terra de levas intermináveis de migrantes que acabam por fluir aos grandes centros.

A violência do trabalho em meio rural mal era abordada nas primeiras normas acidentárias brasileiras (Lei nº 3.724/19191), quando só se admitia haver lesão indenizável oriunda de trabalho agrícola quando este fosse relacionado a máquinas à combustão, como se estas fossem freqüentes em um país ainda pouco urbanizado e pobre no início do século XX.

Mas, se houve melhorias normativas com as décadas, as mazelas também se diferenciaram qualitativamente. Os agrotóxicos, subprodutos da tecnologia de guerra, tiveram seu uso fortemente estimulado por política de estado a partir da década de 1970, com a concessão de crédito agrícola naquele período sendo vinculada à sua aquisição, e por oferta que exaltava suas propriedades de reduzir trabalho com pragas e de beneficiar alimentos, população e trabalhadores. Passaram os agrotóxicos a compor a vida diária de milhões de trabalhadores do campo, que a eles se expõem ocupacionalmente com suas famílias, assim como também se incorporaram à dieta dos brasileiros do campo e das cidades, presentes que estão nos alimentos.

De fato, os quase 4,5 bilhões de dólares que se estima terem sido as vendas brasileiras de agrotóxicos em 20042 estão ao alcance dos pratos e das implicações relacionadas à saúde. Consulta ao Sistema Integrado de Informações sobre Agrotóxicos (SIA), mantido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), revela, como exemplo, que para a cana-de-açúcar e a soja, duas das grandes culturas agrícolas nacionais, há autorização de utilização de 61 e 127 ingredientes ativos diferentes de agrotóxicos, respectivamente, dos mais variados grupos químicos e classificações toxicológicas3.

De mais de 4.000 amostras de vegetais coletadas em supermercados de doze capitais, entre 2001 e 2004, analisadas em programa de monitoramento coordenado pela ANVISA, detectou-se resíduos de agrotóxicos em mais de 50%, sendo que, destas, quase um terço apresentavam resíduos irregulares, ou seja, acima de quantidades permitidas ou oriundos de agrotóxicos de uso não autorizado para os vegetais onde foram encontrados4.

Fato lembrado por Miranda et al.5, no artigo que serve de base a estas observações, e que aqui se ressalta, é a possibilidade de associação entre exposição a agrotóxicos e doenças crônicas não transmissíveis como cânceres, endocrinopatias, neuropatias e outras. A prevalência de algumas destas afecções tem se elevado e contaminantes ambientais, como é o caso dos agrotóxicos, podem estar associados às suas gêneses muitas vezes multifatoriais. Reconhecer essa possibilidade associativa é importante para o sistema de vigilância em saúde, que deve estar alerta para potenciais efeitos advindos de contaminações ambientais e ocupacionais e buscar a pesquisa de causas ambientais, como os agrotóxicos, na gênese de agravos de natureza crônica.

É assim que, ao lado de se reconhecer o potencial carcinogênico de alguns agrotóxicos em animais, estudos epidemiológicos em humanos apontam a possibilidade de associação entre vários tipos de cânceres e exposição a agrotóxicos. Dentre os cânceres mais proeminentes encontram-se os linfohematopoiéticos6,7,8, com destaque para exposição ocupacional e infantil, e os hormônio-dependentes9,10, havendo ainda, em nosso meio, possível relevância para os cânceres gastroesofágicos11.

Vários agrotóxicos possuem efeitos estrogênicos e/ou anti-estrogênicos e/ou anti-androgênicos ou sobre outros segmentos do sistema endócrino na dependência de suas características físico-químicas, dose, afinidade por receptores, espécie atingida etc12. Apesar da maioria das alterações endócrinas terem sido detectadas em estudos animais, é relevante que se destaque as potenciais associações com alterações hipofisárias, tiroideanas, do metabolismo lipídico e glicídico, do ciclo menstrual, testiculares, espermáticas, e com queixas de impotência sexual, dentre outras13.

Agrotóxicos de vários grupos, como organofosforados, carbamatos, organoclorados, piretróides e outros, associam-se a efeitos neurológicos agudos quando em exposições em altas doses. Podem haver seqüelas tanto sensitivas quanto motoras, além de déficits cognitivos transitórios ou permanentes. Exposições crônicas a baixas doses também têm sido associadas à presença de sintomas neuropsíquicos, assim como cabe destaque à possível inter-relação entre exposição crônica a agrotóxicos e o desenvolvimento de doenças degenerativas do sistema nervoso central14,15,16,17.

Agrotóxicos são produtos de alto risco que se tornaram parte da vida diuturna rural e urbana. Assim, se o incentivo ao conhecimento pormenorizado de seus efeitos crônicos é importante, já que muitos dos efeitos permaneceriam mesmo que todos os agrotóxicos fossem banidos de uma só vez pela meia vida longa no corpo que muitos apresentam, é fundamental que se estimulem de forma prioritária as restrições aos seus usos pelos riscos que oferecem. Como um estímulo à promoção da saúde, projetos que visem, como exemplo, a substituição dos produtos mais tóxicos e alternativas de produção não geradoras de patologias deveriam estar entre aqueles que recebem estímulos e fomentos para pesquisas dos órgãos governamentais responsáveis pela saúde das populações.

Referências

1. Lei nº 3.724 de 15 de janeiro de 1919. Regula as obrigações resultantes dos acidentes do trabalho. Coleções das Leis do Brasil 1919:166.

2. Camargo MLB, Ferreira CRRPT, Frozaglia T, Ângelo JA, Freitas BB, Ferreira TT. Dispêndio com defensivos agrícolas na agricultura da cana-de-açúcar, Estado de São Paulo e Brasil 2005. [acessado 2006 Ago 12]. Disponível em: http://www.iea.sp.gov.br/out/verTexto. php?codTexto=4258

3. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Sistema de Informações sobre Agrotóxicos. Módulo Pós-Registro. Pesquisa de Princípio Ativo. [acessado 2006 Ago 12]. Disponível em: http://www4.anvisa.gov.br/AGROSIA/asp/frm_pesquisa_ingrediente.asp; 2005a

4. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Controlando Agrotóxicos nos Alimentos: o trabalho desenvolvido pela ANVISA com as vigilâncias dos Estados do AC, ES, GO, MG, MS, PA, PE, PR, RJ, RS, SC, SP, TO, a FIOCRUZ/INCQS e os laboratórios IAL/SP, IOM/FUNED, LACEN/PR E ITEP/PE . Relatório de atividades 2001 2004. [acessado 2006 Ago 12]. Disponível em: http://www.anvisa.gov.br/toxicologia/residuos/rel_anual_ 2004.pdf; 2005b

5. Miranda AC, Moreira JC, Carvalho R, Peres F. Neoliberalismo. Uso de agrotóxicos e a crise da soberania alimentar no Brasil. Rev C S Col. No prelo 2006.

6. Lee WJ, Hoppin JA, Blair A, Lubin JH, Dosemeci M, Sandler DP, et al. Cancer incidence among pesticide applicators exposed to alachlor in the Agricultural Health Study. Am J Epid 2004; 159(4):373-80.

7. Mills PK, Yang R, Riordan D. Lymphohematopoietic cancers in the United Farm Workers of America (UFW), 1988-2001. Cancer Causes Control 2005; 16(7):823-30.

8. Reynolds P, Von Behren J, Gunier RB, Goldberg DE, Hertz A, Harnly ME. Childhood cancer and agricultural pesticide use: an ecologic study in California. Environ Health Perspec 2002; 110(3):319-24.

9. Ejaz S, Akram W, Lim CW, Lee JJ, Hussain I. Endocrine disrupting pesticides: aleading cause of cancer among rural people in Pakistan. Exp Oncol 2004; 26(2): 98-105.

10. Van Maele-Fabry G, Willems JL. Prostate cancer among pesticide applicators: a meta-analysis. Int Arch Occup Environ Health 2004; 77(8):559-70.

11. Meyer A, Chrisman J, Moreira JC, Koifman S. Cancer mortality among agricultural workers from Serrana Region, state of Rio de Janeiro, Brazil. Environ Res 2003; 93(3):264-71.

12. U.S. Environmental Protection Agency. Endocrine Disruptor Screening Program. Second Interim Report of the Screening and testing Work Group. [acessado 2006 Ago 18]. Disponível em: http://www.epa.gov/scipoly/oscpendo/edsparchive/2ndinter.htm

13. Waissmann W. Endocrinopatologia associada ao trabalho. In: Mendes R, organizador. Patologia do Trabalho. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Atheneu; 2003, v. 02, p. 1094-1139.

14. Kamel F, Hoppin JA. Association of Pesticide Exposure with Neurologic Dysfunction and Disease. Environ Health Perspec 2004; 112(9):950-958, 2004.

15. Lotti M, Moretto A. Organophosphate-induced delayed polyneuropathy. Toxicol Review 2005; 24(1):37-49.

16. Meggs WJ. Permanent paralysis at sites of dermal exposure to chlorpyrifos. J Toxicol Clin Toxicol 2003; 41(6):883-6.

17. Secretaria de Vigilância Sanitária. Manual de Vigilância da Saúde de Populações Expostas a Agrotóxicos. Brasília: OPAS/OMS; 1996.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Jan 2007
  • Data do Fascículo
    Mar 2007
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