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Uso de drogas entre adolescentes jovens: perspectivas de prevenção no contexto das relações familiares e da educação à luz dos princípios e práticas de redução de danos

Drug use among young adolescents: prospects for prevention within the context of family relationships and education in the light of damage control principles and practices

DEBATEDORES DISCUSSANTS

Uso de drogas entre adolescentes jovens: perspectivas de prevenção no contexto das relações familiares e da educação à luz dos princípios e práticas de redução de danos

Drug use among young adolescents - prospects for prevention within the context of family relationships and education in the light of damage control principles and practices

Tarcisio Matos de Andrade

Departamento de Medicina da Faculdade de Medicina da Bahia, Universidade Federal da Bahia. tarcisio@ufba.br

A relação entre pais e filhos: fundamentos da prevenção do uso de drogas

Na sua canção "Sapato 36" (1977), diz o cantor e compositor brasileiro Raul Seixas: "eu calço é 37, meu pai me dá 36, dói, mas no dia seguinte aperto meu pé outra vez"; e adiante "porque cargas d'água você acha que tem o direito de sufocar tantas coisas que trago em meu peito". E conclui com "pai, estou indo embora, quero partir sem brigar, já escolhi meu sapato que não vai mais me apertar". A diferença de tamanho do sapato é uma metáfora do conflito de gerações e a escolha dos próprios sapatos, uma metáfora da autonomia dos filhos ao se tornarem independentes.

Mais que prover os sapatos, ajudar a escolhê-los traduz o verdadeiro papel dos pais. A provisão dos sapatos é da ordem do cuidado e pode implicar apenas na entrega do dinheiro necessário a sua aquisição; já a ajuda na escolha dos mesmos pressupõe, além da presença física, um saber sobre a preferência e os valores do filho, algo que é da ordem da subjetividade, da preocupação com o outro e, portanto, demanda tempo. Tempo, em um tempo que não se tem tempo para nada. Eis a questão.

Filhos independentes, autônomos, autênticos significam filhos que vão embora; implica, portanto, em perda e separação. A adolescência é, como todos sabemos, um período de instabilidades, marcada, inclusive, pelas mudanças físicas que surpreendem, gratificam, mas também incomodam aos próprios adolescentes e aos seus pais. Em parte, por conta da velocidade dessas mudanças, o adolescente não tem um lugar definido e se vê colocado entre dois mundos: o da criança que não é mais e o do adulto que ainda não é. Os pais ratificam essa posição aos lhes cobrar responsabilidades com frases do tipo "você não é mais uma criança" e ao lhe negar direitos com outras do tipo "você ainda não é um adulto". Mas o que efetivamente coloca o adolescente no lugar de quem não tem lugar é ouvir dos pais algo como "estude para ser alguém na vida". O que significa que naquele momento ele não é alguém.

Os pais tentam prover aos filhos o conforto que idealizam para eles próprios, muitas vezes propiciando em excesso - e mesmo, para além de suas possibilidades - o que os filhos demandam, ao mesmo tempo em que os mantêm afastados de toda a dureza do trabalho e das responsabilidades do cotidiano1. A facilidade de ir e vir, os meios de comunicação e os avanços tecnológicos parecem ter feito dos filhos, ainda muito jovens, pessoas preparadas para a vida. Os cuidados providos pelos pais parecem fazer suplência à criação dos filhos. Compra-se segurança, transporte, educação, meios de comunicação, e se tem a sensação de que tudo foi dado; aparentemente têm tudo, mas em verdade têm pouco ou nada do que realmente necessitam a verdadeira preocupação dos que por eles são os responsáveis.

De uma maneira geral, os pais se sentem preocupados com os filhos e pagam com noites insones, apreensões, ansiedade e medo o preço dessas preocupações. È natural e saudável para os filhos que os pais se preocupem com eles. No entanto - quando se trata de verdadeira preocupação - ouvi-los e saber o que se passa é de fundamental importância para se evitar atitudes intempestivas e melhor orientá-los em relação ao futuro. Suponhamos, por exemplo, que o colega que daria carona ao filho na volta para casa, no horário que esse combinara com os pais, se encontrava alcoolizado e ele preferiu não arriscar, aguardando algum tempo até providenciar outra forma de condução. Se não houver de parte dos pais o espaço necessário para a análise desse fato, mas apenas a repreensão pelo atraso, dois possíveis caminhos podem ser tomados: a) submissão, sempre, ao estabelecido, ainda que com o risco de pagar com a própria vida, como tem acontecido a milhares de pessoas nos acidentes de veículos quando se combina uso de álcool e direção ou b) um distanciamento em relação aos pais, não se estabelecendo acordos ou descumprindo o que fora estabelecido por julgá-lo inaceitável.

Outro aspecto relevante no desenvolvimento das crianças e dos adolescentes diz respeito à identificação pelo ter, uma marca dos tempos atuais onde o processo de inclusão social se faz pelo poder de consumo e da qualidade do que se consome. Há uma generalização das necessidades em detrimento dos valores individuais. Se a moda é usar uma determinada marca, freqüentar um determinado local, assistir ao show de uma determinada banda, todos devem fazê-lo - e isso não apenas entre os jovens; para os adultos, a boa norma pode ser ter taxas de colesterol sob controle, ser esbelto, parecer jovem, freqüentar determinado restaurante e assim por diante.

Trata-se de um processo de alienação ao mercado, intermediado pelo poder da propaganda a serviço do capital, cujos princípios não incluem o outro enquanto objeto de suas preocupações, mas reduzido à condição de consumidor À medida que esses processos de indiferenciação avançam, a suplência a uma identidade própria se faz de forma concreta. Aí reside o avanço da estética corporal que inclui as cirurgias plásticas, a malhação, o uso de anabolizantes, as tatuagens, os "piercings"; bem como as práticas transgressivas, que vão da simples subversão de costumes, passando pelo abuso de drogas, até a organização em grupos fundamentalistas com acentuada intolerância às diferenças.

O uso de drogas: prevenção e redução de danos

Seguindo-se a diferença entre cuidado e preocupação, examinemos o cotidiano das crianças na busca constante de testar possibilidades e limites. Suponhamos que ao ver o filho trepado em uma árvore, os pais, os professores ou alguém nessa posição o repreenda dizendo: "menino, desça daí", "isso é perigoso". Ou mesmo: "você quer morrer"? Em sua natural teimosia e necessidade - e isso é constitutivo para as crianças – ele certamente voltará a subir na árvore, mas desta feita, longe do olhar de um adulto, o que, em caso de acidente, pode retardar o socorro necessário. Ao invés da repreensão, o adulto pode, conversando com a criança a respeito dos riscos de sua atividade, propiciar-lhe orientações sobre segurança, a exemplo da necessidade de checar a firmeza de cada galho para onde pretende se deslocar; de evitar subir na árvore em dias de chuva e sem calçados, uma vez que essas condições aumentam o risco de escorregar e sofrer uma queda.

Os princípios que regem esse tipo de orientação, em que a segurança é colocada em primeiro lugar, constituem as bases da abordagem originalmente aplicada ao uso/abuso de drogas, conhecida como redução de danos. Ela se aplica bem às situações onde a interdição de uma dada atividade ou comportamento, como no exemplo acima e no próprio uso de drogas, não logra êxito, seja pela impossibilidade do seu protagonista se manter afastado da mesma, seja pela vontade de continuá-la.

Sobre os dizeres dos pais aos seus filhos, quando se diz à criança algo do tipo "você quer morrer? e tantos outros rótulos e/ou comentários que se fazem sobre os filhos, a exemplo de "nervosos", "inquietos", "endiabrados" ou mesmo algo como "esse menino não vai dar para nada", é preciso refletir sobre a responsabilidade de quem diz, por aquilo que diz. É evidente que se um irmão, após uma desavença, ouvir do outro "eu quero que você morra, que um carro lhe atropele", é completamente diferente de ouvir essas mesmas palavras, ainda que na mesma entonação e intensidade de voz, de um dos pais. Dependendo de quem diz, as palavras produzem conseqüência de maior ou menor intensidade.

Reflitamos sobre frases como "drogas é um caminho sem volta", advindas muitas vezes de pais, professores e adultos em geral na tentativa de preservar os jovens do uso/abuso de drogas. Ao concluir o curso colegial, 54% dos jovens americanos tinham experimentado algum tipo de droga, em algum momento de suas vidas2; 90% desses jovens entre 12 e 17 anos que já haviam usado maconha se abstiveram do uso dessa droga alegando como motivo os cuidados com a própria saúde e os seus efeitos negativos3; apenas 1% daqueles que haviam experimentado maconha passaram ao uso de cocaína4. Logo, para esses jovens, que em algum momento da vida, experimentam drogas ilícitas e não deram segmento a essa prática, a afirmativa acima soa como uma grande mentira. Isso tem como conseqüência o descrédito do mundo dos adultos e junto o descarte de informações verdadeiras, a exemplo da diferença de potencial aditivo entre uma droga e outra. Diante de afirmações do tipo "todas as drogas são iguais" ou "todas as drogas causam dependência", ao verificar que o uso de drogas como a maconha, considerada "leve", não os tornou dependentes, alguns jovens tendem a estender essa percepção a outras drogas, como a cocaína e a heroína, com o risco de virem a pagar com isso um preço muito alto.

Sobre esse assunto, é preciso ser mais realista, estar mais próximo das verdades científicas e passar aos jovens informações verdadeiras, lhes propiciando escolhas conscientes, sensatas e mais seguras. Desse modo, eles estarão mais preparados para, ao se engajarem em práticas de risco, se proteger da melhor maneira possível.

Referências

1. Calligaris C. Crônica do individualismo cotidiano. São Paulo: Ed. Ática; 1996.

2. Johnston LD, O'Malley PM, Bachman JG. National Survey Results on Drug Use from Monitoring the Future Study. Rockville, MD: U.S. Department of Health & Human Services; 1998.

3. SAMHSA, Office of Applied Studies, National Household Survey on Drug Abuse. Main Findings. Washington, DC: National Clearinghouse for Alcohol and Drug Information; 1999.

4. Zimmer L, Morgan JP. Marijuana Myths, Marijuana Facts: A Review of the Scientific Evidence. New York: The Lindesmith Center; 1997.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2007
  • Data do Fascículo
    Out 2007
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