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Adolescentes em conflito com a lei

Adolescents in conflict with the law

Resumos

O estudo focou o adolescente autor e vítima da violência, fenômeno crescente no Brasil. Dados coletados dos prontuários dos internos de São José do Rio Preto e seleção das variáveis: local de moradia, idade, escolaridade, tipo e local das infrações, uso de drogas e ocupação, composição familiar, renda, escolaridade e trabalho dos pais. Os resultados revelaram perfil sociodemográfico, infracional e relacional de parte significativa com 17 anos, ensino fundamental incompleto, evadido da escola, sem trabalho e residente na região norte, de menor poder socioeconômico. A infração de maior percentual foi roubo, seguida de furto, tentativa de homicídio, homicídio, roubo qualificado, tráfico de drogas e roubo com morte, nos bairros da região norte. A maioria usava tabaco, maconha, álcool, crack; a minoria, cocaína, thinner e cola. Detectou-se realidade precária de familiares com baixo nível de renda, escolaridade, profissão e abuso de álcool, contribuindo para transformar os adolescentes em vítimas. A maioria das mães, provedora do lar, principal figura na internação e mediadora entre o adolescente, o poder judiciário e a comunidade. Considerando o elevado custo da violência interpessoal, concluímos, nesse estudo, a necessidade de políticas públicas para crianças e adolescentes na cidade de São José do Rio Preto.

Violência; Adolescência; Políticas públicas


This study is focused on teenagers who behave violently and who are also victims of violence. The data was collected from records of adolescent inmates in São José do Rio Preto. The variables selected were: place of residence, age, education level, type of offense, drugs use, family income, parent education levels, jobs. The findings disclose a social and demographic profile for teenagers around seventeen years old with only elementary education. The most common offence was robbery; followed by theft, homicide, drug dealing, and robbery leading to death. Most of these teenagers smoked tobacco and marijuana, drank alcoholic beverages and took crack. The data indicate a context defined by precarious living conditions where family members have low incomes and poor job skills, together with alcohol abuse. As a result, they help turn teenagers into victims of society. The mother - who typically supports the household - is the strongest presence during the incarceration period, serving as a mediator between the adolescent in conflict with the law, the courts and the community. In view of the high costs of interpersonal violence, it is necessary to develop and implement a municipal strategy for children and adolescents in São José do Rio Preto.

Violence; Adolescence; Government policies


ARTIGO ARTICLE

Adolescentes em conflito com a lei

Adolescents in conflict with the law

Roseana Mara Aredes Priuli; Maria Silvia de Moraes

Departamento de Epidemiologia e Saúde Coletiva, Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto. Av. Brigadeiro Faria Lima 5416, Vila São Pedro. 15090-000 São José do Rio Preto SP. rosianap@terra.com.br

RESUMO

O estudo focou o adolescente autor e vítima da violência, fenômeno crescente no Brasil. Dados coletados dos prontuários dos internos de São José do Rio Preto e seleção das variáveis: local de moradia, idade, escolaridade, tipo e local das infrações, uso de drogas e ocupação, composição familiar, renda, escolaridade e trabalho dos pais. Os resultados revelaram perfil sociodemográfico, infracional e relacional de parte significativa com 17 anos, ensino fundamental incompleto, evadido da escola, sem trabalho e residente na região norte, de menor poder socioeconômico. A infração de maior percentual foi roubo, seguida de furto, tentativa de homicídio, homicídio, roubo qualificado, tráfico de drogas e roubo com morte, nos bairros da região norte. A maioria usava tabaco, maconha, álcool, crack; a minoria, cocaína, thinner e cola. Detectou-se realidade precária de familiares com baixo nível de renda, escolaridade, profissão e abuso de álcool, contribuindo para transformar os adolescentes em vítimas. A maioria das mães, provedora do lar, principal figura na internação e mediadora entre o adolescente, o poder judiciário e a comunidade. Considerando o elevado custo da violência interpessoal, concluímos, nesse estudo, a necessidade de políticas públicas para crianças e adolescentes na cidade de São José do Rio Preto.

Palavras chave: Violência, Adolescência, Políticas públicas

ABSTRACT

This study is focused on teenagers who behave violently and who are also victims of violence. The data was collected from records of adolescent inmates in São José do Rio Preto. The variables selected were: place of residence, age, education level, type of offense, drugs use, family income, parent education levels, jobs. The findings disclose a social and demographic profile for teenagers around seventeen years old with only elementary education. The most common offence was robbery; followed by theft, homicide, drug dealing, and robbery leading to death. Most of these teenagers smoked tobacco and marijuana, drank alcoholic beverages and took crack. The data indicate a context defined by precarious living conditions where family members have low incomes and poor job skills, together with alcohol abuse. As a result, they help turn teenagers into victims of society. The mother - who typically supports the household - is the strongest presence during the incarceration period, serving as a mediator between the adolescent in conflict with the law, the courts and the community. In view of the high costs of interpersonal violence, it is necessary to develop and implement a municipal strategy for children and adolescents in São José do Rio Preto.

Key words: Violence, Adolescence, Government policies

Introdução

Nas duas últimas décadas do século XX, nas grandes cidades do mundo e em alguns países, como é o caso do Brasil, os dados epidemiológicos têm mostrado crescimento da morbidade e da mortalidade por causas externas.

Estimativas da Organização Mundial de Saúde (OMS) para o ano de 2000 destacam que morreram cerca de 1,6 milhões de pessoas no mundo inteiro como resultado da violência1): 25% dessa mortalidade foram por acidentes de transporte, 16% por suicídio, 10% por violência interpessoal, 9% por afogamento, dentre outras2.

De acordo com os dados do Relatório Mundial sobre Violência e Saúde1, constata-se que a taxa de homicídios no Brasil foi de 23 por 100.000 habitantes, sendo que a da Colômbia foi de 61,6 por 100.000 habitantes. Já na região africana, como um todo, a taxa estimada para o ano de 2000 foi de 22,2 por 100.000 habitantes. Enquanto isso, se observam para alguns países europeus taxas comparativamente muito baixas, como da Dinamarca (1,1); França (0,7); Alemanha (0,9); Grécia (1,2); Portugal (1,1); Reino Unido (0,8); Espanha (0,8); dentre outros. As maiores taxas encontradas na Europa foram da Albânia (21) e da Federação Russa (21,6).

Nos Estados Unidos da América, estima-se que a violência interpessoal, que inclui a violência entre membros da família, entre casais, a violência juvenil e entre pessoas estranhas, é de alto custo, chegando a um patamar de 3,3% do Produto Interno Bruto do país. O fenômeno afeta principalmente países de menor poder aquisitivo, sendo que o efeito econômico dessa violência é mais severo em países pobres onde, entretanto, são escassos os estudos sobre esse assunto3,4.

Ainda com relação à dimensão econômica da violência interpessoal, chegou-se à conclusão de que os gastos ocorridos na prevenção da violência são menores do que os gastos para repará-la. Intervenções que tinham como focos agressões juvenis resultaram em benefícios econômicos trinta vezes maiores que os gastos para reparar esse tipo de violência3.

No panorama brasileiro, o aumento da mortalidade por causas violentas vem se tornando um fenômeno de alta relevância, pois no início da década de 80 ocupava o quarto lugar no perfil das principais causas de óbito, passando para o segundo lugar, a partir de 1989, perdendo apenas para as doenças do aparelho circulatório. Trata-se, portanto, de um grave problema de saúde pública, fazendo com que a epidemia de mortes violentas na população jovem das grandes cidades seja uma das pautas da nova agenda da saúde pública, com sinais de evolução desfavorável e remetendo para um cenário futuro inquietante5,6,7,8.

Se, até meados da década de 1990, o crescimento da violência parecia estar restrito às grandes capitais da região sudeste do Brasil, hoje as taxas estão crescendo em capitais médias e mesmo pequenas. A região sudeste, mais rica e mais desigual, tem as taxas mais insistentemente altas. Este fato mostra que não se pode atribuir à pobreza extrema da região o aumento das taxas de homicídios9,10.

Estudos têm observado que as mortes por causas externas, muitas vezes resultantes de homicídio, têm como alvo preferencial adolescentes e jovens adultos, de 15 a 24 anos, masculinos, residentes em áreas periféricas ou menos favorecidas das grandes metrópoles urbanas e, portanto, carentes em termos socioeconômicos: em geral, possuem baixa escolaridade e preferencialmente são negros ou descendentes dessa etnia. É esse grupo de causas externas que explica, respectivamente, 46,5% das mortes na faixa de 05 a 14 anos e 64,4% das mortes dos jovens de 15 a 29 anos, sendo nesses segmentos etários a primeira causa de morte11,12.

A grande preocupação ante esse cenário de mudanças é a evidência de que grupos de jovens, sobretudo do sexo masculino, estão cada vez mais atingidos como vítimas e autores13,7,14.

Um estudo de 1999 com 5.425 jovens infratores entre 12 e 17 anos, na cidade de São Paulo, no período de 1988 a 1991, resultou que o envolvimento de jovens com o crime violento seguiu o mesmo padrão observado na população geral. Para um segundo estágio da pesquisa, com 3.893 jovens infratores, no período de 1993 a 1996, resultou uma mudança no comportamento padrão desses jovens, com o surgimento do crime organizado e a formação de gangues. Quando o padrão de crime na população como um todo foi comparado com o correspondente no caso da delinqüência juvenil, verificou-se um aumento da violência entre os jovens14.

Também sob o enfoque do adolescente autor de atos infracionais, um estudo no município de Ribeirão Preto, São Paulo, cidade de médio porte do interior paulista, no período entre 1974 e 1996, revelou um grande aumento de delitos cometidos por adolescentes. Além disso, o homicídio foi a infração que mais apresentou crescimento, aumentando quarenta vezes no período estudado. Em seguida, apareceu o tráfico de entorpecentes, que aumentou 23,75 vezes e a terceira infração que mais cresceu foi porte de arma (18,8 vezes)15.

Ainda, dados fornecidos pela Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem/SP) em 02/12/2003 para o período de janeiro/2003 a outubro/2003 revelaram um incremento de 21,7% no número de adolescentes infratores internos naquela instituição16.

Assim sendo, estudos mostram cada vez mais o envolvimento de jovens brasileiros com o mundo do crime; entretanto, pouco se sabe sobre esses jovens e o sistema judicial empregado para as crianças e adolescentes, em especial a competência da lei e das medidas oficiais adotadas para conter o crime entre esta população. Nesse sentido, faz-se necessário pesquisar mais a realidade brasileira no que diz respeito à questão do adolescente em conflito com a lei, com o propósito de subsidiar as ações do judiciário, quando da aplicação das leis, como também as instituições que administram as medidas judiciais designadas aos jovens, representadas pela Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor.

A partir do exposto, o presente trabalho objetiva levantar o perfil sociodemográfico, infracional e relacional de adolescentes em conflito com a lei do município de São José do Rio Preto no ano de 2003.

Metodologia

A população estudada consistiu de adolescentes do sexo masculino, residentes na cidade de São José do Rio Preto, entre 14 e 18 anos de idade completos, os quais cumpriam a medida socioeducativa de internação na Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FEBEM/SP) no ano de 2003, totalizando 48 adolescentes.

A instituição FEBEM/SP oferece assistência para aproximadamente 18.000 crianças e adolescentes em todo o Estado de São Paulo, inseridos em programas socioeducativos específicos, como o de privação de liberdade e de liberdade assistida, dependendo do grau infracional e da idade17.

Do panorama demográfico, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística18, São José do Rio Preto possui uma população geral de 367.247 habitantes, caracterizando-se pólo regional, com influência direta em 96 municípios19.

O município possui uma Unidade de Internação da FEBEM denominada Grandes Lagos, que abriga adolescentes infratores residentes em São José do Rio Preto e cidades vizinhas.

A coleta dos dados do estudo foi realizada mediante consulta aos prontuários dos adolescentes disponibilizados pela instituição, por intermédio de um protocolo, obedecendo a todos os preceitos éticos em pesquisa, segundo o parecer nº. 153/2003 de aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto.

Coletados os dados, foi construída uma base de dados em DBase II.I e utilizando-se do programa EPI - INFO foram produzidas as tabulações das informações para a caracterização da população em razão das variáveis arroladas.

O tratamento dos dados forneceu a freqüência dos eventos e respectivas porcentagens, não tendo sido produzidas análises estatísticas e níveis de significância daqueles em função da totalidade da população. Tratou-se de um censo em que não houve o propósito de testar hipóteses e extrapolar os resultados obtidos para outros grupos.

Resultados

De acordo com a caracterização dos adolescentes internos na FEBEM Grandes Lagos, uma parte significante estava na faixa etária de 17 anos (35,4%) e (64,5%) nasceram na cidade de São José do Rio Preto. Observou-se que 68,7% possuíam o ensino fundamental incompleto e 83,3% não freqüentavam a escola. Uma grande parte dos jovens (72,9%) não realizava trabalho remunerado por ocasião da apreensão.

Face às variáveis estudadas, nossos resultados de investigação revelaram que quanto à distribuição geográfica de local de moradia dos adolescentes internados na Unidade Grandes Lagos, 50,0% residiam em bairros localizados na região norte do município e 20,8% nas suas imediações.

Os tipos de infrações cometidas pela população (Figura 1) foram categorizados equiparando-se à classificação do Código Penal que prescreve: infrações contra o patrimônio (furto – Artigo nº. 155; roubo – Artigo 157; roubo qualificado – Artigo 157, parágrafo 2º; roubo seguido de morte – Artigo 157, parágrafo 3º); infrações contra as pessoas (tentativa de homicídio, homicídio – Artigo 121); infração de tráfico de entorpecentes (comercialização de substâncias entorpecentes – Artigo 12 da lei complementar nº. 6368).


Salientamos que, para uma análise mais acurada, foram separados os tipos de infrações contra o patrimônio em função da maior ou menor gravidade do ato equiparado ao critério de tempo de reclusão determinado pelo Código Penal para as pessoas maiores de idade.

Com relação ao uso de drogas lícitas e ilícitas (Figura 2), é importante assinalar que os jovens que afirmaram fazer uso do tabaco iniciaram o hábito aos 10 anos de idade ou menos (22,9%) e os usuários de maconha, aos 12 anos ou menos (16,6%) e aos 15 anos (16,6%). Quanto aos jovens que disseram inalar cocaína, uma parcela de 20,8% iniciou o hábito aos 15 anos ou menos. Constatou-se também que, para os usuários de crack, o início se deu aos 10 anos (4,1%), atingindo a freqüência máxima de adesão aos 15 anos (18,7%) e para aqueles que afirmaram usar o thinner o início se deu aos 12 anos ou menos (10,4%).


Os jovens pesquisados afirmaram que todos os amigos usavam algum tipo de droga. Além disso, entre os jovens que fizeram uso de algum tipo de droga (97,9%) apenas uma parcela de 10,4% se submeteu ao tratamento em local especializado para drogadicção.

De acordo com os registros, levantou-se que uma grande parte dos adolescentes infratores (77,0%) estava acompanhada de uma ou duas pessoas e 14,5% do total infracionaram sozinhos. Um dado importante é que 39,5% dos acompanhantes possuíam mais de 18 anos, sendo que 60,4% eram menores de idade. No que diz respeito ao histórico de vida infracional anterior à internação, uma parcela dos adolescentes (37,5%) cometeu furto; 27,0% furto e roubo, totalizando, portanto, mais da metade das infrações (56,2%) do tipo contra o patrimônio. Por outro lado, uma parcela significativa (16,6%) não praticou qualquer infração; uma parcela de 10,4% de jovens estava envolvida com o tráfico de entorpecentes; 8,3% outros tipos de infrações como vandalismo e porte de arma. Além disso, os dados mostram que o início da história infracional desses jovens remonta a um extenso período de vida que vai dos 7 aos 17 anos de idade. Também, a maioria dos adolescentes (87,5%) afirmou ter sido vítima de violência policial, como ser transportado em lugar indevido no veículo da polícia, ser algemado e ser alvo de agressões verbais e humilhações no ato da apreensão.

Um achado importante diz respeito aos locais de cometimento dos atos infracionais, que mostraram uma incidência maior na região norte de São José do Rio Preto (31,2%), o que coincide com os locais de residência dos jovens (70,8%).

Caracterização do grupo familiar

De acordo com a caracterização do grupo familiar, uma parte das famílias que moravam no mesmo domicílio (37,5%) era composta por mais de 05 pessoas; 31,2%, por até 05 e outra parte, 31,2%, por até 03 pessoas. Em uma parcela significativa das famílias ((47,9%), os pais eram separados. Com relação à religião, houve duas tendências: 45,8%, evangélico-protestantes e 43,75%, católicos.

Uma parte expressiva de pai (54,1%) possuía o 1º grau incompleto; 20,8% não apresentavam instrução escolar; uma proporção de 10,4% tinha o 1º grau completo. Quanto à mãe, os dados mostraram que uma grande parte (72,9%) possuía o 1º grau incompleto, seguida de 14,5% sem instrução e de 10,4% com o 1º e 2º graus completos. Com relação à profissão do pai, mais da metade (70,7%) eram trabalhadores de serviços gerais e esporádicos; 12,5%, desempregados. A respeito da profissão da mãe, os dados mostraram que a metade (50%) trabalhava como empregada doméstica; 25,0% realizavam serviços do lar; 12,5% dedicavam-se a vendas e 6,2% estavam desempregadas. Com referência à renda familiar, os dados evidenciaram que uma parte das famílias (41,6%) recebia acima de um até dois salários mínimos; 31,2% até um salário mínimo; 18,7% das famílias recebiam acima de dois até três salários mínimos. Por fim, uma grande parte delas (77,0%) não estava inserida em algum tipo de programa assistencial federal como bolsa criança cidadã, agente jovem, bolsa família ou benefício estadual como o programa renda cidadã.

Identificação dos familiares no período de internação

Com relação às visitas, os dados revelam que a mãe foi a pessoa que mais visitou o adolescente (50,0%), seguida do casal de pais (18,7%) e depois a avó, irmã e madrasta juntamente (12.5%); além disso, a mãe foi a figura mais citada pelos jovens (79,1%), seguida de longe pela tia (8,3%).

Discussão

Perfil sociodemográfico dos jovens e de seus familiares

De acordo com os dados obtidos, observou-se que o maior contingente de adolescentes de São José do Rio Preto possuía 17 anos de idade; portanto, próximo de atingir a maioridade. Estes dados estão condizentes com aqueles encontrados no grupo de adolescentes infratores do município de São Paulo e região da grande São Paulo, para um mesmo período16. Uma maior incidência de cometimento de infrações nesse período de vida coincide com o período da inimputabilidade penal, que cobre a faixa até os 18 anos incompletos, na qual prevalece a doutrina de proteção integral preconizada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.

Também foi detectado que a maioria dos jovens residia em bairros localizados na região norte do município, região esta, de acordo com o Boletim Epidemiológico nº 2 – 2002 – Mortalidade Infantil em São José do Rio Preto, possuidora de poucos equipamentos sociais, caracterizando-se por uma maioria populacional de menor poder aquisitivo e baixo nível de escolaridade20. Em conseqüência, esses moradores apresentam limitado acesso aos bens de consumo e às oportunidades no mercado de trabalho, se comparados aos de outras regiões. Um outro fato que evidencia a precariedade social dessa área comparada às demais se refere ao coeficiente de mortalidade infantil, indicador de saúde adotado pelo Ministério da Saúde, que se apresenta mais alto nessa região20.

Pesquisa realizada no município de São Paulo, em 1998, com 934 adolescentes autores de atos infracionais, reafirmam nossos dados, visto que mais da metade (62%) do grupo estudado possuía o nível de 5ª a 8ª série do ensino fundamental, sendo que também a metade não estava freqüentando a escola21.

Quanto às condições socioeconômicas do grupo familiar, os resultados colhidos de nossas análises revelam que 47,9% dos pais são separados, lembrando que no período da internação 31,2% dos adolescentes residiam com suas mães. Podemos supor que o provedor das necessidades da família estava primeiramente sob a responsabilidade da mãe, já que a maioria dos adolescentes não exercia atividade remunerada. Este cenário por sua vez está embutido na estatística global do mapa da fome brasileira, em que 40 milhões de pessoas têm suas necessidades básicas negadas. Embora não se possa atribuir a este contexto de pobreza toda prática de atos infracionais por adolescentes, é a partir deste cenário que qualquer leitura e estudo sobre a violência precisa se feito21,22.

O levantamento mostrou que os adolescentes, em sua maioria, eram usuários de um ou mais tipos de drogas, a começar pelo tabaco, a maconha, a bebida alcoólica e o crack. Esses altos índices de freqüência se tornam mais preocupantes quando notamos que o início desse hábito remonta ao período da infância. Somados estes dados, obtivemos que, entre a maioria usuária, os amigos também faziam uso de algum tipo de substância ilícita.

Na mesma direção dos dados acima, uma investigação já apontou um grande número de adolescentes brasileiros privados de liberdade, usuários de drogas (52,0%)23.

Diferentemente dos dados de nossa investigação, um estudo com adolescentes, estudantes, residentes em uma cidade de médio porte no sul do Brasil detectou que a droga psicotrópica mais utilizada foi o álcool (37,8%), seguido do tabaco (10,3%) e da maconha (6,1%). Mostrou também que o consumo de drogas ascendeu de forma linear com a idade, atingindo um pico no grupo dos 16 aos 17 anos, com posterior declínio na prevalência24. A ordem de preferência da maioria dos jovens estudados na nossa investigação foi diferente: tabaco, maconha e bebida alcoólica juntamente com o crack, e também detectamos um maior grau na freqüência do uso.

Achamos oportuno salientar a questão da precocidade e dos altos índices tanto no uso de drogas consideradas lícitas quanto ilícitas, pela população estudada, e a magnitude do uso do tabaco, considerando que os estudos mostram a associação altamente significativa entre o uso de drogas ilícitas e o tabaco e entre este e o álcool24.

Se por um lado o imaginário social tem sido permeado pelas conexões unívocas entre pobreza e criminalidade e pelo uso de drogas, por outro lado tais relações causais não foram comprovadas, porque se tratam de associações complexas e multilineares7,25,26.

Os nossos resultados apontam para uma maior incidência de infração do tipo roubo como causadora da medida de internação que, somada à freqüência de furto, totaliza a maior parte (62,4%) de cometimento de infração classificada pelo código penal de delito contra o patrimônio. As infrações que envolvem o uso de armas de fogo totalizaram 75%, o que representa uma parcela significativa dos delitos considerados, levando-nos à questão central do fácil acesso ao porte de arma ilegal por essa faixa etária da população5.

Observamos também na história infracional dos adolescentes similar à situação presente do ato infracional que ocasionou a internação, uma maior proporção de furtos e furtos juntamente com roubos, sendo que uma grande parte dos adolescentes (77%) não tinha recebido medidas outras socioeducativas como liberdade assistida, semi-liberdade, prestação de serviços à comunidade ou reparação de danos.

Papel materno no período de liberdade

Refletir sobre o papel materno no período de internação do adolescente em conflito com a lei nos remete a duas instâncias, a saber: por um lado, deve-se considerar o aqui e o agora do afastamento físico e relacional, temporário, compulsório e indeterminado, da mãe e de seu filho, numa fase crucial do desenvolvimento humano, na qual ela perde a tutela deste para o Estado. Por outro lado, é também necessário levar-se em conta o processo de socialização desse jovem dentro de seu ambiente familiar, socioeconômico e cultural. Perder de vista o contexto histórico dessas relações primeiras é realizar um corte abrupto em nossa análise, correndo o risco de reforçarmos ainda mais o estigma do papel desta figura enquanto estereótipos do tipo "a mãe do delinqüente", "a mãe do marginal", "a mãe do infrator". Seria como uma marca que se imprimiria à questão mediante um prejulgamento de culpabilidade ou de vitimização, tanto para esta mãe quanto para seu filho, gerando um círculo vicioso e pouco frutífero às intervenções.

A medida socioeducativa de internação: o estatuto da criança e do adolescente versus a práxis legal versus a práxis institucional

Os artigos 121 e 122 do Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA, enquanto leis, determinam que a medida de internação seja uma medida de exceção, devendo ser aplicada ou mantida somente quando evidenciada sua necessidade em observância ao próprio espírito do Estatuto. É uma medida considerada grave porque restritiva de liberdade, só sendo recomendável quando desaconselhadas medidas menos gravosas, devendo ser breve e excepcional. A medida de internação, por si só, não tem o propósito de punir a conduta delitiva, mas consiste em uma forma de se criar condições adequadas para concretizar a ressocialização do adolescente.

O advento do Estatuto não foi para ratificar uma situação de fato já consolidada na realidade cotidiana ou nas decisões dos Tribunais. Ele se impôs como matriz alterativa do imaginário e de práticas sociais, incorporando preceitos modificadores de hábitos, usos e costumes até então vigentes no trato com a criança e com o adolescente. Assim, o pensamento incorporado na lei tomou a dianteira, deixando para trás a prática sedimentada, cabendo aos operadores do Direito e a todos nós acertar o passo a caminho da construção da cidadania daqueles27.

Sendo o Estatuto recente, a jurisprudência de que trata esta lei também tem que fazer jus à sua inovação; daí a necessidade do jurista adequar seu pensamento e sua prática ao ECA. Sob esta perspectiva, a gravidade do ato infracional não basta para legitimar a aplicação da internação; trata-se de uma condição necessária, mas não suficiente para tal. Tampouco bastam agregar-se à gravidade do ato infracional menções genéricas a passagens anteriores, maus antecedentes, vida ociosa, falta de respaldo familiar, como se tais circunstâncias reclamassem, de forma natural, a segregação como estratégia ressocializadora. A caracterização da excepcional idade motivadora da internação requer do magistrado um juízo mais profundo e considerações mais amplas sobre múltiplos aspectos do caso, que vá além dos habituais automatismos lógico-dedutivos utilizados nas sentenças. Além disso, a situação da Febem é relevante para se considerar qual a medida mais adequada. Uma decisão judicial que aplica internação nunca será justa se, na prática, não se observarem condições adequadas para seu cumprimento. Aqui, as instituições responsáveis pela aplicação e execução da medida de internação, no Estado de São Paulo, as Febens, são alvos de intensas críticas em função dos seus focos prisionais mais do que sociopedagógico, estando no momento em processo de reestruturação28,29,27,30.

Finalmente, quanto à busca de soluções para a questão do adolescente em conflito com a lei no município de São José do Rio Preto, podemos avaliar que são necessários construir, de forma ágil e competente junto à família, à sociedade civil, aos Poderes Executivo Municipal, Estadual e Federal, junto ao Ministério Público e Poder Judiciário, estratégias, planos de ações articuladas e complementares, convergindo todos para um foco específico: o adolescente que em um dado momento de sua vida transgrediu a lei e por isso é responsabilizado segundo um estatuto específico para sua idade. Estatuto este que celebra o adolescente sujeito de direitos e não objeto de proteção e que por essa razão demanda ações de caráter preventivo, mais eficaz e menos oneroso do que as abordagens corretivas, que caracteriza a medida socioeducativa de internação. Ainda, experiências bem sucedidas em onze Estados brasileiros comprovaram a eficácia das medidas de meio aberto como a de liberdade assistida, a de prestação de serviços à comunidade e a de semi-liberdade, todas elas com custos menores que a internação e índices mais baixos de reincidência infracional. Todas essas experiências de sucesso tiveram como marca a criatividade, o envolvimento da família, da comunidade, das autoridades e o reconhecimento de que o jovem em conflito com a lei é uma pessoa em desenvolvimento e que poderá superar a prática de infrações se lhe forem assegurados os meios adequados29. Constatamos uma realidade: ele é autor e vítima da violência.

Colaboradores

RMA Priuli e MS de Moraes participaram igualmente de todas as etapas da elaboração do artigo.

Artigo apresentado em 03/01/2005

Aprovado em 25/09/2005

Versão final apresentada em 23/02/2006

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2007
  • Data do Fascículo
    Out 2007

Histórico

  • Aceito
    23 Fev 2006
  • Recebido
    03 Jan 2005
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