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A perspectiva dos profissionais de saúde sobre a promoção do brincar em hospitais

The standpoint of healthcare practitioners on the promotion of play in hospitals

Resumos

O presente artigo busca investigar e analisar quais os limites e possibilidades da promoção do brincar em hospitais, na perspectiva dos profissionais envolvidos nestas ações. Esta investigação poderá contribuir para o campo da saúde coletiva, uma vez que o debate sobre a perspectiva dos profissionais de saúde acerca da promoção do brincar nos hospitais influencia a construção de novos modelos de atenção à saúde da criança. A discussão se ancora numa perspectiva de pesquisa qualitativa acerca da dinâmica das relações que ocorrem no espaço hospitalar e sobre o papel do brincar no hospital. Foram realizadas 33 entrevistas com profissionais de três hospitais, localizados em diferentes regiões do Brasil, que realizam algum tipo de atividade lúdica. A análise dos dados baseia-se na articulação de temáticas que emergem das falas dos sujeitos com o referencial teórico. Como resultado, ressalta-se o reconhecimento deste tipo de intervenção por parte da instituição, podendo facilitar ou dificultar estas ações. Nas conclusões, destaca-se que conferir à promoção do brincar o status de instrumento terapêutico, no espaço da hospitalização infantil, pode subverter as regras e as hierarquias da instituição hospitalar.

Brincar; Criança hospitalizada; Profissionais de saúde


This study examines and analyzes the limits and possibilities of the promoting play in hospitals. This investigation can contribute to the collective health field, as discussions about the views of healthcare practitioners on promoting play in hospitals may well influence the development of new childcare models. This discussion is grounded on a qualitative approach to the dynamics of relationships and the role of play in a hospital setting. Drawn from interviews with 33 practitioners from three hospitals located in different parts of Brazil, the data analysis is based on linking up issues that emerge from their comments, together with theoretical references. In terms of findings, the acknowledgment of this type of intervention by the institution could facilitate or complicate these actions. The conclusions clearly indicate that assigning play promotion the status of a therapeutic tool within a healthcare environment may subvert the rules and hierarchies of the institution.

Play; Hospitalized children; Healthcare practitioner


ARTIGO ARTICLE

A perspectiva dos profissionais de saúde sobre a promoção do brincar em hospitais

The standpoint of healthcare practitioners on the promotion of play in hospitals

Rosa Maria de Araujo Mitre; Romeu Gomes

Instituto Fernandes Figueira, Fiocruz. Av. Rui Barbosa 716/5º andar, Flamengo. 22.250-020 Rio de Janeiro RJ. rmitre@iff.fiocruz.br

RESUMO

O presente artigo busca investigar e analisar quais os limites e possibilidades da promoção do brincar em hospitais, na perspectiva dos profissionais envolvidos nestas ações. Esta investigação poderá contribuir para o campo da saúde coletiva, uma vez que o debate sobre a perspectiva dos profissionais de saúde acerca da promoção do brincar nos hospitais influencia a construção de novos modelos de atenção à saúde da criança. A discussão se ancora numa perspectiva de pesquisa qualitativa acerca da dinâmica das relações que ocorrem no espaço hospitalar e sobre o papel do brincar no hospital. Foram realizadas 33 entrevistas com profissionais de três hospitais, localizados em diferentes regiões do Brasil, que realizam algum tipo de atividade lúdica. A análise dos dados baseia-se na articulação de temáticas que emergem das falas dos sujeitos com o referencial teórico. Como resultado, ressalta-se o reconhecimento deste tipo de intervenção por parte da instituição, podendo facilitar ou dificultar estas ações. Nas conclusões, destaca-se que conferir à promoção do brincar o status de instrumento terapêutico, no espaço da hospitalização infantil, pode subverter as regras e as hierarquias da instituição hospitalar.

Palavras-chave: Brincar, Criança hospitalizada, Profissionais de saúde

ABSTRACT

This study examines and analyzes the limits and possibilities of the promoting play in hospitals. This investigation can contribute to the collective health field, as discussions about the views of healthcare practitioners on promoting play in hospitals may well influence the development of new childcare models. This discussion is grounded on a qualitative approach to the dynamics of relationships and the role of play in a hospital setting. Drawn from interviews with 33 practitioners from three hospitals located in different parts of Brazil, the data analysis is based on linking up issues that emerge from their comments, together with theoretical references. In terms of findings, the acknowledgment of this type of intervention by the institution could facilitate or complicate these actions. The conclusions clearly indicate that assigning play promotion the status of a therapeutic tool within a healthcare environment may subvert the rules and hierarchies of the institution.

Key words: Play, Hospitalized children, Healthcare practitioner

Introdução

A hospitalização é uma realidade na vida de uma parcela significativa da população infantil. Todos os anos, mais de um milhão de crianças em nosso país são hospitalizadas por diferentes causas1. Não podemos ignorar o impacto que a internação pediátrica provoca na vida dessas crianças e de seus familiares. A experiência da hospitalização na infância é considerada uma situação potencialmente traumática, que pode desencadear o surgimento de sentimentos diversos como angústia, ansiedade e medo diante de uma situação desconhecida ou ameaçadora2. Além disto, pode provocar alterações no desenvolvimento da criança e comprometer seu processo de interação com as pessoas e o meio em geral.

Quando pensamos no cuidado à criança hospitalizada numa perspectiva de atenção integral3, não podemos nos limitar às intervenções medicamentosas ou às técnicas de reabilitação. A criança necessita ser considerada em sua singularidade e ter, a seu dispor, recursos que sejam de seu domínio para expressar-se, vivenciar e elaborar a experiência do adoecimento e da hospitalização. Nessa perspectiva, diversos autores2,4,5,6,7 apontam para a importância da presença do brincar durante o período de adoecimento e internação hospitalar.

Essa discussão ainda carece de estudos no sentido de consolidar a promoção do brincar como uma questão da saúde coletiva. Em revisão da literatura recente acerca do tema, observamos que as tendências de abordagem dessa questão ainda se relacionam fortemente com a instância da clínica8, 9,10.

Frente a essa constatação, consideramos a presente discussão como de fundamental importância para que os sistemas públicos de saúde reflitam sobre as formas organizativas mais adequadas à assistência da infância. Nesse sentido, o brincar passa a ser importante não só como forma de expressão, mas também como possibilidade de ser um eixo estruturante na produção dos modelos de atenção à saúde da criança.

No panorama nacional de atenção à criança hospitalizada, encontramos algumas práticas que utilizam o brincar como uma estratégia de intervenção no campo da saúde da criança. Tais ações não seguem um modelo único. Algumas se ancoram apenas na recreação, sem maiores preocupações na repercussão dessas ações no estado geral da criança, e outras utilizam o brincar a partir de uma abordagem terapêutica.

Procurando identificar a singularidade de diversas realidades que envolvem a promoção do brincar em hospitais, neste estudo, objetivamos analisar as facilidades e dificuldades dessa promoção, segundo a ótica dos profissionais envolvidos em tal ação.

Acreditamos que, analisando as possibilidades e limites da promoção do brincar como uma das alternativas para os cuidados à criança hospitalizada, poderemos contribuir para uma discussão de princípios de ações de atenção integral voltada para essa clientela.

Metodologia

O presente estudo é parte de uma investigação que se volta para a percepção dos profissionais de saúde que utilizam a promoção do brincar no espaço da hospitalização infantil.

A referida pesquisa pautou-se em princípios da pesquisa qualitativa, aqui entendida como um conjunto de práticas interpretativas que busca investigar os sentidos que os sujeitos atribuem aos fenômenos e ao conjunto de relações em que eles se inserem11,12. A partir dessa abordagem, buscando o alcance do nosso objetivo, procuramos situar a nossa análise na compreensão da lógica dos profissionais diretamente envolvidos com atividades lúdicas no espaço da hospitalização infantil.

Escolhemos para o desenvolvimento da nossa pesquisa três hospitais com internação pediátrica: um hospital geral, um hospital pediátrico e um hospital materno-infantil. Essas unidades de saúde localizam-se em diferentes capitais das regiões Nordeste, Sudeste e Sul do Brasil, que passarão a ser designadas como H1, H2 e H3.

Essas instituições foram selecionadas pelo fato de: (a) serem referência na área de saúde da criança em sua região; (b) atenderem ao SUS; (c) servirem como campo de ensino de graduação ou pós-graduação da área da saúde da criança; (d) contarem em seus quadros com uma equipe multiprofissional e (e) divulgarem que realizam algum tipo de atividade lúdica de cunho terapêutico.

Privilegiamos, como técnica central, a entrevista semi-estruturada com profissionais de saúde destes três hospitais. Na pesquisa original, a entrevista contempla questões sobre o significado, experiência, dificuldades, facilidades, resultados e estruturação da promoção do brincar na hospitalização infantil. Especificamente, neste estudo, centramos a análise nas questões sobre quais as perspectivas que os profissionais tinham para as ações que acompanhavam e que expectativas tinham sobre o desenvolvimento das mesmas. Como complementação da técnica, realizamos também observação de atividades lúdicas promovidas a fim de compor o cenário cotidiano a que se referiam as respostas das entrevistas. Assim, de uma certa forma, tornou-se possível fazer uma aproximação do contexto das falas.

O trabalho de campo aconteceu no período entre outubro e dezembro de 2002. Em cada instituição, realizamos as entrevistas e durante cinco dias seguidos observamos a dinâmica, não apenas das atividades lúdicas, mas dos próprios hospitais. Visitamos enfermarias, conversamos com profissionais e acompanhamos alguns entrevistados em suas rotinas.

No total, foram realizadas 33 entrevistas com profissionais das seguintes categorias: médicos (9); professores de educação física (6); enfermeiros (5); terapeutas ocupacionais (3); nutricionistas (3); pedagogos (2); fisioterapeutas (2); relações-públicas (1); assistente social (1) e psicólogo (1) dessas instituições, ligados à assistência e à gestão de serviços que envolviam uma interface direta com a promoção das atividades lúdicas. A escolha dos sujeitos foi feita a partir de três critérios: (a) identificação de profissionais que utilizavam atividades lúdicas com base em nossa observação do campo; (b) indicação dos outros profissionais da instituição envolvidos com atividades lúdicas e (c) escolha de profissionais que ocupavam cargos de gerência diretamente relacionados com a promoção do brincar.

A grande maioria dos profissionais tinha vínculos com a instituição onde trabalhava, apenas dois exerciam funções sem remuneração. Em relação ao gênero, 28 eram do sexo feminino e 5 do sexo masculino. O tempo de atuação desses profissionais na instituição variava de nove meses a 23 anos.

Realizamos também consultas a outras fontes, como folhetos e informativos das instituições, recortes de jornais e reportagens sobre as ações e documentos institucionais registrando a implantação das atividades relacionadas à promoção do brincar.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto Fernandes Figueira, da Fundação Oswaldo Cruz, que sediou a pesquisa, bem como pelos comitês das três instituições onde as entrevistas foram realizadas. Todos os entrevistados foram esclarecidos a respeito da pesquisa e assinaram o termo de livre consentimento.

A análise das entrevistas baseou-se na articulação de aspectos temáticos da análise do conteúdo13,14 com o referencial teórico utilizado. A partir dessa articulação, procuramos não só compreender o conteúdo dos depoimentos registrados, como também buscamos, numa perspectiva hermenêutica, os sentidos que se encontravam por trás das falas15.

Nem sempre os sentidos estavam explícitos nas falas, demandando a utilização de inferência, que pode ser obtida por questões clássicas, tais como: quem diz o que, a quem, como e com que efeito14. Na busca de respostas para tais questões, lançamos mão dos dados da observação para melhor contextualizarmos as falas.

Percorremos os seguintes passos de análise das entrevistas: (a) identificação das idéias centrais oriundas das entrevistas e, em seguida, buscamos transpor o conteúdo explícito das falas, procurando analisar os núcleos de sentido em torno dos quais giravam as idéias centrais das respostas; (b) comparação entre as diferentes explicações dos entrevistados e os enunciados de suas ações; (c) descoberta de eixos em torno dos quais pudemos discutir a utilização do brincar como um recurso terapêutico, a partir da ótica das equipes estudadas; (d) classificação e discussão dos fatores associados à resposta dos entrevistados em relação ao processo de promoção do brincar em enfermarias pediátricas; (e) elaboração de síntese em torno das temáticas privilegiadas pelas entrevistas.

Resultados

Por acreditarmos que o sistema de crenças dos profissionais de saúde está diretamente relacionado com a forma de lidar com o brincar8 e por considerarmos que o significado atribuído a essa atividade também influencia nessa discussão16, procuramos investigar as perspectivas desses profissionais, em termos de facilidades e dificuldades acerca do assunto.

Ao investigarmos quais seriam as facilidades sentidas pelos profissionais no decorrer de suas experiências para a promoção do brincar, as falas apontaram para um principal núcleo de sentido: aceitação e reconhecimento do trabalho por parte da equipe de saúde e da própria instituição.

Alguns entrevistados apontaram como elemento facilitador para a execução de suas ações pautadas no lúdico exatamente o reconhecimento dessas por parte dos outros profissionais, inclusive os chefes de equipe e gestores.

Os relatos mostraram que, com o passar dos anos, os gestores, de modo geral, passaram a valorizar e a ter uma percepção mais aguçada sobre a promoção do brincar e sua importância na hospitalização infantil. Foi inclusive apontado como facilidade o fato de que a utilização do lúdico é um trabalho que tem forte apelo em termos de apresentação externa e serve como propaganda da instituição. Este aspecto foi mais destacado de forma geral pelos gestores.

Ainda nesse sentido, um grupo de profissionais de uma mesma instituição colocou como o fato de o serviço já estar sistematizado facilitava a promoção do brincar. Apontaram a importância de o hospital fornecer infra-estrutura para a realização dessas ações, como as condições de trabalho, material disponível, espaço físico e inclusive a remuneração contribuíam para que pudessem realizar o que consideravam um bom trabalho e se sentirem recompensados.

Essa percepção provavelmente está diretamente relacionada à história diferenciada do surgimento das atividades lúdicas nesse hospital. Porém, em relação às condições para a utilização de atividades lúdicas, profissionais das outras instituições citaram como facilidade a capacidade criativa para driblarem a pouca verba disponível. Referiam-se tanto à participação da comunidade, através de doações, trabalhos voluntários ou parcerias com empresas e organizações não governamentais, quanto à adaptação de materiais e situações. Dessa maneira, apesar das dificuldades, não achavam que a ausência de verba fosse um impeditivo para este tipo de ação.

[...] a gente não vai esperar resolver todos os problemas socioeconômicos e culturais do país para pensar que vai dar uma assistência mais humanizada. Isso também é uma forma de resistência, de colocar numa perspectiva de impossível. (H3/7)

No entanto, o fato de alguns profissionais já participarem de outros projetos ou ações da instituição, que também utilizavam abordagens lúdicas, foi citado como um facilitador para o trabalho. Nesse sentido, o Projeto Biblioteca Viva em Hospitais, do Ministério da Saúde, foi citado nas três instituições como uma intervenção que sensibilizava diferentes profissionais e marcava um diferencial no atendimento às crianças.

Ficou bem delineado, através das entrevistas, como a evolução das ações no tempo permitia uma mudança não só na percepção do profissional envolvido, com também da própria instituição. Os profissionais vinculados a ações ou serviços implantados há mais tempo relataram uma melhoria nas condições para a promoção do brincar. Creditaram essa mudança ao próprio desenvolvimento do trabalho. Porém, esse processo era, segundo os entrevistados, lento e gradual.

[...] primeiro envolver o profissional não médico que estava menos comprometido com a tecnologia e a seguir deixar que o envolvimento dos profissionais não médicos contaminasse o profissional médico. Essa foi a estratégia e aparentemente deu certo. (H2/8)

No entanto, o fato de ter este tipo de experiência de promoção do brincar já sistematizada não impediu os profissionais de fazerem uma leitura crítica sobre suas práticas contemporâneas.

Gostaríamos de destacar também que alguns profissionais, que estavam vinculados há menos tempo a estas atividades, não identificaram dificuldades para desenvolverem suas propostas de promoção do brincar. Não estamos com isso querendo dizer que as dificuldades relatadas só eram apontadas em termos de passado remoto, mas que provavelmente alguns entrevistados ainda não tivessem realizado uma reflexão crítica sobre essas ações.

Em relação às dificuldades apontadas pelos profissionais das três unidades para o desenvolvimento de suas ações, encontramos três núcleos de sentido: (a) pouco reconhecimento e desvalorização desse tipo de trabalho pelos outros profissionais; (b) necessidade de formação e permanência da equipe; (c) antagonismo entre a espontaneidade do brincar e o cuidado específico decorrente de certos quadros clínicos.

No primeiro núcleo de sentido, observamos que a pouca cooperação por parte de alguns profissionais em relação à promoção do brincar poderia denotar um não reconhecimento da tal atividade como um instrumento terapêutico importante no cuidar da criança hospitalizada.

Parecia haver um sentimento de que a utilização do brincar fosse algo menos científico e exigisse menos conhecimento do que as outras técnicas. Isso foi percebido na fala de diversos entrevistados, como por exemplo:

[...] às vezes as outras pessoas olham pra gente e não sabem que na brincadeira a gente está embutindo uma idéia, uma técnica, um pensamento e um objetivo. (H2/2)

Ou ainda, [a dificuldade] com os próprios profissionais de nível médio. Porque eles achavam: Ai! Para que brincar? Ai! Para que tudo isso? Ai! Que frescura! Mas, com o passar do tempo, eles foram vendo que é importante. (H2/7)

Não podemos ignorar também que toda mudança gera resistências e, sem dúvida, a promoção do brincar em ambientes hospitalares é uma mudança. Ainda nesse sentido, nas falas transpareceu a dificuldade enfrentada por alguns profissionais devido à resistência de outros. Essas resistências foram creditadas à dificuldade de aceitação de novas propostas e maneiras de trabalhar. Isso ocorria tanto pelo medo de alguns de perderem seu espaço de trabalho e poder, quanto pelo fato de, por conta das novas iniciativas, terem de repensar ou reestruturar suas próprias práticas.

A reatividade à promoção do brincar poderia ser pensada, entre outros, pelo fato de que quebra a rígida hierarquia do modelo biomédico que rege as instituições hospitalares. Como aparece uma das falas, pelo [...] fato do hospital ser um, um campo minado para as vaidades [espaço disciplinarmente demarcado]. (H1/4)

Esse comentário nos remete à discussão sobre a dinâmica da instituição hospitalar17 que envolve, além de uma forte estrutura hierárquica, linhas de autoridade e poder. Nesse espaço, cada categoria funcional ou grupo costuma delimitar seu território, como forma de estabelecer seus domínios. Fazendo uma apropriação da discussão sobre a ordem negociada18, podemos pensar que a promoção do lúdico, pelo fato de perpassar diversas áreas de saber e possibilitar novas formas de atendimento, pode se configurar como uma ameaça a esses poderes e domínios.

Além disso, como o brincar é um instrumento que permite escolhas, vai também contra a tendência de imposição de valores, onde por vezes julga-se previamente o que é considerado melhor para os pacientes, sem consultá-lo.

Retomando a apropriação das idéias sobre a ordem negociada18, percebemos nas entrevistas a necessidade, percebida pelos profissionais, de terem uma relação negociada tanto com as crianças quanto com os acompanhantes. Não adianta impor conhecimento, mas construir, junto com esses sujeitos, opções de tratamento, reconhecendo um saber que pertence aos pacientes e suas famílias. Essa mudança de atitude, porém, mexe com toda a estrutura da instituição.

Alguns entrevistados apontaram que as prioridades num hospital costumam ser outras que não o lúdico. Sem dúvida não se trata aqui de comparar competências ou necessidades, mas sim reconhecer que sem investimento e suporte não é possível desenvolver qualquer tipo de ação que possa promover impacto e mudanças. A fala abaixo ilustra o dilema pelo qual muitos desses profissionais, inclusive gestores, passaram:

Aplicar a tecnologia não é incompatível com esse lado lúdico [...], mas no primeiro momento parecia que você estava dando prioridade a coisas que não eram tão prioritárias assim [...] desperdiçando recurso numa área que talvez não fosse a mais importante. (H2/8)

Por essa ótica, percebe-se a dificuldade de alguns profissionais de saúde de aceitarem como fazendo parte do processo de tratamento ações que envolvam outros tipos de conhecimento e abordagem, fora do domínio puramente tecnológico.

Ainda nesse sentido, devido à pouca valorização ou às prioridades da instituição, apareceu a questão da falta de verba para o desenvolvimento das ações. Isso englobava questões como dinheiro para compra de material e contratação de pessoal específico e especializado para esta função.

Na perspectiva dos profissionais, para a instituição, por vezes, fica difícil valorizar a promoção do brincar sem antes perceber, na prática, o impacto dessas ações. Isso pode ser melhor exemplificado pela fala abaixo:

Eu sempre falo que a melhor forma de você mostrar o teu trabalho é fazendo. Não adianta você dar aula, falar que é importante e o profissional que está no dia-a-dia, dentro da enfermaria, não vê os resultados, não vê a alteração, a transformação que o trabalho realizado com o brincar [provoca]. Na atividade lúdica da criança, ela [profissional] pode ter exatamente esse retorno. (H2/1)

No entanto, as entrevistas mostraram que a promoção do brincar, apesar de ser teoricamente vista como algo positivo pela equipe de saúde, de modo geral ainda é cercada por atitudes e situações ambíguas. Para os outros profissionais, não diretamente envolvidos com essas ações, ainda é difícil pensar no lúdico como instrumento de suas práticas.

Mesmo os que já utilizavam atividades lúdicas como um recurso em suas práticas sentiam-se por vezes sobrecarregados ou frustrados. Alguns entrevistados queixaram-se da pressão das tarefas e da rotina diária no hospital, que deixava pouco tempo ou espaço para uma abordagem lúdica.

Tendo em vista essa resistência, a grande maioria dos entrevistados localizou que as maiores dificuldades ocorreram durante o processo de implantação das atividades lúdicas e, ao longo da experiência, foram sendo superadas.

Por último, ressaltamos que reconhecer e valorizar a promoção do brincar, como prática profissional, se relaciona intimamente com questões do poder dentro do hospital. Em um estudo norte americano19, foi pesquisada a percepção que profissionais de diversas áreas, que atuam num hospital pediátrico, têm sobre a função dos especialistas child life. Os especialistas child life são os profissionais especialmente formados para trabalhar com a promoção do brincar em hospitais. O resultado mostrou que, apesar de esses profissionais terem seu trabalho reconhecido, estão entre os que detêm menos poder na hierarquia hospitalar.

Esse resultado nos faz pensar que a valorização da utilização do lúdico não tem, necessariamente, como conseqüência o reconhecimento de tal ação como fundamental no processo de tratamento no âmbito da hospitalização infantil. Isso só ocorre se tal promoção for percebida institucionalmente e desenvolvida efetivamente como um recurso terapêutico.

Um segundo núcleo de sentido encontrado nos depoimentos foi a dificuldade de se trabalhar em equipe, mesmo na promoção do brincar. Isso foi apontado em relação às diferenças de opinião de cada profissional sobre o papel do brincar e as conseqüentes limitações de se trabalhar em grupo.

Ainda dentro desse núcleo de sentido, destacou-se a dificuldade causada pela rotatividade dos profissionais nas ações. Falaram do tempo que leva para sensibilizar e capacitar um profissional para utilizar o brincar como instrumento terapêutico. Apontaram que a falta de um conhecimento mais aprofundado, por parte do profissional, sobre este tipo de intervenção pode comprometer o trabalho.

A necessidade de se ter uma equipe qualificada para a promoção do brincar nos faz pensar que tal promoção, embora vise o lúdico, não é uma atividade simples. Como o brincar é universal e faz parte do repertório do senso comum, muitas vezes as pessoas parecem achar que qualquer um, com boa vontade e disposição, pode realizar essa atividade.

No entanto, os entrevistados mostraram que utilizar o lúdico como recurso de intervenção requer uma formação específica, para que se possa, através da promoção do brincar, criar um espaço de desenvolvimento de vivências e mediação de situações desconhecidas através de elementos que sejam do domínio da criança.

Por fim, no terceiro núcleo de sentido, foi apontada uma questão bastante específica do universo hospitalar. O cuidado constante que se deve ter com a transmissão de determinadas doenças, principalmente em relação a crianças com a imunidade diminuída por conta da quimioterapia e como é duro para os profissionais terem que separar as crianças por isto. Essa situação gera para os profissionais, por vezes, um conflito. Como o brincar é um espaço livre, voluntário, que permite a realização de escolhas e a interação com outras crianças, contrapõem-se ao isolamento necessário em alguns quadros clínicos.

Em síntese, percebemos que surgiram, ainda que de forma diluída nos relatos, mais dificuldades do que facilidades. Por outro lado, pelas falas dos entrevistados, observamos que a percepção do que tinha dificultado ou facilitado a promoção das atividades lúdicas variava de pessoa para pessoa, dentro de cada hospital. Profissionais da mesma instituição responderam por vezes de forma bastante diversa. O que alguns entrevistados consideravam como facilidade outros apresentavam como dificuldade, mostrando a diversidade de percepções acerca da promoção do brincar. Ao fazerem uma reflexão sobre o caminho percorrido por suas ações, os profissionais também indicaram suas perspectivas para a utilização do lúdico em hospitais.

Discussão

A promoção do brincar não ocorria de uma única maneira nas instituições pesquisadas. É um erro querermos pensar num modelo único de utilização de um elemento tão diversificado como a atividade lúdica, pois se corre o risco de perder toda a riqueza e complexidade que envolve as diferentes iniciativas e ações.

Apesar de os hospitais da pesquisa serem contemporâneos e terem algumas características semelhantes, cada um apresentava uma história bastante peculiar sobre o surgimento das atividades lúdicas em seus espaços. Essa história, além de refletir o que cada instituição priorizava e valorizava, não apenas no sentido do discurso, mas no reconhecimento objetivo através de investimentos concretos, repercutia também na sistematização das atividades lúdicas, tal qual pudemos observar.

Uma constatação que particularmente nos surpreendeu foi perceber a variedade de categorias envolvidas com as atividades lúdicas, mostrando que a promoção do brincar no espaço da hospitalização de crianças envolvia profissionais vinculados à área da saúde e das ciências humanas. Essa pluralidade reforça a característica do lúdico como instrumento terapêutico interdisciplinar de intervenção na infância.

No entanto, nos hospitais brasileiros, de modo geral, ainda é comum encontrarmos as atividades lúdicas sendo promovidas apenas por voluntários, sem uma maior orientação ou formação, ou mesmo sem maiores vínculos com a instituição.

Não podemos ignorar que, se quisermos produzir um impacto real, através da promoção do brincar no espaço da hospitalização, essa ação tem que ser estruturada e desenvolvida por profissionais inseridos nas equipes de saúde das instituições. Toda a instituição deve estar envolvida nesse processo, do gestor ao auxiliar de enfermagem, para que se construa gradativamente um modelo de atendimento que cada vez mais contemple a complexidade do adoecer e a singularidade de cada indivíduo. Atitudes isoladas correm o risco de perder-se e não repercutir na dinâmica hospitalar.

É importante pensarmos que, quando conferimos à promoção do brincar o status de instrumento terapêutico nas ações de saúde, envolvemos discussões sobre o poder dentro da instituição hospitalar. A atividade lúdica traz consigo vários questionamentos e inverte alguns papéis. Isso ocorre porque pressupõe uma escolha por parte do paciente e também traz um conhecimento que não é puramente acadêmico e científico, uma vez que envolve a experiência pessoal de todos que circulam no espaço hospitalar e o significado atribuído ao brincar16.

Por último, destacamos que a promoção do brincar no espaço da hospitalização infantil requer uma discussão mais ampla que ultrapasse os limites de cada instituição. Nesse sentido, se faz necessário que tal temática seja contemplada efetivamente no campo das políticas públicas voltadas para a saúde da criança.

Essas políticas tanto devem assegurar o aperfeiçoamento das intervenções técnicas como promover a construção de conhecimentos multidisciplinares que possibilitem uma abordagem mais complexa da hospitalização infantil, contemplando a dimensão simbólica dessa experiência.

Junto a essa perspectiva, acreditamos ser importante o desenvolvimento da promoção do brincar como uma tecnologia de relações que permite a re-significação dos propósitos e das ações, no âmbito da hospitalização infantil, buscando uma maior integralidade da assistência.

Colaboradores

R Mitre e R Gomes participaram igualmente de todas as etapas da elaboração do artigo.

Artigo apresentado em 16/02/2006

Aprovado em 07/07/2006

Versão final apresentada em 30/08/2006

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2007
  • Data do Fascículo
    Out 2007

Histórico

  • Aceito
    30 Ago 2006
  • Recebido
    16 Fev 2006
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