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Impacto e (i)mobilização: um estudo sobre campanhas de prevenção ao câncer

Impact and (im)mobilization: a study of cancer prevention campaigns

Resumos

Nos últimos anos, o governo e parte da sociedade brasileira têm-se mobilizado intensificando o planejamento de ações de prevenção, controle e assistência aos pacientes com câncer. A análise das estimativas da incidência e mortalidade por câncer no Brasil colocam em cheque a efetividade das campanhas de prevenção. Uma das dimensões que parece não ter sido levada suficientemente em conta nas estratégias de formação das campanhas diz respeito aos fatores psicossociais implicados nestas campanhas. Neste trabalho, analisamos as respostas de quinze universitárias quanto aos slogans de sete campanhas de prevenção ao câncer. Foram avaliados o poder de mobilização das campanhas, tendo como referente sua associação com a representação de câncer como morte. Os resultados sugerem uma diferença importante entre o impacto das campanhas e seu poder de efetivamente mobilizar a população para a prevenção e o tratamento. Concluímos que elementos de natureza psicossocial, como a representação social de câncer, a auto-estima, as relações entre individualidade e coletividade, os discursos de gênero e o caráter ideológico dos slogans devem ser levados em conta na elaboração de campanhas de prevenção ao câncer.

Câncer; Representações sociais; Ideologia; Discurso


During the past few years, the Brazilian government and society have been engaged in planning actions designed to prevent and control several types of cancer that can be either prevented or treated successfully if diagnosed early. However, recent data on cancer mortality rates in Brazil rebut the effectiveness of these actions. The literature shows that psychosocial factors associated with these campaigns have not received sufficient attention from the authorities and campaign producers. This paper analyzes comments by fifteen women undergraduates on seven cancer prevention campaign slogans, assessing their mobilization power on the basis of their association with the representation of cancer as death. The findings suggest an important difference between the impacts of these campaigns and their effective power to mobilize the population to seek treatment and prevention. This leads to the conclusion that psychosocial elements such as the social representation of cancer, self-esteem, relationships between individuality and collectivity, gender discourse and the ideological nature of the slogans must be taken into account when preparing cancer prevention campaigns.

Cancer; Social representations; Ideology; Discourse


TEMAS LIVRES FREE THEMES

Impacto e (i)mobilização: um estudo sobre campanhas de prevenção ao câncer

Impact and (im)mobilization: a study of cancer prevention campaigns

Conrado Ramos; João Eduardo Coin de Carvalho; Maria Angélica da Silveira Corrêa Mangiacavalli

Departamento de Psicologia, Instituto de Ciências Humanas, Universidade Paulista. Rua Dr. Bacelar 1212, Vila Clementino. 04026-002 São Paulo SP. conrado.ramos@unip.br

RESUMO

Nos últimos anos, o governo e parte da sociedade brasileira têm-se mobilizado intensificando o planejamento de ações de prevenção, controle e assistência aos pacientes com câncer. A análise das estimativas da incidência e mortalidade por câncer no Brasil colocam em cheque a efetividade das campanhas de prevenção. Uma das dimensões que parece não ter sido levada suficientemente em conta nas estratégias de formação das campanhas diz respeito aos fatores psicossociais implicados nestas campanhas. Neste trabalho, analisamos as respostas de quinze universitárias quanto aos slogans de sete campanhas de prevenção ao câncer. Foram avaliados o poder de mobilização das campanhas, tendo como referente sua associação com a representação de câncer como morte. Os resultados sugerem uma diferença importante entre o impacto das campanhas e seu poder de efetivamente mobilizar a população para a prevenção e o tratamento. Concluímos que elementos de natureza psicossocial, como a representação social de câncer, a auto-estima, as relações entre individualidade e coletividade, os discursos de gênero e o caráter ideológico dos slogans devem ser levados em conta na elaboração de campanhas de prevenção ao câncer.

Palavras-chave: Câncer, Representações sociais, Ideologia, Discurso

ABSTRACT

During the past few years, the Brazilian government and society have been engaged in planning actions designed to prevent and control several types of cancer that can be either prevented or treated successfully if diagnosed early. However, recent data on cancer mortality rates in Brazil rebut the effectiveness of these actions. The literature shows that psychosocial factors associated with these campaigns have not received sufficient attention from the authorities and campaign producers. This paper analyzes comments by fifteen women undergraduates on seven cancer prevention campaign slogans, assessing their mobilization power on the basis of their association with the representation of cancer as death. The findings suggest an important difference between the impacts of these campaigns and their effective power to mobilize the population to seek treatment and prevention. This leads to the conclusion that psychosocial elements such as the social representation of cancer, self-esteem, relationships between individuality and collectivity, gender discourse and the ideological nature of the slogans must be taken into account when preparing cancer prevention campaigns.

Key words: Cancer, Social representations, Ideology, Discourse

Introdução: câncer e representações sociais

Segundo dados epidemiológicos da RIPSA (Rede Interagencial de Informações para a Saúde)1, o câncer está entre as quatro primeiras causas de morte no país, juntamente com doenças do aparelho circulatório, causas externas, doenças infecciosas e parasitárias e afecções no período perinatal. Nos últimos anos, o governo e parte da sociedade brasileira têm-se mobilizado intensificando o planejamento de ações de prevenção, controle e assistência aos pacientes com câncer. Segundo Thuler2, a importância destas ações reside não apenas no desenvolvimento de estratégias de combate à doença, mas principalmente no seu caráter preventivo, desde que, atualmente, muitos tipos de câncer são curáveis se tratados em seus estágios iniciais.

Se analisarmos as estimativas da incidência e mortalidade por câncer no Brasil, poremos em dúvida a efetividade das campanhas de prevenção. Moraes3 aponta que, nas últimas décadas, as taxas brasileiras de mortalidade por câncer ou são estáveis ou têm tendência à elevação, revelando que pouco tem se conseguido em termos de prevenção. Segundo Francisco Ricardo Coelho, médico do Instituto Brasileiro de Controle do Câncer, "mesmo com todas as campanhas de conscientização sobre a necessidade do exame precoce das mamas, a maioria dos casos de câncer ainda é detectada em estágio avançado"4.

Autoridades da Saúde acreditam que o aumento do número de casos de câncer se deve à falta de regularidade de divulgação das campanhas de prevenção e ao fato destas campanhas não alcançarem todo o país5. Podemos relacionar também a existência de dificuldades de acesso aos hospitais e locais de prevenção, seja por falta de recursos de boa parte da população ou pela incapacidade do SUS de atender à demanda com suporte especializado e adequado para diagnóstico e tratamento das neoplasias.

Existem também outros fatores associados à mudança de atitude em relação à prevenção, como a definição do gênero ao qual as campanhas são endereçadas, dados os diferentes comportamentos de cuidado com a saúde encontrados entre homens e mulheres6,7. A literatura tem mostrado que homens e mulheres apresentam reações diferentes em campanhas que visam a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis8 ou a prevenção de câncer de pele9, sugerindo que campanhas educativas e preventivas devam ser sensíveis à questão de gênero (gender sensitives) na sua elaboração, desde aquela mais diretamente ligada às diferenças entre homens e mulheres até a que contempla a importância de outras categorias como gays e lésbicas.

Uma outra dimensão que parece ainda não ter sido levada suficientemente em conta e que não deveria ser descartada para as estratégias de formação de campanhas de prevenção diz respeito à construção histórica do significado e das representações do diagnóstico "câncer" para a maioria da população. A compreensão dos obstáculos e da ineficiência encontrados pelas campanhas de prevenção ao câncer deve ser procurada além de suas razões médicas e publicitárias, implicando a investigação de razões psicossociais.

Por questões provavelmente históricas que ainda estão por ser investigadas, o câncer parece ser uma doença retirada do rol a que pertence. Pelo caráter ontológico que adquiriu, pelas suas aparentes ocorrência randômica e incontrolabilidade, ele parece ser entendido como a doença e não como uma doença10.

Diante do desencantamento acelerado do corpo, ao longo dos séculos XIX e XX, dado o avanço coordenado da medicina e da tecnologia, o câncer parece ser visto como uma doença "mágica", por seu caráter trágico e misterioso, uma "resposta" ao desencantamento imposto ao corpo. Não à toa, é muito comum encontrarmos a busca de recursos "encantados" para a cura do câncer em pessoas cujo desespero leva à aceitação de tudo: a desesperança, nestes casos, reaquece antigas crenças. Como irracional que parece ao imaginário social, o câncer aponta os limites da racionalidade (leia-se: da ciência e da medicina), e induz, algumas vezes, a saídas e soluções "irracionais", ou seja, mágicas e religiosas, apoiadas em diferentes racionalidades11.

As causas sociais e históricas do porquê da força da representação social do câncer poderiam ser entendidas a partir da dialética entre as vozes corporais, isto é, as paixões, pulsões e fruições individuais há séculos negadas em nome da consolidação e do desenvolvimento social, e a dominação social do corpo12.

Neste sentido, os estudos em Psicologia Social têm muito a contribuir à área da Saúde Pública, estudando os elementos da construção e da transformação social e histórica de representações e significados coletivos em meio aos processos contemporâneos de construção da identidade13. Os mecanismos pelos quais estes significados e representações são introjetados pelos indivíduos muitas vezes produzem sua naturalização e, mesmo que "falsos" do ponto de vista da ciência médica, são experimentados como reais e verdadeiros.

A teoria das representações sociais tem sido utilizada para estudar como os indivíduos e os grupos sociais se apropriam dos objetos do cotidiano, oferecendo-lhes sentidos e lugares sociais que dizem tanto da história quanto da dinâmica dos relacionamentos intragrupais e intergrupais. Embora uma das principais características das representações sociais seja sua constante transformação, Moscovici14 considera que algumas representações são mais rígidas, sendo mais resistentes a mudanças do que outras.

Diversas pesquisas realizadas sobre a representação social do câncer têm mostrado a doença como associada à morte num quadro via de regra irreversível. Ferreira15, procurando identificar a representação social do câncer entre enfermeiros que trabalhavam com pacientes com esta doença, indicou nos seus resultados que os sujeitos possuíam uma imagem do câncer como uma sentença de morte ou como um processo irreversível. Focalizando o adolescente com câncer, Vasconcelos et al.16 analisaram os conteúdos projetivos presentes nos desenhos e relatos destes jovens. Os resultados mostraram um quadro em que se vêem, principalmente, as incertezas, limitações e angústias trazidas pela doença, a negação da doença e de sua destrutividade e ainda a doença como ameaça à integridade física e psíquica dos jovens.

Em outra pesquisa que corrobora estas mesmas representações, Quintana et al.17, tendo como sujeitos pacientes com câncer de mama, obtiveram como resultado que a negação e a recusa da doença têm graduações que vão desde a rejeição total da existência da doença até casos em que a paciente sabe de seu estado mas, mesmo assim, continua acreditando que se trata de outra patologia, levando à demora pela procura de tratamento e à conseqüente redução da probabilidade de cura. Sua conclusão é que a possibilidade da mastectomia como forma de tratamento e a representação do câncer como uma sentença de morte seriam os fatores mais significativos para o retardo na procura de atendimento médico após detecção de um nódulo no seio. Também nos relatos de portadoras de câncer coletados por Weihermann18, há expressões de sentimentos bastante fortes que verbalizam de forma clara o câncer visto como uma doença estigmatizante, que traz medo da morte, preconceito de contágio e depressão.

Estes resultados apontam para uma representação social compartilhada por diferentes grupos sociais em que o câncer equivale a uma sentença de morte. Os avanços tecnológicos no diagnóstico e no tratamento, com a atual possibilidade de cura em muitas circunstâncias, parecem não ter sido eficientes no sentido de transformar o significado e a imagem socialmente compartilhados que impregnam a idéia de "câncer". Neste sentido, a identificação e discussão das causas sociais e históricas da força de tal representação e de sua contraparte psicológica, isto é, os mecanismos psíquicos que a sustentam, contribuiriam para localizar as raízes afetivas e irracionais dos significados e das imagens social e individualmente atribuídas ao câncer. Assim, neste trabalho, nos propomos a investigar por que algumas campanhas de prevenção parecem não modificar suficientemente atitudes e comportamentos em relação à prevenção e tratamento do câncer.

Método

Realizamos uma pesquisa exploratória sobre os slogans presentes em algumas das campanhas nacionais de prevenção ao câncer, procurando associá-los a determinadas representações sociais de câncer e discutindo seu impacto sobre a prevenção da doença.

Sujeitos

Foram realizadas entrevistadas individuais com quinze universitárias paulistanas (S1 a S15), com idades variando entre 19 e 34 anos, selecionadas ao acaso, estudantes de uma universidade da cidade de São Paulo. As universitárias pertenciam a diferentes cursos das áreas de exatas, sociais, humanas e saúde.

Instrumentos

As entrevistas tiveram por objeto sete slogans de campanhas publicitárias de prevenção ao câncer, de alcance nacional, regional ou local, divulgadas durante os anos de 1997 e 2003: (1) "Declare seu amor por você mesma" (Programa Nacional de Controle do Câncer do Colo do Útero: Viva Mulher, Ministério da Saúde, 2002); (2) "Cuide-se. Você merece." (Campanha de Prevenção ao Câncer do Colo do Útero, Ministério da Saúde e Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, 2003); (3) "Sol na medida, saúde na certa!" (Campanha de Prevenção ao Câncer de Pele, Sociedade Brasileira de Dermatologia, 1998); (4) "Na luta pela saúde bucal, arme-se até os dentes" (Campanha sobre saúde bucal, incluindo os perigos do câncer bucal, Associação Brasileira de Odontologia, 2001); (5) "Se você tem peito... Entre nessa luta." (Campanha de Prevenção ao Câncer de Mama, Limeira (SP), 1999); (6) "Câncer do colo do útero: a cura está na prevenção." (Campanha de Controle do Câncer do Colo do Útero, Governo do Estado de Pernambuco, 2002); (7) "Aos 50 anos você tem quase tudo... Não queira ter câncer na próstata." (Campanha de Prevenção ao Câncer de Próstata, Piracicaba (SP), 1997).

Os slogans foram selecionados a partir de diversas fontes, tais como revistas de circulação nacional, informativos locais e sítios eletrônicos governamentais e de ONGs. O critério para a seleção dos slogans, a partir da avaliação de dois juízes, foi a presença ou não da associação imediata do câncer com a representação de morte. Segundo os juízes, os quatro últimos slogans selecionados (4 a 7) possuem claramente esta associação, enquanto que os outros três (1 a 3) não a trazem de modo evidente. Sabemos que as campanhas não são apenas seus slogans, geralmente estando associadas a outras ações de educação e sensibilização da população. O slogan, porém, é seu lado mais visível, condensando o apelo de uma campanha numa frase estampada em outdoors e revistas, muitas vezes visto e ouvido através do rádio e da televisão.

Cada slogan foi disposto em um cartão individual, de modo que pudessem ser mostrados, um a um às entrevistadas, permitindo também a alteração da ordem de apresentação.

Procedimento

Após a abordagem e o consentimento informado para a entrevista, primeiramente foi solicitado a cada uma das entrevistadas que associassem livremente uma palavra ou idéia ao termo câncer. A seguir, foram solicitadas considerações sobre cada um dos sete slogans em função de sua capacidade de mobilizar a população para a prevenção. Ao final da entrevista, foi pedido a cada entrevistada que escolhesse livremente os slogans mais mobilizadores e os menos mobilizadores e explicasse o porquê. A ordem de apresentação dos slogans foi alterada para cada entrevista.

Os discursos sobre os slogans foram analisados e classificados a partir de duas categorias: eixo temático vida que propõe a promoção da saúde para o não desenvolvimento do câncer, e eixo temático morte que propõe a precaução da doença, incitando as pessoas ao combate e prevenindo-as dos males do câncer. A diferença entre as duas categorias está ligada à maneira como os indivíduos lidam com seus corpos, no cuidado permanente e na busca do bem-estar ou na ameaça que acompanha a possibilidade de contrair ou apresentar uma doença grave.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Representação social de câncer

Na associação livre solicitada em relação à palavra câncer, cinco dos sujeitos pesquisados associaram o sentimento medo/receio com o câncer, outros três representaram o câncer com a palavra morte e dois outros sujeitos associaram a doença com o sentimento de tristeza. Os demais associaram o câncer com depressão, auto-destruição, prevenção, sofrimento e solidariedade. Essas palavras, que aparentemente são diferentes das palavras morte e medo, foram expressas juntamente com explicações que, por análise, acabam se associando também à idéia de morte.

Como exemplo, temos S3 que apresenta a palavra depressão e explica "porque vou morrer". Outro exemplo é S13 que apresenta a palavra tristeza e explica dizendo "[...] se meu pai pegar câncer ele vai morrer [...] pois o que todos pensam é a morte, independente de ser benigno e maligno". Apenas dois sujeitos expressaram palavras como prevenção e solidariedade.

Morte, vida e mobilização

Todos os slogans provocaram respostas diretamente associadas à idéia de prevenção, com destaque para o slogan "Câncer do colo do útero: a cura está na prevenção", com 14 respostas entre 15. Para melhor visualizar e avaliar as explicações dadas para cada um dos slogans pelos sujeitos, classificamo-los numa escala de "morte"-"vida" (Tabela 1).

No entendimento que as entrevistadas ofereceram sobre os slogans, todos eles apresentam uma associação bastante evidente com o discurso da morte ligado à doença, associação essa mais ou menos intensa. As palavras "câncer" e "luta" parecem especialmente provocar esse efeito. Estão entre os mais associados à morte os slogans "Câncer do colo do útero: a cura está na prevenção", "Se você tem peito, entre nesta luta", ambos ligados a campanhas de prevenção ao câncer de mama, e "Aos 50 anos você tem tudo. Não queira ter câncer na próstata", uma campanha dirigida ao público masculino. Mesmo os slogans que não falam claramente em doença acabam também, ao que tudo indica, provocando a associação com doença grave. Entre os que estariam mais associados ao eixo vida estão "Declare seu amor por você mesma", "Sol na medida: saúde na certa!" e "Cuide-se. Você merece", dois deles associados a campanhas de câncer de mama e o terceiro, tratando de câncer de pele, dirigido a um público de ambos os sexos. Nesta direção, o único slogan que usa a palavra "amor" provocou a maior associação com o eixo vida.

A distribuição das respostas sobre os slogans que mais mobilizariam e sobre os slogans que menos mobilizariam estão apresentados nas Tabela 2 e 3, respectivamente.

Sobre os slogans mais mobilizadores, as respostas parecem indicar uma tendência dos sujeitos em avaliar como mais efetivos os slogans mais ameaçadores. Assim, quanto mais associado à vida, ao cuidado permanente consigo, à auto-estima, menos efetivo seria o slogan para mobilizar a prevenção.

Tratando do slogan que seria o mais mobilizador para as entrevistadas ("Aos 50 anos você tem quase tudo... Não queira ter câncer na próstata"), elas indicaram que ele é ameaçador e assim precisaria ser, para poder sensibilizar aqueles que são arrogantes ou que temem uma consulta médica depois dos 50 anos.

As entrevistadas sugeriram uma diferença entre homens e mulheres ao tomarem contato com estas campanhas, no sentido de que os homens precisam ser levados a se cuidar, o que entre as mulheres parece ser uma atitude mais "natural". Dessa forma, os homens mereceriam as campanhas mais "duras". A escolha deste slogan também poderia se apresentar como uma posição defensiva por parte das mulheres, buscando a efetividade da prevenção no outro. Mas os slogans mais citados a seguir ("Declare seu amor por você mesma" e "Câncer do colo do útero: a cura está na prevenção") apontam para uma aparente contradição: estes slogans, mais associados a cada um dos eixos (vida e morte) pelas entrevistadas estão entre os mais mobilizadores. Isto de um lado indicaria que as mulheres responderiam também às campanhas que apontam para o eixo morte ("Câncer do colo do útero: a cura está na prevenção"). Mas por outro lado também sugere, no que seria uma diferença de gênero, que as mulheres também responderiam a campanhas que apelam para o eixo vida ("Declare seu amor por você mesma").

Ao olharmos para as escolhas feitas para os slogans menos mobilizadores, verificamos que os mais votados estão mais associados ao eixo vida ("Sol na medida, saúde na certa!" e "Declare seu amor por você mesma"), corroborando a idéia de que a ameaça nas campanhas de prevenção são vistas como mais efetivas.

Quando analisadas em relação à sua expressão, várias das respostas apresentadas pelas entrevistadas, pela sua síntese e objetividade, parecem-se com verdadeiros novos slogans. São os casos, por exemplo, de S11, explicando sua posição em relação ao slogan "Declare seu amor por você mesma" ("Se você ama sua vida, cuide-se") ou de S14 em relação ao slogan "Sol na medida, saúde na certa!" ("A prevenção valoriza a vida e evita a doença"). Isto caracterizou as respostas com uma certa impessoalidade que, julgamos, vai na mesma direção de uma estratégia de distanciamento das angústias provavelmente provocadas pelo tema da pesquisa. Tudo indica que a própria solicitação da pesquisa, ao oferecer como tema a questão do câncer, já acionou as defesas e as fugas que julgamos serem acionadas também pelos slogans. A seguir, analisamos cada um dos slogans.

Slogans e ideologia

O slogan "Aos 50 anos você tem quase tudo... não queira ter câncer na próstata" é o único que tem como público alvo o sexo masculino. Nele já podemos observar alguns elementos que estão também presentes em outros slogans, tais como a idéia de auto-estima, a responsabilização do indivíduo e, principalmente, as defesas e resistências diante do medo ou de outros fatores: "os homens se preocupam com tudo na vida, mas se esforçam em esquecer que o câncer de próstata existe" (S9) (grifos nossos).

Nas respostas provocadas por este slogan, fica mais evidente a presença da consciência de que a mobilização preventiva não é comum: "A maioria acha bobagem" (S3). Isto parece acontecer pela sua associação a um outro grupo, ou melhor, a um outro gênero: homens acima de 50 anos, enquanto as entrevistadas são mulheres de 19 a 34 anos. O slogan é compreendido como um apelo à experiência e à maturidade de quem tem 50 anos mas, ao mesmo tempo, como um convite a continuar vivendo. Esta contradição sugere que, se por um lado a experiência de vida torna o homem mais responsável, por outro, aproxima a morte da concepção de algo mais natural.

Sob a perspectiva de classe social, a análise do slogan parece colocar o câncer de próstata como uma ameaça à independência e à autonomia conquistadas com o sacrifício de tantos anos de trabalho. A idéia de ter quase tudo aos 50 anos, que não é real para todas as classes sociais, condiciona a mobilização ao sentimento de potência e de conquista. Pode ser proposital que a associação de câncer de próstata à impotência sexual seja contraposta a uma imagem de potência material ou simbólica (maturidade e experiência) do homem de 50 anos. Mas ao fazer isto, este slogan parece corroborar uma categorização, também presente em outros slogans, entre potentes e impotentes, atribuindo aos primeiros a mobilização preventiva. Ao responsabilizar o indivíduo impactando-o com a ameaça de morte, estas campanhas talvez contribuam com a imobilidade defensiva daqueles que se sentem impotentes.

A questão de gênero se apresenta como importante modulador do entendimento da campanha. O estereótipo masculino, ligado genericamente a comportamentos de risco socialmente instituídos, a um baixo cuidado geral com a saúde, evitando demonstrar as possíveis fraquezas de um corpo que não está disponível para falhar6,7, é um forte indicador de como o gênero pode afetar o efeito das campanhas de prevenção. Sob esta perspectiva, o slogan parece indicar para as entrevistadas uma diferença importante na maneira como homens e mulheres cuidam de si, expressando o estereótipo contido nos discursos sobre gênero e corpo a respeito da sensibilidade das mulheres com o próprio corpo e sobre o descuido dos homens sobre o corpo. Não parece sem sentido, assim, que um slogan que deva alcançar os homens deva ser especialmente impactante, pela ameaça explícita que ele contém: "Muitos homens se recusam a fazer o exame de próstata, devido ao próprio orgulho de ser "macho"... é importante atingir este ponto no público masculino. Pois as mulheres são bem mais conscientes neste aspecto"(S5).

Procurando indicações quanto à ligação com o eixo vida e com o eixo morte, a análise do slogan "Câncer do colo do útero: a cura está na prevenção" o apresentou como o que mais está associado ao eixo morte, pelo seu apelo à doença e ao medo. A presença da palavra câncer parece ter sido decisiva também para esta associação. Ele está, de fato, entre os três mais impactantes, o que confirma a tendência das entrevistadas de associarem impacto com ameaça. Se de um lado a palavra prevenção poderia provocar o eixo vida, é preciso notar que ela é antecedida pela palavra cura, o que remete novamente à doença (câncer). Se ele não é apresentado como o que mais mobilizaria, isto talvez possa ser explicado por fatores que amenizariam seu impacto, como a impessoalidade com o apelo para uma ação não individual, mas coletiva. A imagem de morte enquanto ameaça continua presente: "primeiro joga com o medo depois com o modo de prevenir" (S6).

No slogan "Se você tem peito... entre nessa luta", observamos que a idéia de coragem é posta como necessária e como condição à prevenção. Isto pode levar, novamente, ao sentimento de desamparo e de impotência àqueles a quem faltar a coragem e, em se tratando de uma doença fortemente associada à imagem da morte, pode ser uma exigência excessiva dirigida ao indivíduo. Acreditamos que este slogan sustenta a imagem de morte e a representação de impotência. De alguma maneira, reaparece aqui a responsabilização solitária do indivíduo, apesar do texto parecer o chamado a uma luta coletiva. Compreendemos que o slogan propõe, entre outras medidas preventivas, o auto-exame como uma prática freqüente de responsabilidade individual, mas compreendemos também que ele supõe que cada um esteja preparado para o que pode encontrar (coragem). Algumas respostas confirmam estes entendimentos: "ter peito não só significa o lado físico mas o lado emocional de cada indivíduo nesta luta" (S5) (grifos nossos).

Já no slogan "Na luta pela saúde bucal, arme-se até os dentes", a idéia de morte aparece de modo mais explícito, o que provoca reações mais evidentes: "Sensação: 'arme-se muito por que o negócio é feio'. Lembra cuidado excessivo e passa a sensação de que mesmo com esse cuidado ainda pode acontecer algo ruim impotência / medo"(S2). Por outro lado, algumas respostas parecem tomar o slogan num sentido muito mais amplo, amenizando, talvez, a ameaça que ele, explicitamente, contém: "parece propaganda de pasta, escova de dente ou fio dental" (S1).

As "respostas prontas" na forma de receitas odontológicas cotidianas, isto é, a familiaridade com o tema, talvez indiquem uma preocupação maior com problemas de saúde bucal mais freqüentes, mas é possível que essa divisão das respostas na forma do "tudo ou nada" já seja, em si mesma, uma defesa, como bem aponta a entrevistada que coloca enigmáticas aspas na palavra esquecido: "o câncer de boca parece que é meio 'esquecido' por todos, mas é necessário preveni-lo também" (S9).

O slogan "Sol na medida, saúde na certa!"parece propor a associação entre equilíbrio = saúde, abuso = doença. A prevenção é o mesmo que não abusar do sol. Aqui, a ameaça se dá pelo abuso, num apelo ao senso comum presente em outros tantos conselhos que ouvimos cotidianamente. Porém, a familiaridade e a espontaneidade das respostas que ele evoca, pelo acréscimo de informações preventivas, como usar protetor, respeitar horários, filtro solar, etc. parecem indicar que se trata de informação já assimilada. Algumas respostas evidenciam a consciência desta dica de prevenção bem como o fato de que ela não é seguida: "todo mundo sabe pele jovem pele sem sol e com filtro solar. Falta praticar" (S8). A estratégia adotada por este slogan parece esbarrar com as condições de vida observadas em grande parte da população, isto é, a sobrevivência social e econômica, muitas vezes, tem exigido excessivamente do corpo12. Neste caso, não é possível, ao menos imediatamente, o controle e o não abuso preventivo. Se esta é uma característica real e concreta o suficiente para ser introjetada pelos indivíduos e atravessada em seus discursos, então podemos supor que parte da perda de veracidade verificada neste slogan decorre da experiência desta contradição socialmente imposta.

Através das respostas das entrevistadas, não pudemos perceber neste slogan o elemento "morte" impactante. Está claro, pelas críticas a ele dirigidas, que para parte delas ele não assusta ou não assusta mais, isto é, não tem ou perdeu seu efeito. Parece-nos que um certo desejo do tomar sol é maior do que o respeito à saúde. Mas perguntamos se não haveria aqui a interferência de propagandas concorrentes: é possível combater o abuso do sol enquanto houver uma série de peças publicitárias sedutoras que colocam a praia como o local de fuga dos problemas e dos excessos? Acreditamos que se este slogan perde eficácia isto se dá, em parte, por concorrer com apelos publicitários que se apóiam numa identidade social esvaziada de vida e puramente "imagética"13 em suas representações (pele queimada, corpo "sarado", "vida de rico", etc.). Mas por que estes apelos, neste caso, gerariam impacto? Talvez porque proponham, justamente através de uma hipervaloração da individualidade, uma "auto-estima irresponsável", isto é, sem culpa e sem cuidados, uma entrega ao gozo, à fruição e ao prazer; necessidades e desejos humanos geralmente impedidos no dia-a-dia12.

A diminuição do seu impacto relativo poderia estar ainda associada ao fato deste ser um dos slogans em que não há referência a um grupo específico, um gênero, por exemplo, sendo dirigido à população em geral, como de resto os três slogans que, segundo as entrevistadas, menos mobilizariam.

Os slogans "Declare seu amor por você mesma" e "Cuide-se. Você merece", ambos de campanhas de prevenção ao câncer de mama, foram fortemente associados pelas entrevistadas ao eixo vida e estão, no nosso entendimento, convidando as pessoas à mudança de atitude em relação a si mesmas, o que parece supor nelas uma baixa auto-estima e um conseqüente descuido com o corpo e com a saúde. Apesar de dizerem respeito a um problema de saúde pública, parecem passar a compreensão de que o câncer é um problema individual e particular: cada um deve cuidar de si mesmo, ser responsável pela própria saúde, não jogar a responsabilidade para os outros.

Ideologicamente, parece haver uma particularização do problema em vez de um convite para uma conscientização coletiva. Isto retira da campanha seu apelo público, podendo passar algumas idéias sub-reptícias: "faça do seu jeito, isto é problema seu, vire-se sozinha" ou ainda "você é responsável pela aquisição ou pela prevenção do seu câncer". Além disso, se levarmos em conta a associação generalizada do câncer à idéia de morte, como fizeram as próprias entrevistadas, podemos supor que mesmo nestes slogans essa responsabilização gere sentimentos de culpa, de solidão e de abandono em quem se descobre com câncer. Não estamos defendendo uma postura paternalista ou criticando o apelo público ao auto-exame. Estamos apenas identificando que, mesmo as campanhas que não se vinculam explicitamente à idéia de morte, talvez continuem sendo lidas a partir deste elemento. É porque o câncer está fortemente associado à morte que a auto-estima proposta como elemento de saúde, nestes slogans, pode também ser sentida como uma pesada responsabilidade ou como uma ameaça.

O elemento ideológico que identificamos nestes slogans é: se falta saúde às pessoas, é porque elas não se amam e não porque grande parte delas é submetida a condições de vida pouco saudáveis. Há aqui um deslocamento de responsabilidades que exime de culpas a organização social que se sustenta na exploração da força de trabalho. Em que medida a falta de auto-estima, condição psíquica necessária à saúde, não é resultado da introjeção das condições concretas de vida da população? A baixa auto-estima, assim, socialmente compartilhada e reconhecida pelos criadores destes slogans, estaria impregnada no imaginário social de uma maneira mais forte do que poderíamos supor, por encontrar, talvez, condições materiais e cotidianas que a sustentam e a reproduzem.

Neste sentido é que devemos pensar a auto-estima como característica psicossocial se quisermos entender os limites das campanhas que analisamos. A idéia de auto-estima, fortemente associada ao cuidado de si e à promoção da vida (eixo vida), não pode ser compreendida apenas na sua dimensão individualizante, o que pode não funcionar para a efetiva prevenção do câncer. Os slogans apoiados no sentimento de auto-estima podem não ser eficazes se associados à individualização da doença, se lidos pelo viés da ameaça e da responsabilidade.

Representação social do câncer e dominação social do corpo

Ao examinarmos a maioria das campanhas de prevenção, observamos que a idéia de morte não só está presente em seus slogans como parece ser o elemento ao qual se associa sua força mobilizadora. A idéia de "luta", de coragem exigida para se enfrentar um câncer, ou a idéia de "cuidado, você pode morrer", não são mentirosas em sua essência, mas parecem visar certa hipostasiação da doença, dando ao câncer uma falsa natureza ontológica.

Por conseqüência desta materialização, passa a ser projetada sobre o câncer uma série de ameaças, psíquicas e físicas, imaginárias e reais, contra o corpo. Com estas considerações não objetivamos menosprezar a ameaça real e concreta em que um câncer se constitui. Isto seria equivalente a dizer que não há mais ameaça alguma, o que, além de ser falso, poderia provocar tanta ou mais imobilidade. Questionamos, apenas, o quanto que à ameaça real do câncer se agrega uma sobrecarga de angústia que, ao mitificá-lo, transforma-o em algo com excesso de significados e imagens. Confrontando-se com este excesso, o indivíduo parece sentir-se insignificante e impotente e, isto sim, pode ser falso em boa parte dos casos. Assim sendo, ao associar o câncer à idéia de morte, ainda que isto não seja falso, as campanhas de prevenção parecem impor sobre o indivíduo uma imagem de impotência. Devemos associar, pois, à representação social de morte ligada ao câncer, uma outra representação, de impotência, ligada ao indivíduo.

Portanto, por mais que a campanha convide o indivíduo à luta, trata-se da luta contra a morte, uma "morte" sentida como absoluta e irrevogável, diante da qual toda batalha se torna homérica. De ameaça real, a morte se torna uma ameaça com uma força mítica, encarnada na doença e, o que deveria ser uma luta contra a doença, embora grave muitas vezes, se transforma numa batalha perdida por antecipação. Concordamos que os slogans das campanhas que se apóiam na representação de morte são muito impactantes, mas temos dúvidas de que sejam mobilizadores.

Dentro desta perspectiva, acreditamos que as representações sociais e os significados relacionados ao câncer presentes nos slogans poderiam provocar reações de defesa e fuga em boa parte dos indivíduos, transformando as campanhas em "agentes imobilizadores", isto é, justamente o contrário daquilo a que se propõem. Ainda que não possamos afirmar que, se retirado o elemento "morte" impactante, eles se tornem mais eficientes.

A análise das respostas sobre o potencial mobilizador de cada slogan aponta para as estratégias ligadas à ameaça, ao desafio e à responsabilização que são vistas como mais eficientes. De maneira inversa, aquelas que não se apóiam em tais elementos são julgadas como as menos mobilizadoras. O "impactante" é o fator mobilizador para as entrevistadas desta pesquisa. O impacto, porém, muitas vezes recorre à representação social de morte.

Os resultados das avaliações oferecidas pelos sujeitos, confrontados com os dados disponíveis de efetividade das campanhas, apontam que o impacto indicado pela amostra estudada não significa necessariamente mudança de atitude em relação à prevenção. Estes dados sugerem que há uma diferença entre mobilização e impacto. Não se pode afirmar que os slogans ditos mais "mobilizadores" levam necessariamente à prevenção. Os slogans, atados a este entendimento do que é mais "mobilizador", não estariam levando em conta as diferenças entre o que é dito ser mobilizador e sua efetivação. Desta forma, a definição dos slogans das campanhas de prevenção estaria, via de regra, sendo realizada em função de seu poder de impacto, e não em relação ao seu poder de levar os sujeitos à prevenção.

Se a mobilização existe, ela não se dá necessariamente em direção à prevenção. As defesas e resistências diante do impacto provocado pelos slogans também são respostas, isto é, são reações "mobilizadas" pela ameaça de morte. O impacto pode ser pensado como condição de eficiência, porém, o slogan eleito como o mais mobilizador é o único que não ameaça o grupo de entrevistadas (elas nunca precisarão se prevenir contra o câncer de próstata), o que sugere que estas respostas também carregam o peso da mobilização diante da ameaça, isto é, podem ser defensivas. Assim, enquanto as campanhas associadas à idéia de morte são consideradas as mais mobilizadoras do ponto de vista da procura de prevenção, isto implica, por outro lado, que elas poderiam ser as mais mobilizadoras de respostas defensivas por parte dos sujeitos.

Conclusão

Ao associar o câncer à idéia de morte, campanhas de prevenção parecem impor sobre o indivíduo também uma imagem de impotência. Acreditamos que um modelo melhor seria desmistificar o câncer, convidando as pessoas a participarem de um problema que é de saúde coletiva. Enquanto todo câncer estiver ligado à fatalidade e for visto como um problema individual, as prevenções estarão mais sujeitas a obstáculos individuais, isto é, defesas psíquicas.

Valeria ressaltar que, nas campanhas que apontam para a idéia de auto-estima, há um apelo para a valorização do próprio corpo e da saúde como dimensões inerentes à identidade dos sujeitos, de tal forma que a prevenção diria respeito não à evitação da doença, mas à manutenção do indivíduo – o que inclui seu corpo. Esta perspectiva parece oposta àquela que vê o corpo como um bem que pertence ao outro, seja ele o médico, a ciência ou a saúde pública, colocando os indivíduos sob a ameaça de danificar um bem público, o corpo público. Entre o corpo absolutamente singular e único e aquele "público", está o corpo associado à identidade social, que mesmo que sujeito aos estereótipos de gênero, por exemplo, pode levar os indivíduos a responder aos discursos que lhe "tomam" o corpo, estreitando sua ligação com esta categoria social. Se ser mulher é ter uma relação com o corpo onde cabem a prevenção e o auto-cuidado, este não é um assunto individual, mas está associado à identidade social das mulheres enquanto grupo que reconhece nesta ação um compromisso coletivo.

Noutra ponta, nos casos em que vimos, as campanhas geralmente reforçam os aspectos mais rígidos desta representação social, como a idéia de que o câncer leva necessariamente à morte, deixando de considerar, por exemplo, que existem diferenças importantes entre tipos de câncer ou entre tipos de tratamento. Desta forma, entendemos que, dada a relação da representação social do câncer com a mobilização para a prevenção e o tratamento, os gestores da saúde pública e os profissionais envolvidos nestas campanhas, que têm deixado de considerar seu papel na construção e manutenção desta representação, poderiam assumir ainda esta tarefa de desmistificação do câncer como uma doença única e necessariamente fatal.

Por fim, se foi possível apontar nas respostas dos sujeitos elementos psicológicos defensivos diante de uma representação social de morte ligada ao câncer, não possuímos elementos suficientes para avaliar os resultados efetivos dos slogans sobre a prevenção do câncer. Neste caso, acreditamos que somente pesquisas que estudem a correlação entre o impacto e a eficiência das campanhas de prevenção ao câncer, isto é, seu poder de mobilização, poderiam trazer respostas definitivas. Concluímos entendendo que a representação social de câncer, a auto-estima, as relações entre individualidade e coletividade, os discursos de gênero e o caráter ideológico dos slogans são elementos de natureza psicossocial que precisam ser levados em conta na elaboração de campanhas de prevenção ao câncer.

Colaboradores

MASC Mangiacavalli trabalhou na concepção inicial da pesquisa, na coleta de dados e na redação do artigo; JEC Carvalho orientou a pesquisa, trabalhou na análise e interpretação dos dados e na redação do artigo; C Ramos co-orientou a pesquisa, trabalhou na análise e interpretação dos dados e na redação do artigo.

Artigo apresentado em 22/06/2005

Aprovado em 07/11/2006

Versão final apresentada em 11/12/2006

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2007
  • Data do Fascículo
    Out 2007

Histórico

  • Aceito
    11 Dez 2006
  • Recebido
    22 Jun 2005
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