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O desaparecimento da infância

RESENHAS BOOK REVIEWS

Ceci Vilar Noronha

Socióloga, Doutora em Saúde Pública, Universidade Federal da Bahia

Postman N. O desaparecimento da infância. Tradução: Suzana M. de Alencar Carvalho e José Laurentino de Melo. Rio de Janeiro: Graphia; 2005. 190 p.

O crítico social Neil Postman, professor titular do Departamento de Comunicação, da Universidade de Nova York, escreveu vários livros focalizando as relações entre os meios de comunicação e a educação. A obra que vamos comentar foi lançada nos Estados Unidos, em 1982, e reeditada em 1994. No Brasil, a publicação teve o mesmo destino, após ser lançada em 1999, foi reimpressa em 2005. Concluímos que esta obra é um sucesso editorial porque nos instiga a pensar nos deslocamentos que a idéia de infância vem passando e, ao mesmo tempo, nos paralelismos que o autor estabelece entre tecnologia de comunicação, consciência, valores culturais e sentimentos. Composto em duas partes, a primeira trata da construção social da infância, retomando a linha dos estudos sobre os costumes, uma senda traçada por Norbert Elias, Ariès Philippe e outros, e a segunda expõe a tese do desaparecimento da infância. No prefácio à nova edição, o autor reafirma a mesma tese e se declara impotente em apontar saídas para interromper a tendência por ele identificada. Sendo reconhecida a veracidade do prognóstico, vamos aos seus argumentos. Neste sentido, o termo desaparecimento deve ser colocado entre aspas porque expressa que as crianças estão se tornando seres adultos precoces ou pseudo-adultos. O fio condutor da argumentação recupera as semelhanças e distinções entre crianças e adultos no que tange ao vestuário, a linguagem, as atitudes e os desejos, em diferentes contextos históricos.

No esforço de demonstração da sua tese, o autor nos dá exemplos da transformação da infância na contemporaneidade, entre os quais, o início aos 12 anos da carreira de modelo. Ocupação ligada indissoluvelmente à venda de mercadorias, ao exercer esse papel, a criança torna-se um símbolo erótico, tal como as mulheres adultas que se dedicam à mesma atividade. No entanto, esse limite etário pode ser menor, como no caso da modelo estadunidense JonBenet Ramsey, assassinada, no auge da fama, aos seis anos. Outro exemplo é o aumento dos crimes cometidos por adolescentes menores de 15 anos, cuja punição se faz com penas idênticas às que são atribuídas aos adultos. Ainda podemos acrescentar os atos violentos ocorridos com freqüência no ambiente escolar, seja nos países ricos ou pobres do hemisfério ocidental. Os jogos infantis também mudaram substancialmente, tornando-se mais semelhantes ao gosto dos adultos. Com a habilidade de quem articula vários fios dispersos e de natureza distinta para compor um único tecido, o autor enfatiza a queda das barreiras ou dos limites entre o mundo dos adultos e das crianças.

O percurso argumentativo inclui a recuperação dos sentidos atribuídos à infância nos grandes períodos históricos. Deste modo, o lugar da criança na sociedade da Antiguidade clássica pouco se sabe, mas assinala-se que entre os gregos e os romanos se desenvolveu uma concepção de educação. Nesta época, surgiram interditos na convivência entre adultos e crianças, ou seja, restrições do que falar e como proceder na presença das crianças, indicando a existência do sentimento de vergonha. Este descortinar de uma atenção diferenciada dos adultos para com os imaturos, no entanto, se perdeu durante a Idade Média. E, após as invasões bárbaras, houve também uma retração do hábito da leitura, dos propósitos da educação e mudanças de postura dos adultos em relação às crianças.

Deste modo, no período medieval, as crianças eram adultos pequenos; estes só não estavam prontos para a guerra e para manter relações sexuais. Predominava no ambiente doméstico uma intimidade considerada hoje como promíscua entre os adultos e entre eles e as crianças. Neste ambiente, era praticado sem censura o hábito dos adultos brincarem com os órgãos genitais das crianças. A mudança deste hábito só veio a ocorrer na Modernidade por força do avanço do processo civilizatório, que compreende o exercício do autocontrole da pulsão sexual por parte dos adultos e atitudes discretas em relação ao sexo na presença dos jovens.

Ao longo da Idade Média, o autor assinala que só a partir do século XVI começaram a ser impressos livros relativos à criação de filhos e orientações dirigidas às mães. E vale lembrar as altas taxas de mortalidade infantil do período em que se combinava analfabetismo e falta de um conceito de educação. O primeiro livro pediátrico em língua inglesa foi publicado em 1544, antecedido por publicação similar na Itália em 1498. Tais acontecimentos expressam a instituição da idéia de que as crianças são seres frágeis que necessitam de proteção por parte dos adultos. O autor assegura que a construção social da infância levou aproximadamente duzentos anos para se firmar como um valor socialmente compartilhado.

Entrelaçada com estas mudanças, o autor nos trás uma reflexão sobre os limites temporais da infância: como estabelecer os limites de passagem do mundo infantil ao adulto? Para Rousseau, um filósofo dedicado ao tema da educação, o desenvolvimento do hábito da leitura, que se consegue por volta dos sete anos, significa o fim da infância e o ingresso na idade adulta. Para a Igreja Católica, o marco dos sete anos vale como a idade da razão, o saber discernir entre o certo e errado, ou a virtude e o pecado. O Estado brasileiro também utilizou a idade dos sete anos para o ingresso no sistema educacional público.

Para além da idade, o que mais diferencia a criança do adulto? O conhecimento de certas facetas trágicas da vida como as guerras faz parte da experiência dos adultos, mas não do universo infantil. Aí cabe fazer um lembrete sobre a participação dos meninos soldados em guerras civis nos países africanos. Seria esta uma distinção válida apenas para os países ricos e industrializados?

Quanto a isso, o autor reafirma que os significados da infância, longe de expressar apenas uma fase biológica do desenvolvimento humano, são moldados na esfera da cultura. A infância com suas distinções face à vida adulta é um produto cultural, histórico e passível de transformações radicais. Nesta linha de argumentação, a base material para o surgimento da infância e também para o seu declínio está articulada às mudanças nas tecnologias de comunicação, uma vez que esses meios tecnológicos disponíveis passam a modificar a nossa própria estrutura de interesses, a esfera simbólica e o contexto no qual pensamos. Ou seja, à medida que nós consumimos livros, jornais, rádio e televisão (a Internet não entrou nas referências do autor), estamos nos adequando às possibilidades dadas pela comunicação e, simultaneamente, transformando a nossa consciência.

No início da Idade Moderna, a tipografia auxiliou na expansão do conhecimento e instituiu o hábito individual da leitura e esse fato rompeu com a longa tradição de transmissão oral do saber. Essa mudança veio a fundar uma outra etapa no desenvolvimento infantil, significando que após o domínio da linguagem oral, a criança tinha que desenvolver as habilidades para dominar a escrita. Só desta forma ela poderia ter acesso às informações que os adultos dominavam. Neste particular, o autor reconhece que a infância é análoga ao aprendizado da linguagem, conta com uma base biológica, mas não só. Ou seja, aprender uma língua depende de habilidades para partilhar de um universo simbólico.

Como sabemos, a introdução da linguagem escrita veio a demandar longos anos de educação formal das crianças, implicando isso no compromisso dos seus pais. Para o autor, a nova concepção de infância também instituiu a família moderna, com preocupações de apoiar seus filhos por longos anos, sustentá-los e educá-los. Aprender os códigos da leitura e da escrita exige tempo e investimentos afetivos e financeiros. Contudo, mudanças ocorreram na família em todo o século XX, assinalando-se uma crise da família conjugal que passa por dificuldades, inclusive de ordem financeira, resultando em mais horas de trabalho dos pais e na falta de supervisão sobre a prole.

Por conseguinte, uma nova perspectiva de relações entre adultos e crianças começou a se delinear com o alargamento dos meios de comunicação de massa, sobretudo a televisão, cuja linguagem é pictórica, facilmente compreensível, dispensando qualquer aprendizado específico. E são os efeitos não previstos das novas formas comunicacionais que estão fazendo ruir as barreiras entre adultos e crianças. A escola continua existindo, mas perde espaço por utilizar uma linguagem difícil e tradicional. Os jovens, por vezes, se sentem "perdendo tempo" ao freqüentar a escola, ainda que ela demande poucas horas diárias, no nosso país.

Sobretudo, os mistérios em torno do sexo foram sendo desvendados pela televisão e, com as informações acessíveis e fora do controle dos pais, a "adultificação" das crianças tomou impulso acelerado. Um fenômeno correlato ao desvendamento precoce do sexo é o aumento das estatísticas sobre gravidez na adolescência, o que vem ocorrendo na maior parte dos países ocidentais.

Por fim, o autor conclui que há um duplo movimento em que as crianças tendem a se tornar adultos precocemente e os adultos tornarem-se mais frágeis em sua estrutura psicológica e moral, infantilizando-se. Os adultos-crianças podem ser vistos em programas reality show, tão apreciados em nossa sociedade e copiados de estações de televisão estrangeiras. Do mesmo modo, o noticiário "sério" da tevê contribui para abalar na criança a crença na racionalidade dos adultos e faz com que ela coloque em suspeição se conseguirá, ao crescer, ter controle sobre a sua própria agressividade.

Evidentemente que a velocidade dessas tendências não será a mesma em todas as sociedades ou grupos sociais, mas estão colocadas como desafios atuais. Resta-nos indagar: a quem interessa salvar a infância?

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2007
  • Data do Fascículo
    Out 2007
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