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Semiologia e atenção primária à criança e ao adolescente

RESENHAS BOOK REVIEWS

Danilo Blank

Professor do Departamento de Pediatria e Puericultura da Faculdade de Medicina da UFRGS, Editor Associado do Jornal de Pediatria, Sociedade Brasileira de Pediatria.

Costa MCO, Souza RP, editores. Semiologia e atenção primária à criança e ao adolescente . 2ª edição. Rio de Janeiro: Revinter; 2005. 534 p.

No prefácio desta segunda edição de uma obra cuja antecessora já extravasara do campo de interesse exclusivamente médico1, Maria Conceição Oliveira Costa e Ronald Pagnoncelli de Souza reiteram que o seu objetivo principal é apresentar a estudantes e recém-formados de diferentes cursos na grande área da saúde uma coletânea multiprofissional dos conteúdos básicos de atenção à saúde da criança e do adolescente. Trata-se de uma concepção muito modesta, pois o livro é mais do que uma coletânea de artigos; aborda mais do que conceitos básicos, apesar de seu formato conciso; e – sobretudo – ensina de modo abrangente e operacional o que é e por que é tão importante a interdisciplinaridade.

Por um lado, perpassa por todos os capítulos de "Semiologia e atenção primária à criança e ao adolescente" um olhar que é a síntese do que Eduardo Marcondes definiu como aquelas percepções de caráter formativo sem as quais não se é um verdadeiro pediatra2. (Entenda-se aqui pediatria como a área da medicina especializada no ser humano em fase de desenvolvimento, da concepção até o fim da adolescência, conforme prescreve a Sociedade Brasileira de Pediatria3.) De acordo com a aplicação do modelo das sete percepções no ensino da pediatria, vale muito pouco transmitir simplesmente informações ainda mais hoje em dia, que com dois cliques se enfia tudo num palmtop. É imprescindível à formação completa do médico de crianças e jovens assimilar as noções de que os seus pacientes têm um caráter unitário quanto à saúde e à doença; que o desenvolvimento lhes confere ecodependência, vulnerabilidades e resiliências peculiares; e que, portanto, torna-se transcendental monitorizar o desenvolvimento de forma abrangente, promover a saúde e cultivar a arte e ciência da comunicação efetiva2. Esses conceitos e com tal enfoque são trabalhados de modo uniforme e integrador pelos colaboradores de Conceição e Ronald, com ênfase nas questões da ecologia (principalmente o papel da família), da primazia das avaliações do desenvolvimento, antropométricas e nutricionais, do controle de injúrias físicas e emocionais por causas externas, até aspectos mais pontuais, como imunização, saúde bucal e atividade física.

Por outro lado, como é uma publicação com rigorosa atualidade das fontes bibliográficas, ainda que não pretenda uma cobertura das situações patológicas, mantendo-se no âmbito do atendimento primário, presta-se à educação permanente de profissionais bem além do que sugere o modesto prefácio dos editores. Considerando as estimativas correntes de que o médico de crianças e jovens devote até 40% de sua atividade clínica do dia-a-dia aos chamados serviços preventivos, é muito útil ter à mão uma fonte de consulta com informações básicas para a chamada puericultura apoiada em evidências, incluindo nutrição, desenvolvimento, testes de triagem, orientação preventiva, apresentadas com riqueza de tabelas e quadros4. Nesse sentido, o livro cai como uma luva quanto às orientações das Diretrizes Curriculares Nacionais dos cursos de graduação em Medicina, instituídas em novembro de 2001, que enfatizam a formação de médicos competentes em todos os níveis de prevenção das doenças – mas principalmente primário e secundário –, capazes de atuar com qualidade e resolutividade no Sistema Único de Saúde e habilitados à educação permanente5.

Além disso, é uma obra que leva muito a sério a questão da interdisciplinaridade, que tem sido vista como uma percepção essencial a mais na formação do médico moderno, cuja lógica se impõe como uma tendência irreversível dos novos tempos, na medida em que o modelo tradicional de prática clínica, restrito às quatro paredes do consultório e baseado em consultas rápidas de um único profissional com uma família, já não dá conta de todas as demandas de um trabalho integral de promoção da saúde3,4. Ressalte-se que, tratando-se de uma publicação com meta explícita de servir de ferramenta à aprendizagem, nesse ponto mais uma vez se alinha às citadas Diretrizes Curriculares, um de cujos princípios é a articulação entre a academia e o sistema de saúde, com ênfase na formação de profissionais capazes de exercer liderança no trabalho em equipe multiprofissional. Com efeito, "Semiologia e atenção primária à criança e ao adolescente" expande e aprimora a noção de trabalho em equipe, transcendendo o que tradicionalmente não passa de atividade meramente multiprofissional ao dedicar vários capítulos para definir e discutir as relações entre os papéis dos vários especialistas médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais e demais profissionais, isto é, interdisciplinaridade. Aliás, mais uma iniciativa inovadora dos editores foi convidar profissionais de formações diferentes para dividir a autoria de muitos capítulos, de modo que a partir da construção do próprio livro se fundamenta um modelo de interdisciplinaridade para a prática de atenção à saúde.

O interessante sortimento de profissionais que colaboraram na redação do livro é mais um de seus elementos diferenciais, que com certeza decorre em parte da profícua relação de trabalho com que se completam os dois editores, mas também da visão ampla e do arguto senso editorial de que ambos são dotados. Maria Conceição Oliveira Costa, baiana, é professora titular da Universidade Estadual de Feira de Santana, docente muito ativa do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, junto ao qual organizou e coordena o Núcleo de Estudos e Pesquisas na Infância e Adolescência. Ronald Pagnoncelli de Souza, gaúcho, é professor aposentado do Departamento de Pediatria e Puericultura da Faculdade de Medicina Universidade Federal do Rio Grande do Sul, escola da qual foi diretor. Sua parceria nasceu no início dos anos noventa, a partir do trabalho de ambos no Departamento Científico de Adolescência da Sociedade Brasileira de Pediatria. Nessa época, Ronald, um dos pioneiros da medicina de adolescentes no Brasil, já tinha grande experiência editorial, pois publicara vários livros de orientação aos pais, como "Nossos filhos, a eterna preocupação", "A educação sexual de nossos filhos", "Nossos adolescentes", "Os filhos no contexto familiar e social", e algumas obras para profissionais de saúde, como o "Manual de Adolescência" da Sociedade Brasileira de Pediatria", "Situações de risco à saúde de crianças e adolescentes" e até o primeiro "Tratado de Adolescência", que infelizmente fora prejudicado por sérios contratempos editoriais. Maria Conceição vinha de uma formação acadêmica mais formal, tendo completado o seu curso de doutorado na Universidade Federal de São Paulo e começava a se engajar no que viriam a ser suas áreas prioritárias de pesquisa: saúde integral e prevenção de riscos na adolescência e juventude, violência contra crianças e adolescentes e saúde reprodutiva na juventude. Ronald, um batalhador constante e criativo em prol das publicações voltadas para a prática clínica, que valorizassem os conhecimentos dos mais experientes e estimulassem os valores novos, anteviu logo que a capacidade de trabalho e a dedicação da nova parceira propiciaria a concretização de bons projetos.

De fato, a primeira edição desta obra aqui resenhada, que saiu em 1998 sob o título "Avaliação e cuidados primários da criança e ao adolescente", foi o primeiro fruto concreto e útil da dupla1. Concebida a princípio como um manual eminentemente prático de assistência primária de crianças e jovens, já trazia a marca inovadora da interdisciplinaridade. Para atestar o seu caráter didático e acessível, basta relatar que foi adotada como o virtual livro-texto da disciplina de graduação voltada especificamente para a promoção e proteção da saúde em pediatria, na Faculdade de Medicina da UFRGS. Estimulados pelo sucesso dessa primeira produção, Maria Conceição e Ronald programaram estrategicamente um livro mais abrangente, agora mais voltado para o adolescente, incluindo como autores dos capítulos um bom número de colegas de destaque acadêmico no campo da medicina de adolescentes, que haviam ficado de fora do projeto anterior. Assim, quatro anos depois, foi publicado pela mesma editora, já com ares de tratado, "Adolescência: aspectos clínicos e psicossociais"6. Novo sucesso editorial, cujo cunho interdisciplinar, a exemplo da obra predecessora, fez com que fosse lido por todos os profissionais de saúde com igual interesse.

Logo, era simplesmente natural que a fórmula simples e efetiva do primeiro "Avaliação e cuidados primários" fosse burilada e reapresentada ao público leitor, sempre exigente quanto à atualização das suas fontes de consulta. E aqui voltamos ao interessante sortimento de profissionais que colaboraram na redação do livro, referido acima como um dos seus principais traços diferenciais. Pois dessa feita cada autor foi convidado com a recomendação explícita de que, a fim de estimular parcerias, não assumisse sozinho a tarefa e providenciasse pelo menos um colega para ser co-autor do capítulo, preferentemente de uma disciplina diferente e se possível de outro estado. Os vinte e três capítulos foram assim confiados a quarenta profissionais – dezenove médicos (entre pediatras, sanitaristas e psiquiatras), cinco enfermeiros, quatro psicólogos, três professores, três odontólogos, três nutricionistas, dois assistentes sociais e uma epidemiologista –, com o lembrete de que o êxito do trabalho estava diretamente relacionado à qualidade, ao caráter interdisciplinar e à participação coletiva na produção e revisão dos textos. Em vista das ligações regionais dos dois editores, a grande maioria dos autores são baianos e gaúchos, o que não deixa de estabelecer um contraponto interessante entre os olhares sobre os diversos temas. De qualquer modo, ainda que a hegemonia dos médicos tenha persistido, formaram-se duplas interessantes de psicóloga com enfermeira, médica com nutricionista e assim por diante.

Os capítulos de "Semiologia e atenção primária à criança e ao adolescente" seguem uma ordem lógica baseada na noção ecológica de que todo indivíduo é muito dependente do microambiente até que se complete o ciclo básico de desenvolvimento. Tal dependência vai se modificando na medida da ampliação das capacidades neuropsicomotoras e sociais, de modo que a mãe, o pai e a família vão cedendo espaço para o macroambiente. Assim, o primeiro capítulo, que dá um panorama geral dos indicadores de saúde para a infância e a adolescência, é seguido por vários que discutem aspectos detalhados de como a criança e o jovem se desenvolvem, com ênfase nas interações familiares e nas técnicas de abordagem dos pacientes e cuidadores próprias de cada faixa de idade. A seguir, três capítulos com roteiros semiológicos específicos para crianças menores e adolescentes e, evidentemente, uma discussão atualizada da avaliação antropométrica. Da mesma forma, a reconhecida primazia da nutrição no processo de desenvolvimento faz com que lhe sejam devotados dois capítulos com questões próprias das idades diferentes. Em seguida, capítulos específicos para cada uma das áreas que merecem atenção especial em todo texto de promoção de saúde, pelo grande impacto que os procedimentos preventivos podem ter quando bem aplicados: imunizações, saúde bucal, atividade física e injúrias físicas por causas externas. Aspectos práticos e dirigidos da abordagem de situações de emergência são tratados em capítulos separados, uma vez que isso também é atendimento primário. Por fim, cinco capítulos dedicados a discutir em detalhe os papéis de cada profissional numa equipe multidisciplinar de atenção à criança e ao adolescente: o clínico, os especialistas, o enfermeiro, o psicólogo e o assistente social.

O lançamento de um livro que trata de conteúdos básicos de atenção primária à saúde com outros conhecimentos essenciais mais complexos incluídos no pacote – voltado especialmente àqueles profissionais que se propõem entender de crianças e jovens, é extremamente bem-vindo nos dias de hoje. Num momento em que os custos excessivos e as limitações da superespecialização do atendimento médico passam a exigir a presença de profissionais dotados das habilidades e vocação para a assistência primária, já se diz que, se não existissem pediatras gerais, eles teriam que ser inventados7. Adicione-se a essa receita generosas doses de boas idéias sobre como colocar em prática a real interdisciplinaridade, tendo como pano de fundo as necessidades cotidianas da população, e não é preciso justificar mais por que esta obra tem que ser lida por mais profissionais de saúde em formação e, sobretudo, gente que já lida com o dia-a-dia da atenção primária.

Referências

1. Costa MCO, Souza RP, organizadores. Avaliação e cuidados primários da criança e do adolescente. Porto Alegre: ArtMed; 1998.

2. Marcondes E. Diretrizes para o ensino da pediatria. J Pediatr (Rio J) 1993; 69:349-52.

3. Martins RM, Campos Junior D. Introdução - História da Pediatria Brasileira. In: Lopez FA, Campos Junior D, organizadores. Tratado de pediatria - Sociedade Brasileira de Pediatria. 1ª. ed. Barueri: Editora Manole Ltda.; 2007. p. xxi-xxv.

4. Blank D. A puericultura hoje: um enfoque apoiado em evidências. J Pediatr (Rio J) 2003;79(Supl.1):S13-S22.

5. Brasil. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina. Resolução CNE/CES Nº 4, de 7/11/2001. [acessado 2006 Dez 10]. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CES04.pdf

6. Costa MCO, Souza RP, organizadores. Adolescência: aspectos clínicos e psicossociais. Porto Alegre: ArtMed; 2002.

7. Wacogne I, Scott-Jupp R, Chambers T. Resuscitation of general paediatrics in the UK. Arch Dis Child 2006; 91:1030-2.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2007
  • Data do Fascículo
    Out 2007
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