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Como poderia a Gerontologia, um campo multidisciplinar do saber, estar presente na Tabela das Áreas do Conhecimento do CNPq?

How could Gerontology, a multidisciplinary field of knowledge, be included in CNPq's Table of Knowledge Areas?

Resumos

Discutimos a possibilidade da inserção da Gerontologia na Tabela das Áreas do Conhecimento do CNPq num cenário em essa tabela vem sendo questionada na comunidade científica, particularmente no que se refere à inclusão de áreas multidisciplinares. A partir de Foucault, entendemos a Árvore do Conhecimento como uma taxonomia, um continuum, onde todas as áreas são colocadas lado a lado, mais próximas ou mais afastadas conforme semelhanças e diferenças entre si. Trata-se de um tratamento linear e finito que estabelece que uma determinada área do conhecimento só pode estar situada num ponto da parte da linha que corresponde a uma grande área. A Gerontologia caracteristicamente multidisciplinar não alcançou lugar nessa taxonomia institucionalizada, seja porque haveria problemas em relação a conceitos, interesses e projeto político em sua constituição como área do conhecimento, seja porque a taxonomia seria incompatível com a multidisciplinaridade. Concluímos que é possível conceber uma nova Tabela de Campos de Conhecimentos e de Saberes e proceder visualizações dos estudos sobre o envelhecimento e sobre toda e qualquer região dos conhecimentos e dos saberes na plenitude de sua muldisciplinaridade e de suas transformações ao longo dos tempos.

Envelhecimento; Idoso; Pesquisa; Tabela de áreas do conhecimento; Gerontologia; Geriatria


We discuss the possibility of including Gerontology in the CNPq Areas of Knowledge Table, in a scenario where this Table is being questioned by the scientific community, particularly with regard to the inclusion of multidisciplinary areas. Based on Foucault, we view the Tree of Knowledge as taxonomy, a continuum in which all areas are placed side by side, closer together or further apart, depending on their similarities and differences. This finite linear approach establishes that a certain Area of knowledge may be placed only at a point along the line corresponding to a Greater Area. Inherently multidisciplinary, gerontology has not been placed in this institutionalized taxonomy, due either to problems related to concepts, interests and political projects in its establishment as a field of knowledge, or because this taxonomy would be not be compatible with its multidisciplinary nature. We conclude that it is possible to draw up a new Fields of Knowledge and Expertise Table, addressing studies of aging - as well as all and any Fields of Knowledge and Expertise - in their full multidisciplinarity, together with their transformations over time.

Aging; The elderly; Research; Trends; Areas of Knowledge Table; Gerontology; Geriatrics


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Como poderia a Gerontologia, um campo multidisciplinar do saber, estar presente na Tabela das Áreas do Conhecimento do CNPq?

How could Gerontology, a multidisciplinary field of knowledge, be included in CNPq's Table of Knowledge Areas?

Shirley Donizete PradoI; Jane Dutra SaydII

IDepartamento de Nutrição Social, Instituto de Nutrição, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rua São Francisco Xavier 524/12º andar/ Bloco D, Maracanã. 20559–900. Rio de Janeiro RJ. shirley_prado@terra.com.br

IIInstituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro

RESUMO

Discutimos a possibilidade da inserção da Gerontologia na Tabela das Áreas do Conhecimento do CNPq num cenário em essa tabela vem sendo questionada na comunidade científica, particularmente no que se refere à inclusão de áreas multidisciplinares. A partir de Foucault, entendemos a Árvore do Conhecimento como uma taxonomia, um continuum, onde todas as áreas são colocadas lado a lado, mais próximas ou mais afastadas conforme semelhanças e diferenças entre si. Trata–se de um tratamento linear e finito que estabelece que uma determinada área do conhecimento só pode estar situada num ponto da parte da linha que corresponde a uma grande área. A Gerontologia caracteristicamente multidisciplinar não alcançou lugar nessa taxonomia institucionalizada, seja porque haveria problemas em relação a conceitos, interesses e projeto político em sua constituição como área do conhecimento, seja porque a taxonomia seria incompatível com a multidisciplinaridade. Concluímos que é possível conceber uma nova Tabela de Campos de Conhecimentos e de Saberes e proceder visualizações dos estudos sobre o envelhecimento e sobre toda e qualquer região dos conhecimentos e dos saberes na plenitude de sua muldisciplinaridade e de suas transformações ao longo dos tempos.

Palavras–chave: Envelhecimento, Idoso, Pesquisa, Tabela de áreas do conhecimento, Gerontologia, Geriatria

ABSTRACT

We discuss the possibility of including Gerontology in the CNPq Areas of Knowledge Table, in a scenario where this Table is being questioned by the scientific community, particularly with regard to the inclusion of multidisciplinary areas. Based on Foucault, we view the Tree of Knowledge as taxonomy, a continuum in which all areas are placed side by side, closer together or further apart, depending on their similarities and differences. This finite linear approach establishes that a certain Area of knowledge may be placed only at a point along the line corresponding to a Greater Area. Inherently multidisciplinary, gerontology has not been placed in this institutionalized taxonomy, due either to problems related to concepts, interests and political projects in its establishment as a field of knowledge, or because this taxonomy would be not be compatible with its multidisciplinary nature. We conclude that it is possible to draw up a new Fields of Knowledge and Expertise Table, addressing studies of aging — as well as all and any Fields of Knowledge and Expertise — in their full multidisciplinarity, together with their transformations over time.

Key words: Aging, The elderly, Research, Trends, Areas of Knowledge Table, Gerontology, Geriatrics

Introdução

As reflexões que aqui apresentamos correspondem a desdobramentos de estudos que realizamos1 a partir do Diretório dos Grupos de Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), versão 4.1, correspondente ao censo de 2000, em que buscamos discutir a posição geográfica e institucional, a distribuição por áreas do conhecimento dos grupos e linhas de pesquisa, bem como os pesquisadores, os temas estudados e tendências da pesquisa brasileira sobre o processo de envelhecimento2,3. Também, foram considerados estudos, de abrangência nacional, voltados para (a) dissertações e teses provenientes de todas as áreas do conhecimento, (b) produção científica sobre envelhecimento e saúde e (c) programas de pós–graduação stricto sensu4,5,6 que contribuíram para nos proporcionar uma visão de conjunto desse universo.

Os procedimentos metodológicos desenvolvidos para esses estudos e seus resultados nos levaram a discutir duas questões.

A primeira diz respeito à Gerontologia em suas pretensões de se constituir como um campo do conhecimento científico7. Consideramos o pensamento de Isabelle Stengers8, que defende a idéia de que o desenvolvimento de um conceito e o despertar de interesses em diferentes setores da sociedade articulados a um projeto político constituem pilares fundamentais para o estabelecimento de um campo científico. Assim, a consolidação de um campo da ciência não dependeria apenas do mundo interno ao campo em formação – ou seja, da solidez do trabalho que os cientistas desenvolvem em seu interior – mas estaria em questão o encontro com outros campos, de cujas confrontações resultariam novos limites e fronteiras. Isso se dá em meio a uma rede de interesses sociais na qual se realiza a capacidade de convencimento dos demais, de que os conceitos propostos são sólidos e têm poder explicativo.

A Gerontologia busca estabelecer–se como ciência do envelhecimento, mas consideramos que há problemas importantes no que se refere a essa tentativa, pois se tomarmos apenas o conceito de velhice em seus aspectos biológicos, já nos deparamos com a impossibilidade do estabelecimento do início desse fenômeno9.

Em relação à velhice, muitos interesses vêm sendo, de fato, mobilizados: da indústria da mídia, ao ver os idosos como consumidores; dos governos, no sentido das políticas a serem implementadas; dos políticos, que olham para seu eleitorado; dos profissionais, que pensam o mercado de trabalho, as disputas de espaços de atuação; dos gerontólogos (no sentido amplo), que se debruçam sobre o problema social construído em busca de respostas, o que inclui, de modo ainda periférico, a pesquisa científica.

Stengers alerta, entretanto, para a possibilidade de os velhos estarem despertando interesses predominantes entre "os não–científicos Estado, indústrias, público", o que pode colocar a Gerontologia sob "o risco de ser denunciada como ideológica" (p. 95). De acordo com essa perspectiva, algumas análises vêm indicando que a Gerontologia estaria constituindo um projeto de negação da velhice por meio do investimento em imagens dos velhos como permanentemente ativos e tendo o espírito sempre jovem10,11.

No que se refere a um projeto político para a constituição da Gerontologia como campo do conhecimento científico, encontramos a proposição desta como uma ciência técnica valorizando seu caráter intervencionista sobre os idosos12. Uma proposição que, no nosso entender, dificilmente atrairá pesquisadores de ponta e financiamentos relevantes.

Finalmente, pensando, como Sfez13 que se encontra em curso um "meta–projeto" envolvendo estudos da genética humana, do desenvolvimento de inteligências artificiais e de homens–máquina ou, como Featherstone et al.14, que vêem nas tecnologias da informação e de intervenção no corpo biológico, nas clonagens e nas interconexões com máquinas futuras transformações corporais de grande repercussão sobre os limites do corpo, os selves, o tempo de vida, a vida e a morte –, podemos depreender que, nesse espaço de negação da velhice, as grandes narrativas científicas da saúde perfeita e a Gerontologia parecem encontrar–se como ideologias – as primeiras a construir efetivamente um certo futuro e a segunda a preparar terreno para sua boa recepção.

Enfim, em relação à primeira questão – a Gerontologia em suas pretensões de constituir–se como um campo do conhecimento científico –, identificamos um conjunto de limitadores para a implementação, tanto no plano conceitual, como dos interesses mobilizados e do projeto de constituição do novo campo científico, uma vez que o processo de envelhecimento parece ser muito maior e mais complexo do que aquilo que a Gerontologia brasileira pode conceber, ao menos até agora. Assim, ao voltar–se para o problema social através da construção de projetos que priorizam a intervenção individual e a atuação voltadas para políticas de atenção ao idoso, a Gerontologia talvez não tenha conseguido visibilidade junto aos órgãos de fomento à pesquisa e, talvez por esses motivos, não conste ainda sequer da Tabela de Áreas do Conhecimento do CNPq.

A segunda questão refere–se justamente à inserção da Geriatria e/ou da Gerontologia nas Tabelas de Áreas do Conhecimento. Acreditamos que isso acontecerá, pois, a despeito da resolução das questões conceituais ou do tipo de projeto político que esse pretenso campo do conhecimento científico venha a desenvolver, os interesses dos cientistas, ainda que timidamente, estão crescendo e os programas de pós–graduação estão surgindo. Impõe–se assim a necessidade concreta de sua identificação por parte das instituições que acompanham a pesquisa e a formação de recursos humanos correspondente.

A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior15 inclui nas Áreas de Conhecimento um item denominado Outros, onde estão alocados os programas de pós–graduação que não se enquadram em nenhuma das áreas estabelecidas. Assim, os cursos de mestrado e doutorado em Gerontologia e Gerontologia Biomédica em atividade no Brasil estão situados na grande área Outros, área Multidisciplinar. Esta não é uma exclusividade da Gerontologia, uma vez que há dezenas de outros programas enquadrados de forma semelhante.

Voltando ao Diretório dos Grupos de Pesquisa do CNPq, sua estrutura de organização inclui uma classificação dos campos de pesquisa estruturada a partir da Tabela de Áreas do Conhecimento, cuja ordenação obedece a um primeiro nível de divisão que corresponde às Grandes Áreas do Conhecimento. Estas, por sua vez, se encontram subdivididas nas Áreas do Conhecimento e, seguindo o mesmo procedimento, estas últimas em Sub–Áreas do Conhecimento. Não há, na Tabela das Áreas do Conhecimento do CNPq, uma Área ou Sub–Área do Conhecimento que corresponda a "envelhecimento humano" – onde estariam localizadas Gerontologia e/ou Geriatria.

Dos estudos que realizamos a partir dos grupos de pesquisa cadastrados no Diretório, precisamos destacar alguns resultados. A pesquisa sobre envelhecimento no Brasil corresponde à atividade recente, impulsionada a partir da década de 1980; conta com reduzido número de grupos de pesquisa especificamente dedicado a essa temática – 43 grupos no ano de 2000. Seus pesquisadores carecem de qualificação mais elevada, o que está estreitamente relacionado com a reduzida participação de estudantes de pós–graduação stricto sensu nesses grupos. Os resultados indicam ainda que deverá ser bastante longo o caminho que a Gerontologia e a Geriatria brasileiras têm pela frente para que venham a se estabelecer como campos dinâmicos e consolidados da pesquisa.

A pesquisa sobre envelhecimento no Brasil encontra–se vinculada a várias áreas do conhecimento, principalmente ao que Georges Canguilhem16, em sua epistemologia, denomina "Ciências da Vida" (Grandes Áreas das Ciências da Saúde e Biológicas) e ao que, visto pelo olhar arqueológico de Michel Foucault17, recebe nome de "Ciências do Homem" (Grandes Áreas das Ciências Sociais Aplicadas e Humanas e da Saúde), observando que seu caráter multidisciplinar vem sendo bastante enfatizado na literatura gerontológica. Observando a Tabela 1, temos que é bem definida a predominância das Ciências da Saúde entre os grupos que se voltam para o estudo do envelhecimento humano (grupos não específicos), inclusive muito mais acentuada que no conjunto do Diretório. Para aqueles que se dedicam especificamente à temática em tela (grupos específicos), essa característica é ainda mais marcante. As Ciências Biológicas desempenham papel importante nesse contexto, pois, em conjunto com a Saúde, correspondem a mais de 80% dos grupos específicos.

Dos últimos resultados deriva uma pergunta: como inserir na Tabela das Áreas do Conhecimento do CNPq a Geriatria e a Gerontologia sendo elas de natureza multidisciplinar?

A partir desse questionamento, buscamos encaminhar nossas discussões para uma abordagem mais abrangente, no sentido de participar do debate acerca de uma demanda específica colocada pelo CNPq, qual seja, discutir a sua Tabela das Áreas do Conhecimento, que vem sendo questionada por conta de limitações que estariam sendo identificadas pela comunidade científica brasileira, particularmente no que se refere à inclusão de campos entendidos como multidisciplinares.

Gerontologia, áreas do conhecimento e campos de conhecimentos e saberes

A dinâmica da produção de conhecimento é muito complexa. E, nos dias de hoje, é intenso o surgimento novas áreas do conhecimento. As palavras de Luz18 são bastante ilustrativas desse fenômeno: A multiplicação de disciplinas, de objetividades discursivas especializadas, é uma das características mais importantes da racionalidade moderna. Praticamente desdobráveis ao infinito, as disciplinas podem tematizar, sejam conjuntos de relações teóricas entre sistemas de proposições, seja a matéria desde sua mais ínfima partícula até o gigantesco astronômico, seja a totalidade dos seres vivos, vegetais, animais, humanos. E, entre os seres humanos, seja suas relações sociais, seja a privacidade cotidiana de seus afetos e hábitos individuais, seja a materialização orgânica de seu corpo (grifo da autora).

Diante desse fenômeno, do qual Geriatria e Gerontologia fazem parte, as instituições afins ao ensino e à ciência e à tecnologia têm uma necessidade específica de identificar, sistematizar e atualizar dados sobre essas disciplinas, organizando informações sobre financiamento, cadastros institucionais com seus pesquisadores, programas de formação de força de trabalho com vistas à avaliação do parque científico, definição de políticas setoriais, etc.

Alguns exemplos bastante ilustrativos de usos desses mapeamentos de abrangência nacional das áreas do conhecimento são a Plataforma Lattes19, implementada pelo CNPq; o sistema de informações da CAPES; o conjunto dos sistemas de informação das agências estaduais de fomento à ciência e tecnologia (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo FAPESP, Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro FAPERJ, etc.); as bases de dados relativos à produção científica como as geradas pelo Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia20; as bases de dados bibliográficos, como a Literatura Latino–Americana e do Caribe em Ciências da Saúde21, organizada pelo Centro Latino–Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde22. Essas instituições operam utilizando índices gerais ou Tabelas de Áreas do Conhecimento, também chamadas de "Árvores do Conhecimento", que têm se mostrado limitadas para dar conta de incluir adequadamente os novos campos de conhecimento e de saber que vão surgindo.

O termo "Árvore do Conhecimento" nos remete ao mundo natural, dos seres vivos do reino dos vegetais. Trata–se de uma lista de nomes de áreas do conhecimento apresentada na forma de uma classificação hierárquica que, por sua vez, lembra a taxonomia ou a linguagem que os naturalistas dos séculos XVII e XVIII estabeleciam para a denominação dos seres vivos.

Foucault, discutindo formação e transformação de campos de saberes, nos diz das características da história natural e do tempo em que "o naturalista é o homem do visível estruturado e da denominação característica" (p. 176). Em seus argumentos, o autor fala das características da linguagem então construída, uma linguagem de segundo grau, como um edifício construído por sobre as palavras de todos os dias, com vistas a, enfim, estar no reino dos Nomes exatos das coisas: A história natural é contemporânea da linguagem: está no mesmo nível do jogo espontâneo que analisa as representações na lembrança, fixa seus elementos comuns, estabelece signos a partir deles e, finalmente, impõe nomes. Classificar e falar encontram seu lugar de origem nesse mesmo espaço que a representação abre no interior de si, porque ela é votada ao tempo, à memória, à reflexão, à continuidade. Mas a história natural só pode e só deve existir como língua independente de todas as outras, se ela for língua bem–feita. E universalmente válida. Na linguagem espontânea e 'malfeita', os quatro elementos (proposição, articulação, designação, derivação) deixam entre si interstícios abertos: as experiências de cada um, as necessidades ou as paixões, os hábitos e os preconceitos, uma atenção mais ou menos despertada constituíram centenas de línguas diferentes e que se distinguem somente pela forma das palavras mas, antes de tudo, pela maneira como essas palavras cortam a representação. A história natural só será uma língua bem–feita se o jogo for fechado: se a exatidão descritiva fizer de toda proposição um recorte constante do real [...] e se a designação de cada ser indicar, de pleno direito, o lugar que ele ocupa na disposição geral do conjunto (grifo do autor).

Essa linguagem expressa o projeto de uma ciência geral da ordem que trata da disposição em quadros das identidades e das diferenças: [...] assim se constituiu na idade clássica: um espaço de empiricidade que não existirá até o fim do Renascimento e que estava condenado a desaparecer desde o início do século XIX. Ele é para nós, hoje, tão difícil de restituir e tão profundamente recoberto pelo sistema de positividades a que pertence nosso saber que, durante muito tempo, passou despercebido.

Nessa epistémê clássica, as naturezas simples são ordenadas por meio da máthesis, cujo método universal é a álgebra; e para pôr em ordem as naturezas complexas, constitui–se uma taxonomia para a qual o método não é mais matemático, mas o próprio sistema de signos da linguagem natural. Nas palavras de Foucault, um sistema de signos que trata das identidades e das diferenças; é a ciência das articulações e das classes; é o saber dos seres. [...] a taxonomia estabelece o quadro das diferenças visíveis [...] e [...] implica, ademais, um certo continuum das coisas (uma não–descontinuidade, uma plenitude do ser) e uma certa potência da imaginação, que faz aparecer o que não é, mas permite, por isso mesmo, trazer à luz o contínuo (grifos do autor).

As "Árvores do Conhecimento", em suas variações institucionais ou regionais, encontram–se apresentadas como uma taxonomia, como uma linguagem universal que busca colocar em ordem as diversas áreas do conhecimento, ao menos aquelas que já construíram (por meio de seus conceitos, despertar de interesses e projetos políticos) visibilidade suficiente. Aí, cada área ganha uma denominação característica, específica, estabelecida por meio de uma linguagem bem feita (aquela que conceitualmente designa o objeto que de direito lhe pertence: como a Biologia e o estudo da vida; ou a Economia e o trabalho, a produção e a distribuição; ou a Lingüística e a linguagem, por exemplo); estamos, então, num reino de nomes exatos estabelecidos a partir de uma linguagem de segundo grau construída para ser universalmente válida.

Ao mesmo tempo, essa linguagem inclui uma classificação: são formulados quadros de identidades e diferenças que permitem hierarquizar grandes áreas (Ciências Agrárias, Ciências Biológicas, Ciências da Saúde, Ciências Exatas e da Terra, Ciências Humanas, Ciências Sociais Aplicadas, Engenharias e Lingüística, Letras e Artes); em seguida vem a subdivisão de cada grande área em áreas (como para as Ciências Humanas, as áreas Antropologia, Ciência Política, Educação, Filosofia, Geografia, História, Psicologia, Sociologia, Teologia); e, em prosseguimento, a subdivisão de cada área em sub–áreas e assim por diante.

E, como num continuum, todas essas áreas e suas subdivisões são colocadas lado a lado, mais próximas ou mais afastadas conforme semelhanças e diferenças entre si. Um tratamento linear e finito que, por conta do conceito original que o conduz, estabelece que uma determinada área do conhecimento só possa estar situada no interior do espaço percorrido por uma e somente uma grande área.

Então, na complexa dinâmica da produção de conhecimentos e de saberes, novas áreas vão surgindo e tornando–se visíveis a ponto de galgar seu aparecimento em algum ponto dessa taxonomia. Vejamos como a Geriatria e a Gerontologia participam desses movimentos.

O CNPq vem procedendo a atualizações em sua "Árvore do Conhecimento", a mais recente em 2002. No interior da grande área das Ciências da Saúde, encontramos: (a) Medicina, com dezoito subdivisões; (b) Cirurgia, com treze subdivisões; (c) Saúde Materno–Infantil; (d) Psiquiatria; (e) Anatomia Patológica e Patologia Clínica; (f) Radiologia Médica; e (g) Medicina Legal e Deontologia, num total de 36 "especialidades", dentre as quais não figura a Geriatria. Tampouco é possível encontrar a Gerontologia em qualquer ponto da árvore. Embora "nascidas" em tempos semelhantes aos de outras áreas do conhecimento, Geriatria e Gerontologia não alcançaram lugar nessa taxonomia institucionalizada.

Sendo a Geriatria uma especialidade médica, sua inserção na "Árvore do Conhecimento", como ponto único em uma linha finita, estaria, numa primeira e ligeira abordagem, facilmente estabelecida: dentro das Ciências da Saúde, na área Medicina, ao lado da Ginecologia, da Pediatria ou de outra especialidade qualquer. Entretanto, considerando as disputas corporativas e a reivindicação de várias profissões da saúde no sentido de serem também geriátricas, poderia também aparecer na área Enfermagem, como Enfermagem Geriátrica; na área Odontologia, como Odontogeriatria e assim por diante. Temos então uma dificuldade de natureza multidisciplinar no interior das Ciências da Saúde. Se o olhar sobre a Geriatria buscar uma amplitude multidimensional, como ocorre para outros campos da saúde, ela transborda para além da Medicina, da Enfermagem ou de qualquer outra área ou sub–área das Ciências da Saúde, transformando em impossibilidade o projeto de sua inclusão na Árvore do Conhecimento.

A Gerontologia como campo que pretende estudar o processo de envelhecimento humano e que inclui a Geriatria encontra–se definida como área multidisciplinar. Como confirmam os dados de nossos estudos, é evidente a predominância das Ciências da Saúde entre os grupos que se voltam para o estudo do envelhecimento humano muito mais acentuada para os grupos específicos (60,5%). Poderíamos, com base nesses dados, alocar a Gerontologia também na grande área das Ciências da Saúde.

E aí os problemas se avolumam. Os de natureza corporativa, com os profissionais das grandes áreas de Ciências da Saúde, das Ciências Humanas e das Ciências Sociais e Aplicadas, em busca de hegemonia no campo do envelhecimento humano. Mais complexos e de maior interesse para nós, os problemas conceituais que envolvem a multidisciplinaridade, marca de identidade da Gerontologia – e de vários outros campos – e, portanto, incompatível com sua inserção como um ponto em uma linha, ou seja, em uma única Área do Conhecimento, tal como está concebida a linha da Árvore do Conhecimento.

Tomaremos, para a discussão do problema, os pensamentos apresentados por Foucault em As palavras e as coisas, acerca da positividade das Ciências Humanas. O autor, na verdade, realiza reflexão de grande amplitude; traça complexa trajetória de saberes desde a época clássica até a modernidade, abordando o surgimento da Sociologia, da Psicologia e das bases que possibilitaram a constituição das Ciências Humanas; discute as articulações entre as ciências positivas Biologia, Economia e Lingüística em suas relações formais com a Matemática e a Filosofia; e inclui, ainda, considerações sobre a História, a Psicanálise e a Etnologia.

Interessa–nos, aí, uma primeira vertente de análise: a que versa sobre a imagem geométrica que Foucault desenha para representar as Ciências Humanas em suas relações com outros campos do conhecimento e do saber: um certo modelo de organização dos saberes o – Triedro dos Saberes. Sua descrição será apresentada conforme o original: Interrogado a esse nível arqueológico, o campo da epistémê moderna não se ordena conforme o ideal da matematização perfeita e não desenrola, a partir da pureza formal, uma longa seqüência de conhecimentos descendentes, cada vez mais carregados de empiricidade. Antes, deve–se representar o domínio da epistémê moderna como um espaço volumoso e aberto segundo três dimensões. Numa delas, situar–se–iam as ciências matemáticas e físicas, para as quais a ordem é sempre um encadeamento dedutivo e linear de proposições evidentes ou verificadas; haveria, em outra dimensão, ciências (como as da linguagem, da vida, da produção e da distribuição das riquezas) que procedem ao estabelecimento de relações entre elementos descontínuos mas análogos, de sorte que elas pudessem estabelecer entre eles relações causais e constantes de estrutura. Essas duas primeiras dimensões definem entre si um plano comum: aquele que pode aparecer, conforme o sentido em que é percorrido, como campo de aplicação das matemáticas a essas ciências empíricas, ou domínio do matematizável na lingüística, na biologia e na economia. Quanto à terceira dimensão, seria a da reflexão filosófica, que se desenvolve como pensamento do Mesmo; com a dimensão lingüística, da biologia e da economia, ela delineia um plano comum: lá podem aparecer, e efetivamente aparecem, as diversas filosofias da vida, do homem alienado, das formas simbólicas (quando se transpõem para a filosofia os conceitos e os problemas que nasceram nos diferentes domínios empíricos): mas lá também apareceram, se se interrogar de um ponto de vista radicalmente filosófico o fundamento dessas empiricidades, ontologias regionais, que tentam definir o que são em seu ser próprio, a vida, o trabalho e a linguagem; enfim, a dimensão filosófica define com a das disciplinas matemáticas um plano comum: o da formalização do pensamento.

Desse triedro epistemológico, as ciências humanas são excluídas, no sentido ao menos de que não podem ser encontradas em nenhuma das dimensões, nem à superfície de nenhum dos planos assim delineados. Mas, pode–se também dizer que elas são incluídas por ele, pois é no interstício desses saberes, mais exatamente no volume definido por suas três dimensões, que elas encontram seu lugar. Essa situação (menor num sentido, privilegiada noutro) coloca–as em relação com todas as outras formas de saber: têm projeto, mais ou menos protelado, porém constante, de se conferirem ou, em todo o caso, de utilizarem, num nível ou noutro, uma formalização matemática; procedem segundo modelos ou conceitos tomados à biologia, à economia e às ciências da linguagem; endereçam–se, enfim, a esse modo de ser do homem que a filosofia busca pensar ao nível da finitude radical, enquanto elas pretendem percorrê–lo em suas manifestações empíricas. É talvez essa repartição nebulosa num espaço de três dimensões que torna as ciências humanas tão difíceis de situar, que confere sua irredutível precariedade à localização destas no domínio epistemológico, que as faz aparecer ao mesmo tempo como perigosas e em perigo". (p. 364–5).

No espaço volumoso que se estabelece a partir dos eixos formados pela Biologia, pela Economia e pela Lingüística, em suas articulações com a Filosofia e a Matemática, estariam "situadas" as Ciências Humanas.

A Biologia, que se volta para os seres vivos, tem no corpo do homem, como ser que tem vida, seu domínio de estudos. O processo biológico de envelhecimento do ser humano faz parte do seu escopo de estudos naquilo que é matematizável e naquilo que conduz ao que se relaciona com o pensamento do Mesmo, a analítica da finitude, ou seja, o fato de que para uma ciência que se ocupa do indivíduo a primeira percepção corresponde as suas limitações.


Como uma cunha, nesse espaço, se projeta a Biogerontologia, que busca capturar uma parcela desse objeto em suas interfaces com a Fisiologia e com a Genética. Inserem–se aí, também, aquelas pesquisas biológicas que se voltam para a longevidade, ou para a identificação de genes responsáveis pelo envelhecimento biológico. Com a Fisiologia, a Patologia, a Anatomia e considerando articulações com a Medicina, a Psiquiatria, vem sendo construído o espaço das especialidades médicas. Aí podem ser localizados a Geriatria, a Psicogeriatria e campos correlatos como a Enfermagem Geriátrica, a Odontogeriatria, que anunciam, para breve, desenhos semelhantes para a Nutrição, a Fisioterapia e outras...

Mas, situam–se também nesse espaço aqueles campos de estudos e de atividades dos profissionais que se voltam para doenças que se manifestam com freqüência na velhice, como a Cardiologia, Psiquiatria, Neurologia, Ortopedia... Pensando na saúde e na doença em grupos populacionais, podemos indicar articulações com o campo da Saúde Coletiva e, portanto, suas interfaces com a Epidemiologia e a chamada "Epidemiologia da Terceira Idade"; com a Administração dos Serviços de Saúde e a Análise das Políticas de Saúde, onde se localizam os estudos sobre políticas, ações, programas e projetos de atenção à saúde dos idosos, sobre instituições de internação de longa permanência; e ainda com as Ciências Sociais, naquilo que diz respeito à representação que os homens fazem do envelhecimento na saúde e na doença.

Nossos estudos sobre as publicações brasileiras sobre envelhecimento e saúde mostram como são diversificados os espaços que formam por conta dessa temática e nos levam a pensar como é grandioso e complexo o pensar sobre o ser que envelhece na interface entre a Biologia e as Ciências Humanas.

As Ciências Humanas estabelecem sua interface com a Biologia porque o homem é o ser vivo que constitui representações sobre a vida e que nela se faz representar. As representações sobre a vida, a juventude, o envelhecer e a morte atravessam toda a existência humana, ganhando tonalidades distintas ao longo do curso da vida. Ao longo de toda a vida, idéias, imagens, mitos, estereótipos sobre o envelhecimento estão presentes e, como não poderia deixar de ser, sempre articuladas às representações da vida, da juventude, do envelhecer e da morte.

A Economia dirige–se à produção e distribuição dos bens, das riquezas; volta–se para o mundo do trabalho; pode, em algum espaço, expressar–se por meio de códigos matemáticos, como pode também pode perguntar–se sobre os destinos da humanidade. As possibilidades de trabalho e de consumo em face das necessidades e desejos humanos, em suas mais diversas implicações, ganham matizes específicos, nas distintas sociedades, para homens ou para mulheres, e nas diferentes idades...

Assim, trabalhar e afastar–se do trabalho pela aposentadoria, retornar ou não à produção, ao comércio ou à prestação de serviços, produzir nessa ou naquela idade, consumir o quê, em momentos distintos da vida, são objetos da Economia; como também o são as políticas previdenciárias, de emprego e renda que refletem diferentemente na vida das crianças, dos jovens, dos adultos, dos idosos. As Ciências Humanas percorrem os comportamentos e as representações que o homem constrói sobre seus parceiros na produção e na troca de bens. Não são, portanto, extensão da Economia, mas se voltam para as visões que os homens fazem de seu objeto. Ou, nas palavras de Foucault: como se esclarecem, ou ignoram, ou mascaram esse funcionamento e a posição que aí ocupam a maneira como se representam a sociedade onde isso ocorre, o modo como se sentem integrados a ela ou isolados, dependentes, submetidos ou livres... a forma de representação das necessidades da sociedade pela qual, com a qual ou contra a qual as satisfaz e a partir daí dar–se a representação da economia (p. 370).

As representações que os homens fazem sobre os papéis e lugares que – no passado, no presente ou no futuro – a economia lhes reserva à medida que envelhecem e na velhice (as imagens sobre a produção e a distribuição de bens e sobre suas implicações na vida do ser em seu envelhecimento) estão aí presentes.

Na linguagem, estabelece–se o reino das mutações fonéticas, dos parentescos entre as línguas; os distintos falares das épocas, dos lugares e das idades; aqui se encontra o campo da Lingüística. As Ciências Humanas voltam–se para aquilo que mostram e que escondem os discursos, inclusive aqueles relativos ao envelhecer, ao ser que envelhece; destinam–se ao que os discursos dos homens – que envelhecem – revelam e ocultam sobre o que dizem, sobre o que pretendem sobre o que pensam da vida – que os conduz inexoravelmente para a velhice, para a morte: O objeto das Ciências Humanas não é, pois, a linguagem (falada, contudo, apenas pelos homens), mas, sim, esse ser que, do interior da linguagem pela qual está cercado, se representa, ao falar, o sentido das palavras ou das proposições que enuncia e se dá, finalmente, a representação da própria linguagem (p. 370).

No espaço em se encontram a Lingüística e as Ciências Humanas, é possível situar os estudos sobre as imagens dos velhos ou do envelhecer na literatura, na mídia, nos livros didáticos, nas leis, nos discursos cotidianos de indivíduos ou de grupos ou de instituições.

As Ciências Humanas não contêm essas ciências empíricas (a Biologia, a Economia e a Lingüística) nem estão em seu interior. Relacionam–se de forma a inclinar essas empiricidades positivas em direção à subjetividade do homem, inclusive no que diz respeito ao seu envelhecimento. Assim, a marca fundamental das Ciências Humanas não se situa no objeto singular que é o homem; não corresponde a algum prolongamento da Biologia, da Economia ou da Lingüística. As Ciências Humanas se dirigem para aquilo que permite ao homem – e ao homem em seu envelhecer – saber ou tentar saber o que é a vida e o envelhecimento na vida humana, o que são o trabalho e suas leis para as distintas idades e de que modo ele pode falar, inclusive sobre o envelhecer. Elas têm seu foco voltado para aquela [...] camada de condutas, de comportamentos, de atitudes, de gestos já feitos, de frases já pronunciadas ou escritas, em cujo interior eles foram dados antecipadamente, numa primeira vez, àqueles que agem, se conduzem, trocam, trabalham e falam (p. 371).

Isso inclui aqueles saberes especulativos sobre a vida, a produção e a linguagem. Haveria ainda que se considerar a História, que não corresponde às Ciências Sociais. Esta, que seria a mais antiga de todas as ciências do homem, tão velha quanto a própria memória humana: ela talvez não tenha lugar entre as Ciências Humanas nem ao lado delas: é provável que entretenha com elas uma relação estranha, indefinida, indelével e mais fundamental do que seria uma relação de vizinhança num espaço comum (p. 384).

A História conformaria algo como um espaço esférico que envolve, que acolhe as Ciências Humanas, dando a cada ciência do homem um fundo básico que a estabelece, um solo equivalente a uma pátria. A História corresponde, nessa concepção, a uma quarta dimensão conferida ao Triedro dos Saberes; algo como uma dimensão temporal, como se esse volume fosse conduzido ao longo dos tempos e aí ganhasse formas espaciais, novas conformações de acordo com os acontecimentos e com as representações que deles se faz, com as organizações e reorganizações da epistémê.

Assim, é possível pensar que as positividades acerca do ser que envelhece, as representações sobre o processo de envelhecimento humano e aquelas especulações sobre a velhice, os velhos e o envelhecer formam um certo volume conduzido através dos tempos; um conjunto de fenômenos que se manifesta e se transforma e que pode ser representado por meio de quatro dimensões.

A temática do envelhecimento humano e os campos que se voltam para seu estudo formariam, então, um espaço volumoso que se "desloca" no tempo – no mínimo, quadridimensional. O mesmo poderia ser considerado para todo e qualquer campo do conhecimento, do saber em seus aspectos multidisciplinares, como os estudos sobre a adolescência, ou sobre a mulher, enfim, sobre recortes desse "objeto" como pode ser visto o ser humano em uma ou mais representações.

Considerações finais

Retomando a "Árvore do Conhecimento", temos que sua existência mesma esteja problematizada pela impossibilidade de se colocar em uma linha algo que se movimenta no espaço, no mínimo, tridimensional. Novos modelos, novos arranjos de palavras necessitariam ser desenvolvidos – no lugar da "Árvore do Conhecimento" – para melhor representar os campos da ciência e do saber.

Uma tentativa, muito tímida, de inovação na representação das áreas do conhecimento pode ser encontrada, primeiramente, na CAPES. Certamente por conta da necessidade concreta de alocar os programas de pós–graduação stricto sensu, de alguma forma, na sua "Árvore do Conhecimento", inclusive aqueles que não se enquadram em nenhuma das áreas previamente estabelecidas: exemplos, entre outros, são os 68 programas que se apresentam como multidisciplinares, entre os quais os de Gerontologia. Para tentar responder à demanda não prevista na "Árvore do Conhecimento", foi criada uma área denominada "Outras", que está dividida em dois campos: "Ensino" e "Multidisciplinares". Hoje já é possível encontrar a mesma solução para o CNPq.

A condição de inserção na área "Outros" não é, evidentemente, das mais prestigiosas. Nos procedimentos de pesquisa, por exemplo, as categorias de maior importância recebem designação específica e aparecem em primeiro lugar nas tabelas. Em "Outros" – que ficam, em geral, no final das tabelas – são agrupadas as categorias minoritárias ou menos expressivas para as análises que se deseja empreender. Mas, mais importante para nós, neste estudo, é o fato de que a Tabela de Áreas do Conhecimento foi construída a partir de uma estrutura conceitual taxonômica, o que faz dela necessariamente correspondente à linha. Linha, do latim línea, limite; corresponde a "um traço contínuo de uma só dimensão, i. e., que só tem comprimento"23 (p. 842). O pensamento moderno concebe a linha como a trajetória desenhada pelo deslocamento de um ponto no espaço e que só tem uma dimensão: o comprimento24.

Pois, se as Ciências Humanas, como concebidas em Foucault, estão representadas por meio da linguagem geométrica como um triedro – e ainda incluem uma quarta dimensão temporal dada pela História –, temos uma insuficiência conceitual indiscutível que marcará qualquer tentativa de inclusão de campos multidisciplinares (multidimensionais) na Tabela de Áreas do Conhecimento (que só tem uma dimensão).

A própria idéia de área do conhecimento pode ser discutida nessa mesma problematização. Área, em termos matemáticos, corresponde à "medida de uma superfície plana, limitada; no sentido figurado admite significar campo de ação, domínio, esfera"23.

A idéia de campo, por sua vez, pode ser associada, por correspondência, à área como uma superfície plana através do significado de terreno, terra plantada sem mata, lugar amplo sem edificações. Traduz–se também o campo tanto pelo sentido figurado de campo de ação, de domínio, de esfera, de âmbito, quanto no sentido que lhe confere a Física, como sendo "uma modificação nas características do espaço, causada pela presença de partículas"25 (p. 52).

Campo, na perspectiva da Física26, traz a marca da modificação, da perturbação, do dinamismo, daquilo que pode ser transformado; e também, por considerar o espaço, admite a multidimensionalidade das coordenadas que estabelecem uma região espacial (um triedro, por exemplo) e o tempo. O que se pode ganhar aqui com o conceito de campo é exatamente a possibilidade de uma dinâmica, de uma interação entre os diversos pólos de conhecimento. A idéia de campos está fundamentalmente ligada à idéia de interação (principalmente interação à distância). A alteração nas propriedades de um objeto (um pólo), que pode afetar outros objetos, não os afeta imediatamente se eles estiverem em locais diferentes do espaço (há uma distância entre eles). Tal modificação se propaga com uma certa velocidade (ondas) e o efeito será sentido em algum momento mais tarde.

Foucault trabalha, com freqüência, com a idéia de região do conhecimento, do saber, no sentido figurado de campo, que, no nosso entender, mantém correspondência com o significado encontrado na Física. Em Bourdieu27, encontramos a idéia de "campo científico" que corresponde a um sistema em que agentes assumem posições conquistadas num espaço de lutas que se seguem no tempo. Assinalamos que aqui também encontramos a noção de campo marcada pelo dinamismo, pela possibilidade de transformação das regiões do conhecimento ao longo do tempo no espaço social.

Talvez, em vez de áreas, poderíamos denominar mais adequadamente de campos essas regiões dinâmicas em permanente interação a que correspondem os conhecimentos e os saberes em suas transformações ao longo da História. Passamos pela Física, pelos conceitos de campo, apenas tangenciando a Teoria do Campo, tanto pela similaridade que identificamos desses com a noção de campos de conhecimentos e de saberes, quanto pela característica de permitir cálculos, de dimensionar, de analisar diversos campos em interação. Pensamos que talvez seja possível conceber uma nova Tabela de Campos de Conhecimentos e de Saberes em que, além identificar um Campo Predominante, seja possível também indicar Campos em Interação. Certamente, a partir desses parâmetros, poder–se–á produzir visualizações também matematizáveis mais precisas daquilo que de dinâmico se passa com os grupos e linhas de pesquisa, com os pesquisadores, com as instituições voltadas para a pesquisa e para a formação de recursos humanos, com os recursos necessários, com os investimentos realizados, etc.

Acreditamos que, trabalhando a partir da idéia de campos, poderemos proceder, na "nova imagem viva, dinâmica, multidimensional", à inserção da Geriatria, da Gerontologia, da Biogerontologia, dos estudos sobre o envelhecimento, sobre a adolescência, sobre as mulheres, sobre a saúde coletiva, enfim, de toda e qualquer região dos conhecimentos e dos saberes na plenitude de sua multidisciplinaridade e de suas transformações ao longo dos tempos.

COLABORADORES

SD Prado e JD Sayd participaram da concepção e desenvolvimento do artigo e da aprovação da versão a ser publicada.

Artigo apresentado em 27/07/2005

Aprovado em 21/11/2005

Versão final apresentada em 15/03/2006

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2007
  • Data do Fascículo
    Dez 2007

Histórico

  • Aceito
    15 Mar 2006
  • Revisado
    21 Nov 2005
  • Recebido
    27 Jul 2005
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