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A importância do uso das células tronco para a saúde pública

The importance of the use of stem cells for public health

Resumos

Em 1999, as células-tronco foram eleitas "Scientific Breakthrough of the Year" (avanço científico do ano) pela revista Science¹. Naquele ano, foi demonstrado que células-tronco de tecidos adultos mantinham a capacidade de se diferenciar em outros tipos de tecidos. No ano anterior, as primeiras linhagens de células-tronco embrionárias humanas foram estabelecidas. Desde então, o número de artigos científicos sobre células-tronco vem crescendo exponencialmente, onde novos paradigmas são estabelecidos. Neste artigo, farei uma revisão da área de células-tronco com um foco especial em seu uso como agente terapêutico em doenças comuns como diabetes e cardiopatias. As células-tronco serão tratadas em dois grupos distintos: as embrionárias e as adultas. Enquanto o potencial de diferenciação das primeiras está bem caracterizado em camundongos e em humanos, seu uso em terapia celular e em pesquisa tem sido dificultado por questões de histocompatibilidade, segurança e ética. Em contraste, células-tronco adultas não apresentam estes empecilhos, apesar da extensão de sua plasticidade ainda estar sob investigação. Mesmo assim, diversos testes clínicos em humanos estão em andamento utilizando células-tronco adultas, principalmente derivadas da medula óssea. Discutirei ainda a importância de se trabalhar com as duas classes de células-tronco humanas de forma a se cumprir suas promessas terapêuticas.

Célula-tronco; Terapia celular; Embriogênese; Diferenciação


Stem cells were elected 'Breakthrough of the Year' by Science¹ magazine in 1999, having shown that stem cells from adult tissues retained the ability to differentiate into other tissue types. During the previous year, the first human embryo stem cell lines were established. Since then, the number of scientific papers on stem cells has been increasing exponentially, establishing new paradigms that are rapidly challenged by subsequent experiments. This paper reviews the stem cell research field, divided into two groups: embryo and adult stem cells. While the differentiation potential of the former is well characterized in mice and humans, their use in cell therapy and research has been hampered by histocompatibility, safety and ethical issues. In contrast, adult stem cells do not present these problems. However, the extent of their plasticity is still under investigation. Nevertheless, numerous clinical trials in humans are under way, mainly with stem cells derived from bone marrow. This paper discusses discuss the importance of working with both classes of human stem cells in order to fulfill the promise of stem cell therapies.

Stem cells; Cell therapy; Embryogenesis; Differentiation


DEBATE DEBATE

A importância do uso das células tronco para a saúde pública

The importance of the use of stem cells for public health

Lygia da Veiga Pereira

Departamento de Genética e Biologia Evolutiva, Instituto de Biociências, USP. Rua do Matão 277/350, Cidade Universitária. 05508-900 São Paulo SP. lpereira@usp.br

RESUMO

Em 1999, as células-tronco foram eleitas "Scientific Breakthrough of the Year" (avanço científico do ano) pela revista Science1. Naquele ano, foi demonstrado que células-tronco de tecidos adultos mantinham a capacidade de se diferenciar em outros tipos de tecidos. No ano anterior, as primeiras linhagens de células-tronco embrionárias humanas foram estabelecidas. Desde então, o número de artigos científicos sobre células-tronco vem crescendo exponencialmente, onde novos paradigmas são estabelecidos. Neste artigo, farei uma revisão da área de células-tronco com um foco especial em seu uso como agente terapêutico em doenças comuns como diabetes e cardiopatias. As células-tronco serão tratadas em dois grupos distintos: as embrionárias e as adultas. Enquanto o potencial de diferenciação das primeiras está bem caracterizado em camundongos e em humanos, seu uso em terapia celular e em pesquisa tem sido dificultado por questões de histocompatibilidade, segurança e ética. Em contraste, células-tronco adultas não apresentam estes empecilhos, apesar da extensão de sua plasticidade ainda estar sob investigação. Mesmo assim, diversos testes clínicos em humanos estão em andamento utilizando células-tronco adultas, principalmente derivadas da medula óssea. Discutirei ainda a importância de se trabalhar com as duas classes de células-tronco humanas de forma a se cumprir suas promessas terapêuticas.

Palavras-chave: Célula-tronco, Terapia celular, Embriogênese, Diferenciação.

ABSTRACT

Stem cells were elected 'Breakthrough of the Year' by Science1 magazine in 1999, having shown that stem cells from adult tissues retained the ability to differentiate into other tissue types. During the previous year, the first human embryo stem cell lines were established. Since then, the number of scientific papers on stem cells has been increasing exponentially, establishing new paradigms that are rapidly challenged by subsequent experiments. This paper reviews the stem cell research field, divided into two groups: embryo and adult stem cells. While the differentiation potential of the former is well characterized in mice and humans, their use in cell therapy and research has been hampered by histocompatibility, safety and ethical issues. In contrast, adult stem cells do not present these problems. However, the extent of their plasticity is still under investigation. Nevertheless, numerous clinical trials in humans are under way, mainly with stem cells derived from bone marrow. This paper discusses discuss the importance of working with both classes of human stem cells in order to fulfill the promise of stem cell therapies.

Key words: Stem cells, Cell therapy, Embryogenesis, Differentiation.

Células-tronco como fonte de tecidos para transplante

Ao longo dos anos, diversos órgãos e tecidos do corpo humano perdem progressivamente sua capacidade de funcionamento, seja por causa de alguma doença ou pelo processo normal de envelhecimento. Há então uma grande demanda de reposição desses órgãos, que hoje em dia é atendida por programas de transplante de órgãos. No entanto, por várias razões, esses programas de transplante de órgãos atendem a uma fração muito pequena dos pacientes (5% a 10% nos Estados Unidos), seja por escassez de doadores ou pela atual incapacidade de transplante de certos órgãos ou tecidos, como muscular e nervoso. Além disso, os transplantes de órgãos existentes têm um alto custo, o que é de particular importância para a saúde pública no Brasil, onde são pagos pelo Ministério da Saúde.

Dentro desse contexto, as células-tronco se apresentam como uma fonte potencialmente ilimitada de tecidos para transplante. Células-tronco (CT) podem ser definidas como células com (i) grande capacidade de proliferação e auto-renovação, (ii) capacidade de responder a estímulos externos e dar origem a diferentes linhagens celulares mais especializadas. Assim, teoricamente, estas células poderiam ser multiplicadas no laboratório e induzidas a formar tipos celulares específicos que, quando transplantados, regenerariam o órgão doente. O impacto econômico desta "medicina regenerativa" pode ser avaliado na Tabela 1, que mostra o custo por ano nos Estados Unidos de pacientes com diferentes doenças teoricamente passíveis de tratamento com células-tronco.

Células-tronco adultas

As CTs adultas que mais conhecemos são as presentes na medula óssea, que desde a década de 1950 são utilizadas no tratamento de diferentes doenças que afetam o sistema hematopoiético. Na medula óssea, encontram-se CTs hematopoiéticas, que podem dar origem a todos os diferentes tipos de células do sangue (linfócitos, hemácias, plaquetas, etc.). As CTs estão presentes em muitos tecidos adultos, onde atuam na manutenção dos mesmos, repondo células mortas. Porém, as CTs presentes no adulto eram vistas tradicionalmente como restritas em seu potencial de diferenciação a somente células do tecido onde elas residem. Por exemplo, as CTs hematopoiéticas são capazes de regenerar o sangue após destruição daquele tecido por irradiação, e células do fígado proliferam na tentativa de regenerar aquele órgão.

Porém, nos últimos anos, uma série de trabalhos vem questionando essa visão tradicional das CTs adultas, mostrando indicações de um potencial muito mais amplo de diferenciação, sendo capazes de dar origem a tecidos diferentes daqueles onde elas residem. Alguns deles serão discutidos a seguir.

Uma das primeiras indicações de que as CTs da medula óssea poderiam se diferenciar em tecidos diferentes do hematopoiético veio de um estudo com um modelo animal para distrofia muscular de Duchenne, doença muscular degenerativa causada por mutações no gene da distrofina, uma proteína da parede muscular2. Animais afetados, ou seja, que não produzem a distrofina, foram submetidos a um transplante de medula óssea de camundongos normais. Além de terem sua medula óssea regenerada pelas células do doador, algumas semanas após o transplante, os animais transplantados apresentaram até 10% das fibras musculares contendo aquela proteína. Isto indicava que células derivadas da medula óssea do doador haviam se incorporado ao músculo dos animais distróficos.

Dois anos mais tarde, outro grupo conseguiu demonstrar que na medula óssea do camundongo existem células com uma enorme capacidade de diferenciação in vivo3. Quando injetadas em camundongos receptores, estas CTs derivadas da medula óssea se diferenciaram em células epiteliais do fígado, pulmão, trato gastrointestinal e pele, além é claro de células hematopoiéticas no receptor. Este trabalho representou uma grande quebra de paradigma, e levou vários grupos a explorarem a capacidade terapêutica das CTs da medula óssea em doenças não hematológicas.

Neste sentido, uma das áreas mais exploradas tem sido a cardiologia. Estudos pré-clínicos com modelos animais avaliaram a capacidade terapêutica das células da medula óssea no tratamento de infarto do miocárdio induzido4. Quando injetadas na parede do infarto logo após a ligação da coronária, as CTs de medula óssea promoveram a formação de novo músculo cardíaco que ocupava até 68% da porção infartada do ventrículo. Esse trabalho indicou que a administração local de células da medula óssea pode levar à geração de novo miocárdio, aliviando o efeito da doença coronária.

Os resultados do uso de CTs da medula óssea em cardiopatias em modelo animais justificaram o início de testes em seres humanos. Em um trabalho desenvolvido numa parceria entre a UFRJ, o Hospital Pró-Cardíaco e a Universidade do Texas, catorze pacientes com doença isquêmica grave do coração receberam injeções de células de sua própria medula óssea diretamente no coração5. Os resultados mostraram uma melhora significativa da função contrátil nos pacientes tratados quando comparados com controles após quatro meses do tratamento. Em 2005, foi iniciado no Brasil um teste clínico em larga escala, financiado pelo Ministério da Saúde, onde 1.200 pacientes com diferentes cardiopatias receberão injeções locais de células mononucleares derivadas da própria medula óssea. O estudo pretende avaliar a segurança e eficácia deste tratamento para eventualmente oferecê-lo à população como uma alternativa ao transplante cardíaco.

Apesar destes e outros trabalhos indicarem uma maior plasticidade das CTs da medula óssea, incluindo também a capacidade destas células se diferenciarem em neurônios e hepatócitos6, ainda não está claro se de fato aquelas células estão se transformando em outros tecidos ou se simplesmente estão se fundindo com células daqueles tecidos. Outros trabalhos, ainda, propõem um terceiro mecanismo para o efeito terapêutico das CTs da medula óssea, onde estas estariam secretando fatores que induziriam um processo natural de regeneração do órgão afetado. Fato é que o mecanismo pelo qual as CTs adultas exercem o efeito terapêutico observado em algumas doenças não hematológicas ainda não é conhecido e é tema de controvérsia na comunidade científica.

Enquanto a controvérsia não é resolvida, alguns estudos apresentam evidências indiretas da capacidade de diferenciação mais ampla das células da medula óssea em humanos. Por exemplo, mulheres com leucemia que receberam transplante de medula óssea de doadores homens apresentaram células contendo o cromossomo Y (ou seja, derivadas da medula óssea do doador) em seu cérebro7. Além disso, uma pequena proporção (até 0,07%) havia se diferenciado em neurônios. Esse trabalho demonstrou a capacidade, ainda que com baixa eficiência, das células da medula óssea de entrar no cérebro e gerar neurônios, fenômeno também observado em camundongos. Se esta capacidade puder ser aumentada, um dia as CTs de medula óssea poderão ser utilizadas no tratamento de doenças neurodegenerativas, como Parkinson e Alzheimer.

Terapia celular com CT adultas

Transplantes de células-tronco adultas são realizados desde a década de 1950 na forma de transplantes de medula óssea para o tratamento de diferentes doenças que afetam o sistema hematopoiético. A partir do final da década de 1980, o sangue do cordão umbilical e placentário de recém-nascidos tornou-se uma fonte alternativa de CTs hematopoiéticas8 - no recém-nascido, essas células ainda não migraram para o interior dos grandes ossos e se encontram no sangue circulante com algumas vantagens sobre a medula óssea: não necessita de uma compatibilidade completa entre doador e receptor; apresenta menor risco de desenvolvimento da doença do enxerto versus hospedeiro; e está disponível imediatamente quando necessário, ao contrário dos bancos de medula óssea, que armazenam somente dados sobre o doador. Mais recentemente, o transplante de SCUP vem sendo utilizado também para o tratamento de doenças não hematológicas, especificamente as doenças genéticas do metabolismo síndrome de Hurler9 e da doença de Krabbe10, esta última uma condição neurodegenerativa.

Em 1993, foi inaugurado o primeiro banco de sangue de cordão para uso público nos Estados Unidos (New York Blood Center, Nova Iorque, Estados Unidos ) para complementar os bancos de doadores de medula óssea. Atualmente, os Estados Unidos possuem mais de sessenta mil amostras de sangue de cordão armazenadas para uso público, e pretendem atingir uma meta de 150 mil amostras para poder atender toda sua população.

No Brasil, o Instituto Nacional do Câncer (INCA) foi pioneiro na criação de um banco público de sangue de cordão em 2001. Segundo o site do INCA, hoje a capacidade deste banco é de três mil unidades de sangue de cordão, que deve ser expandida até dez mil amostras. Em 2004, foi criada pelo Ministério da Saúde uma rede nacional de bancos de sangue de cordão (Rede BrasilCord), composta inicialmente pelo INCA, Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE), Hemocentro de Ribeirão Preto e UNICAMP. Segundo o site do HIAE, a Rede BrasilCord tem como objetivo a coleta de vinte mil amostras de sangue de cordão para uso público, o que "atenderá a toda a diversidade genética da população brasileira [...]". Não é claro como este número foi calculado, mas levando-se em conta bancos de sangue de cordão de países como Japão, que até 2006 já tinha vinte mil amostras para atender sua população significativamente mais homogênea do que a nossa, acredito que vinte mil seja uma estimativa muito baixa para a Rede BrasilCord ter algum impacto em saúde pública no Brasil.

Apesar de muito empenho e divulgação, até julho de 2007 somente o INCA e o HIAE atuavam como bancos de sangue de cordão, o que significa que somente partos realizados na Maternidade Municipal Carmela Dutra e na Pró Matre no Rio de Janeiro, e no HIAE em São Paulo são passíveis de terem o sangue de cordão do recém-nascido doado para a Rede BrasilCord. E enquanto as maternidades participantes no Rio de Janeiro atendem a população geral, diversificada, daquela cidade, a única maternidade atuante no Estado de São Paulo, a do HIAE, atende principalmente uma classe econômica que pode arcar com o alto custo de um parto ali. Conseqüentemente, a variabilidade étnica das amostras daquele banco de cordão deve ser muito baixa e não representar toda a diversidade genética da nossa população. Assim, em termos de saúde pública, seria mais eficiente as coletas de sangue de cordão para a Rede BrasilCord serem sempre feitas em maternidades que atendam a diversidade étnica/genética da população brasileira. A iniciativa da criação da rede de bancos públicos no Brasil é de extrema importância para a saúde de nossa população, mas para que tenha de fato impacto, ela deve contemplar a natureza diversificada de nossa população, o que deve se refletir na escolha dos pontos de coleta e em um cálculo realista da meta de número de amostras armazenadas.

Mas e o uso de CTs para o tratamento de doenças mais comuns? O Brasil se destaca pelo grande número de testes clínicos em andamento com CTs adultas, que avaliam o uso terapêutico mais amplo destas células em diferentes doenças, incluindo doenças cardíacas, auto-imunes, como lúpus e diabetes e trauma de medula espinhal (Figura 1). Estes estudos estão em andamento e os resultados preliminares indicam que pelo menos não há efeitos adversos do transplante autólogo de CTs da medula óssea. Resta ainda analisarmos se existe algum efeito terapêutico das mesmas naquelas doenças. É importante frisar que os esses tratamentos são experimentais e ainda não podem ser oferecidos à população.


Finalmente, novas fontes de CTs adultas vêm sendo caracterizadas e incluem material lipoaspirado11 e a polpa do dente de leite12. Ainda é cedo para sabermos quais dessas células cumprirão sua promessa terapêutica, mas elas ilustram o quanto ainda temos que aprender sobre os diferentes nichos de CTs no organismo adulto.

Células-tronco embrionárias

Em animais, o desenvolvimento embrionário começa com a fecundação de um óvulo por um espermatozóide. As primeiras divisões celulares dão origem a cinqüenta a cem células aparentemente idênticas. Porém, à medida que o embrião se desenvolve, suas células iniciam um processo de diferenciação, se comprometendo em dar origem a tipos específicos de tecido do indivíduo adulto. A primeira etapa de diferenciação visível no embrião de camundongo se dá quando este atinge o estágio de blastocisto (Figura 2). Ali, observa-se duas populações distintas de células: aquelas que vão dar origem aos tecidos extra-embrionários, como a placenta, e outras, as células da chamada massa celular interna (MCI), que darão origem a todos os tecidos do embrião. E apesar destas células terem este potencial amplo, ainda não foi determinado em que tecido cada uma se transformará, ou seja, elas são células indiferenciadas.


As células da MCI do blastocisto podem ser retiradas do embrião e colocadas em placas de cultura. Em condições apropriadas, elas podem se manter indiferenciadas, se multiplicar indefinidamente no laboratório mantendo seu potencial de contribuir para todos os tipos celulares adultos. Essas células derivadas da MCI são chamadas de células-tronco embrionárias (CTs embrionárias). Elas foram derivadas pela primeira vez em 1981 a partir de embriões de camundongos13, e têm como característica principal sua pluripotência. Ou seja, quando re-introduzidas em um embrião, as CTs embrionárias possuem a capacidade de retomar o desenvolvimento normal colonizando diferentes tecidos do embrião uma demonstração contundente de sua ampla plasticidade. Quando injetadas em animais imunodeficientes, as CTs embrionárias têm a capacidade de responder aos diferentes estímulos in vivo se diferenciando desorganizadamente e levando à formação de teratomas, tumores que apresentam diversos tipos de tecidos.

As CTs embrionárias também podem ser induzidas a iniciar um programa de diferenciação in vitro, simulando o desenvolvimento de um embrião pré-implantado14. Através de análises morfológicas, imuno-histoquímicas e moleculares, uma grande variedade de linhagens embrionárias pode ser identificada na massa celular diferenciada, incluindo hematopoiética, neuronal, endotelial, cardíaca e muscular. Assim, as CTs embrionárias são utilizadas como modelo in vitro de desenvolvimento embrionário precoce, o que as torna um poderoso instrumento de pesquisa para o estudo dos mecanismos de diferenciação celular e dos efeitos de substâncias tóxicas e biologicamente ativas no desenvolvimento embrionário15, entre outros.

Mas se pretendemos utilizar as CTs embrionárias como fonte de tecidos para transplante, a diferenciação desorganizada em vários tecidos ou a formação de teratomas não nos interessa. Por isso, uma série de protocolos foram desenvolvidos de forma a direcionar a diferenciação das CTs embrionárias no laboratório em tipos específicos de células. Assim, trabalhando em camundongos, aprendemos a transformá-las em células nervosas, ou produtoras de insulina, ou do músculo cardíaco, ou da medula óssea, entre outras. E mais, quando estas células derivadas das CTs embrionárias são transplantadas em animais doentes, elas exercem um efeito terapêutico em modelos de várias doenças, incluindo doença de Parkinson, paralisia por trauma de medula espinhal, diabetes e leucemia. Ou seja, a terapia celular com CTs embrionárias já está comprovada em modelos animais, e por isso o enorme entusiasmo da comunidade científica em torná-las uma realidade em seres humanos.

Em 1998, foram estabelecidas as primeiras linhagens de CTs embrionárias humanas, derivadas de embriões excedentes de ciclos de fertilização in vitro16. Como as CTs embrionárias de camundongo, estas células são derivadas de um embrião na fase de blastocisto, e são capazes de se transformar em qualquer tecido do indivíduo adulto.

Desde então, uma série de trabalhos foram realizados no intuito de desenvolver métodos para produzir diferentes tecidos para transplante a partir das CTs embrionárias humanas. Hoje, somos capazes de transformar estas células em células da medula óssea, pancreáticas, de pele, músculo, cartilagem e neurônios, entre outras. Assim, essas células apresentam um grande potencial em medicina regenerativa, tanto como fonte de tecidos para transplantes quanto como modelo para o estudo do desenvolvimento embrionário humano.

Terapia celular com CTs embrionárias

O título original deste artigo era "A importância do uso das células tronco embrionárias para a saúde pública". Porém, apesar da enorme expectativa do uso terapêutico destas células, até julho de 2007, não havia nenhum teste clínico com CTs embrionárias em seres humanos em andamento no mundo todo, e por isso alterei o título para poder incluir outros tipos de CTs, mais próximos de ter algum impacto em saúde pública. Antes de começarmos testes clínicos injetando CTs embrionárias em pacientes, temos algumas questões fundamentais que devem ser resolvidas.

A primeira diz respeito à segurança dessas células. Se por um lado sua plasticidade as torna uma fonte de qualquer tecido para transplante, por outro ela representa um perigo. Quando injetadas em seu estado nativo em camundongos imunodeficientes, as CTs embrionárias podem formar teratomas, tumores compostos de vários tecidos diferentes. Assim, antes de injetarmos estas células no paciente (seja ele um camundongo ou uma pessoa), temos que, primeiro, induzi-las no laboratório a se transformar no tipo celular que nos interessa. Caso contrário, no organismo elas se multiplicam e podem se diferenciar descontroladamente formando tumores. Ou seja, antes de utilizarmos as CTs embrionárias como fonte de tecidos para transplante, temos que domar a diferenciação destas células para que elas gerem apenas os tecidos de interesse.

Uma segunda questão importante diz respeito à compatibilidade entre as CTs embrionárias e o paciente. Em qualquer transplante, é necessário existir uma compatibilidade entre doador e receptor para que o órgão não seja rejeitado. O mesmo deve acontecer com um transplante de CTs embrionárias. Como garantir que teremos CTs embrionárias compatíveis com todos os pacientes? Uma forma seria criar um banco dessas células, cada uma derivada de um embrião diferente, e procurar uma compatível com o paciente. Porém, nossa experiência com bancos de medula óssea demonstrou que isso é extremamente difícil de se conseguir.

Uma alternativa seria então criar CTs embrionárias "sob medida", ou seja, geneticamente idênticas ao paciente. Com as técnicas de clonagem, podemos criar um embrião clonado do paciente e dele extrair as CTs embrionárias17. Estas poderiam então gerar tecidos 100% compatíveis com o paciente. Esta técnica chama-se clonagem terapêutica e, apesar de já ter sido realizada em diferentes modelos animais, até julho de 2007 não havia sido feita com sucesso em seres humanos. Além disto, dada a necessidade de um grande número de óvulos para cada clonagem terapêutica, esta estratégia não é promissora como forma de terapia para a população geral. Por isso, novas estratégias deverão ser desenvolvidas para a geração de tecidos imunocompatíveis a partir de CTs embrionárias humanas de forma a viabilizar seu uso terapêutico em larga escala.

É importante ressaltar que, apesar da clonagem terapêutica resolver a questão da compatibilidade das CTs embrionárias, infelizmente ela não poderia ser utilizada em indivíduos com doenças genéticas. As CTs embrionárias geradas a partir das células destes pacientes também carregariam o gene defeituoso, e por isso não seriam capazes de gerar tecidos sadios para transplante. Assim, para o tratamento de doenças genéticas com CTs - sejam elas embrionárias, da medula ou do sangue do cordão -, a melhor alternativa é conseguir um doador aparentado, que tem maior chance de ser compatível com o paciente.

E enquanto não podemos utilizá-las como agente terapêutico, temos muito a aprender com as CTs embrionárias. Ao desvendarmos os mecanismos envolvidos em sua capacidade de se transformar em qualquer tipo de célula, aprendemos sobre a biologia do ser humano - esses conhecimentos básicos trarão ao longo prazo grande benefícios à saúde humana.

A polêmica das CTs embrionárias

A obtenção de CTs embrionárias envolve obrigatoriamente a destruição do embrião, especificamente, de um blastocisto - um embrião pré-implantação de cinco dias – basicamente um conglomerado amorfo de cem a duzentas células. No entanto, certas culturas/religiões atribuem ao embrião humano desde o momento da fecundação o status de vida com todos os direitos de uma pessoa já nascida - e por isso a destruição daquele embrião é inaceitável e as CTs embrionárias têm sido tema de grande polêmica no mundo todo: este embrião é uma vida humana ou não?

Ora, é claro que ele é uma forma de vida, assim como um óvulo e um espermatozóide também são. A real questão é "que formas de vida humana nós permitiremos perturbar?" A vida humana já é legalmente violada em algumas situações: por exemplo, no Brasil, reconhecemos como morta uma pessoa com morte cerebral, apesar de seu coração ainda bater. Esta é uma decisão arbitrária e pragmática, que nos facilita o transplante de órgãos, e que não é compartilhada por outros povos que só consideram morta aquela pessoa cujos órgãos vitais pararam de funcionar. E no outro extremo da vida humana, durante o desenvolvimento embrionário? Ao proibirmos o aborto, estabelecemos ser inaceitável a destruição de um feto. Por outro lado, se este feto for o resultado de um estupro ou representar risco de vida para a gestante, no Brasil ele passa a ser uma forma de vida humana que pode ser eliminada.

No que diz respeito às CTs embrionárias, o embrião em questão é muito mais jovem, ainda não tem forma e está numa proveta, e não implantado no útero. Ao aceitarmos as técnicas de reprodução assistida em 1978, aceitamos a destruição deste embrião, desta forma de vida humana. Sim, há quase trinta anos que em todo mundo esta prática médica gera embriões humanos que não são utilizados para fins reprodutivos e acabam sendo congelados ou simplesmente descartados – e convivemos com este fato com muita tranqüilidade. Por que só agora, quando estes embriões esquecidos em congeladores podem nos ajudar a entender melhor a biologia humana e a achar novos tratamentos para doenças, se tornou inaceitável destruí-los? Foi muito conveniente ignorar os embriões excedentes da reprodução assistida, pois afinal esta técnica permitiu que milhares de casais estéreis realizassem o sonho de ter filhos. Enquanto isso, o uso das CTs embrionárias para tratar um enfarte ou Parkinson ainda está restrito a animais de laboratório. Talvez no dia que estas células estiverem efetivamente sendo usadas em pacientes seja mais difícil proibir o uso terapêutico daqueles embriões não desejados por seus pais biológicos.

No Brasil, o uso do embrião humano foi regulamentado pela Lei de Biossegurança (Lei 11.105), de 24 de março de 2005, que diz:

Art. 5º

É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições:

I – sejam embriões inviáveis; ou

II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento.

§ 1º Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores.

§ 2º Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa.

Art. 6º Fica proibido:

[...]

IV – clonagem humana;

Apesar da proibição ampla da clonagem humana tornar ilegal a clonagem terapêutica, a aprovação do uso de embriões congelados para pesquisa permite o desenvolvimento de novas linhagens de CTs embrionárias humanas no Brasil, o que será fundamental para a consolidação dessa área de pesquisa no país. Em conclusão, o uso terapêutico da CTs embrionárias ainda está longe de se tornar uma realidade, tanto no Brasil quanto no mundo todo. Porém, para que exista alguma chance disso um dia acontecer, precisamos pesquisar – e foi este direito que adquirimos no Brasil, permitindo que tenhamos autonomia no desenvolvimento de terapias com estas células.

Conclusões

Em conclusão, pode-se afirmar que as pesquisas com os diferentes tipos de células-tronco devem ser acompanhadas com entusiasmo e cautela. É inerente de toda área de pesquisa em desenvolvimento avanços e retrocessos, e ainda não sabemos quais tipos de células cumprirão a promessa terapêutica e serão as mais adequadas para o tratamento de quais doenças. E enquanto desenvolvemos as pesquisas voltadas ao desenvolvimento de terapias com CTs, temos que ter sempre em mente que estas deverão ser disponibilizadas para toda a nossa população. Com freqüência as técnicas médicas mais avançadas ficam restritas a uma pequena parcela da população que pode pagar por ela. Porém, no caso das CTs, as novas terapias provavelmente substituirão as atuais mais caras e ineficientes (como, por exemplo, um transplante de fígado ou coração). Além disto, as CTs devem ser vistas não só como um agente terapêutico, mas como um modelo de pesquisa onde podemos estudar os mecanismos por trás da diferenciação celular, desenvolvimento embrionário e câncer, entre outros. Esses conhecimentos de biologia básica poderão, por sua vez, levar a uma real melhora da qualidade de vida humana.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jan 2008
  • Data do Fascículo
    Fev 2008
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