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História, saúde e seus trabalhadores: o contexto internacional e a construção da agenda brasileira

History, health and health workers: the international context and the construction of the Brazilian agenda

DEBATEDORES DISCUSSANTS

História, saúde e seus trabalhadores: o contexto internacional e a construção da agenda brasileira

History, health and health workers: the international context and the construction of the Brazilian agenda

José Paranaguá de Santana

Unidade Técnica de Políticas de Recursos Humanos, Organização Pan-Americana da Saúde, Organização Mundial da Saúde. paranagua@bra.ops-oms.org

A América Latina apresenta condições muito favoráveis ao estudo das relações entre história e saúde, na abordagem proposta de análise das trajetórias das agendas global, regional e nacional no campo de recursos humanos de saúde. O esforço para o desenvolvimento de experiências nacionais contou, praticamente em todos os casos, com a contribuição de lições aprendidas em outros países ou, pelo menos, recebeu forte influência das concepções germinadas ou veiculadas por organismos supranacionais, destacadamente a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), circunstancia histórica já apontada no texto apresentado para debate.

E a experiência do Brasil se presta muito bem para compor a terceira esfera de estudo nesse marco de referência geopolítico, pela sua participação no desenvolvimento das agendas internacionais de forma progressivamente mais expressiva nas últimas três décadas. Essa interdependência das agendas tem sido marcante e persistente já a partir de meados do século passado, com a presença de especialistas brasileiros em saúde pública e em educação das profissões de saúde nas diversas comissões, reuniões técnicas e conferências sobre os temas do planejamento, da formação profissional e da regulação do trabalho em saúde, organizadas pela OPAS e por entidades nacionais na América Latina, bem como no contexto mais amplo da Organização Mundial da Saúde (OMS) e de países de outras regiões.

Nos últimos trinta anos, a agenda nacional no campo dos recursos humanos em saúde tem adquirido características que a diferenciam do conjunto dos países membros da OPAS/OMS, processo que seguramente vincula-se ao desenvolvimento de outro mais abrangente e determinante - a concepção e desenvolvimento da Reforma Sanitária Brasileira, em suas dimensões conceitual, jurídica e organizacional, materializada no Sistema Único de Saúde (SUS). O processo histórico de consolidação do sistema nacional de saúde determinou uma trajetória singular para a agenda brasileira de gestão da educação e do trabalho em saúde, inclusive a busca de mais ampla e intensa articulação com a agenda pan-americana e global.

A compreensão sobre a dinâmica dessa tríplice agenda, apontada como a primeira questão para discussão pelos autores do texto em debate, em especial a abordagem de suas semelhanças e particularidades, que corresponde à segunda indagação posta sob o foco da ciência histórica, teria muito a ganhar com o alargamento da perspectiva temporal, adotando como período de análise toda a metade do século passado até os dias atuais. Desse modo, a análise desse processo, tanto em termos de seus problemas e determinantes, bem como das intervenções adotadas para equacioná-los, deveria levar em conta sua evolução ao longo do período que se inicia ao final da Segunda Guerra Mundial, quando foi criada a Organização Mundial da Saúde.

As bases da discussão ora apresentada podem ser encontradas no texto didático elaborado para o Curso Internacional de Gestão de Políticas de Recursos Humanos em Saúde (CIRHUS), oferecido pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/FIOCRUZ) com apoio da OPAS/OMS. A versão inicial desse texto, em inglês, foi apresentada em reunião da Associação Latino-Americana de Escolas de Saúde Pública (ALAESP), realizada em Santiago do Chile, em dezembro de 20051.

A periodização proposta tem relação com a formulada por Fulöp & Roemer2, em trabalho publicado em 1982 sobre as políticas relativas à força de trabalho de todo o mundo nas três décadas após a criação da OMS. Para o caso atual, visando estudar a trajetórias das agendas internacional, da América Latina e do Brasil, propõe-se a divisão em períodos de vinte anos, com sobreposição de uma década entre cada um dos períodos. Sobre essa segmentação histórica, que não escapa à crítica comum a toda formulação desse gênero, apresenta-se apenas o argumento favorável de que busca atenuar a falsa impressão de mudança abrupta entre um período histórico e o que lhe antecede e, igualmente, o que vem a seguir. Ademais, parte do reconhecimento de que as políticas adotadas em um dado período geralmente persistem, produzindo efeitos sinérgicos ou antagônicos com as orientações hegemônicas formuladas no novo período.

A contextualização de cada período, apresentada como sugestão de termo de referência para o estudo dos cenários dessa tríplice agenda, tomou como pano de fundo os "cenários" delineados pela OPAS em 20023, em seu abrangente relatório sobre o estado da arte da saúde pública no continente americano. Após a sinopse sobre cada período, apresenta-se um breve comentário à guisa de argumento para a investigação histórica proposta nesse debate.

Período 1950-1970: cenário do fim da segunda Guerra Mundial, com a emergência dos Estados Unidos da América como potência internacional e sua disposição para apoiar o desenvolvimento na América Latina, focalizado no crescimento econômico e na preocupação com a expansão demográfica e menor atenção para as graves deficiências nos setores sociais em todos os países da América Latina.

Com respeito ao setor saúde, os problemas reconhecidos eram a elevada incidência de doenças infecciosas, a alta mortalidade infantil e da baixa expectativa de vida, constatações agravadas pela falta de informação e limitada capacidade de gestão dos serviços nacionais de saúde. No tocante à agenda da força de trabalho nesse setor, os problemas apontados eram a escassez de todos os tipos profissionais, o número insuficiente de centros de treinamento, a falta de bibliotecas e livros de texto e a abordagem educacional tradicional com baixa capacidade de responder às demandas das populações desassistidas. Nesse cenário, firmou-se o reconhecimento tácito da "assistência estrangeira suplementar" como elemento fundamental para satisfazer as necessidades básicas dos países latino-americanos nessas áreas.

A despeito da projeção mais ou menos uniforme dos efeitos dessa agenda, que refletia a posição do país mais rico da região, há fortes indícios de que as medidas da ajuda externa e seus desdobramentos foram muito heterogêneos em cada país. No caso do Brasil, diversos fatos corroboram a hipótese da singularidade de sua agenda nacional, embora sempre referida aos contextos regional e mundial. O elenco de evidências nesse sentido inclui a criação do Ministério da Saúde; o revigoramento da formação em saúde pública com a criação da atual Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/FIOCRUZ); a implantação de departamentos de medicina preventiva ou saúde publica nas escolas médicas (nas já existentes e nas novas criadas na enxurrada de novos cursos que ocorreu nesse período); a implantação de várias novas modalidades de graduação (nutrição, psicologia, fisioterapia, etc.); a ampliação da oferta de cursos já tradicionais como de enfermagem, farmácia e odontologia; o expressivo crescimento da residência médica.

Período 1960-1980: cenário de aquecimento e desmobilização da Guerra Fria. Após a Conferência de Punta del Este em 1962, o planejamento governamental como ferramenta de desenvolvimento nacional virou moda na América Latina, com a crença no papel do Estado na economia e o tônico da concepção desenvolvimentista de industrialização com substituição de importações. No plano político, se acentua a estratégia de combate ao comunismo na forma de ditaduras militares e proliferam as escaramuças localizadas como expressão de uma nova forma de conflito global, mutante da guerra convencional estimulada pela indústria bélica.

No cenário de interesse desse debate, ocorreu uma expansão significativa na oferta de profissionais de saúde, buscando ajustá-la à proliferação de serviços de saúde que se deu nesse período, em grande medida associada aos processos de desenvolvimento industrial e urbanização nos países da América Latina. O crescimento da estrutura de serviços de saúde e o perfil dos profissionais aí atuantes orientaram-se primordialmente para o atendimento hospitalar e especializado em serviços do setor privados. O setor público continuava a lidar com doenças transmissíveis e problemas de saneamento básico.

Nesse contexto, ampliaram-se as análises críticas sobre as distorções entre a oferta de serviços majoritariamente privados, a especialização profissional, a ênfase nas estruturas hospitalares e, de outro lado, as necessidades das populações pauperizadas e sem acesso ao atendimento profissional especializado nos hospitais. Eram problemas que a "ajuda externa" não mais poderia ajudar a resolver. Surgiram nas Américas propostas sob as denominações mais correntes de medicina comunitária e medicina social, que no plano internacional galvanizaram a expressão "atenção primária de saúde", ungida pela Conferência Mundial de Saúde4 promovida pela OMS na cidade de Alma-Ata, Ucrânia, em 1978.

A agenda brasileira de recursos humanos em saúde em todo esse período, a despeito da ausência oficial naquele evento marcante, revela-se impregnada da ideologia e das experiências práticas desenvolvidas nos cenários regionais e mundial. Contudo, dentre vários outros de menor importância, sobressai um item de destaque nessa agenda que foi a decisão do governo brasileiro de implantar, a partir de 1975, o Programa de Preparação Estratégica de Pessoal de Saúde – PPREPS5. Essa iniciativa, analisada por historiadores do Observatório de Recursos Humanos da Casa de Oswaldo Cruz6, sustenta uma hipótese de que, a partir daquele momento, se inicia a configuração doutrinária e estratégica de uma agenda cada vez mais genuinamente brasileira no campo de recursos humanos em saúde.

Período 1970-1990: cenário de reconfiguração das relações internacionais. O fracasso do socialismo e a crise econômica dos anos 1980 estimularam a exacerbação do liberalismo – ou neoliberalismo – nas políticas públicas, cujos princípios básicos constituem o que se passou a designar como o Consenso de Washington. Na América Latina, a crise da dívida externa (anos 1970) e "a década perdida" do crescimento econômico (anos 1980) agravam os efeitos negativos da histórica injustiça social (concentração de renda). No plano político, ocorre o surgimento e fortalecimento de movimentos sociais, com progressivo retorno aos regimes democráticos e encerramento de praticamente todas as ditaduras que atormentaram muitos dos países da região.

Nesse período, ocorreu uma série de reformas no setor saúde de praticamente todos os países da região, de forma simultânea ou meramente complementar a reformas do Estado ou reformas econômicas. Enquanto a Declaração de Alma-Ata propugnava uma distribuição eqüitativa da atenção à saúde para todos, os bancos de desenvolvimento, que apoiavam as reformas de corte neoliberal, prescreviam a eficiência dos serviços de saúde mediante ajustes compatíveis com sua operação nos moldes da economia de mercado. O resultado foi um verdadeiro desastre para as populações mais carentes dos países latino-americanos, ou seja, para a maioria de seus cidadãos.

A interpretação predominante sobre a evolução das políticas de recursos humanos em saúde na América Latina é que se desencadeou, de forma mais notável ao longo da década de 1980, um retrocesso ou, pelo menos, uma estagnação da tendência de crescimento da força de trabalho e degradação das condições de trabalho. Essa circunstância, associada ao aumento do custo dos serviços de saúde resultante da intensa e indiscriminada incorporação de tecnologia, certamente contribuiu para neutralizar ou adiar a concretização do ideário aprovado em Alma-Ata, de "Saúde para Todos" e sua estratégia de "atenção primária em saúde".

No curso da conjectura histórica proposta anteriormente, se fortalece a hipótese de consolidação de uma agenda nacional no campo de recursos humanos em saúde, que não apenas reflete e dialoga com as agendas internacionais, mas inclui processos restritos ao contexto nacional de grande envergadura, tanto em termos de seus propósitos como de seus desdobramentos de longo prazo: o Projeto PPREPS (1975); o Projeto de Formação de Pessoal de Nível Médio em Saúde7 (1985); a 1ª Conferência Nacional de Recursos Humanos em Saúde8 (1986); e o Projeto CADRHU9 (1987). Ou seja, há sinais muito claros de que, no curso desse período que simbolicamente se encerra em 1990, desencadeou-se a autonomia na formulação e condução de uma agenda brasileira no campo de recursos humanos de saúde, processo que merece a atenção dos historiadores, de modo a confirmar a veracidade dessa hipótese e, o que seria mais importante, iluminar, com a visão analítica do passado, o caminho do futuro.

A história mais recente aponta três processos muito significativos: a organização da Rede de Observatórios de Recursos Humanos de Saúde, formalmente instituída em 1999; o Projeto de Profissionalização dos Trabalhadores da Área de Enfermagem (PROFAE), implantado no ano 2000; e a criação da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde, em 2003. No primeiro caso, ressalta o protagonismo do Brasil nesse campo essencial para a formulação, acompanhamento e avaliação das políticas nesse campo da saúde. O PROFAE constitui o maior projeto de investimento em formação de pessoal de nível médio em saúde já realizado por um país latino-americano. A criação de um órgão de reitoria da política nacional de educação e trabalho em saúde, que se desdobrou em medidas similares no âmbito dos gestores estaduais e municipais, contrasta com a redução do aparato estatal do setor saúde prevalente em outros países da região.

A referência a esses três processos, situados temporalmente fora do período histórico proposto, não pretende aproximá-los por sua natureza política e técnica, dada a evidente diferença entre os mesmos no tocante a esses aspectos. A relação entre eles reside mais na intenção de dizer que os três casos culminaram um processo que evoluiu ao longo das últimas décadas do século passado, como frutos cujas sementes podem ser encontradas no projeto que foi tomado como marco desse ciclo histórico, o PPREPS, em meados da década de 1970. Sementes que germinaram e evoluíram no leito fértil do Movimento Sanitário, contexto da agenda brasileira de recursos humanos em saúde que ora se projeta interativamente no cenário regional e global. A intenção era dizer que esses tres casos culminaram um processo que evoluiu ao longo das ultimas decadas - frutos cujas sementes podem ser encontrada no Ppreps, tomado como marco dessa historia, em meados da decada 1970.A intenção era dizer que esses tres casos culminaram um processo que evoluiu ao longo das ultimas decadas - frutos cujas sementes podem ser encontrada no Ppreps, tomado como marco dessa historia, em meados da decada 1970.O objetivo é corroborar a validade da conjectura posta em debate, desafiando a ciência histórica para sua apreciação.

  • 1. Ferreira JR, Campos FE, Santana JP. The evolution of human resources development in the health sector in Latin America [acessado 2008 Abr 12]. Disponível em: http://www.opas.org.br/rh/areas_doc.cfm? id_ area=1
  • 2. Fulöp T, Roemer M. International Development of Health Manpower Policy WHO Offset Publication nş 61. Geneva: WHO; 1982.
  • 3. PAHO/WHO. Public Health in Americas Scientific and Technical Publication nş 589. Washington, D.C.: PAHO/WHO; 2002.
  • 4
    Conferência Internacional sobre Atenção Primária em Saúde, Alma-Ata, 6-12 set. 1978. Genebra: Organização Mundial da Saúde; 1978. 91 p. [Série Saúde para Todos]
  • 5
    Programa de Preparação Estratégica de Pessoal de Saúde – PPREPS. Brasília: MS/MEC/OPAS; 1976. [acessado 2008 Abr 12]. Disponível em: http://www.opas.org.br/rh/pub_det.cfm?publicacao=24
    » link
  • 6. Pires-Alves FA, Paiva CHA. Recursos críticos. História da cooperação técnica OPAS-Brasil em recursos humanos para a saúde (1975-1988). Rio de Janeiro: Fiocruz; 2006.
  • 7
    Portaria CIPLAN N° 15, de 11 de novembro de 85. [acessado 2008 Abr 12]. Disponível em: http://www.opas.org.br/rh/pub_det.cfm?publicacao=31
  • 8. Conferência Nacional de Recursos Humanos para a Saúde -1986. Relatório Final. Brasília: Ministério da Saúde; 1986. 54 p.
  • 9. Santana JP, Castro JL, organizadores. Capacitação em desenvolvimento de recursos humanos de saúde - CADRHU Natal: EDUFRN; 1999. [acessado 2008 Abr 12]. Disponível em: http://www.opas.org.br/rh/pub_det.cfm?publicacao=7

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jan 2009
  • Data do Fascículo
    Jun 2008
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