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O mundo envelhece: é imperativo criar um pacto de solidariedade social

The world is ageing: create a pact of social solidarity is an imperative

DEBATEDORES DISCUSSANTS

O mundo envelhece: é imperativo criar um pacto de solidariedade social

The world is ageing: create a pact of social solidarity is an imperative

Renato Maia Guimarães

International Association of Gerontology and Geriatrics. remaig@phoneplus.com.br

O texto de Alexandre Kalache expõe com clareza alguns importantes aspectos do envelhecimento populacional. Os mais pessimistas ficarão alarmados e o qualificarão como descrição de um naufrágio programado. Contudo, a verdadeira ameaça não é o aumento da esperança de vida e, conseqüentemente, do números de idosos: é a redução da esperança de vida na África sub-sahariana em decorrência da SIDA/AIDS ou ainda na Rússia pós-comunismo. Reconheça-se que o panorama demográfico que começa a se delinear demanda reflexão. O país eternamente jovem ficou para trás: surge no horizonte o país maduro. Curiosamente, o "mundo velho" demanda "postura nova". No momento em que a geração 68 vislumbra o universo da velhice, espera-se que o "é proibido proibir" dos anos sessenta seja agora renovado, em momentos distinto e diverso, como demanda por um pacto para um mundo que envelhece.

A esperança de vida é um indicador de desigualdade. Até os anos trinta do século passado, a esperança de vida era diretamente proporcional ao produto interno bruto dos países. A partir de então, passou a haver uma indisciplina da "longevidade", com resultados evidentes a partir da década de setenta. Velhice deixou de ser apanágio de país rico, passando a constituir fenômeno também dos países em desenvolvimento. Os Estados Unidos têm uma das maiores rendas per capita do mundo, mas têm esperança de vida inferior à da pobre vizinha, Cuba, ou ainda das alegres e menos ricas Grécia e Espanha. Aparentemente, após atingir-se o patamar de cerca de US$ 3.000,00 per capita, a esperança de vida dos países deixa de ser influenciada apenas pela renda bruta e se associa à eqüidade na distribuição da riqueza. A Flórida é mais rica, mas apresenta profunda desigualdade na divisão de renda quando comparada a Cuba, pobre mas não tão desigual. O Japão e a Suécia estão no topo da esperança de vida não apenas pela renda bruta, mas pela mais justa distribuição da riqueza. Michael Marmot apresenta inúmeras evidências do impacto social na saúde e na mortalidade, qualificando-o como "gradiente social". Dessa forma, a demanda por uma sociedade mais justa e com melhor distribuição de renda é um pré-requisito para que "viver mais e melhor " seja direito de todos e não apenas dos que habitam o topo da pirâmide social. Kalache está certo ao pedir um pacto.

Diz-se com malícia que, quando o governo de Bismark estipulou em 65 anos a idade para a aposentadoria, não o fez por recomendação de qualquer cientista social ou demógrafo, mas sim por saber que poucos sobreviveriam até a idade adotada como referência. Este ou qualquer outro argumento não desqualifica a importância daquela ação de política social. Muitos países, entre eles o Brasil, a despeito da revolução demográfica e do aumento da esperança de vida, não ousaram adotar a referência de Bismark, como se persistíssemos um país da "morte Severina", onde se morre de velhice aos trinta. O percentual de belgas que trabalham após os 58 anos é mínimo. No Brasil, existem oito vezes mais aposentados antes de 65 anos do que pessoas com mais de 75 anos recebendo aposentadoria. É necessário aprimorar a política de aposentadoria fugindo da visão economicista de plantão, que tem na ponta da língua o tamanho do déficit público. A despeito de imperfeições, reconheça-se que o aprimoramento da aposentadoria no Brasil nos últimos anos possibilitou, segundo pesquisa divulgada pela Fundação Getúlio Vargas, aumento de cerca de 10% do número de idosos que qualificam sua saúde como boa. A internação hospitalar caiu em igual porcentual. Não se propõe que o benefício da aposentadoria seja concedido somente a quem esteja prestes a perder o benefício da vida, nem tampouco concedê-lo aos "novos jovens" de 50 anos, como se a aposentadoria fosse um "feriadão" a ser vivenciado com dinheiro no bolso. Rever a política de aposentadoria não deve ser encarado como simples discussão da idade mínima para aposentar-se, mas também assumir que privilégios não cabem, que é inoportuno pretender premiar os mais espertos quando o objetivo é garantir o bem-estar de todos num período de maior vulnerabilidade da vida.Também aqui cabe o clamor por um pacto social.

Olhar para a saúde dos velhos apenas no momento em que se amontoam nas salas de espera dos poucos ambulatórios que têm sala de espera é um convite ao erro. A saúde é um capital construído ao longo da vida, desde a gestação, no qual são feitos investimentos e saques. O maior investimento é a educação, sem dúvida o grande pilar da vida de todos e o mais importante promotor de saúde e longevidade. O maior saque é a ignorância individual ou coletiva. Ao nível do indivíduo, prepondera a ignorância associada à baixa educação, às crenças em relação à própria saúde, ao deslocamento do "lócus de controle" de sua saúde para Deus, para o destino ou até mesmo médicos, na vã esperança de que a capacitação técnica dos doutores poderá fazer mais pelo enfermo do que seu comportamento no dia-a-dia: na alimentação, no sedentarismo, nos abusos de álcool e tabaco. Entre os saques da ignorância coletiva, há que se colocar a incapacidade do poder público de entender que saúde não implica apenas mais hospitais e remédios, mas também a educação para a saúde, a prevenção, o controle dos fatores de risco e a preservação do meio ambiente. Assim, as doenças crônicas são "construídas" ao longo dos anos, transformando-se num tributo a ser pago por quem envelhece. Mantendo uma tradição amarga, no Brasil o peso será maior para aquele que não teve acesso a medicamento para hipertensão ou diabetes do que para o outro com bom nível educacional e que pode ser beneficiado pelos avanços da medicina. Concordo também com Kalache quando se coloca em foco a doença mental. Até então a doença mental tem atraído relativamente pouca atenção ao nível da saúde comunitária, como se uma infecção bacteriana, para qual existe tratamento, fosse mais importante do que a demência, transtorno que atinge cerca de um milhão de brasileiros, e para o qual inexiste remédio. Ignorar que os riscos de dano ao cérebro aumentam com a idade implica desconhecer as conseqüências deste fato. O cuidado do velho com doença de Alzheimer, por exemplo, está quase que relegado às famílias, com se ao poder público não coubessem responsabilidades. Kalache, contudo, enfatiza a importância da depressão, o que me leva uma vez mais a apoiá-lo. Chamem-na doença do século ou doença da sociedade moderna, mas o que importa é o impacto negativo no indivíduo, fruto do sofrimento psíquico, ou na sociedade, por dias perdidos de trabalho e custos para os sistemas de saúde e previdência. Um fator de amplificação deste impacto decorre do não diagnóstico e conseqüentemente do não tratamento. Um grande número de idosos, que atrevo a estipular em milhão, apresentam sintomas importantes de depressão, mas têm suas queixas encaradas como expressão da velhice ou de sentimentos apropriados para quem está doente e tem a vida marcada por perdas. Nada mais equivocado. O reconhecimento e o correto tratamento da depressão em idosos é a alternativa mais acessível e rápida, para melhorar a qualidade de vida de milhares de pessoas.

Concordo com a proposta da criação de um pacto social relativo ao envelhecimento.Na realidade brasileira, este pacto tem características próprias, pois implica também um pacto de cidadania, de inclusão e de respeito às leis, como aquelas aplicáveis aos idosos e que servem apenas para enfeitar discursos vazios dos sócios do poder.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jul 2008
  • Data do Fascículo
    Ago 2008
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